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Minha família Enauenê

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ilustrações

Anabella López

Rita Carelli

Rita Carelli

ilustrações

edição Porto Alegre – 2021
Anabella López 1ª.

Copyright © Rita Carelli, 2021

Todos os direitos reservados à

EDITORA MEDIAÇÃO DISTRIBUIDORA E LIVRARIA LTDA.

Rua Ramiro Barcelos, no 344, sala 2 Bairro Floresta – Porto Alegre – RS

CEP 90035-000

Tel. (51) 3204-8100 faleconosco@editoramediacao.com.br www.editoramediacao.com.br

Editor assistente Bruno Salerno Rodrigues Revisoras Lívia Perran e Marina Nogueira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carelli, Rita Minha família Enauenê / Rita Carelli; ilustrações Anabella López. – 1. ed. – Porto Alegre : Editora Mediação, 2021.

ISBN 978-65-5538-020-0 (aluno)

ISBN 978-65-5538-021-7 (professor)

1. Índios – Literatura infantojuvenil

2. Literatura infantojuvenil I. López, Anabella. II. Título.

21-86039 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Índios: Literatura infantil 028.5

2. Índios: Literatura infantojuvenil 028.5

Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

Para minhas duas mães:

Virginia e Kawenero

Para meus dois pais:

Vincent e Ataina

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Eu vou contar a vocês como eu me tornei um menino e voltei a ser uma menina. Comecemos do início. Eu tive uma infância… bem, um pouco diferente. Passei parte dela em uma aldeia indígena, no Mato Grosso, com um povo que se chama

Quem consegue repetir?

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Os Enauenê-Nauê, mesmo morando no Brasil, falam uma língua diferente do português. Lá na aldeia, as paredes das casas são feitas de palha, e nossa cama é a rede. O banho é no rio, e o futebol eles jogam só com a cabeça. Não tem sofá nem televisão, mas que coisa boa é a vida na aldeia!

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Quando chove, na cidade, os pais e as mães logo chamam as crianças: “Entrem depressa ou vocês vão ficar doentes!”. Pois na aldeia acontece justamente o contrário: a gente corre pra fora e o banho de chuva vira festa.

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Quando cheguei, ganhei uma mãe e um pai a mais. Isso porque os índios tinham “casado” a minha mãe com o velho Ataina, o pajé da aldeia, e o meu pai com Kawenero, a esposa de Ataina. Então, o meu irmão e eu passamos a ter uma segunda mãe, um segundo pai, e todos os filhos dos nossos novos pais se tornaram nossos irmãos. Você tem irmão ou irmã? Bem, a partir daquele dia nós ganhamos catorze!

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Nós passávamos os dias com os nossos irmãos entre banhos de rio e peixes defumados, entre jogos de arco e flecha e bandos de papagaios… Opa, mas esperem um pouco, estamos avançando rápido demais. No começo, as coisas não eram bem assim; havia um probleminha: eu era uma menina. E lá, sabe, ser menina é um pouco chato. Bem, ao menos era o que eu pensava muitos anos atrás, na época em que esta história se passa.

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Eu via as minhas irmãs o dia inteiro dentro das grandes e sombreadas casas de palha. Elas ajudavam a preparar a comida, a vigiar o fogo, a cuidar dos bebês e em uma porção de outras tarefas. Enquanto lá fora o sol brilhava, os meninos brincavam, o rio corria e as árvores estendiam seus galhos pra quem quisesse subir. Na aldeia, desde muito cedo as meninas andam com as meninas e os meninos com os meninos, sem se misturarem, feito água e óleo, cão e gato, jacaré e jabuti. Então, diante dessa situação, eu decidi… ser um menino!

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Ali, como em todos os lugares, existem regras. As mulheres, por exemplo, são proibidas de passar pelo centro da aldeia. São obrigadas a fazer a volta por trás das casas. Em compensação, ali elas reinam: é lá que põem a conversa em dia, cortam os cabelos, catam os piolhos, contam as histórias… São como dois lados da mesma moeda: o pátio e o lado público da vida são reservados aos homens, enquanto a intimidade da aldeia pertence às mulheres.

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Mas voltemos às vacas-frias: pra provar pra todo mundo que eu tinha me tornado um menino, decidi atravessar a aldeia inteira passando bem pelo centro! Cheia de coragem, ou melhor, cheio de coragem, eu me pus a caminho. Enquanto eu avançava, sentia os olhares assustados fixos em mim, como mariposas atraídas pela luz. Vi a minha mãe branca aparecer na abertura que servia de porta a uma das casas. Ela estava apavorada, mas eu não hesitava: já tinha ido longe demais e agora não havia mais volta. Fora eu, ninguém mexia uma palha.

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Eis que, subitamente, a minha mãe índia se levantou de seu banquinho à porta da nossa casa e, com seus pequenos passos, fez a volta no pátio pra me encontrar do outro lado.

Ela tinha sido a única capaz de uma reação. Ao me alcançar, ela, muito depressa, suspendeu a velha camiseta que eu vestia diante de toda a aldeia. Isso, como eu disse, já faz muitos anos e, naquela época, eu era uma criança e ainda não tinha seios. Era lisa como… um garoto.

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Com esse gesto, ela mostrava pra todo mundo que eu ainda não era realmente uma mulher e que eu podia mesmo ser considerada um rapazinho. E foi assim, de improviso e com muita esperteza, que essa amável senhorinha livrou a minha pele. Como todos na aldeia gostavam de mim e achavam muito engraçada aquela menina branca e levada, do cabelo amarelo, concordaram em fazer vista grossa e aceitar a minha nova condição de menino.

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Quanto a mim, tinha conseguido o que queria: banhos de rio sem fim, competições de arco e flecha, corridas de canoa… Ah, e as partidas de futebol! Sim, porque, como contei, os Enauenê-Nauê também jogam futebol, mas tocando a bola apenas com a cabeça. E, a cada bola perdida ou furada, é preciso andar muito na mata pra encontrar as grandes árvores que produzem borracha, as seringueiras. Então, temos que entalhar a sua casca e esperar longas horas pra recolher a borracha que escorre para, enfim, poder fabricar uma bola nova. Nada de comprar na loja da esquina!

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Assim nós passávamos os dias fora. Até um pouco demais. Certa vez, decidimos organizar uma guerra: os Tupinambá contra os Tupiniquim. Eu havia lido sobre os Tupiniquim no livro de História da escola, e lá dizia que eram esses os índios que tinham encontrado os portugueses quando eles chegaram aqui. Fiquei muito impressionada, me perguntando como é que aqueles meninos que nunca tinham ido à escola podiam saber da existência desses índios que moravam tão longe dali.

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Acontece que os índios caminhavam por toda parte, vendo e ouvindo o que acontecia, e, na cultura deles, cada conhecimento vai passando de bisavô pra avô, de avô pra pai, de pai pra filho, e assim todo mundo acaba sabendo de tudo, talvez até melhor do que a gente, pois a memória tem que funcionar direitinho. Os avós são os maiores tesouros do povo, já que, por terem vivido mais tempo, sabem mais do que qualquer um. Um avô ou uma avó sabidos podem guardar mais histórias do que uma biblioteca inteira!

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Pois bem, ali estávamos nós, brincando de ser os índios do meu livro de História. Metade dos meninos havia rolado na terra vermelha, a outra metade tinha se melado de argila branca, e assim formamos dois grupos inimigos. Nós, os peles-vermelhas, tínhamos nos escondido atrás dos pezinhos de caju selvagem, perfumados, da beira do rio.

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Ficamos muito quietos, só escutando os outros se aproximarem. Quando sentimos que estavam bem perto, pulamos sobre eles entoando nosso grito de guerra, mas eles eram tantos e tão fortes quanto nós e acabamos todos caindo no rio, às gargalhadas, apagando, assim, nossas pinturas brancas ou vermelhas, igualmente torrados de sol.

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Sol que, aliás, já se punha. Os meninos foram saindo do rio um a um. Eles convidaram ao meu irmão e a mim a fazer o mesmo. Nós, porém, estávamos tão bem naquela água morninha no fim do dia, tão satisfeitos de não ir à escola, de não ter horários a respeitar nem dever de casa pro dia seguinte, que decidimos ficar um pouco mais. Nossos amigos insistiram como puderam, mas, como nós não falávamos a mesma língua, acabaram desistindo e partindo.

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A água foi ficando prateada e misteriosa. Fazia um silêncio profundo, como num sonho. Meu irmão e eu ficamos quietinhos, recebendo o abraço do rio. Eis que, de repente, nossa mãe branca surgiu no caminho, seguida por nossos amigos. Ela vinha gesticulando e gritava: “Saiam dessa água imediatamente!”. Nós não entendemos a razão daquela braveza, mas tratamos de sair rapidinho, afinal mãe brava assusta mais do que onça. Mais calma, ela nos explicou que o pôr do sol é a hora em que a sucuri, a grande serpente que habita o fundo do rio, desperta pra procurar o seu jantar. Ufa, dessa vez nós tínhamos escapado por um triz!

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Apesar desses pequenos incidentes da vida de menino, tudo ia muito bem, obrigado. Eu tinha amigos, era respeitado, um bom nadador, razoável com o arco e flecha e estava fazendo progressos no futebol de cabeça, que é muito difícil, quando, inesperadamente, eu… Bem, eu me apaixonei. Pior: eu me apaixonei por um dos meus irmãos indígenas. Mas que culpa eu tinha se ele era o mais bonito, o melhor nadador, o de cabelos mais negros e mais longos, o de dentes mais brancos, feito conchas do rio? E foi aí que eu decidi voltar a ser uma menina.

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Então, como se nada tivesse acontecido, fui me reaproximando das mulheres e, muito comportadamente, tentava aprender suas tarefas. Os meus amigos me convidavam para os passeios na floresta, a caça aos besouros, a pesca e os mergulhos nos igarapés, mas eu recusava. Da mesma maneira que eu tinha me tornado um menino aos olhos da aldeia, estava disposta a fazer de tudo pra voltar a ser considerada uma menina. Só que isso não seria tão fácil quanto eu imaginava.

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Primeiro tentei a tarefa que me parecia a mais legal: o pilão. Você sabe o que é pilão? É aquela base de madeira com um bastão pra esmagar os grãos que viram farinha pra fazer beiju, bolo ou mingau. Bem, eu peguei o bastão, que me pareceu mais uma árvore de tão pesado, fechei os olhos pra escutar melhor a música que as mulheres faziam com as batidas e saber o momento exato em que eu deveria socar. Nós éramos sete a pilar ao mesmo tempo. Então suspendi o bastão e…

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!Bati bem no pé da minha irmã, que pilava ao meu lado. Definitivamente, pilar não era pra mim.

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Tentei a sorte em uma segunda atividade: fiar. O girar da roca me fazia pensar em um pião e tinha um ar divertido. Você já brincou de pião? Pois é, só que eu estava longe de imaginar como aquilo era difícil! As índias mais velhas me estendiam grossas bolas de algodão cheiroso de sol, recém-colhido… Você sabe que o algodão da roupa que a gente usa é uma planta, não é? Muito bem, eu rodava a roca como podia, tomando muito cuidado pra guardar a ponta do fio entre os meus dedos, mas…

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A roca e o algodão terminavam sempre no chão, assim como as outras meninas, que rolavam na terra se acabando de rir diante dos meus esforços inúteis.

!
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Me restava uma última esperança: a cerâmica! Finalmente alguma coisa familiar. Afinal, as aulas de argila na escola não tinham sido em vão. Cheguei toda confiante, mas acontece que a argila dos índios não era como a da escola. Era uma mistura de terra com seiva de árvore, difícil de modelar. Mas dessa vez eu tinha que conseguir! Com o passar das horas, todas as mulheres, todas as meninas terminaram seus potes, suas panelas. O dia chegava ao fim e o escuro não permitia que seguíssemos trabalhando. Mesmo sem enxergar, eu continuava a lutar com aquela terra dura, que se tornava cada vez mais seca e improvável de virar pote ou panela.

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Os mosquitos não aliviavam, e todas se reuniam perto das fogueiras pra não serem devoradas cruas. A fumaça espantava os bichos, e as chamas agasalhavam os corpos contra o frio da noite.

Eu, ao longe, gelada e exausta, tinha as mãos ainda na terra. Foi quando a minha mãe Enauenê se afastou do grupo pra vir ao meu encontro mais uma vez: ela pegou das minhas mãos a massa disforme em que eu trabalhava. Tentei resistir, mas a verdade é que eu nem tinha mais forças, frustrada que estava com a ideia de ter que continuar a ser, pra sempre, o menino que eu tinha me tornado.

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Sentada na frente de casa, eu olhava o grande pátio da aldeia e as primeiras estrelas que apareciam timidamente. Com elas, uma menininha, que mal se equilibrava sobre as pernas, se aproximou de mim. Ela me olhou com seus olhos arregalados e eu tive a impressão de que se perguntava a mesma coisa que eu: que espécie de gente eu era? Seria aquela estranha criatura branca um menino ou uma menina? Sem encontrar a resposta, ela girava em torno de mim, como uma mosquinha à procura de um pouso. Finalmente, pra resolver a questão, ela se aproximou um pouco mais e… me lambeu, pra provar! Aparentemente, ela tinha desvendado o mistério, pois, muito à vontade, escalou os meus joelhos e, tranquilamente, fez no meu colo seu ninho.

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A minha velha mãe índia Kawenero, que assistia à cena havia algum tempo, se aproximou de mim e me estendeu um lindo pote de terra negra, perfeitamente liso e redondo. “Pra você, minha filha”, ela disse. Foi exatamente isso que vocês leram, ela disse: “Minha filh A”!

A menininha tinha me reconhecido como uma menina e, por isso, eu fui novamente aceita entre as mulheres.

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Eu me sentia muito contente e orgulhosa da minha nova condição, e, mesmo que o meu irmão, por quem eu tinha me apaixonado, nunca tenha me dado a menor bola, mesmo que eu nunca tenha aprendido a fiar ou a pilar, mesmo virando meio palhaça com tantas trapalhadas que faziam rir as minhas irmãs, eu me tornei uma mulher, aprendi a cortar cabelo, conheci cantos e histórias e organizei a primeira equipe de futebol feminino do rio Juruena.

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Posfácio | Betty Mindlin

Quando era menina, Rita Carelli passou uma temporada com os pais nos Enauenê-Nauê, em Mato Grosso. Sua mãe, Virginia Valadão, antropóloga, já era estudiosa e grande defensora de povos indígenas, íntima de muitos deles, como os Xavante e os Nambiquara. Era uma grande amiga e companheira de luta, que perdemos cedo demais. Eu admirava sua figura livre, aventureira; dela ouvia magnetizada os relatos de viagens iniciais aos encantadores Enauenê. Quase não tinham contato com os da cidade, não usavam roupas, não conheciam o dinheiro, dedicavam-se a complexos rituais, sobreviviam apenas de roças, pesca e coleta, riam, brincavam. Os visitantes deviam compartilhar com eles tudo o que trouxessem, adaptando-se a seus hábitos. Virginia fez com eles o belo filme Yãkwa: o banquete dos espíritos.

Vincent Carelli, pai de Rita, indigenista e cineasta de fama internacional, é criador do Vídeo nas Aldeias; fez mais de cem filmes, ou seus ou em colaboração com os diretores indígenas que formou. É realizador dos premiados documentários Martírio e Corumbiara. Neste, Virginia aparece estabelecendo o primeiro contato com sobreviventes de povos extintos por massacres, os Akuntsu e os Kanoê.

Em um povo extraordinário e com mãe e pai extraordinários, Rita mergulhou no mundo indígena e guardou uma compreensão que talvez poucos profissionais sejam capazes de atingir. Foi uma experiência marcante, que ficou sob a sua pele para sempre. Na espontaneidade de criança, ia vivendo como os da sua idade, aprendendo as mesmas regras de comportamento, que sem querer, como o livro conta, contestou de repente. Sua integração temporária aos Enauenê-Nauê, a um conjunto de valores diferentes dos urbanos, é um aprendizado – ou a perplexidade – sobre o que é ser mulher ou ser homem, qual a melhor escolha – questão moderna, eterno debate. É curioso e enriquecedor o começo do livro, com o casamento dos pais da cidade com os da aldeia. Com propriedade, a criança Rita e a escritora atual aceitam o que acontece, e apenas nós nos perguntamos se foi na verdade uma cerimônia simbólica ou quais são as características desta família de quatro pessoas casadas entre si.

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Rita estudou Letras e Teatro, não Antropologia, mas é antropóloga de fato; é artista, ilustradora, desenha muito bem, foi palhaça, dirigiu filmes e é uma talentosa atriz de teatro e cinema. Eu tenho cá para mim que seu ofício de escritora, crescente a cada livro – preparem-se, leitores! –, tem origem nos povos indígenas, no despertar de diferentes formas de amar, viver, produzir, criar.

Para mim, é muito especial escrever estas linhas. Sigo Rita desde pequena, mas durante anos pouco nos vimos. Em 2016, o acaso nos fundiu, recebi um dom precioso: Rita foi a protagonista da minissérie Diários da floresta, dirigida por Luiz Arnaldo Campos, uma ficção baseada no meu livro homônimo, relato das minhas primeiras viagens aos Paiter Suruí, de 1978 a 1983. Ela faz o papel da antropóloga que fui há quase quarenta anos, na alegria e curiosidade de conviver com um povo amado! Espantada, sou moça de novo – em versão muito melhor que a antiga –, metamorfoseada na bela atriz, tão à vontade com o povo dos meus diários como a menina entre os Enauenê-Nauê, agora adulta.

Doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Economia pela Universidade de Cornell, Betty Mindlin trabalha em projetos de pesquisa e apoio a povos indígenas da Amazônia e de outras regiões. Publicou sete livros de mitos em coautoria com narradores sem escrita, nascidos antes do contato com o homem branco. O mais conhecido é Moqueca de maridos (Record, 1997), traduzido em várias línguas.

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Há ainda dois aspectos importantes relacionados ao trabalho numa aldeia indígena. O primeiro: a maior parte da comida é distribuída para toda a população, de modo que ninguém passa fome. O segundo: essa distribuição é feita na praça central, durante as cerimônias de música e dança dedicadas aos diversos tipos de espíritos que moram em diferentes partes do território ou na aldeia celeste, onde estão seus ancestrais. Isso significa que, para os EnauenêNauê, assim como para outros povos indígenas, cantar, dançar ou tocar um instrumento (especialmente a flauta!) também é considerado trabalho – um trabalho para alegrar os espíritos que tomam conta dos bens do meio ambiente, como os rios, as florestas, os bichos, as pedras etc.

Para que tudo fique bem bonito, algumas pessoas com excelente memória e talento musical guiam os músicos-dançadores. Conhecer bem o extenso repertório musical de cada tipo de espírito é uma tarefa tão difícil que os sotakatare, como são chamados os mestres puxadores da música, são considerados os chefes mais importantes da aldeia. Como sábios da floresta, a principal tarefa dos sotakatare é atuar como maestros que conectam a música à ecologia – ou seja, são eles que decidem quais músicas os EnauenêNauê cantam e dançam a cada fase do calendário cerimonial, levando em conta o ritmo de amadurecimento das plantas, os movimentos de migração e desova dos peixes, a produção de mel pelas abelhas etc.

A mais longa e trabalhosa celebração dos Enauenê-Nauê se chama Iyaõkwa e dura 7 meses. Além de cantar e dançar por mais de 5 horas por dia, nesse período os homens da aldeia pescam com barragens de madeira em vários rios, entre eles o Iquê. A vida e a cultura desse povo não podem existir sem o Iyaõkwa, por isso esse ritual foi incluído pela Unesco, em 2010, na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial que Requer Medidas Urgentes de Salvaguarda. Ele continua, porém, ameaçado pela construção de hidrelétricas.

Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ana Paula Lima Rodgers é especialista em Etnologia Indígena e Etnomusicologia das Terras Baixas SulAmericanas e no povo Enauenê-Nauê, além de pesquisadora da unesco /Museu do Índio (rj ).

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Você sabe dizer Enauenê-Nauê sem gaguejar?

Rita Carelli, a autora deste livro, sabe muito bem. E tem mais: ao passar parte da infância na aldeia indígena dos Enauenê-Nauê, ela aprendeu não só novas palavras, mas também costumes muito diferentes daqueles a que estava habituada na cidade. Na vida da aldeia, algo em especial chama a sua atenção: as brincadeiras e responsabilidades são diferentes para meninos e meninas. Ela se vê então num impasse. Prefere brincar, nadar no rio ou jogar futebol de cabeça a cuidar dos bebês, pilar ou fiar. E agora? Fruto de uma inesquecível experiência pessoal, Minha família Enauenê aborda, de forma sensível e divertida, a importância de compreender, respeitar e valorizar diferentes modos de vida.

9040302000036 9 786555 380200 ISBN 978-65-5538-020-0
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