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Rotas Fantásticas

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São Paulo – 2003

Para minha mãe, Valdeti Braz de Oliveira Prieto, cujas histórias de suspense e assombração me ensinaram, desde menina, que o desconhecido sempre bate à nossa porta.

Agradeço à Tânia Centurion, pelo apoio, carinho e grande amizade, a Kiko Maciel, pela assessoria prestada à pesquisa de lendas urbanas, e a Paulo Vicente Bloise, que me incentivou a escrever sobre aqueles momentos nos quais “tentamos nos convencer de que não nos amedronta o que de fato já nos apavorou”.

Apresentação

Sobre ratos e fantasmas

Paulo Bloise

Há algumas passagens que marcam a vida da gente. Basta topar com elas e sabemos que nos acompanharão para o resto da vida. E mais: parece que ficam esperando um momento para sair, para serem divididas com as outras pessoas.

Pois bem, eu acabei de ler os contos fantásticos de Heloisa e minha memória deu para disparar. Primeiro veio esse diálogo de Nelson Rodrigues que li há mais de cinco anos.

“A namorada pergunta ao namorado:

– Tu acreditas em Deus?

Respondeu:

– Depende.

Admirou-se:

– Como depende?

Simão foi de uma sinceridade brutal:

– Acredito, quando estou com asma.”

Em seguida, voltei à infância. Fui, como toda criança, fascinado pelos desenhos animados. O de que me recordei passava num navio fantasma, desses cheios de ferrugem e rangidos assustadores. Os heróis, dois

detetives, ou melhor, dois ratos detetives iam vasculhar o navio e provar que era apenas um barco vazio. Sentado no chão, esperando o jantar, eu via os ratinhos tremendo de medo e repetindo sem parar: não existem fantasmas! Não existem fantasmas!

Você pode se perguntar (como eu me perguntei): mas o que os ratos e esse namorado que às vezes acredita em Deus têm a ver com o livro? Não sei se a memória apenas me pregou uma peça, ou se essas situações demonstram maneiras de lidarmos com o medo.

Os ratos mostraram-me como, às vezes, tentamos nos convencer de que não nos amedronta o que de fato já nos apavorou.

O namorado, por sua vez, revelou-me outra verdade. A de que nossas crenças e até a percepção da realidade que nos cerca mudam de acordo com o estado de espírito que estamos. Quem tem asma sabe o quanto é sofrido faltar o ar.

E, assim, é justamente a relação entre realidade e fantasia que acrescenta um sabor extra à leitura dos relatos fantásticos. Heloisa transita entre esses dois universos de forma sutil, deixando o leitor instigado: será possível a Francisquinha conversar com seu namorado depois de morto, ou a velha assombrar motoristas de caminhão?

Essa mescla de real e fantástico é reforçada pelo estilo da autora. Seu texto é fluido e nos dá a impressão de escutarmos a história de alguém que viu os

fatos. Mas quem teria presenciado essas coisas tão estranhas? Se fosse uma bruxa da Nova Era, cercada por miniaturas de duendes, ou um mago hippie que vê discos voadores, estaria tudo explicado. Mas, no livro, quem narra os contos são pessoas que associamos à normalidade, como uma professora aposentada, um motorista ou uma psicóloga.

Enquanto pensava nisso, Derci, uma amiga que tem 20 anos e é muito esperta, leu os contos e confessou: “Sabe que já tinha ouvido essa história de Loira do Banheiro e fiquei com medo. Isso pode ser verdade?”.

Fui totalmente sincero e disse: “Depende! Para mim, que sou psiquiatra, prefiro achar que esses relatos são em parte reais. Não que eu acredite num bebê vampiro de dentinhos pontudos, de carne e osso. Mas sei que o vampiro é um símbolo vivo em cada um de nós”.

Ela pareceu continuar desconfiada, e eu tentei explicar melhor:

“Olha, os nossos sonhos, as lendas e os mitos possuem múltiplas interpretações. Eles costumam representar verdades psicológicas, isto é, nossos sentimentos, dúvidas e temores mais profundos. Se alguém acreditar em espíritos, pode achar que a Francisquinha era mesmo assombrada pelo seu noivo morto e fim de papo. Eu, no entanto, prefiro compreender isto como

um símbolo. Quem já perdeu alguém que ama sabe como aquela figura pode nos ‘assombrar’ dia e noite, pode tirar nosso gosto pela vida”.

Nossa conversa foi desviada e eu achei que faltava dizer-lhe algo. Que essas narrativas fantásticas parecem novas versões dos mitos e das lendas antigos. Se antes as histórias ocorriam nos castelos e nas grutas, hoje elas mudaram para os shopping centers. Dos cavalos de batalha, deslocaram-se para os caminhões em autoestradas, mas o conteúdo é semelhante. Está lá o homem lutando contra a solidão e o escuro da noite. Ou o eterno confronto entre o bem e o mal, como na história “A ilha do bom diabo”.

São essas questões humanas, colocadas de forma simples, que tornam Rotas fantásticas um livro tão rico. Um prato cheio para quem gosta de ler. Mas, se você ainda não descobriu o sabor da leitura e for cara de pau, peça a alguém que leia em voz alta. Sente-se confortavelmente (as histórias são curtas), chame um amigo e, pensando bem, deixe uma luzinha acesa, tá? Paulo Bloise é analista e médico psiquiatra, especialista no tratamento de jovens, autor de O Tao e a Psicologia, De Olho na Rua, presta assessoria à equipe de criação da Coleção Mano Descobre..., de Gilberto Dimenstein e Heloisa Prieto.

Sumário

Relato 1 – Vovó Maria, 15

Relato 2 – Amor de fantasma, 29

Relato 3 – O bebê vampiro, 37

Relato 4 – Feliz foi Adão, 49

Relato 5 – A Loira do Banheiro, 55

Relato 6 – Francisquinha, 65

Relato 7 – A Ilha do Bom Diabo,75

Relato 8 – Os Rocketes, 85

Relato 9 – Fogo na cabeça, 99

Relato 10 – O Moleque Palhaço, 111

Relato 1

Vovó Maria

Região: Dracena, São Paulo

Informante: João da Cruz Cordeiro

Idade: 54 anos

Profissão: caminhoneiro aposentado

Juro de dedo cruzado. Pode acre- ditar. Aconteceu de verdade. Foi numa noite fria pra danar. Eu tinha parado num bar para tomar um copo de café. Já passava das onze. Eu estava bem chumbado. Mas não queria dormir. Precisava chegar em Dracena, só faltavam uns cem quilômetros pra Junqueirópolis, a última cidade.

“(...) essas narrativas fantásticas parecem novas versões dos mitos e das lendas antigos. Se antes as histórias ocorriam nos castelos e nas grutas, hoje elas mudaram para os Dos cavalos de batalha, deslocaram-se para os caminhões em autoestradas, mas o conteúdo é semelhante. Está lá o homem lutando contra a solidão e o escuro da noite. Ou o eterno confronto entre o bem e o mal (...). São essas questões humanas, colocadas de forma simples, que tornam R um livro tão rico.” de forma simples, que tornam R fantásticas

9 788532 293077 ISBN 978-85-322-9307-7 1 3 4 0 0 7 8 3
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