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O menino e o maestro

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Ana Maria Machado

O menino e o maestro

Ilustrações Vinicius Sabbato

O menino e o maestro

Ana Maria Machado

Ilustrações

Vinicius Sabbato

O menino e o maestro

Paulo – 2021
1a . edição São

Copyright © Ana Maria Machado, 2021

Reprodução proibida: Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todos os direitos reservados à QUINTETO EDITORIAL LTDA.

Rua Rui Barbosa, 156, 1o andar São Paulo – SP – CEP 01326-010 Tel. (0-xx-11) 3598-6000

editor assistente Bruno Salerno Rodrigues revisoras Lívia Perran e Marina Nogueira

Obra selecionada para integrar o Catálogo White Ravens da Biblioteca Internacional da Juventude, em Munique, na Alemanha, e considerada Leitura Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Machado, Ana Maria O menino e o maestro / Ana Maria Machado; ilustrações Vinicius Sabbato. — 1. ed. — São Paulo : Quinteto Editorial, 2021.

ISBN 978-85-8392-199-8 (aluno)

ISBN 978-85-8392-200-1 (professor)

1. Literatura infantojuvenil I. Sabbato, Vinicius. II. Título.

21-85116

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura infantil 028.5

2. Literatura infantojuvenil 028.5

Eliete Marques da Silva — Bibliotecária — CRB-8/9380

CDD-028.5

Este texto foi publicado originalmente pela editora Mercuryo Jovem (2006).

Ana Maria Machado é autora de dez romances, 12 livros de ensaios e mais de 100 títulos de literatura infantojuvenil. Traduzida em diversos idiomas e publicada em 28 países, já recebeu muitos prêmios, entre os quais o Machado de Assis pelo conjunto da obra, o Hans Christian Andersen, o Príncipe Claus, o Casa de las Américas e três Jabutis. Casada com um músico, tem três filhos e dois netos. Mora no Rio de Janeiro.

Vinicius Sabbato trabalha como diretor de arte em agências de publicidade desde 2013. Desenhista autodidata, passou a ilustrar profissionalmente em 2017 e tem atuado sobretudo no mercado publicitário, colaborando em diversas campanhas.

Para o maestro Paulo Moura, in memoriam. E em memória de José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Patápio Silva, Pixinguinha e tantos outros construtores de pontes musicais.

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Prefácio

Como músico, me sinto em casa nos livros de Ana Maria Machado. Neles sempre há pianos, canções, cantigas de ninar e caixinhas de música. Ela sabe que a música chega aonde a palavra não alcança, às coisas que sentimos e chamamos de indizíveis.

Nesta história, o maestro leva Teleco para encontrar Mozart e suas músicas. Elas ajudarão o menino a compreender melhor a si mesmo, a entender o que pensa e sente todos os dias.

Um Mozart que marcou José Maurício Nunes Garcia, o compositor, regente, cravista, violinista e homem de letras poliglota que encantou D. João. Esse prestígio trouxe consigo o preconceito: José Maurício era negro. Corajoso, fundou uma escola livre e teve como aluno Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional e professor de Carlos Gomes, que tinha origem pobre e negra como José Maurício. Já nessa época, os músicos brasileiros ensinavam uns aos outros o tamborim e Mozart.

Antes, no ciclo do ouro, todos os compositores mais importantes eram negros — num país de escravos. A brutalidade da escravidão no passado e a ignorância atual reduzem a nossa matriz musical negra à música dita popular.

Nossos músicos negros foram gênios nas tradições da Europa e da África, engendrando músicas que ganharam o mundo, enfrentando dificuldades e o esforço para apagar a cor de seus ancestrais exemplares.

Este livro mostra os caminhos entre meninos e mestres, morros e teatros, ontem e amanhã; mostra repertórios e mostra Mozart. Gentes e buscas que é tão bom conhecer. E nunca esquecer.

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Omenino morava no morro. O maestro ia lá de vez em quando tocar clarinete numa roda de choro. Mas um nunca tinha reparado no outro.

Porém — ai, porém… como cantava um samba —, houve uma tarde em que o maestro chegou cedo, muito antes dos outros músicos. Por isso, pegou o fim do ensaio da bateria mirim. E prestou atenção naquele menino tão pequeno que tocava tamborim feito gente grande. Ou como criança, como quem brinca. Como se nem se preocupasse com aquilo. Mas também como se todos os ritmos já morassem dentro dele, desde sempre.

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— Quantos anos você tem? — perguntou o maestro, quando o ensaio acabou.

— Oito.

— O Teleco já é fera, não acha? — elogiou o mestre da bateria, ao lado. — Puxou ao pai. Ele é filho do grande Bié, sabe?

Dava para perceber. O menino tinha um dom. Como se um anjo ou uma fada o tivesse premiado quando nasceu. Se fosse antigamente, na Grécia, alguém podia dizer que era um presente de Apolo ou de Orfeu, protetores dos músicos. Ali no morro, com certeza um pai de santo sabia qual orixá escolhera Teleco para usar os sons daquele jeito, vindo de dentro do coração da gente.

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Pensando nisso, o maestro teve uma ideia. Conversou com a mãe do menino e convidou:

— Leve o Teleco ao Teatro Municipal esta semana. Qualquer dia. Estamos ensaiando todas as tardes. Acho que ele vai gostar de ver.

— O que é que o senhor tá pensando? Acha que eu tenho tempo pra passear, ir ao teatro, essas coisas? Tenho uma família pra sustentar.

— Mas domingo a senhora pode, não é? E aí assiste a um concerto de verdade. Vou deixar dois ingressos em seu nome na portaria.

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E foi assim que, no domingo, mãe e filho se ajeitaram nas poltronas de veludo do balcão de um teatro cheio de dourados, com lustre de cristal e pinturas antigas pela parede e pelo teto. Tudo lindo, luxuoso — parecia até noite de desfile de escola de samba. Mas com brilhos de outro tipo, que não iam se desmanchar na Quarta-Feira de Cinzas.

De repente, as luzes se apagaram, as cortinas se abriram. Um monte de gente tossiu e se mexeu nas cadeiras. Depois, silêncio. No palco, uma porção de homens e mulheres sentados de frente para o público. Todos de preto, sérios, cada um com seu instrumento. Por uma lateral do palco, entrou um senhor, e todo mundo aplaudiu. Ele agradeceu… e virou as costas! Tinha uma varinha na mão e deu umas batidinhas com ela numa estante cheia de papéis. Depois levantou a varinha, fez um gesto e parecia uma mágica: todos os músicos começaram a tocar ao mesmo tempo.

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“Já sei. Essa varinha é como o apito na bateria. E esse cara é o mestre”, refletiu Teleco. “Pensei que era o maestro lá do morro quem mandava nos músicos… mas cadê ele?”

Logo aconteceram duas coisas. A primeira foi que a mãe lhe mostrou o amigo maestro sentado entre outros músicos que sopravam instrumentos de madeira — que depois ele saberia que se chamam clarinetes, oboés, fagotes.

A segunda é que a música foi tomando conta de tudo, e Teleco de repente não queria pensar em mais nada. Só ouvia. E deixava que aqueles sons o rodeassem, o levassem para algum lugar onde ele nunca tinha estado e não sabia onde era.

Só sabia que era muito, muito bom.

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Só no sábado, entre o ensaio da bateria mirim e a roda de choro, foi que o menino e o maestro se encontraram de novo. Teleco ficou sabendo que, naquela orquestra enorme, que se chamava sinfônica, o seu amigo era só clarinetista. Tocava com os outros e só em algumas músicas fazia solos. E quem regia, como o mestre, era outro maestro, o regente.

O menino disse que tinha gostado muito. Depois pediu:

— Posso ir de novo?

O maestro sorriu e disse que sim, que podia, claro. Melhor ainda. Conversou com a mãe de Teleco e combinaram que, quando quisesse, o menino podia ir com ele assistir aos ensaios da orquestra.

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— É bom. Eu preciso mesmo aprender a ir ao centro da cidade sozinho. Diz que tem um cara lá que dá bala pra gente vender no sinal e levantar uma graninha.

O maestro olhou para ele com uma cara tão triste que Teleco achou que tinha que explicar:

— Não se preocupe. Meu colégio é de manhã.

— Eu sei. Por isso é que vou te levar; o ensaio é de tarde.

— Mas depois eu posso trabalhar de tarde, pra ajudar minha mãe.

O maestro não perguntou mais nada. Sabia como era aquilo. Mas resolveu que, no que dependesse dele, não ia deixar.

No caminho para o teatro, foram conversando. O músico descobriu que Teleco queria comprar uma máquina de costura, para a mãe poder trabalhar em casa para uma confecção. E aí não precisaria mais sair de madrugada para fazer faxina lá no fim do mundo. Menino de bom coração.

Mas não estava certo criança ter que trabalhar, nem ficar na rua. Tinha de haver um jeito para isso não acontecer.

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Eles foram conversando sobre outras coisas.

— Vou te contar uma história — disse o maestro.

— Há muitos, muitos anos…

— Mais de cem?

— Muito mais! Há cerca de duzentos e cinquenta anos, num país muito longe daqui…

— Na China? Dizem que é o mais longe…

— Não, na Áustria. Menos longe que a China, mas bem longe. Pois bem, lá na Áustria, há esse tempo todo, nasceu um menino que tinha muito jeito para a música.

— Que nem eu? Ele também tocava bateria na escola?

— Que nem você. Mas não tocava bateria; tocava violino e cravo, que era uma espécie de piano daquele tempo. O nome dele era Mozart. E como o pai dele também era violinista e professor de música, fazia o menino ensaiar muito para ser um grande músico.

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— Que nem meu pai ia fazer se não tivesse ido embora…

— Mas o pai do Mozart era muito durão, mais que todos. Obrigava o menino e a irmã a passar muitas horas tocando. E logo viu que o garoto era um gênio. Com cinco anos, já tocava cravo direitinho, compunha e escrevia música.

— Cinco anos? Puxa, eu tô atrasado…

— Se fosse assim, o mundo inteiro estava atrasado. Mozart é que estava adiantado. Era um fenômeno. Nunca houve ninguém igual.

— Quero ouvir uma música dele.

— Pois vai ouvir. É justamente o que vou ensaiar hoje. E já estamos chegando.

Saltaram do ônibus. O resto da história ficou para depois.

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No ensaio havia muito menos músicos do que no concerto de domingo.

— É um conjunto de câmara — explicou o maestro. — Com menos gente e menos instrumentos, para tocar em salas menores. Mozart escreveu várias músicas assim.

Podia ser menor. Mas era lindo. Teleco adorou.

Passou a ir várias vezes aos ensaios com o maestro e ouviu muitas músicas diferentes. Com vários instrumentos, nenhum deles bateria. Tinha violino, viola, violoncelo, flauta, clarinete, harpa, cravo, piano. Teleco foi aprendendo a conhecer todos eles. Tudo muito diferente da escola de samba.

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— A minha música é de batucar. Essa aí é de assoviar.

— É que a bateria trabalha o ritmo. Você é um ritmista. Mas a música tem outras coisas. Não dá pra assoviar o samba da escola? Pois então… É a melodia. O que você assovia é a melodia — explicava o maestro.

— Só que eu não assovio, não. Não consigo. Só pra dentro, um pouquinho de cada vez — corrigiu Teleco. — Mas um dia eu aprendo.

Algumas melodias de Mozart eram alegres e davam vontade de dançar. Outras eram um pouco tristes — mas a gente é assim mesmo, tem horas que bate uma tristeza danada. Ou, de vez em quando, uns trechos das músicas pareciam estar com raiva, querendo brigar com as coisas erradas que existem no mundo e prometendo consertar tudo.

“Que nem eu tenho vontade de fazer…”, pensava o menino.

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Volta e meia o maestro contava mais uns pedacinhos da história de Mozart. Teleco ficou sabendo que Mozart viajou muito e ficou famoso. Naquele tempo, não tinha televisão, rádio nem celular. Para ouvir música, tinha que ser ao vivo. O pai de Mozart tocava com os filhos na casa dos ricos. A família foi fazendo sucesso.

— Todo mundo queria ver aquele menino prodígio… Com seis anos, ele se apresentou no palácio do imperador da Áustria. Com sete, tocou para os reis da França em seu castelo. Depois, foi tocar para a corte da Inglaterra. Mais tarde, viajou para a Itália.

— Que legal!

— Legal, mas muito cansativo. Muito trabalho. Muitas horas de estudo e de ensaio. Mozart e a irmã trabalhavam como gente grande e nem sequer tinham tempo pra brincar.

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— Mas aposto que valeu a pena. Eles ficaram ricos e famosos, no meio desses reis todos.

— Famosos, ficaram. Ricos, não. Dava pra viver, mas não podiam parar.

Teleco pensou um pouco, lembrou de como gostava de jogar bola e empinar pipa com os amigos e perguntou:

— Mas ele não brincava nunca?

— Quase nunca, quando era pequeno. Em compensação, depois que cresceu, brincou sem parar, como se fosse criança. Fazia palhaçada, ria à toa. E a música dele muitas vezes era meio brincalhona.

— Ah, isso era mesmo… — concordou o menino.

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Um dia, o maestro resolveu mostrar umas músicas no celular. Todo mundo na quadra pôde ouvir o tal Mozart, em que Teleco ficava falando toda hora. Também gravaram uns choros novos que estavam ensaiando. E uns sambas que cada um cantava, se quisesse.

Todo mundo. Velho, adulto e criança, homem e mulher. O maestro gravou até um pouco da bateria mirim. Foi muito divertido.

Naquela noite, depois que saiu dali, o músico foi a um bar onde sabia que o grande Bié estava se apresentando. Um espetáculo de samba com um monte de turista assistindo.

No final, foi falar com ele. Cumprimentou, deu os parabéns. Antes de ir embora, disse: — Bié, me passa o seu contato pra eu enviar um áudio pra você? É da bateria mirim lá da escola. Ouça com atenção e repare bem na qualidade dos tamborins. Tem um deles que você tem que ir lá ouvir.

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O sambista olhou para ele sem entender:

— Ficou maluco? Você está sugerindo que eu contrate criança pra tocar aqui, cara? Na noite?

— Não. Estou só dizendo que o seu filho toca na bateria mirim e é um grande músico. E um grande amigo meu.

Fez uma pausa, olhou bem sério para Bié e concluiu:

— De verdade, o Teleco é um garoto incrível. Merece uma chance.

Nos outros dias, o maestro saiu procurando aula de música que aceitasse criança. Musicalidade, percepção musical, umas coisas assim. Conseguiu até uma bolsa para Teleco estudar.

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O menino começou a ter aulas de música duas tardes por semana. E, no sábado, o maestro ensinava Teleco a tocar cavaquinho. Ele aprendia tão depressa que todo mundo dizia que, num instante, ia poder fazer parte da roda de choro.

E, mesmo que não fizesse, não tinha problema. Estava se divertindo muito, feliz, aprendendo uma porção de coisas.

— Quem sabe um dia eu não faço sucesso com a música? Que nem o Mozart… Quem sabe eu até não consigo ajudar minha mãe sem vender bala no sinal?

Mas, antes de esse dia chegar, Teleco teve uma surpresa.

Uma tarde, logo antes do ensaio da bateria, viu que todo o pessoal da escola estava rodeando alguém junto da porta.

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— Olha o Bié aí, minha gente! Quanto tempo…

— Grande Bié…

Alguém chamou:

— Teleco, vem ver teu pai!

Fazia tanto tempo. O menino nem se lembrava direito da cara dele. Mas logo reconheceu o sorriso do homem que se abaixava à sua frente de braços abertos:

— Dá um abraço aqui no pai, ô rei do tamborim… Estou sabendo que tu é uma fera. Até maestro anda te elogiando.

Foi um abraço gostoso, apertado, quentinho. Teleco até queria que não acabasse nunca. Mas era hora do ensaio e ele tinha que ir tocar. Ficou até com medo de errar, com o pai ali, assistindo. Bié, o grande sambista! O coração batia tão forte que até parecia o tamborim. Ou o contrário. O tamborim tocou com toda a alegria do peito. Uma alegria misturada com tristeza e com raiva, que vinha de longe, de antes, de tudo.

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No final, foi outro abraço. De pai orgulhoso, de colega admirado.

— Sim, senhor, gostei de ver… Qualquer hora destas, vai tocar no meu show.

Bié não sabia mais o que falar. Estava bem ao lado de um surdo, um tamborzão enorme. Passou a mão no instrumento e começou a bater. O tamborim respondeu. Num instante, pai e filho tocavam juntos. E diziam com a música, um ao outro, o que as palavras não conseguiam dizer.

Mais tarde, o pai foi com ele até em casa.

— Você vai voltar? — perguntou o menino.

— Pra casa, não. Mas pra você vou, sim. Eu estava mal, fazendo besteira. Mas caí na real. Me separei de tua mãe, mas nunca vou deixar de ser teu pai. Tu é a maior alegria da minha vida. Com muito orgulho.

A mãe até levou um susto quando viu os dois juntos. E mais ainda quando ouviu aquela conversa. Bié dizendo que queria ver o filho toda semana? E que ia ajudar nas despesas do Teleco?

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— Isso mesmo. Pra ele não acabar na rua, metido com quem não presta. E quero levar o garoto pra passear comigo de vez em quando… Você quer uma tarde ir ver o ensaio do meu espetáculo?

— Oba! E você vai um dia comigo ver o ensaio do Mozart…

— Mozart? Quem é esse cara? — estranhou o pai.

Olhou de banda e perguntou:

— Namorado de tua mãe?

Teleco riu.

— Não, pai. Um garoto que nem eu. Mas aposto que você vai gostar.

Alguém chamou lá fora. Era hora da roda de choro.

Teleco pegou o cavaquinho, deu um beijo na mãe, um abraço no pai e foi saindo.

Bié sorriu, olhou para ela e disse:

— Parabéns. Tu tá cuidando dele direitinho.

E saiu atrás do filho.

Quando o alcançou, ouviu o menino assoviando enquanto descia os degraus do caminho, de cavaquinho na mão.

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Assovio claro e nítido, para fora. Uma melodia bonita mesmo, mas diferente, que Bié se lembrava vagamente de talvez já ter ouvido, mas não reconheceu.

Mas Teleco conhecia bem.

Uma música de Mozart, cheia de alegria, com notas que até cantarolavam todas as coisas boas que estavam em seu coração.

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Coisas boas

Volta e meia, caminhando pelo calçadão de Ipanema, encontro uma criança sentada tocando flauta doce. Quase sempre, um menino. Às vezes, uma menina. O repertório pode ser de música popular ou clássica. Um dia, a melodia era de Mozart. Ao final, conversei com o pequeno flautista. Contou-me que estudava num projeto que ensinava as crianças da favela a tocar instrumentos musicais. Ele sabia quem era o autor daquela pequena serenata que tocara. E disse que escolhera aquele tema porque estava muito contente no dia.

Esta história celebra um encontro desse tipo. Há vários. Sempre houve, na história do Brasil. Desde o padre José Maurício, lá no Barroco mineiro, ao maestro Paulo Moura em tempos mais recentes, passando por bandas militares, rodas de choro, projetos de grandes empresas que combinam corais infantis e grandes orquestras. Mais longe, no Oriente Médio, outro maestro faz crianças e adolescentes palestinos e israelenses tocarem lado a lado na mesma orquestra, a West-Eastern Divan Orchestra. Buscar a harmonia musical permitiu a eles que encontrassem a amizade e a paz extramusical.

São momentos de esperança, que quero celebrar. Coisas boas, como a música é capaz de trazer.

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Ritmo, melodia e harmonia

Este livro apresenta muito conteúdo interessante sobre música, não é mesmo? Para fazer a história do Teleco ultrapassar a fronteira destas páginas, vale a pena aprofundar alguns assuntos.

Vamos relembrar a conversa entre o menino, que inicia o diálogo, e o maestro (p. 29):

— A minha música é de batucar. Essa aí é de assoviar.

— É que a bateria trabalha o ritmo. Você é um ritmista. Mas a música tem outras coisas. Não dá pra assoviar o samba da escola? Pois então… É a melodia. O que você assovia é a melodia — explicava o maestro.

Repare que o maestro fala em ritmo e melodia. O ritmo é a batida da música, dada pelos instrumentos de percussão. A melodia é o que a gente canta, cantarola, assobia… Tem melodia feita com palavras e tem melodia feita sem palavras.

Você sabia que existem outros conceitos fundamentais na música? Um dos mais importantes é a harmonia. Ela é a sequência de acordes que compõe uma canção. O acorde é um conjunto de notas tocadas ao mesmo tempo, que tem o poder de causar sensações e emoções no ouvinte — o “clima” da música. Geralmente a harmonia faz o fundo para a melodia.

É como se a melodia fosse uma pessoa passeando no ambiente da harmonia. A toada dessa caminhada é o ritmo: a pessoa pode caminhar mais devagar ou mais depressa, com mais suavidade ou mais peso. Na música também é assim!

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Arranjo

Você já reparou que a maioria das músicas tem vários instrumentos?

Quando tocados juntos, eles formam o arranjo da música.

No arranjo, cada instrumento faz uma coisa. Mas não pode ser qualquer coisa nem a qualquer momento. Para a música ficar legal, o que cada músico toca precisa combinar com o que os outros tocam.

O arranjo pode ser planejado com antecedência ou improvisado pelos músicos. Na música clássica, ele costuma ser muito bem planejado e executado. Para entender melhor, vamos reler um trecho da história (p. 14):

[...] Por uma lateral do palco, entrou um senhor, e todo mundo aplaudiu. Ele agradeceu… e virou as costas! Tinha uma varinha na mão e deu umas batidinhas com ela numa estante cheia de papéis. Depois levantou a varinha, fez um gesto e parecia uma mágica: todos os músicos começaram a tocar ao mesmo tempo.

Por que isso acontece? Porque o arranjo está escrito na partitura de cada músico e do maestro (os “papéis”), que mostra o que ele deve tocar e quando. Para conduzir a orquestra, o regente ou maestro utiliza a batuta (a “varinha”).

Da próxima vez que você ouvir ou tocar música com seus amigos, tente reparar em cada instrumento e depois escute o arranjo. Um mais um pode ser três, quatro, cinco, mil!

A conversa entre os instrumentos também pode ser uma conversa entre os músicos, pela via da emoção. Observe (p. 42):

Bié não sabia mais o que falar. Estava bem ao lado de um surdo, um tamborzão enorme. Passou a mão no instrumento e começou a bater. O tamborim respondeu. Num instante, pai e filho tocavam juntos. E diziam com a música, um ao outro, o que as palavras não conseguiam dizer.

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O menino Guido

O menino e o maestro apresentou o Teleco, um garoto cheio de sonhos e talento que se encanta pela música clássica ao conhecer outro personagem, o maestro. Você sabia que na vida real também existem meninos com histórias incríveis ligadas à música clássica?

Guido Sant’Anna é um exemplo disso: ele não morava num morro carioca nem tocava numa escola de samba mirim, mas conheceu um maestro que o levou além das fronteiras do seu mundo.

Guido nasceu em 28 de junho de 2005 e, aos 5 anos, começou a estudar violino! Aos 7, foi descoberto pelo renomado maestro Júlio Medaglia, que o levou para fazer seus primeiros concertos com uma orquestra. Desde então, Guido se apresentou com destaque em diversos palcos no Brasil e no exterior. Em abril de 2018, foi o primeiro sul-americano a participar da Competição Menuhin, um dos concursos de violino mais importantes do mundo, terminando como sexto colocado entre mais de trezentos concorrentes! Quando conversamos com Guido, ele tocava um violino de 1833, cedido por uma fundação. Dizem que, quando Guido pegou esse instrumento pela primeira vez, era como se já lhe pertencesse havia um tempão, tamanha a intimidade que teve.

Guido escolheu duas músicas de que gosta muito de tocar para comentar com exclusividade para nós! Vamos saber um pouco mais sobre elas e por que ele as escolheu?

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“Quarto movimento da sonata nº. 2”, de Eugène Ysaÿe Guido: “É uma música bem agitada. Ysaÿe é do período moderno, então o modo de composição e de performance não exige tanto rigor do estilo de música, deixando o músico mais livre. Ele é bem romântico e teatral. Sua música tem dissonância e contraste, é brusca e, por vezes, emocionante”.

Eugène Ysaÿe (1858-1931) foi um violinista, compositor e regente belga. Ele era um virtuose do violino, ou seja, tinha enorme domínio da técnica de tocar. Suas obras mais famosas são as seis sonatas para violino solo, uma das quais Guido gravou.

“Adágio da sonata nº. 3”, de Johann Sebastian Bach

Guido: “Bach é bem denso. A execução do adágio de Bach é muito delicada e exige total controle do arco e relaxamento físico e emocional.

Comparando com Ysaÿe, a música barroca está mais próxima da clássica, de Mozart. As duas peças mostram lados muito diferentes da música”.

O alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi um dos maiores compositores clássicos. Ele tocava cravo e órgão. Entre as suas composições mais famosas estão “Jesus, alegria dos homens”, “Concerto para dois violinos”, “Suíte nº. 1 em sol maior para violoncelo” e “Tocata e fuga em ré menor”.

Por que Guido escolheu essas músicas?

“Eu escolhi estas peças porque as duas são solo, o que é bom quando não há pianista. Elas destacam áreas da música clássica e passagens muito diferentes. Uma delas é tranquila e a outra é tempestuosa, mostrando uma pequena e diversa imagem da música clássica.”

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Informações paratextuais

Qual é! Um menino do morro e um maestro juntos, onde já se viu?

Na literatura, ora! Esse encontro inusitado é criação da autora do livro, a carioca Ana Maria Machado. Ela é uma das nossas maiores escritoras infantojuvenis, premiadíssima aqui no Brasil e lá fora.

S-s-sério?

Sério... E tem mais: encontros assim acontecem na vida também! Para escrever este livro, Ana Maria se inspirou em uma história real, como ela conta no texto “Coisas boas”. Uma história como a do Teleco, que desistiu da ideia de vender bala no sinal para se dedicar à música.

Ai, sabe que eu adorei essa parte da história? Consciência social é tudo, né?

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Sim, mas não é só isso! Entre notas de Mozart e toques de bateria de escola de samba, O menino e o maestro fala de música, fa mília, empatia e cumplicidade. Tudo isso na forma de um conto, gênero literário que apresenta uma história curta, com poucos personagens e cenários. Acompanhamos dois protagonistas e as ações deles em alguns ambientes típicos do Rio de Janeiro.

O Rio é um show à parte! Mas, para ele aparecer bem na fita, quer dizer, no livro, foi fundamental o ilustrador, não é?

Com certeza! Quem ilustrou a obra foi o paulistano Vinicius Sabbato. Ele é diretor de arte e ilustrador formado pela Quanta Academia de Artes. Neste primeiro livro que ilustrou, o Vinicius consegue prender a atenção do leitor com imagens sensoriais, ou seja, que dão a sensação do som, do cheiro, do toque e do sabor — além do visual, é claro. Imagina que delícia aquele sundae que o Mozart tomou?

Hum... Que fome! Quer dizer, que gula!

Gula por comida é bom, mas por livro e por música é melhor ainda!

Arrasou!

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O menino tocava tamborim na bateria mirim da escola de samba. O maestro regia a roda de choro do morro. O menino queria ajudar a mãe vendendo bala no sinal. O maestro tocava clarinete na orquestra sinfônica do Teatro Municipal. O menino sonhava mudar de vida. E o maestro viu um jeito de isso acontecer… Dessa série de paralelos e encontros nasce O menino e o maestro, livro de Ana Maria Machado que vai encantar pela música, mostrando a potência dessa arte e a transformação social que ela é capaz de gerar.

9040302000035 9 788583 921998 ISBN 978-85-8392-199-8
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