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Carta Errante

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Altamente Recomendável/ Infantil/FNLIJ/1994

Prêmio Jabuti/1995 –Melhor livro infantil

1ª edição

Porto Alegre – 2021

Copyright © Mirna Pinsky, 2021 Todos os direitos reservados à

UNIÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA

(Pontifícia Universidade Católica do RS – Campus Poa)

Avenida Ipiranga, 6681 – Partenon

CEP 90610-001 – Porto Alegre – RS

Tel.: (0-XX-51) 3320-3711

E-mail: edipucrs@pucrs.br

Editora assistente Bruna Perrella Brito Revisoras Lívia Perran e Marina Nogueira

Mirna Pinsky nasceu e mora em São Paulo. Jornalista com mestrado em Teoria Literária, atuou muitos anos como repórter e redatora de jornais e revistas. A partir de 1980, passou a trabalhar na área editorial. Iniciou sua carreira de escritora como poeta e dramaturga e, depois de 1978, dedicou-se a livros para crianças e jovens. Tem mais de 40 obras publicadas e recebeu prêmios importantes, entre eles, dois Jabutis, em 1981 e 1995. Desenvolve, desde 2002, dois projetos sociais em escolas públicas: Projeto Escreva Comigo, que visa estimular a aproximação do aluno de escolas públicas com livros, leitura e escrita; e Ler com Prazer, que auxilia alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental com dificuldades no letramento.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P658c Pinsky, Mirna Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante / Mirna Pinsky; ilustrações Ionit Zilberman. – 1. ed. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2021. 56 p. : il.

ISBN 978-65-5623-199-0 (aluno)

ISBN 978-65-5623-190-7 (professor)

1. Literatura infantil. 2. Literatura (Ensino fundamental). I. Zilberman, Ionit. II. Título. CDD 23. ed. 028.5

Anamaria Ferreira – CRB-10/1494

Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS

Para Ieda Porchat, que me ajudou, com tanta competência e delicadeza, a galgar meus muros.

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Era uma avó. Mais ou menos velhinha, mais ou menos gordinha, tinha o cabelo mais ou menos cinzento e, dia sim, dia não, dores nas costas que despontavam entre a segunda e a terceira

costela, produzindo uma preguiça infinita. Nesses dias, vovó Lia abria mais tarde a janela de seu quarto e nem ligava para os passarinhos da macieira. Só queria saber do sol: se tivesse, ela descia até o jardinzinho de margaridas brancas que havia nos fundos do prédio. Se não, ela voltava para a cama com uma bolsa de água quente e ficava rabiscando cartas.

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Se ela gostava de escrever? Na verdade, não. Não tinha a menor vocação para a caneta: confundia as letras e frequentemente esquecia palavras, sendo obrigada a fazer frases compridas para dizer pouca coisa. É que ela, como muita avó, tinha vindo de muitos lugares, aprendido várias línguas e agora havia muita confusão na sua cabeça.

Vovó Lia conhecia o mundo todo – ou quase. Imaginem que nasceu de um lado, mudou-se para o meio, viveu depois do outro lado e acabou voltando para perto – quer dizer, mais ou menos perto – de onde tinha nascido. Aprendeu a falar polonês, ídiche, francês, castelhano, português e, já avó, teve de aprender hebraico.

Num desses dias meio aborrecidos, em que o sol não aparece, mas a dor nas costas sim, vovó Lia lembrou-se do aniversário da neta Luciana e resolveu escrever uma cartinha.

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Querida Luciana, Minha netinha linda! Meus parabéns pelo seu aniversário. Dez anos é uma data muito importante, você é quase uma mocinha. Fico lembrando o dia em que nasceu. Eu morava no interior de São Paulo e seu avô e eu ficamos colados no telefone, esperando nos avisarem que sua mãe tinha ido para o hospital. E toda vez que o telefone tocava seu avô berrava: é menina? Ele queria tanto uma menina que quando finalmente o telefone tocou, avisando que você já tinha nascido, ele pulou de alegria, gritando: ganhei! ganhei! E a gente foi para São Paulo...

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E vovó Lia foi rabiscando a cartinha e lembrando. Lembrando uma porção de coisas misturadas. Foi por isso que a carta acabou saindo tão comprida.

Uma carta, para viajar de Israel – onde vovó Lia agora morava – para o Brasil, leva um tempão. Começa que vovó Lia vivia numa cidade pequena, sem sequer estação rodoviária e com apenas uma agência de correio. A agência ficava longe da casa dela e, como estava sempre se esquecendo da quantidade de selo que tinha de colocar para carta internacional, não adiantava ter caixinha de correio na esquina.

A carta foi de ônibus até a agência. Sacolejando muito pelas ruas esburacadas, bolsa, avó e carta chegaram um pouco antes do almoço. A agência era um galpão enorme, em que um funcionário sonolento atendia num guichê. Como houvesse muita gente esperando, vovó sentiu-se tentada a se acomodar e fazer um lanchinho. Tirou pão preto

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da bolsa com um lindo pedaço de salame e uma rodela de tomate – que educadamente ofereceu aos companheiros de fila – e se preparou para passar o tempo. Conversou com o senhor da frente, conversou com o senhor de trás, trocou receita de bolo de damasco com a senhora bem gorda que estava no começo da fila e acabou tendo uma tarde muito divertida com os tantos amigos novos que fez.

E a carta foi. Vovó, claro, não soube mais dela. Uma carta, quando sai da mão da gente, percorre um caminho todo especial – embora em boa parte acompanhado. Da pequena agência na pequena cidade no sul do país, ela foi para a agência em Beersheva e desta para Tel Aviv. De malote em malote, caminhonete em caminhonete, pilha em pilha, foi cruzando as estradas, cruzando as cidades, até que a colocaram num avião e a despacharam para o Brasil. Junto com pacotões e pacotinhos, com envelopes azuis e envelopes brancos, com aerogramas e encomendas, lá foi ela, toda escritinha, toda cheia de notícias e saudades, atravessar o oceano em busca de Luciana.

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Seu avô, Luciana, era um homem muito engraçado. Engraçado mesmo: ria de tudo e fazia todo mundo rir com ele. Pois nós viemos rindo de Assis a São Paulo, no dia em que você nasceu, porque ele tinha resolvido que a primeira neta dele tinha de ser a mais bonita de todas as crianças nascidas na maternidade e ele começou a organizar um concurso de MissBerçário.

Seu avô era um cientista, um químico, e tinha passado boa parte da vida em laboratórios, fazendo pesquisa. Começou na A ´ ustria, onde nasceu e estudou, e depois em São Paulo, para onde foi, fugindo do nazismo. Costumava varar as noites observando pesquisas nos laboratórios. Era tão desligado que, várias vezes, os funcionários do laboratório encontraram-no pela manhã vestindo roupa de festa. Tinha dado uma passada no laboratório para verificar o andamento de uma pesquisa, já vestido para alguma festa, e se esquecera de tudo diante dos tubos, soluções e espátulas.

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Pedro Boné trabalhava nos Correios há exatos vinte e dois anos. Já fizera de tudo por ali. Conhecia cada meandro daquela imensa agência central, na Avenida São João, um dos locais mais movimentados de São Paulo. Fora faxineiro, carteiro, atendente de guichê, atendente de franquia, cuidara da seção de porte pago, vale postal, Sedex, telegrama e agora era uma espécie de superintendente que no fundo resolvia todos os abacaxis indefinidos.

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Para Pedro Boné – o boné escondia a careca e promovia o clube do seu coração: era fanático pelo Palmeiras –, trabalhar com cartas tinha um encanto todo especial. Era muito mais do que carregar palavras de um lugar para outro. Era muito mais do que entregar encomendas. Os envelopes que passavam por suas mãos, pensava ele, atravessavam cidades, países, cruzavam o mundo de um lado para o outro. E dentro deles havia sempre uma história, um pedaço de história de vida, pessoas, amizades, brigas, aproximações. Ele voava, imaginando quem eram essas pessoas que escreviam,

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como era a vida delas; será que levantavam cedo como ele? será que trabalhavam em frente a escrivaninhas? será que batalhavam a vida nas ruas? dentro de automóveis? lojas? para quem será que escreviam? tinham amigos? parentes? filhos afastados? Pedro Boné gostava tanto daquilo que fazia que perdia às vezes a hora, tentando consertar pacotes mal embrulhados, cartas com manchas sobre o endereço e outros pepinos que ninguém queria pegar.

Por isso, todo mundo achou natural que aquela carta escrita em caracteres hebraicos fosse cair nas mãos dele.

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Vovó Lia estava se divertindo.

Apesar da dor nas costas continuar aguda, apesar de saber que a louça do jantar ainda estava esperando na pia, escrever aquela carta para sua netinha, que completava 10 anos, estava sendo muito gostoso: dava a impressão de que o tempo tinha voltado atrás e ela não estava mais sozinha.

Luciana era uma menina muito meiga e delicada. Bem diferente do que ela, Lia, tinha sido.

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Nascida na Polônia, num território que já pertenceu à Rússia e à Áustria, tivera uma infância complicada.

A família morava numa aldeia onde volta e meia as casas dos judeus eram invadidas e seus bens saqueados. Tinha passado fome e medo.

Frequentemente, a única refeição do dia era uma batata. Mesmo assim, fora uma menina muito alegre.

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Só que meiga... não deu! Corajosa, espevitada e respondona, era o que diziam dela. Era a terceira dos irmãos, mas todos se voltavam para ela quando era preciso resolver alguma coisa. Sempre sabia o que queria e desde menina o pai, viúvo, costumava consultá-la sobre questões domésticas. Principalmente depois que ela explicou para ele que, já que lavava a louça, cozinhava e arrumava a bagunça dos homens, tinha condições de ajudar a escolher o destino do pouco dinheiro que entrava em casa.

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Que carta mais maluca estou escrevendo para você. Comecei pensando na minha querida netinha que já está com 10 aninhos e de quem eu tenho tanta saudade. E não é que de repente me vejo falando do seu avô na A ´ ustria e me lembrando da minha infância?! Ah, cabeça de velha é mesmo muito atrapalhada: pensa duas, às vezes três coisas ao mesmo tempo!

Eu olho pela janela e vejo, no pátio do meu prédio, a primavera chegar. Tem sol, solzinho fraco, e as folhas verdes despontam nas árvores. Então eu me lembro dos meus 10 anos.

Na região em que eu morava, o inverno era terrivelmente frio. Era um descampado, varrido pelo vento e sujeito a longas temporadas de chuva no inverno. Mas quando chegava a primavera, aí pelo mês de abril, cessava a chuva e a paisagem mudava inteiramente. Nos campos, em volta de nossa aldeia, as plantações de trigo despontavam, o barro dos caminhos secava e a gente saía para olhar as árvores se cobrirem de folhinhas. Pelos meus 10 anos, ganhei, de presente de papai, uma cestinha de morangos silvestres. Uma cestinha inteirinha de morangos só para mim! Sabe, Luciana, que esse foi um dos momentos mais felizes da minha vida? Uma cestinha de morangos...

Fazia horas que Pedro Boné havia recebido o envelope. Tinham colocado sobre sua mesa, numa pilha de correspondência com informações incompletas. A correspondência que costumava lhe dar muita dor de cabeça porque se recusava a colocá-la no lixo, antes de esgotar todas as possibilidades. Podia, às vezes, ficar meio ano ali. Como a carta, escrita com letra caprichada num envelope azul, endereçada a Papai Noel. Ou aquela outra, cheia de desenhos de flores e corações para o Super-Homem. Quando chegava alguma carta desse tipo, Pedro ficava só cismando. Depois abria

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cuidadosamente e passava um tempão imaginando como respondê-la sem decepcionar o remetente.

No caso da carta com letras em hebraico, a solução podia ser outra. Uma parte do destinatário estava clara: Luciana. E ela devia ser ainda menina, pois antes do nome tinham escrito “Para minha netinha”. A rua também dava para ler: Rua Independência, 158, ap. 102. O problema era exatamente a linha seguinte: a cidade estava escrita em hebraico, assim como o nome do país.

Como descobrir a cidade? Seria mesmo em São Paulo? E na capital? Fosse outro o nome da rua, já dava para eliminar algumas cidades só pelo catálogo. Mas “Independência” era nome que aparecia em qualquer vila perdida no meio do mato. E as cidades grandes, então, tinham um montão de ruas com esse nome. Pena que o remetente não tivesse colocado o sobrenome, já ajudaria bastante.

Sem saber bem por quê, toda vez que olhava o envelope, Pedro Boné imaginava uma velhinha simpática de cabelos prateados presos num coque e segurando a caneta. Claro que poderia também ser um avô rechonchudo, careca e com um belo bigode branco, mas o palpite de Pedro Boné apontava para uma avó. E toda vez que pensava nela, imaginava uma senhora sorridente, numa casa cheia de plantinhas, procurando contar uma porção de histórias para sua netinha. Como sua avó fazia com ele.

Por isso, vinha-lhe uma tristeza enorme de não estar conseguindo fazer chegar aquela carta à “netinha Luciana”.

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Você vai achar muito engraçada esta carta, Lu. A sua velha avó falando de bobagens que aconteceram há quase quarenta e cinco anos. A cabeça vai e volta, vai e volta. Ainda há pouco bateram na porta. Era Nora, a vizinha do andar de cima, trazendo um gato. Veio pedir para eu cuidar dele na próxima semana, quando ela sair de férias. Concordei. Gosto de gatos. Desde criança era louca por gatos e queria ter um. Foi muito difícil convencer meu pai. Ele dizia que gatos enchem a casa de doença e são muito traiçoeiros. E miam muito quando estão apaixonados. E estão sempre se apaixonando. Além do mais, o dinheiro era curto. Arrumou mil argumentos para me tirar a ideia da cabeça. Não adiantou. Quando eu encasquetava

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com uma coisa, eu só desistia quando conseguia...

Mas o gato apareceu por puro acaso, no mesmo ano da cestinha de morangos. Em julho fez muito calor. Estava abafado e a gente derretia dentro de casa. Meu irmão mais velho e eu resolvemos dar um pulo até um laguinho que havia perto, formado pelo rio que banhava o trigal. As crianças das redondezas raramente iam até ali, pois o lugar era meio escondido pela vegetação. Preferiam se banhar mais adiante, onde o riacho desaguava em outro rio maior.

Não deu cinco minutos que estávamos brincando na água quando uma jangadinha veio descendo o rio. Era uma jangadinha muito simples, com meia dúzia de troncos amarrados. No começo não percebemos o que vinha em cima dela.

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Eram dois vultos bem pequenos que se mexiam de um lado para o outro. Lá pelas tantas, um se desequilibrou e caiu na água. Meu irmão e eu nadamos em direção à embarcação para tentar ajudar, mas nadar contra a correnteza nos tornava lentos. Demoramos algum tempo para alcançar a jangada e, quando chegamos perto, demos de cara com um lindo gatinho recém-nascido. Ainda tentamos achar o outro, que caíra na água, mas não deu. Alguém certamente tinha tentado matar os bichinhos. Levei o gatinho para casa e na primeira noite ele dormiu numa caixinha debaixo da minha cama, escondido de meu pai.

Todo mundo já tinha saído e ele ficara sozinho no grande salão. Não tinha pressa de voltar para casa. Tinha uma ex-mulher, dois ex-filhos – “filho, quando cresce, voa, some”, e os dele tinham ido morar no Nordeste –, uma namorada que dava aulas durante o dia e militava no movimento sindical à noite.

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Na agência, nessa hora, tudo era paz: ninguém fazendo pergunta boba, ninguém enrolando serviço, nenhum telefone tocando, nem porta batendo. Pedro Boné achava aquela a melhor hora do dia, quando a fome ainda não tinha chegado, nem tinham começado os noticiários imperdíveis da televisão. Era a hora dele: de ele decidir sozinho o que gostaria de fazer.

Pegou o envelope com a carta da avó/avô da Luciana. Caramba! tinha que ser “Independência” o nome da rua? Desde que o príncipe português resolvera dar o tal brado às margens do tal riacho, todos os bairros do país se sentiram obrigados a

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homenageá-lo. Eram 21 “logradouros públicos” com esse nome, só no guia de São Paulo! Embu, Diadema, Ribeirão Pires, Osasco, Cajamar, Jandira, Santo André – na Grande São Paulo –, e outros tantos em diversos bairros do centro.

– Primeiro vamos ao catálogo telefônico – disse em voz alta. – Afinal, temos o número do prédio e do apartamento.

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Aavozinha estava começando a cansar. Vida de avó não é fácil quando todos os dez netos estão longe e querem receber carta em seus aniversários. Para ela a coisa estava ficando complicada. Volta e meia esquecia palavras em português e acabava tascando um termo em hebraico. O pior é que depois ficava na dúvida se aquilo era português ou hebraico – uma confusão! E a mão, ai, como doía! O telefone tocou bem na hora em que ela pensava como pedir desculpas pela letra. Como era mesmo o nome da palavra para “escrita caprichada”?

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Um pouco irritada, atendeu ao telefonema da prima. Ela não gostaria de jogar buraco na casa da senhora Dana? Não, não gostaria nem um pouquinho. A senhora Dana era uma chata, resmunguenta e eternamente infeliz, e o que ela, Lia, menos queria no mundo era ser contaminada pela infelicidade da outra. Foi tão veemente na resposta à prima que o gato da vizinha, que se acomodara no seu colo, pulou assustado para o chão.

– Não é nada pessoal – a avó disse para ele e estendeu-lhe os braços –, não seja tão sensível. Venha continuar a carta... E a palavra é “caligrafia”.

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O gato, que só entendia hebraico, não compreendeu que ela tinha finalmente encontrado o termo correto para “escrita caprichada”.

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Começou pela região do ABC. Fez vários telefonemas. Às vezes encontrava telefone no número de rua indicado na carta, mas ali havia apenas uma casa, não um edifício. Às vezes, pelo catálogo telefônico, tudo coincidia, mas quando alguém atendia era para informar que o telefone tinha sido recém-comprado e não sabia dizer o número do proprietário anterior.

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Naquela noite, Pedro Boné estava meio pensativo e desandou a matutar sobre o que estava fazendo.

– Que coisa mais doida –falou para si próprio. – Se os Correios fossem perder tanto tempo com cada carta com endereço incompleto que chegasse, só porque uma avozinha e uma netinha iriam ficar decepcionadas, haja tempo e haja funcionários! – Só um maluco por histórias com final feliz, feito ele, iria fazer serão em

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cima de uma lista telefônica à procura de uma menina mal endereçada. O pior é que não parava de imaginar a menina e a avó.

A Luciana de Pedro Boné era moreninha e magrinha. Tinha sardas na ponta do nariz e usava óculos para escrever. Já a avó não tirava os óculos da ponta do nariz porque, se tirasse, iria esquecê-los em algum lugar e, sem enxergar, nunca mais encontraria...

Matutando e imaginando, continuou debruçado nas listas telefônicas.

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Estou há mais de uma hora aqui, rabiscando esta carta cheia de bobagens para você, minha netinha querida. Queria que soubesse que me lembro sempre de você e todo aniversário seu é uma festa para mim. Embora eu seja bem preguiçosa para pegar uma caneta, desta vez está sendo um grande prazer. Não sei por que começa a dançar na minha frente uma porção de lembranças dos tempos mais

distantes e as pessoas queridas que já não estão mais comigo voltam a me visitar. E pensamentos... quantos pensamentos diferentes vão surgindo, alguns passam voando e em outros eu consigo me deter. Um dia você quis saber por que eu moro em Israel, quando quatro de meus seis filhos moram no Brasil.

– Ora, porque os outros dois moram aqui – eu lhe respondi.

– Então você gosta mais desses dois do que dos outros quatro?

Achei tão engraçado que fiquei rindo sozinha um bocado de tempo. Não, gosto de todos da mesma maneira, mas eu vim para cá perseguindo um sonho. Sempre, desde que saímos da Polônia, quis vir morar em Israel. Você é muito nova, mas talvez possa compreender o que seja “perseguir um sonho”. Você certamente tem vários e as pessoas novas não imaginam que as velhas também têm. E mais do que isso: não imaginam que essas mais velhas vão ter coragem de levar adiante e concretizar

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esse sonho. E quanto maior, mais complicado, mais difícil de concretizar – é o que todos acham. E estão certos, claro! Na minha idade se pensa muito para fazer uma mudança. E agora tenho orgulho de ter conseguido. Principalmente porque deu certo: sou muito feliz aqui.

– Mas você mora sozinha! E ´ muito chato viver sozinha, vovó! Não dá medo, vovó? – você perguntou.

Não dá. O que dá, às vezes, é muita saudade, mas eu gosto do meu lugarzinho, das minhas plantinhas, dos meus bibelozinhos, das minhas fotografias. Sabe de uma coisa que eu descobri recentemente, minha netinha? E ´ que se a gente conseguiu encher a vida com coisas boas, quando a gente fica mais velha não precisa de alguém vivendo junto o tempo todo. Aqui eu tenho sempre muitas visitas. Algumas ficam dois dias,

outras uma semana, outras algumas horas. E eu vivo muito, muito bem assim.

E ´ bem verdade que estou sempre fazendo trapalhadas. Esqueço se já reguei as plantinhas, confundo, às vezes, os dias da semana e uso canetas erradas para escrever cartas para netinhas... Pois é, imagine que quando comecei esta carta não reparei que tinha pegado aquela caneta maluca com tinta que apaga depois de algum tempo. Aquela “ caneta de espião ” que você me deu de presente, lembra-se? E agora que já rabisquei três páginas, tenho preguiça de copiar tudo de novo. Acho que o melhor que tenho a fazer é ir terminando, mesmo sem contar todas as minhas lembranças...

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Prometo contar o que aconteceu com o gatinho da jangada que encontramos no rio quando for visitar vocês. Porque a surpresa eu deixo para o fim: vou para o Brasil, mas desta vez vou fazer uma surpresa de verdade. Só você e eu vamos saber. Não vou escrever nem para sua mãe nem para qualquer um de seus tios. Vai ser surpresa mesmo!

E agora vou colocar esta carta no envelope –ainda bem que ele já está endereçado – e correr até o correio.

Não consigo me lembrar depois de quanto tempo a tinta começa a desaparecer...

Pedro Boné não saberia dizer quantos serões

tinha feito por causa daquela carta. Nem quantos telefonemas sem sucesso tinha dado. Começou a pensar que teria de se render e devolver a carta ao remetente. Pois agora uma outra coisa começava a preocupá-lo. Podia ser impressão sua, mas as palavras do envelope pareciam estar clareando. E logo agora que tinha localizado o amigo de um amigo do dono do restaurante ao lado do correio que já tinha estado em Israel e talvez pudesse ajudar a ler o nome da cidade...

Tinha que se apressar. E mais tarde, naquela noite fria de começo de junho,

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resolveu seguir uma última pista. Num prédio, no Cambuci, não no primeiro nem no décimo andar, mas no oitavo andar do número 158 da Rua Independência, uma garota atendeu a seu telefonema. Sem muita convicção, mas achando que talvez pudesse encontrar ajuda, perguntou se ela não conhecia alguma Luciana naquele prédio. Para sua alegria havia sim, era amiga da tal garota e morava no décimo andar.

Claro que era uma pista pequena, pois Luciana não é propriamente um nome incomum, mas para Pedro Boné, ardente torcedor do Palmeiras e fervoroso

Papai Noel das cartas perdidas, aquilo pareceu um forte indício de estar se aproximando do final da busca. Como sempre lhe dizia seu chefe: torcer para o Palmeiras torna o sujeito um otimista irrecuperável...

Assim, no sábado, estacionou seu carro na frente do prédio e tocou a campainha. Aguardou alguns minutos até o zelador acabar de atender uma senhora e se comunicar com ele pelo interfone.

Teve algum trabalho em convencer o rapaz a deixá-lo entrar, pois aquela história de carta mal endereçada não parecia muito convincente.

Acabou subindo num elevador atulhado com duas malas, uma sacola e uma gaiola de passarinho que a

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senhora carregava. Como iam para o mesmo andar, Pedro Boné retirou as malas enquanto ela segurava o elevador. Uma porta se abriu e apareceu uma garota moreninha, magrinha, com uma porção de sardas no nariz. “Ela é exatamente como eu imaginei”, pensou Pedro. Mas a menina não parecia estar esperando por ele, pois pulou no pescoço da velha senhora gritando:

vovó, vovó, que bom que você chegou!

A velha senhora piscou um olho e disse:

– Surpresa para todo mundo, só você ficou sabendo, quando recebeu minha carta, não é minha linda netinha?

– e sapecou-lhe dois beijos.

– Acho que não sabia não – disse Pedro, enquanto as duas se perguntavam mutuamente:

– Quem é ele?

– E o que faz com a minha carta na mão? – ainda ajuntou a senhora.

Vovó Lia olhou o envelope que ele lhe estendia, com o endereço do remetente quase apagado, e falou:

– Puxa, escrevi esta carta em abril. Que correio demorado! Eu sempre digo para sua mãe que é mais rápido levar as notícias pessoalmente...

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Informações paratextuais

Olá, leitor e leitora! A história de Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante foi escrita pela autora Mirna Pinsky, que nasceu e mora em São Paulo.

Formada em Jornalismo, Mirna atuou muitos anos como repórter e redatora de jornais e revistas. A partir de 1980, passou a se dedicar à literatura infantojuvenil.

Para criar os personagens deste livro, ela conta que se inspirou em pessoas à sua volta, como a filha caçula, uma amiga muito querida e o próprio pai.

Neste livro, eu encaro diversos desafios para entregar a carta da avó Lia, que mora em Israel, para sua neta Luciana, que mora no Brasil. É uma carta longa, que narra acontecimentos da vida da avó desde a infância até a vida adulta.

Ah, sim! Essa carta deu um trabalhão para escrever. Pena que, na hora de colocar o endereço no envelope, eu me atrapalhei e escrevi em hebraico, né? Mas acabou dando tudo certo...

Deu sim! Hoje em dia é raro as pessoas se comunicarem por cartas compridas como essa, porque elas podem demorar para chegar ou se perder pelo caminho. Se alguém quer escrever para outra pessoa, costuma mandar e-mails ou mensagens por aplicativos de celular.

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Esta narrativa é do gênero novela, isto é, não é um gênero curto como um conto, mas também não é longo como um romance. Nela, vocês acompanham a história de três personagens: a minha, a da Luciana e a do carteiro Pedro Boné.

E, além do texto, vocês também podem perceber que há uma narrativa visual, ilustrada, que apresenta momentos relevantes da história.

Quem ilustrou este livro foi a Ionit Zilberman, que, assim como minha família, não é brasileira. Ela nasceu em Israel, mas se mudou para São Paulo, no Brasil, quando tinha apenas 6 anos. Ionit é formada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado e se dedica à ilustração de livros infantis.

Acompanhem esta divertida história de uma avó muito carinhosa, sua netinha e uma carta que quase não chega ao seu destino, e vejam como é importante manter um bom relacionamento com os avós e os idosos, que têm muita história para contar!

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Dá para imaginar o caminho que uma carta faz até chegar às suas mãos? Cartas também viajam de ônibus, trem, avião, navio... de bicicleta, canoa, lombo de burro...

Você saberia dizer quantas pessoas trabalham para que as cartas cheguem ao seu destino?

A missão de Pedro Boné não era fácil: responder cartas enviadas para Papai Noel e Super-Homem, descobrir endereços incompletos, traduzir caligrafias ilegíveis. Pedro Boné gastava noites e dias para evitar que essas cartas fossem parar no lixo.

Dessa vez, o problema não era menor. A menina Luciana, da Rua Independência, precisava receber notícias da avó. A avó, toda atrapalhada, escrevera o nome do bairro em hebraico.

Pedro Boné não era estudioso de línguas, era funcionário dos Correios... Como encontrar a Independência de Luciana?

9500302000024 9 786556 231990 ISBN 978-65-5623-199-0
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