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Vamos ao teatro

Page 1

Gianni Rodari

ilustrações

Giulia Orecchia

TEATRO! VAMOS AO

tradução Luís Camargo

VAMOS AO

TEATRO!

Copyright © Maria Ferretti Rodari e Paola Rodari, Itália, 1980

Copyright © Edizioni EL S.r.l, San Dorligo della Valle, Trieste / www.edizioniel.com, 1991

Direitos adquiridos por meio da Ute Körner Literary Agent / www.uklitag.com

Título original A teatro con Gianni Rodari (peças Il vestito nuovo dell’Imperatore, La finta addormentata nel bosco, La Società della Civetta), de Gianni Rodari, e ilustrações de Giulia Orecchia.

Todos os direitos reservados à EDITORA FTD

Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP

CEP 01326-010 – Tel. 0800 772 2300

www.ftd.com.br central.relacionamento@ftd.com.br

Diretor-geral Ricardo Tavares de Oliveira

Diretor adjunto Cayube Galas

Gerente editorial Isabel Lopes Coelho

Editor Estevão Azevedo

Editora assistente Camila Saraiva

Coordenador de produção editorial Leandro Hiroshi Kanno

Preparação e revisão Aline Araújo (líder)

Preparadora Marina Nogueira

Revisoras Tatiana Sado Jaworski e Tereza Gouveia

Editores de arte Daniel Justi e Camila Catto

Coordenadora de imagem e texto Marcia Berne

Diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno

Gianni Rodari nasceu em Omegna, na Itália, em 1920, e faleceu em 1980.

Giulia Orecchia nasceu em Turim, na Itália, em 1954.

Luís Camargo nasceu em São Paulo (SP), em 1955.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rodari, Gianni, 1920-1980

Vamos ao teatro!/Gianni Rodari; ilustrações Giulia Orecchia; tradução Luís Camargo. – 2. ed. – São Paulo: FTD, 2021.

Título original: A teatro con Gianni Rodari

ISBN 978-85-96-03195-0 (aluno)

ISBN 978-85-96-03196-7 (professor)

ISBN 978-88-6656-440-9 (ed. original)

1. Literatura infantojuvenil 2. Teatro – Literatura infantojuvenil I. Orecchia, Giulia. II. Título.

21-85091 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Teatro: Literatura infantil 028.5

2. Teatro: Literatura infantojuvenil 028.5

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

ilustrações
tradução
Camargo
Giulia Orecchia
Luís
VAMOS AO São Paulo — 2021 2a edição
Gianni Rodari TEATRO!

Sumário

Apresentação, por Luís Camargo, 6

Peça 1 – A roupa nova do imperador, 11

Peça 2 – A falsa adormecida no bosque, 43

Peça 3 – A Sociedade da Coruja, 57

Glossário, 70

Fontes bibliográficas, 74

Informações paratextuais, 76

APRESENTAÇÃO

por Luís Camargo

Você já foi ao teatro?

O teatro é uma construção, pode ser um prédio com bilheteria e pipoqueiro na porta, que abriga várias artes: a música, a ópera, o balé e –claro – o teatro!

O teatro é também uma arte que reúne vários talentos artísticos: a interpretação dos atores, a criação do cenário, a confecção do figurino, as técnicas da sonoplastia e da iluminação, além da literatura, que aparece em forma de peça de teatro.

Talvez você ainda não tenha ido até um teatro (construção), mas talvez o teatro (arte) tenha ido até você, na escola, em casa, em uma festa, por meio de um espetáculo a que você assistiu ou de uma brincadeira com fantoches.

Outra forma de apreciar o teatro é por meio da leitura. É encantador ouvir os atores interpretando suas falas, movimentando-se pelo palco, com roupas coloridas, luzes que se acendem e apagam, música, efeitos sonoros. Mas também é uma experiência encantadora imaginar os personagens falando, fazendo as mais diversas entonações e expressões, os gestos mais diversos e se movimentando.

Como você percebeu, a palavra “teatro” pode ter vários significados: construção, arte ou um tipo de texto. Quando apreciamos o teatro por meio da leitura, é o texto que nós apreciamos. Aqui, a palavra “teatro” refere-se a um tipo de texto, a peça de teatro. Também se diz, nesse sentido, que o teatro é um “gênero literário”.

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A peça teatral é um tipo de texto que foi escrito para ser encenado. Mas, mesmo sem a encenação, a leitura de uma peça teatral exige uma imaginação bem criativa na nossa cabeça, diferente da que usamos na hora de ler um conto (gênero narrativo) ou um poema (gênero lírico). Na peça de teatro, não há um “narrador” que conta a história, como acontece em gêneros narrativos como o conto, a fábula e o romance. Os personagens agem sem intermediários. Por conta desse protagonismo dos personagens, toda peça teatral costuma iniciar pela lista de personagens. É o que acontece nas peças deste livro.

O autor da peça também descreve – com menos ou com mais detalhes – o espaço onde acontecem as cenas, as roupas dos personagens, suas aparências, suas movimentações, além de outros elementos que julgar necessários para a encenação ou compreensão da história e para nos ajudar na hora de imaginar tudo isso. Esses textos curtos, que são lidos mas não são ditos nas apresentações, são chamados “rubricas”. Muitas rubricas vêm entre parênteses ou em itálico. Em algumas peças deste livro, os personagens falam consigo mesmos e essas falas aparecem entre parênteses.

Este livro reúne três peças de teatro do grande escritor italiano Gianni Rodari. Todas divertidas e cheias de surpresas. Duas delas são adaptações – ou melhor, recriações – de outras obras. A primeira é “A roupa nova do imperador”, uma recriação a partir de um conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. A segunda, “A falsa adormecida no bosque”, uma recriação, muito divertida, de um conto popular contado por Charles Perrault e os irmãos Grimm. E a terceira peça, “A Sociedade da Coruja”, é uma história original que fala de uma sociedade secreta fundada por um grupo de meninos e meninas que quer tornar mais divertidas suas férias de verão. Mas, diante de um imprevisto, a finalidade da sociedade muda, e a história traz uma lição importante de colaboração e solidariedade, com muita leveza e sempre atual.

Depois da leitura das peças, é bem possível que você queira encenar uma delas ou todas! Ao começar os ensaios da encenação, saiba que não é necessário dizer todas as falas exatamente como estão escritas. Você e seus amigos podem dizê-las “com suas próprias palavras”, ou seja, do modo que soar mais natural e espontâneo para vocês. Mas preste atenção porque

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alguma palavra “difícil” ou alguma frase que pareça menos comum pode criar sentidos importantes para o texto.

Como você vai perceber, o autor faz “piada” com as orientações sobre cenário e figurino. Que engraçadinho! Mas fique à vontade para usar o que estiver à mão e confie na imaginação do público!

Esperamos que você se divirta com essas três peças teatrais, que incentivam o prazer de pensar com leveza e usar a imaginação. Escritores como Gianni Rodari desequilibram nossas certezas, incentivando-nos a ampliar nossos horizontes e a nos tornar mais acolhedores e generosos com as outras pessoas e a vida.

Então, vamos ao teatro?

Vamos ao teatro com Gianni Rodari!

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PEÇA 1
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A roupa nova do imperador

Personagens

Cortesãos

Secretários

Ministros

Almirantes

Generais

Camareiros

Imperador

Conselheiro secreto

Porteiro

Mordomo

Primeiro tecelão

Segundo tecelão

Rainha

Menino

Multidão

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Na antecâmara do quarto do imperador, cortesãos e secretários, ministros e almirantes, generais e camareiros esperam que Sua Majestade se levante. Um põe a orelha na porta, outro espia pelo buraco da fechadura e conta o que vê aos presentes.

Que faz Sua Majestade?

Boceja.

Que beleza!

Respira.

Que maravilha!

Se espreguiça.

Como?

Assim:

Estica os braços imperiais daqui até ali.

Que chique!

E a rainha faz o quê?

Ainda está dormindo.

Ah, uma verdadeira senhora…

Tem um sono tão senhoril…

E agora?

Sua Majestade… levanta-se.

Verdade?

Levanta-se inteirinho?

Sim, mas… um pouco de cada vez.

Excepcional!

Coloca no chão o pé esquerdo…

Ai, ai, sinistro sinal, atrai mal!

Não, perdão, era o direito.

CENA 1
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Ótimo, será por certo um dia de sorte.

Ei-lo, que chega. Viva! Viva!

Abre-se a porta. Aparece o imperador bocejando e espreguiçando-se.

todos

Bom dia, Majestade!

imperador

Bom dia, bom dia, senhores cortesãos, generais, almirantes, secretários.

todos

Beijamos vossa mão.

imperador

Não estou vendo o cavaleiro do espelho.

Um dignitário apressa-se por entre a multidão e mostra ao imperador um espelho oval com moldura de prata (ou quadrado com moldura de ouro, mas pode ser trapezoidal com moldura de lápis-lazúli). Sua Majestade mostra um palmo de língua.

imperador

Como está a língua?

todos

Limpa.

imperador

Não está um pouco branca?

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todos

Nããão!

imperador

Perfeito.

O purgante fez efeito. Vou mandar em agradecimento doze pirulitos ao farmacêutico.

todos

Vai morrer de contentamento.

ministro

Como foi vosso repouso, Majestade Imperial?

imperador

Ah, mau, muito mau.

A noite inteira ouvi um barulho infernal.

Que foi que aconteceu lá embaixo?

ministro

Perdoai-me, Senhor, a culpa do barulho é toda minha: ontem fiquei resfriado e à meia-noite em ponto… dei… um espirro!

outros

Que horror!

Um caso inaudito!

Que infeliz!

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imperador

Vou mandar cortar-lhe o nariz!

Agora vamos pensar em coisas sérias: com que roupa eu vou?

cortesão

Majestade, permita-me sugerir-lhe o traje com colete de ouro e casaco de prata, que lhe cai tão bem!

imperador

Mas pesa pra burro!

secretário

A peliça de pulgas!

imperador

Pinica demais…

almirante

O paletó de pétalas de rosa!

imperador

Já devem estar murchas…

conselheiro secreto

A roupa de frutas cristalizadas?

imperador

Não dá para vestir,

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muitas moscas atrai. Mas, resumindo, eu pago todos vocês para quê?

Senhores da corte, descubram uma ideia nova ou vou condenar todos à morte!

Os presentes ficam pálidos, batem os dentes, alguns fingem que não estão ali, outros tentam se aproximar da saída, sem dar na vista, mas não podem sair porque entra um porteiro com um aviso urgente.

porteiro

Majestade, dois mestres alfaiates de Merlópolis vindos pedem humildemente para serem recebidos.

imperador

Merlópolis? Onde é que fica isso?

cortesão

Pertinho de Forlimpópolis…

secretário

Em Brisgóvia…

mordomo

Em Merlândia…

imperador

Chega de Geografia! Abram alas para a costura.

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Introduzam os mestres à minha sacra presença…

Entrem, entrem, senhores alfaiates, mostrem suas novidades.

primeiro tecelão Majestade!

segundo tecelão Majestade!

primeiro tecelão Viemos até aqui…

segundo tecelão Até aqui…

imperador

Fale apenas um, ou assim vamos até o meio-dia!

primeiro tecelão

Senhor, não é uma roupa que trazemos, mas um milagre.

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imperador

E fala como um oráculo

esse onagro…

Explique mais claro!

primeiro tecelão

Por vinte e sete anos, um mês e um dia estudamos a receita de um tecido perfeito, extraordinário, mais leve que o ar, mais transparente do que água de nascente. E o mais surpreendente é que o nosso tecido não pode ser visto por quem digno não é.

imperador

Isto é? Isto é?

primeiro tecelão

Isto é, o nosso tecido é invisível para quem na cabeça tem pouco miolo…

segundo tecelão … E para quem ocupa certas cadeiras, altos cargos, sem merecê-los.

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Enquanto o imperador assimila lentamente, meditando, as informações recém-recebidas, os presentes empalidecem pela segunda vez e revelam suas impressões entre parênteses.

cortesãos

(Que tecido perigoso…

Não gostei dessa alusão a cadeiras…

Parece subversão… de atentado ao Estado!)

O imperador também troca consigo mesmo, sem se fazer ouvir, suas primeiras impressões:

imperador

(Que magnífico poder!

Com essa roupa finalmente poderei saber se meus ministros são honestos ou ladrões, inteligentes ou paspalhões, sinceros ou mentirosos…)

Senhores alfaiates, ao trabalho: vou pagá-los a peso de ouro!

primeiro tecelão

É preciso um quintal.

todos

Um quintal?

segundo tecelão

Sim, cem quilos, para começar a fiar.

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imperador

E… para… terminar?

primeiro tecelão

Seda.

segundo tecelão

Da mais fina.

primeiro tecelão

Da mais preciosa.

segundo tecelão

Uma tonelada.

imperador

Nada mais?

primeiro tecelão

Um saco de diamantes e brilhantes.

segundo tecelão

Ou melhor, dois sacos.

imperador

Que alfaiates esquisitos!

Mas são divertidos.

Vamos, senhores secretários, cuidem de tudo.

Vou para o jardim brincar com os cães.

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primeiro tecelão

Majestade, um pouquinho de paciência, primeiro precisamos tomar vossas medidas.

segundo tecelão

Não dá para fazer sem…

imperador

Mais que justo!

Estou sentindo que será uma roupa do meu gosto!

À palavra “roupa” aparece a rainha, recém-acordada, mas cheia de curiosidade e entusiasmo.

rainha

Uma roupa? Para mim?

imperador

Realmente…

rainha

Entendo, como sempre só pensou em você. Eu sou a rainha, pelo que se diz, também imperatriz, mas preciso sair por aí mal-arrumada, malvestida, esfarrapada.

A rainha chora e bate os pés. Mas não é verdade que esteja malvestida: veste três ou quatro mantos, um mais precioso do que o outro, usa um diadema, duas dúzias de colares e vinte e sete braceletes. O imperador, enquanto os alfaiates tomam suas medidas, ralha com ela:

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imperador

Chega de manha, senão vou colocá-la de castigo atrás do trono!

rainha

Perdão, perdão! Não faço mais!

imperador

Pare de chorar: uma roupa nova você também vai ganhar. Alfaiates, dela também, tomem as medidas.

rainha

Quero que seja à última moda.

os dois tecelões

À moda de Merlópolis, senhora!

primeiro tecelão

Feito. As roupas ficarão prontas em uma hora.

segundo tecelão

Em uma hora.

imperador

Vamos, querida, vamos deixá-los tranquilos, vamos ao jardim jogar boliche.

Os soberanos saem, de mãos dadas. A corte os acompanha. 24

CENA 2

Os tecelões estão sozinhos e fingem trabalhar. Perto deles, montes de seda, damasco, ouro, prata etc. Estão lá também as duas malas enormes com que chegaram. Se aparecer uma mosca, podem enxotá-la. Os tecelões cantam uma cançãozinha insólita.

primeiro tecelão Era uma vez uma roupa de nada,

segundo tecelão feita de nada,

primeiro tecelão costurada com uma agulha de nada,

segundo tecelão um dedal de nada,

primeiro tecelão uma tesoura de nada,

segundo tecelão para gente de nada,

primeiro tecelão de nada.

Os tecelões movem as mãos no ar fingindo cortar, costurar, enxugar o suor que não há. Pouco depois, ouve-se bater à porta.

secretário Com licença, com licença.

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primeiro tecelão

Entre, fique à vontade, Senhor.

secretário

O imperador me manda ver a roupa em que ponto está.

primeiro tecelão

Estamos quase na metade da metade.

segundo tecelão

Logo estará terminada.

primeiro tecelão

Talvez antes…

O secretário olha em volta espantado, de boca aberta.

secretário

(Na metade? Estou pasmado. Não vejo nada e não entendo nada.)

primeiro tecelão

O que acha, Excelência?

segundo tecelão Não é uma magnificência?

primeiro tecelão

Que reflexos, que cores…

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segundo tecelão

Estas rosas não parecem pintadas?

secretário

Ah, sim, as rosas… claro…

Ah… muito bonitas…

(Não estou vendo nem rosas nem espinhos. Não estou vendo nada de nada.

Será sinal de que não sou inteligente?

Nunca me achei estúpido ou incompetente, mas se os outros descobrirem, estou frito…

Vou fingir que estou vendo…)

Que obra de engenho!

Que fineza!

Que delicadeza!

Um trabalho admirável, insuperável…

primeiro tecelão

Excelência, o Senhor é muito amável.

segundo tecelão

Observe esta esfumatura…

secretário

Arte! Arte pura, de rara fatura!

(E pensar que estou vendo só puro vento…)

Senhores, estou deslumbrado.

Meus parabéns!

Vou informar, eu vou…

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Ouve-se bater na porta outra vez. É um novo visitante.

cortesão

Estou atrapalhando? Posso? A rainha me manda buscar notícias sobre o trabalho.

secretário

Colega ilustríssimo, venha, venha, surpreenda-se, extasie-se, admire esta maravilha!

cortesão

(Acha que eu sou tonto?

Não vejo nada… Ah, entendo… Silêncio, por caridade.

Passar por bobo não é comigo…)

secretário

Então, o que acha?

cortesão

Estou pasmo…

Uma obra superlativa…

secretário

Olha esta rosa, parece viva!

cortesão

Aquela vermelha?

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secretário

Não, a amarela, esta aqui.

cortesão

Estava olhando para lá… Realmente um quadro para ser emoldurado.

secretário

Vai encantar o imperador ao primeiro olhar.

cortesão

A rainha de alegria vai dançar.

Ouve-se fora certa confusão: está chegando a corte inteira.

imperador

Como vai?

rainha

Como vai?

imperador

De esperar fiquei cansado, desejo que meu traje já esteja terminado.

rainha

O meu também! O meu também!

primeiro tecelão

Senhor, um instante, vou prender este botão de diamante.

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segundo tecelão

Madame, um momentinho, vou prender este lacinho.

primeiro tecelão Feito.

Majestade, está satisfeito?

segundo tecelão

Madame, ficou contente?

rainha

Príncipe dos ventos!

(Não vejo um figo seco.)

imperador

(Ó efeito terrível

desse tecido invisível!

Será que não sou digno de ser imperador

ou, pior, tenho cabeça de vento?)

rainha

(Será que tem razão o povo

quando me chama de boba?

Estou morrendo de vergonha…)

imperador (Vou precisar embrulhar…)

Senhores, vou dar

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o meu parecer imperial: a roupa não está nada mal.

rainha

Meu caro, meu caro, dos teus augustos elogios não seja tão avaro: nunca vi nada mais belo!

A rainha finge acariciar a roupa que os alfaiates fingem mostrar, e os cortesãos fingem admirar… cortesãos (a várias vozes)

É verdade! É verdade!

As duas roupas imperiais são uma chiqueza!

Uma poesia!

Uma rapsódia!

(Desculpe, colega, mas essa palavra o que quer dizer?)

(Só os inteligentes podem entendê-la…)

imperador

Trajes tão egrégios nunca se viram antes. Para mostrar aos artistas a minha benevolência e a minha alta aprovação, concedo-lhes esta condecoração e o título de excelência transmissível até a décima sétima geração.

O imperador tira dos bolsos dois grandes medalhões e condecora os alfaiates. Aplausos dos presentes (se quiser, pode também dizer “dos assistentes”).

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primeiro tecelão

Senhor, um minuto, se nos permite, faremos uma prova da roupa nova.

imperador

Uma prova, certo?

rainha

Eu também?

segundo tecelão

As roupas se veem melhor no corpo, entendem?

imperador

Entendo… Preciso despir-me?

rainha

Eu também?

primeiro tecelão

Tenha a condescendência, Majestade…

segundo tecelão

Tenha a benevolência, Soberana…

Com a ajuda da corte, os dois personagens reais tiram suas roupas de cima. Depois um tecelão finge vestir o rei, e o outro, vestir a rainha. Os cortesãos improvisam uma competição de exclamações, todas com ponto de exclamação.

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cortesãos

Espetáculo adorável!

Estupendo!

Insuperável!

(O que é que “super” tem a ver?)

(Quem não entende é um pato!)

primeiro tecelão

Não, Senhor, o outro braço…

Isso mesmo… perfeito…

segundo tecelão

Deixe-me prender…

rainha

A saia não está um pouco comprida?

cortesãos

Faz um efeito magnífico.

imperador

Pesa pouquíssimo, sinto-me fresquíssimo.

primeiro tecelão

Desculpe essa preguinha no peito.

segundo tecelão

E agora caminhe, caminhe… sim… assim…

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cortesãos

Não imagina, Senhor, como enobrece

vossa nobre pessoa.

rainha

E eu, como estou?

cortesãos

Encantadora, sacra Majestade!

Que elegância!

Um pouco inglesa…

Inglesa? Deixa disso, isso é uma heresia.

Esta moda é francesa.

Chinesa!

Holandesa!

(É moda daquele país…)

Ouve-se fora som de trompa, que abafa qualquer discussão.

imperador

Chegou a banda?

mordomo

Senhor, daqui a pouco começa a parada.

imperador

Nossa, tinha esquecido.

mordomo

O programa prevê para a ocasião

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que Suas Majestades apareçam no balcão.

cortesão (um mais cortesão do que os outros) Com essa roupa, Majestade, vai parecer uma divindade.

rainha

E eu? E eu?

cortesãos

Uma ninfa!

Uma deusa!

Uma star!

Ouvem-se outros sons de trompa, que se misturam a aplausos e gritos de viva.

mordomo

A multidão espera ansiosa para admirar essa obra milagrosa.

imperador

Que seja! Vamos! Abram alas.

Quero mostrar ao povo todo meu resplendor.

rainha

Eu também me sinto refulgente como uma estrela. Mas muito mais bela.

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Os servos abrem completamente as portas do balcão que dá para a praça. O cortejo imperial movimenta-se, precedido pelo mordomo, que aparece para anunciar alegremente:

mordomo

Eis suas imperiais Majestades! Vida longa e felicidade!

todos Felicidade.

De novo, aplausos, viva, gritos de maravilha, som de trompa, muitos Oh, muitos Ah, muitos etc.

Os dois tecelões, sem serem vistos, enchem suas grandes malas com ouro, prata, tecidos preciosos, sacos de diamante…

primeiro tecelão

Colega, se a argúcia não me falha, é hora de fazer as malas.

segundo tecelão

O carro já está à nossa espera. Vamos depressa.

Aplausos, aplausos, mais aplausos. Depois, inesperadamente, bem alta e fresca a voz de um menino:

menino

Mas não estão vendo, ó gente, que Suas Majestades não vestem nada?

vozes da multidão

Moleque impertinente!

Tapa a boca dele!

Mas é verdade…

É a pura verdade…

A verdadeira, a verdadeiríssima verdade…

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Vai ver confundiram o balcão com o quarto.

Ou com o banheiro!

Gritos, risadas, assobios. Um pandemônio. Cortesãos que correm. Secretários, pernas para que te quero! Ministros que escapam com as quatro patas. Os dois augustos soberanos cobrem as orelhas para não escutar, cobrem os olhos para fingir que não estão ali. E ninguém se dá conta dos dois tecelões que se vão, encurvados, com sua carga preciosa.

primeiro tecelão (ao público)

Senhoras e senhores, saúdem o imperador por nós.

segundo tecelão (ao público)

O trabalho nos chama. Por nós, saúdem Madama.

O imperador volta, a tempo apenas de ver os tecelões pelas costas. Ele corre para cá e para lá, gritando ordens que ninguém escuta.

imperador

Olá, cortesãos, secretários, mordomos, almirantes… Depressa, chamem o carcereiro!

um cortesão

Para os dois espertalhões, Majestade?

imperador

Não, não, para aquele menino que disse a verdade!

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cortesão

Às ordens, Senhor!

(ao público)

Mas vocês, se virem o menino, digam para ele fugir… escondam-no…

protejam-no…

E, quando ele for grande, vai voltar para botar para correr mil mentiras com apenas uma verdade.

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PEÇA 2

A falsa adormecida no bosque

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Personagens

Carina

Madrinha

Príncipe caçador

Príncipe guerreiro

Jacinto, o lenhador

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carina Não está vendo nada?

madrinha Nada.

carina Não está vendo ninguém?

madrinha Ninguém.

carina Sempre o mesmo. Nem nada, nem ninguém. Faz quinze dias que estamos isoladas neste cafundó, esperando, e veja só o belo resultado.

madrinha Minha filha, é preciso ter um pouco de paciência. É preciso dar tempo para que o boato se espalhe e a notícia gire o mundo.

carina Girar o mundo? No dia de São Nunca. Você não falava assim quando tirou fora essa ideia, lá no castelo, diante dos meus pais. (Repete a fala da madrinha) “Alteza, Princesa, deixem comigo. Vou levar a princesa Carina a minha casinha no bosque. Vou espalhar o boato de que Carina sofreu um encantamento e adormeceu e que vai dormir até que um príncipe a desperte com um beijo na testa. Vão ver, bastarão uns poucos dias e vão aparecer todos os príncipes que convidaram em vão para achar um marido para Carina.” É verdade, olha: chegam em batalhões, escute o trotar dos cavalos, o som das trompas… madrinha (colocando as orelhas para fora) Silêncio! Está chegando de verdade alguém a cavalo. Pronto, já estou vendo. Minha Carina, conseguimos. Reconheço pelo esplendor das roupas: é um príncipe, é ele!

carina Depressa, madrinha, chame-o, não o deixe escapar! madrinha E você, comporte-se!, deite e finja dormir. Não abra os olhos, não pisque, não mexa um dedo: deixa comigo.

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Carina deita-se sobre as cobertas, com as mãos unidas sobre o peito. A madrinha desce ou chama pela janela, conforme as possibilidades do cenário que foi construído.

madrinha Bom dia, bom dia, Alteza!

príncipe caçador (aparece no pórtico) Bom dia, boa dama. A senhora me conhece? (O príncipe pode trazer arco e flecha).

madrinha Quem é que não reconheceria um príncipe pela aparência, pelo porte, pelas roupas, pela pluma no chapéu… Gostaria de entrar e descansar um pouco?

príncipe caçador Com muito prazer. (Entra) A essa hora, aquela lebre… Ao diabo aquela lebre e todas as lebres do bosque! Me fez correr por três horas; deixou meu cavalo exausto…

madrinha Ah, és o famoso Príncipe Caçador!

príncipe caçador Eu mesmo. Aposto que as lebres também sabem disso e ao me ver fogem de mim. (Percebe Carina) Oh, olha, olha… Quem é?

madrinha Não sabe? É a bela adormecida no bosque! Não ouviu falar?

príncipe caçador Na verdade, não. É bela… mas deveria ter visto aquela lebre. Uma maravilha! Uma lebre mais bela só mesmo um pintor poderia fazê-la. Como é rápida! Como é esperta! Me fez de bobo a manhã inteira. madrinha (tentando chamar sua atenção para Carina) Ah, sim… Pobre donzela… O que você queria: um encantamento. Há por aí certas bruxas malvadas… príncipe caçador Nem me diga! Aquela lebre, na minha opinião, devia ser mesmo uma bruxa. Se eu a pegar, vou assá-la viva. Mas é bom que eu não perca mais tempo, se não quiser chegar em casa com o bornal vazio. Adeus, senhora!

madrinha Pobre princesa Carina. Faz tanto tempo que espera alguém que a desperte…

príncipe caçador Verdade? Lamento muito. Bem, eu me vou. Adeus. (Sai). madrinha (tentando segurá-lo) Um momento, Alteza. Um momentinho só. Não gostaria de ouvir a história da bela adormecida no bosque?… Mas que nada… já foi.

carina (pulando da cama e correndo para a janela) Estúpido! Estapafúrdio! Esse aí não é o Príncipe Caçador, é o Príncipe Tonto!

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madrinha O que se pode fazer? Só pensa em lebres, esse aí! carina É mesmo, eu deveria ter fingido que era uma lebre em vez de uma bela adormecida. Olha ele lá! Lá embaixo, em frente àquelas moitas… Oh, mãe! Não é o Príncipe Caçador! É outro! Madrinha minha, tenta segurá-lo! Feche a porta à chave, prenda-o na cadeira!… Espera: tenho certeza que, se colocarmos a cama aqui, ele vai me ver melhor…

madrinha Sim, você tem razão. Rápido, Carina, rapidinho. (Arrumam a cama) Vamos, deita, ele está chegando. (Batem à porta).

madrinha (abrindo a porta) Quanta honra, Alteza! Entre.

príncipe guerreiro (entra brandindo a espada) Bem, bem. Vejo que me conhece. Assim perderemos menos tempo. Viu passar por aqui os meus inimigos?

madrinha (aproximando-se da cama e acariciando Carina) Quais inimigos, Alteza? Eu e a princesa Carina vivemos aqui sozinhas, sem ver nada, sem saber de nada…

príncipe guerreiro Eu sou o Príncipe Guerreiro, faço guerra, devo ter inimigos, não? De outro modo, contra quem eu lutaria? Mas se vocês não os viram, vou procurá-los eu mesmo. (Vira-se para sair).

madrinha Espera, Alteza! Talvez eu possa ajudá-lo. Talvez os seus inimigos sejam os mesmos que lançaram um encantamento sobre a princesa Carina. Olha: ela está dormindo. Dorme há semanas, há meses… Só o beijo de um príncipe pode despertá-la.

príncipe guerreiro Bem! E eu com isso? Eu não sou o Príncipe Despertador, sou o Príncipe Guerreiro. Deixe-me ir, não posso perder tempo com essas histórias.

madrinha Mas a bruxa, Alteza! A bruxa que fez a princesa Carina cair no sono! Talvez ela tenha escondido os seus inimigos com um encantamento!

príncipe guerreiro Então vou à procura da bruxa e a farei sentir a ponta da minha espada! Adeus!

madrinha (segurando-o) Espere! Alteza!

príncipe guerreiro Adeus… adeus… Tenha confiança na minha espada… (Afasta-se).

carina (levanta-se da cama e anda pelo quarto batendo os pés) Que a sua espada corte seu nariz em fatias e que os seus inimigos comam seus bigodes!

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Estrupício! Ah, madrinha, madrinha! Os seus príncipes são um pior do que o outro! Um só pensa em lebre, o outro só pensa em guerra! E em mim não pensa ninguém! Ai! Ai!

madrinha Minha filhinha, não se desespere assim. Não chore, vai ficar feia…

carina E de que me adianta ser bela? Ninguém me quer! A minha família é muito pobre, os príncipes ficam longe do meu castelo… e o seu encantamento não funciona!

madrinha Mas eu te direi, no entanto, que funciona muito bem. Já tivemos duas visitas em uma só manhã. Parece pouco? (Olha para fora) E parece que vamos receber a terceira… Ah, não…

carina (correndo à janela) Sim ou não?

madrinha É só aquele lenhador que passa por aqui toda manhã. Só um curioso. Deve ter ouvido falar da princesa adormecida e… Misericórdia! Parece que vem para cá! Depressa! Esconda-se!

carina Porém… É um belo rapaz… Olha que expressão audaz… Que olhos altivos…

madrinha Por caridade! Um lenhador! Esconda-se! Ele não deve nem vê-la. Você sabe que o nosso édito promete a tua mão a quem despertá-la, sem explicar se precisa ser príncipe ou não. Os éditos são assim, porque se sabe que só os príncipes é que se apresentam para tentar. E se der na telha desse rapazinho tentar também? Depressa, depressa.

carina (corre para colocar-se na poltrona no caminho) Calma, madrinha, só quero me divertir um pouco. Olha, vou me colocar na frente do caminho, assim ele poderá me ver melhor.

madrinha Misericórdia! Carina, que coisa você quer aprontar? (Batem à porta) Ei-lo que bate! Pobre de mim! Desgraçada de mim! Quem é?

jacinto Sou Jacinto, o lenhador.

madrinha E que deseja?

jacinto Vim trazer cogumelos!

madrinha (para si) Como descobriu que eu adoro cogumelos?

jacinto Vim trazer mirtilos!

carina (para si) Que beleza, eu gosto tanto!

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madrinha (abre a porta para pegar os cogumelos) Me dê aqui. Muito obrigada, você é muito gentil.

jacinto (entra desenvolto) De nada. Por quatro cogumelos. Eu sei onde crescem, não me dá nenhum trabalho encontrá-los. (Olha a princesa Carina) É muito graciosa, pena que seja um pouco dorminhoca.

madrinha Um pouco dorminhoca? Você é mesmo um ignorante de marca! Para seu conhecimento, a princesa Carina sofreu um encantamento! Mas isso não é da sua conta. Agradeço os cogumelos e até logo.

jacinto Do que a senhora tem medo? De que eu a desperte? Eu não me casaria com uma princesa nem que me pagassem! Imagine! Uma princesa! Uma que não é boa para nada, criada no meio do bom e do melhor, que não sabe acender o fogo nem preparar uma sopa de couve-flor.

madrinha Você não sabe de nada. Carina sabe fazer de tudo. Sabe cozinhar, passar. Pinta, toca cravo, estudou física, química e astronomia. Faz ginástica, anda a cavalo, pratica esgrima. Quer saber mais alguma coisa?

jacinto E, com todas essas qualidades, não consegue encontrar marido?

madrinha Não diga bobagens! A princesa Carina tem todos os pretendentes que quiser! E não são lenhadores!

jacinto Se é por isso, eu também não sou lenhador. Sou poeta!

madrinha Mas eu sempre o vejo rachando lenha.

jacinto É verdade, trabalho como lenhador para viver. Assim sou livre para fazer apenas as poesias que me agradam e não preciso vender meus versos para ninguém.

madrinha (com desprezo) Sabe-se lá que versos! Melhor dizer coaxos!

jacinto Quem sabe… Gostaria de ouvir um?

Disfarçadamente, Carina faz sinal para a madrinha que sim.

madrinha Está bem, vamos ouvir um pouco que bela porcaria você sabe escrever com essas mãos de rachador de lenha.

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jacinto (percebeu o gesto de Carina, sabe que ela não está dormindo e recita para ela)

As poesias onde estão?

Há uma em cada coisa:

Na madeira da mesinha, No copo, na rosa.

A poesia está lá dentro

há muito tempo e não fala: é uma bela adormecida e é preciso acordá-la.

Mas se um príncipe ou um poeta despertá-la, ela sairá da sua prisão cheia de felicidade.

carina (levanta-se, aplaudindo) Bravo! É belíssima! Precisa me ensinar!

madrinha Carina! O que é que você está fazendo? Volte já a dormir!

jacinto (brincando) Olha, olha! Quebrou-se o encantamento!

madrinha Carina! Pensa no seu nível! Pensa nos seus antepassados!

Você não vai querer…

carina Vou sim…

madrinha (horrorizada) Que coisa?

jacinto Vamos, vamos, cara madrinha, não queira se fingir de falsa desmaiada. Você entendeu muito bem que pedi Carina em casamento e que ela respondeu sim.

madrinha Casar com um lenhador! Viver nos bosques!

carina “Nossos bosques têm mais vida”, madrinha. Não há nada mais cheio de vida sobre a Terra. (Dá a mão a Jacinto) Viveremos aqui e você viverá conosco e será a madrinha dos nossos filhos.

jacinto Não está contente que o seu encantamento funcionou?

madrinha (ao público) Não estou nada contente! Agora os contos de fadas vão todos ao contrário.

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PEÇA 3

A Sociedade da Coruja

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Personagens

Lúcio

Máximo

Sandro

Laura

Ticiana

Vicente

Cenário

Uma caverna abandonada na periferia da cidade. É a sede de uma “sociedade secreta” infantil: pode ser imaginada segundo o gosto de cada um e as possibilidades da encenação.

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Quando se abre a cortina, o palco está vazio. Ouve-se um assobio modulado, o sinal da coruja. Outro assobio igual lhe responde. Entram Sandro e Laura.

sandro (senta-se sobre uma pedra e enxuga o suor) Somos os primeiros. Se eu soubesse que não havia ninguém, não iria correr tanto.

laura (andando pela caverna) Você sempre diz isso, mas sempre chega primeiro. Só quando se trata de abrir a carteira é que você é o último.

sandro Eu dou o que eu tenho. Não posso começar a roubar. Quando fundamos a Sociedade da Coruja, combinamos que cada um contribuiria conforme suas possibilidades. E vocês sabem que meu pai não me dá nem um real. Mas fui eu que dei o nome da sociedade e fui eu quem descobriu a caverna.

laura Você vive se gabando disso. (Mudando de tom) Sabe de uma coisa? Alguém esteve aqui dentro.

sandro Bela descoberta, se a gente vem aqui um dia sim e um dia não.

laura Da última vez que estivemos aqui, esta palha estava lá. Lembro muito bem, porque sentei em cima dela. (Ouvem-se fora alguns assobios) Chegaram. (Quase ao mesmo tempo entram Lúcio, Máximo e Ticiana).

lúcio (para na entrada e faz a saudação da sociedade) Viva a Coruja!

todos Viva!

ticiana (olhando ao redor com apreensão) Estão seguros de que a coruja não voltou?

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máximo Medrosa! Você nunca viu a coruja! E possivelmente ela nunca esteve aqui.

sandro O quê? Digo que esteve, sim. E que era grande também. Eu a vi quando descobri a caverna, mas deixei-a escapar. É por isso que sugeri chamar a nossa sociedade de Sociedade da Coruja.

lúcio Chega dessa história! Já falamos demais sobre isso. E você, Ticiana, se tem medo, retire-se da sociedade.

ticiana Não tenho medo… Só que não gosto de corujas.

laura Quando tiverem terminado de falar de corujas, deem uma olhada em volta: acho que alguém esteve aqui na caverna depois da nossa última reunião.

sandro (enquanto todos olham em volta, levanta-se, gritando) O tesouro! (Todos correm em direção a um canto da caverna onde, embaixo de duas pedras, deveria encontrar-se a caixinha do tesouro) Menos mal que ainda está aqui.

laura Quer dizer que a caixinha ainda está aqui. É preciso ver se o tesouro também está.

sandro (agita a caixinha e abre-a nervosamente) Está vazia! Fomos roubados!

máximo Adeus!

ticiana Mamma mia, os ladrões!

laura Pronto, já achou outro motivo para ficar com medo.

sandro Papa-Figo! Mas como é possível? Faz meses que colocamos o tesouro lá embaixo, e nunca faltou nenhum centavo.

laura Vai ver que os ladrões estavam esperando que o nosso pé-de-meia ficasse mais polpudo.

sandro Estamos arruinados.

máximo E adeus ao bote inflável que queríamos comprar neste verão.

Ticiana começa a chorar.

lúcio Pronto, esta aqui abriu a torneirinha. Bem, gente, não vamos perder a cabeça. Vamos sentar e raciocinar. Você, Sandro, coloque a caixinha aqui no meio.

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laura Vai fazer o processo? Acha que a caixinha vai responder às nossas perguntas?

sandro Pare, Laura, não é hora para piadas.

lúcio (a Sandro) Calma você também. Vamos refletir um momento, em silêncio, conforme a lei da nossa sociedade.

Todos assumem um ar meditativo, apoiando o queixo sobre a mão, coçando a testa etc.

ticiana (a Laura) Em que devemos pensar?

laura Boba, nos ladrões!

ticiana (assustada) Mamãe!

lúcio Bico calado, vocês duas!

sandro Eu bem que falei que não deveriam entrar meninas na nossa sociedade.

máximo E eu digo que o que não deveria entrar era ladrões.

lúcio O quê? Fale claramente. Está acusando alguém?

máximo Eu gostaria de saber por que Sandro vem à caverna antes dos outros e fica aqui depois que todos vão embora. Até na última vez, quando a reunião acabou, você ficou aqui. E não negue, porque nós todos vimos. sandro (no máximo da indignação) O quê? O quê? Quer dizer que eu… Se fui eu mesmo quem descobriu a caverna, quem deu o nome à sociedade, eu que… (Levanta-se) Retira já o que você disse!

máximo Não retiro nada! Por que não responde à minha pergunta?

sandro E com que dinheiro você se esbaldou ontem nos carrinhos? (Aos outros) Eu o vi no parque de diversões, na pista do carrinho de bate-bate. Fazia uma volta depois da outra, uma depois da outra: fez pelo menos dez voltas. Deve ter gastado no mínimo mil reais! Quem te deu? De onde você tirou essa dinheirama?

Máximo, sem responder, pula em cima de Sandro. Os dois rolam no chão gritando. Ticiana grita e se esconde em um canto. Laura e Lúcio tentam separá-los.

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lúcio Chega! Vocês esqueceram a lei da Sociedade da Coruja: nós somos contra a violência. (Todos voltam a sentar-se) Vocês são dois estúpidos. Você, Máximo, esqueceu que Sandro é tão apaixonado pela caverna que dormiria aqui à noite. É por isso que chega sempre primeiro e vai embora por último. Para ele, é como se fosse sua casa. E a Sociedade da Coruja, para ele, é como outra família. E você, Sandro, fala sem pensar. Não lembra o que o próprio Máximo disse outro dia? Que seu primo tinha achado emprego no parque de diversões e tinha prometido bilhete grátis para o carrinho de bate-bate? É por isso que ele pode dar tantas voltas.

máximo Isso mesmo. E Sandro também sabia. sandro (atrapalhado) Tinha esquecido.

laura Posso fazer uma proposta?

lúcio Estamos ouvindo.

laura Se um estranho esteve na caverna, certamente deixou traços. Eu notei a palha mexida. Vamos procurar com atenção: quem sabe a gente encontra outro indício.

ticiana Outro o quê?… Endereço?

laura Claro, o endereço do ladrão. Um indício: isto é, uma bituca de cigarro, uma coisa qualquer. Nunca viu como faz o advogado Perry Mason? lúcio Então, vamos. Vamos procurar.

Todos procuram, explorando cada centímetro da caverna. Deitam-se no chão para observar o terreno de perto. A cena pode ser alongada e animada improvisando-se, isto é, inventando-se cacos. Enquanto as meninas e os meninos procuram, aparece na entrada da caverna Vicente: um menino de uns treze anos, vestido pobremente e que segura uma maleta. Vendo as outras crianças, tem um movimento de surpresa e de medo. Volta-se para fugir. Sandro o vê e dá o alarme.

sandro Ei, você! Quem é? Aonde vai? Gente, cuidado que escapa! É o ladrão! É o ladrão! Vamos prendê-lo!

Ticiana começa a gritar e se esconde em um canto da caverna. Todos os outros, inclusive Laura, perseguem Vicente. Rumor de luta e gritos fora de cena. Voltam todos. Laura segura a maleta. Sandro e Máximo seguram Vicente pelo braço, que não faz resistência.

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máximo Vem aqui, ladrão.

sandro De joelhos! Fique de joelhos aqui no meio! Agora faremos seu processo.

laura Não tenha medo, Ticiana, ele não morde.

ticiana Mas se é um ladrão!

laura Pode ser um ladrão, mas se deixou prender sem resistência.

sandro Claro, porque voamos para cima dele.

laura Mas olhem para ele! É mais forte do que todos nós juntos! Se quisesse, poderia nos dar uma surra.

Vicente está ajoelhado, com a cabeça baixa.

lúcio Para começar, abra a maleta.

laura (executa) Pronto. (Tira os objetos, um depois do outro) Uma camisa… um par de meias… duas maçãs… um pedaço de queijo… Nenhum tesouro da Coruja.

vicente (sem falar, mexe nos bolsos, tira dinheiro e coloca diante de Lúcio, para surpresa geral) Faltam quatrocentos reais…

sandro Mas então… Foi você mesmo que pegou o nosso tesouro!

máximo É o ladrão, como eu já tinha dito. Agora vamos levá-lo à polícia.

lúcio Calma, calma. Vamos fazer as coisas na ordem. Primeiro o interrogatório. (Para Vicente) Como você se chama?

vicente Vicente…

lúcio De onde você é?

vicente (faz um gesto vago) De longe… Um lugarejo, nas montanhas… Vocês não vão entender…

sandro O que é que nós não vamos entender? Nós estudamos Geografia, o que é que você pensa…

vicente Somos muitos, na minha casa… Sete filhos. Eu sou o maior… Meu pai trabalha a terra. Temos um pequeno pedaço de terra que rende pouco. O inverno estava chegando. Meu pai me disse: “Vicente, você está vendo que não há comida para todos. Quem sabe você possa encontrar trabalho em Roma. Lá mora um primo da sua mãe. Este é o endereço.

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No ano passado, quando esteve aqui, ele prometeu nos ajudar. Se você for, vai encontrar alguma coisa para fazer. Roma é grande, tem lugar para todos, e bons braços são sempre necessários”. Então parti, só com o dinheiro da viagem e o endereço do primo da minha mãe. Mas quando fui procurá-lo, não o encontrei. Mudou de casa, ninguém sabe onde foi morar. Encontrei-me em Roma sozinho, sem dinheiro, sem ninguém… Era de noite e não sabia onde dormir. Pensei: vou para o campo, vou encontrar uma cabana, um depósito de feno… Mas aqui é tudo diferente… Andei horas antes de encontrar esta caverna. É verdade, dormi aqui esta noite… ticiana Mamma mia! E a coruja apareceu?

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vicente A coruja?

laura Não pare, continue.

vicente Acho que é só isso. Hoje de manhã encontrei aquele dinheiro. Peguei-o. Eu não tinha nada, entendem? E estava com fome. Andei sem saber o que fazer, sem falar com ninguém. Depois, estava cansado, pensei em voltar aqui para descansar… e também…

máximo Então?…

vicente Queria deixar um bilhete pelo dinheiro… Eu não sou ladrão… Eu já tinha escrito o bilhete. Vejam. (Mexe em um bolso, pega o bilhete e o entrega a Lúcio, que o lê em voz alta).

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lúcio “Por favor, desculpem pelo dinheiro. Vou devolvê-lo assim que possível, quando começar a ganhar alguma coisa.”

ticiana (comovida) Então você não é um ladrão, verdade?

laura Não, claro que não.

máximo Como assim “não é um ladrão”? O dinheiro, você pegou ou não?

lúcio Pegou, sim, mas é como se fosse emprestado.

laura Justo.

sandro Mas que empréstimo que nada! Ele nem pediu antes de pegar!

ticiana (esforçando-se para não chorar) Eu… Se ele me pedisse, eu daria…

laura Muito bem, Ticiana. Eu também.

lúcio (a Sandro e Máximo) E vocês dois?

sandro Bem… claro, eu também.

máximo Sim… eu teria dado. Porém…

lúcio Vamos, chega de “mas” e de “porém”. (Para Vicente) Saiba você que nós estávamos guardando aquele dinheiro para comprar um bote inflável. No verão vamos à praia todos juntos, no domingo. Com um bote é mais divertido. É por isso que fundamos uma sociedade secreta.

sandro A Sociedade da Coruja: fui eu que dei o nome.

lúcio Mas você parece precisar do dinheiro mais do que a gente.

ticiana (bate palmas, contente) É o que eu queria dizer, pega, pega todo o dinheiro. E fica sentado com a gente senão os joelhos vão começar a doer.

Vicente senta-se, confuso.

lúcio Estão todos de acordo?

todos Sim. De acordo. Com certeza.

lúcio Muito bem. Com esse dinheiro, Vicente poderá comer por alguns dias, enquanto procura o primo da sua mãe…

laura E se não o encontrar?

lúcio Então o emprego somos nós que vamos encontrar.

máximo (levanta-se, excitadíssimo) Ao parque de diversões! Meu primo me disse que não gostava daquele trabalho e queria ir embora.

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sandro Então, o que estamos esperando? Vamos correndo para o parque de diversões!

Todos se levantam, sacodem o pó das roupas, preparam-se para sair.

lúcio Ei, um momento, não esqueçamos o nosso dever! Viva a Coruja!

todos Viva!

vicente Viva a Coruja!

ticiana E viva Vicente!

todos Viva Vicente!

Dão os braços a Vicente e saem juntos enquanto…

Cai o pano.

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GLOSSÁRIO

Glossário é uma lista de palavras. Neste glossário, você encontra alguns termos que estão presentes nas peças de teatro deste livro e que talvez você não conheça, por serem de uso menos comum. Note que uma palavra pode ter vários significados (ou acepções), portanto, aqui registramos apenas o significado com que ela aparece neste livro.

A

antecâmara – pequena sala dentro do palácio que fica antes de chegar ao quarto.

argúcia – capacidade de compreender uma situação e solucionar problemas com rapidez; o mesmo que agudeza, perspicácia. augustos – nobres, majestosos.

avaro – que não gosta de gastar dinheiro; o mesmo que avarento.

B

bornal – tipo de bolsa usada para carregar comida. C

cacos – frases que o ator acrescenta ao texto original, muitas vezes de improviso, para produzir um efeito cômico.

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coaxos – sons dos sapos, das rãs e das pererecas.

condescendência – qualidade de quem atende a pedidos sem dificuldades. corte (palavra pronunciada com ô fechado) – conjunto de pessoas que vivem com o rei.

D

diadema – acessório para a cabeça usado por rainhas. dignitário – aquele que tem um cargo que lhe dá muito poder.

E

édito – ordem, originada de uma autoridade, que se afixa em lugares públicos para conhecimento geral.

egrégios – nobres, ilustres, admiráveis.

esfumatura – passagem gradual de uma cor a outra ou de um tom a outro de uma mesma cor.

I

impertinente – que não demonstra respeito a outra pessoa.

inaudito – de que ninguém ouviu falar antes.

insólita – que não é comum; o mesmo que incomum.

M

magnificência – qualidade do que encanta por sua beleza e grandiosidade.

O

onagro – espécie de burro selvagem.

oráculo – na Grécia antiga, resposta de um deus a quem o consultava.

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Papa-Figo – o mesmo que Bicho-Papão.

peliça – roupa feita com peles finas e macias.

Perry Mason – personagem criado pelo escritor estadunidense Erle Stanley Gardner (1889-1970). Perry Mason é um advogado criminalista, ou seja, defende pessoas acusadas de crimes, no caso, de homicídios.

Para isso, torna-se também detetive.

purgante – remédio que solta o intestino.

R

ralha (ralhar) – repreende, dá uma bronca de forma enérgica.

rapsódia – trecho de poema épico (por exemplo, Ilíada ou Odisseia, de Homero) recitado por declamador ambulante, chamado rapsodo, na Grécia antiga. refulgente – que refulge, brilha; o mesmo que brilhante.

S

sacra – sagrada, digna de respeito.

star – estrela, em inglês. Aqui, no sentido de atriz que faz muito sucesso.

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FONTES BIBLIOGRÁFICAS

A roupa nova do imperador foi escrita em 1963.

A falsa adormecida no bosque, escrita em 1963, foi representada em 26 de fevereiro de 1974 pela Companhia I Teatranti da cidade de Reggio Emilia, na região da Emilia-Romagna, e no Teatro Comunale di Ravenna, na cidade de Ravena, na mesma região, em 15 de setembro de 1974.

A Sociedade da Coruja foi publicada no Corriere dei Piccoli, suplemento semanal do jornal Corriere della Sera, de Milão, em 22 de janeiro de 1967.

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Olá, leitor e leitora! Vocês sabiam que Gianni Rodari, o autor das peças de teatro deste livro, nasceu na Itália, em 1920, na cidade de Omegna (se fala “Omenha”, assim como “lasanha”, que em italiano se escreve lasagna)? Quando as histórias dele começaram a ser publicadas, na década de 1940, fizeram muito sucesso entre as crianças italianas.

Gianni Rodari começou sua carreira de escritor publi cando histórias para crian ças no jornal italiano L’Unità [A Unidade]. Seu primeiro livro infantil, chamado libro delle filastrocche [O livro das parlendas], foi lançado em 1950.

Rodari ganhou o prêmio mundial mais im portante dos escritores de literatura infantil, o Hans Christian Andersen, que se chama assim em homenagem a outro importante autor de histórias para crianças.

E se ele nasceu na Itália e escreveu as histórias em italiano, como elas vie ram parar neste livro em português?

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Ah, boa pergunta! Esse é o papel do tradutor. Pelo que li na capa e na página de créditos do livro, quem traduziu as peças de Gianni Rodari do italiano para o português foi o Luís Camargo.

Isso mesmo! O Luís Camargo nasceu na cidade de São Paulo, em 1954. Ele aprendeu italiano com a esposa dele, que nasceu na Itália. Além disso, também é autor e ilustrador de histórias infantis! Legal, né?

Puxa, que equipe inteligente! E a artista que desenhou cada um de nós e fez os cenários das peças no livro é a Giulia Orecchia. Adivinha onde ela nasceu? Na Itália também! ! Ela nasceu na cidade de Turim, em 1955.

Por que você ficou bravo?

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Eu, bravo?! Ah, não! É que bravo tem outro significado em italiano; quer dizer “muito bem” ou “parabéns”.

Vocês já tinham lido textos do gênero teatro?

Eu não. Achei estranho aparecer o nome do personagem antes da fala dele. É assim mesmo?

É, sim! Eu já tinha lido um texto do gênero teatro antes. Gosto de ler peças porque elas exercitam a criatividade: a gente tenta imagi nar as cenas das histórias, o som e a postura de cada personagem.

Verdade! E, para nos dar pistas de como imaginar tudo isso, podemos prestar atenção nas rubricas, que são os textos que aparecem com as letras deitadinhas, em itálico. As rubricas são comuns nos textos de teatro porque trazem informações de como devem ser os cenários e de como os personagens devem se movimentar e atuar, por exemplo.

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Eu gostei muito dos temas das peças. Em “A Sociedade da Coruja”, tem um grupo de amigos que precisam resolver um suspense. Adoro histórias com diversão e aventura!

E eu gosto de histórias de reis e princesas, como “A roupa nova do imperador” e “A falsa ador mecida no bosque”. Até fiquei com a sensação de já ter ouvido falar dessas histórias…

Sim, as peças “A roupa nova do imperador” e “A falsa adormecida no bosque” foram inspiradas em histórias que já existiam. O Gianni Rodari fez novas versões e adaptou as histórias para o teatro!

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Gianni Rodari foi um gênio italiano que acreditou na fantasia, na literatura e na invenção como forças que podem salvar o mundo. Estudou para ser professor, mas por uma felicidade do destino começou também a escrever para crianças. Dedicou trinta anos de sua vida a criar universos e histórias, com o desejo profundo de falar da paz e do desarmamento. Foi o primeiro autor italiano a ganhar o prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infantil.

A vida de Rodari foi tomada por percalços. Atravessou uma infância difícil, conheceu a guerra de perto, perdeu os pais cedo e, ao procurar uma forma de sobreviver com esperança e alegria, encontrou a literatura. A leitura das três peças reunidas neste volume é uma oportunidade de envolver professores e estudantes no gesto revolucionário de ler e espalhar a fantasia. É no estímulo à arte de inventar que podemos aprender a encontrar soluções para os problemas do mundo.

Socorro Acioli

9010302000168 9 788596 031950 ISBN 978-85-96-03195-0
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