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PNLD 2024 - O3 | TINHA UM LIVRO NO MEIO DO CAMINHO

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ROSANA RIOS

tinha um livro no meio do caminho ROSANA RIOS

tinha um livro no meio do caminho

Sou amiga dos verbos. Sem eles, o que seria de nós? Toda fala, toda escrita, todo pensamento depende deles... Pensamos. Falamos. Escrevemos... E verbalizamos. Hoje acordei com um verbo me encantando: permanecer. Sei que o dicionário, os revisores e os corretores ortográficos vão me sugerir usar um sinônimo, como “ficar”. Mais curto, direto, simples. Mais óbvio. E sei que minha absurda capacidade de complicar a vida vai se insurgir contra isso. Não. Não quero o óbvio. Não quero ficar. Quero permanecer!

ilustrações de ANA MATSUSAKI


tinha um livro no meio do caminho ROSANA RIOS

ilustrações de ANA MATSUSAKI


Texto © rosana rios Ilustrações © ANA MATSUSAKI Direitos desta edição reservados à FGV Editora Rua Jornalista Orlando Dantas, 9 22231-010 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil Tel.: 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 editora@fgv.br | www.editora.fgv.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nO 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV Rios, Rosana, 1955Tinha um livro no meio do caminho [recurso eletrônico] : Rosana Rios ; Ilustração de Ana Matsusaki. - 2. ed. - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2022. 1 recurso online (110 p.) : PDF. Dados eletrônicos. ISBN: 978-65-5652-176-3 (aluno) ISBN: 978-65-5652-167-1 (professor) 1. Contos brasileiros. 2. Literatura brasileira - Poesia. I. Matsusaki, Ana. II. Fundação Getulio Vargas. III. Título. CDD – B869.3 Elaborada por Rafaela Ramos de Moraes – CRB-7/6625 Elaboração de paratexto e do material de apoio ao professor: Filipe Martins Ribeiro Revisão: Michele Sudoh Design gráfico: Ana Matsusaki Editoração eletrônica: Ana Matsusaki 2a edição, 2022


para minha mãe, Olga, e meu pai, josé (in memoriam ).



SUMÁRIO No meio do caminho 7 verbos 11 DAS SÍLABAS AOS RATINHOS 15 FILOSOFIAS 19 QUERIDO DIÁRIO 23 CRÔNICA DE UM FERNÃO DOS anos 1960 28 Para QUE SERVE A POESIA? 32 MARK TWAIN E OS DEUSES DO SEBO 41 INSIGNIFICÂNCIAS 47 ACHADOS, PRESENTEADOS E EMPRESTADOS 51 UMA CANÇÃO, UM TREM, UM BEIJO 56 ENQUANTO MEUS OLHOS PROCURAM POR DISCOS VOADORES NO CÉU 59 ENCONTROS INESPERADOS 64 INVISÍVEL 69 cisco 73 Vamos falar sobre este livro? 77 MATERIAL DE APOIO AO PROFESSOR 89


Adoro andar. Faço caminhadas várias vezes por semana, percorro quilômetros pelo meu bairro, a Lapa – e aproveito para pensar


no meio do caminho

Adoro andar. Faço caminhadas várias vezes por semana, percorro quilômetros pelo meu bairro, a Lapa – e aproveito para pensar histórias enquanto olho a vida ao redor. A gente, que é escritor, passa tempo demais na frente do computador. Conversa com os amigos pela rede, pesquisa em livros e em páginas virtuais. Escreve, escreve, escreve. E acaba se desligando da realidade, do chão, das ruas. Taí porque andar pelo meu e por outros bairros de Sampa me reconecta com a vida. Outro dia estava no meio de uma caminhada de uns 3 quilômetros, quando percebi placas encavaladas nos muros das casas de um quarteirão na Vila Romana. Diziam “Mais um empreendimento da Construtora Blá-blá-blá”. Traduzindo: o quarteirão quase inteiro vai ser posto abaixo, para que construam um conjunto de prédios com garagens imensas e apartamentos caros.


Na semana seguinte, fazendo a mesma trajetória, vi que as casas já começavam a ser demolidas. Deu um aperto no coração. Eles começam retirando as telhas, deixando o madeirame do telhado exposto como quem retira a pele de um corpo e deixa os ossos à mostra. Depois, arrancam uma por uma as madeiras 8

– os ossos – e vão acabando com as paredes. Janelas e portas vão-se embora inteiras. Tijolos caem, azulejos se estilhaçam e se misturam com todos os restos humanos que havia nas casas. Porque sempre há resquícios dos moradores... Coisas deixadas para trás, relíquias abandonadas no passado de uma casa que não é mais casa de ninguém e logo será um espaço vazio. Vazio de gente. Vazio de vida. Sobram as lembranças misturadas aos destroços, e que serão removidas por caçambas como se fossem lixo, levadas sei lá para onde... Parei naquela calçada da Vila Romana e fiquei olhando as pilhas de tijolo-telha-cacarecos-azulejo-quebrado, pensando que esses restos, essas lembranças, não são lixo. O que tem lá no meio são pedaços de existências. São recordações de gente que ali viveu, amou, sofreu, criou. São capítulos da História da cidade, e com agá maiúsculo. Recordei um trecho do meu primeiro livro juvenil, que em 1991 recebeu um prêmio literário importante. Escrevi sobre uma garota que olhava, por trás de um tapume, a última parede que restava em pé da casa em que havia morado e que começava a ser demolida.


“A gente viveu ali, conversou, brincou, e agora tudo o que resta é um espaço vazio no ar. Para onde foram as lágrimas que eu chorei, sozinha, trancada naquele banheiro? Pra onde foram as coisas que eu pensei enquanto tomava banho? Pro fundo de alguma represa, carregadas com a água pelos canos do esgoto.” As pessoas que moraram naquelas casas podiam pensar o mesmo que a minha personagem. Seu chão não era mais seu. Sua casa, que um dia esteve cheia de sonhos, agora era um amontoado de restos. Um hiato no ar. Prestei atenção a cada um dos objetos que podia ver, numa tentativa patética de impedir que aquilo tudo fosse esquecido. Eu precisava dar algum significado às coisas, às vidas conectadas com aquela casa em particular. Vi jornais amarelados, onde um dia alguém teria sabido das notícias. Reconheci uma caneca plástica em que alguma criança teria tomado seu leite. Do lado, um único sapato velho, que devia ter andado muito por este mundo. Tinha também umas páginas... uma lombada... um livro! Sim, era um livro aquela maçaroca no meio dos destroços. De onde eu estava não conseguia ver que livro era, mas isso não importava. Era mesmo um livro. Morada de histórias. Habitat de personagens. Quem sabe quantas emoções aquelas páginas despertaram em um leitor que morou ali? Quem sabe que diferença aquela leitura fez na vida dessa pessoa?

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Tenho certeza de que cada livro, todo livro, faz uma baita diferença na vida de quem o lê. O leitor pode não perceber na hora, pode pensar “que história boba, que enredo chato!”, pode parar a leitura no meio ou pode jogar o coitado num canto e se esquecer dele para ir ver televisão. Mas, de um jeito ou de outro, todos os livros marcam a 10

vida de seus leitores. Aquele, por exemplo, nem foi lido por mim – e me fez escrever esta crônica. Por causa desta, apareceram mais algumas... É que, de repente, comecei a me lembrar de tantos outros livros e histórias que fizeram parte da minha vida, me marcaram e me transformaram em quem sou hoje. Não tenho lá muita certeza de quem sou hoje exatamente, mas tenho algumas pistas. Mulher, escritora, mãe, pesquisadora, viciada em café, leitora compulsiva. Estranha. Maluca. Uma escritora doida que gosta de andar pelo bairro e encontra ideias para escrever nas coisas que vê na rua. Como um livro velho e amassado. No meio do caminho.


verbos

Sou amiga dos verbos. Sem eles, o que seria de nós? Toda fala, toda escrita, todo pensamento depende deles... Pensamos. Falamos. Escrevemos... E verbalizamos. Hoje acordei com um verbo me encantando: permanecer. Sei que o dicionário, os revisores e os corretores ortográficos vão me sugerir usar um sinônimo, como “ficar”. Mais curto, direto, simples. Mais óbvio. E sei que minha absurda capacidade de complicar a vida vai se insurgir contra isso. Não. Não quero o óbvio. Não quero ficar. Quero permanecer!


Segundo meu grande amigo Aurélio, permanecer é “continuar sendo, prosseguir existindo, conservar-se”. É persistir, quando os ventos e as ondas e maldades e o mundo nos ordenam fugir. Não sei o que seria de mim sem o prezado Aurélio; para quem não sabe, trata-se do dicionário da língua portuguesa 12

escrito por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. É a ele que eu sempre recorro em caso de dúvida, como quando quero descobrir a grafia correta ou a origem de uma palavra. Curioso. O dicionário me informa que o verbo de que falo vem do latim permanescere. Mas, em português, falta a ele o encantador encontro de “s” e “c”! Encontro que me faz pensar em nascer, crescer, florescer. Esse meu verbo seria mais querido, tivesse ele um “s” a mais... Por que alguns verbos mantiveram a letra clandestina e outros tiveram de abandoná-la? Não sei. Talvez precise de um detetive ortográfico para investigar o caso do roubo do “s” do verbo… As palavras escondem tantos mistérios! Mesmo assim, com “s” ou sem “s”, permanecer continua sendo um verbo maravilhoso para mim, com o Aurélio a atribuir-lhe sentidos tão vitais. O “per” me faz pensar em permear, pertencer, perpassar, em todas as coisas que se tornam próximas porque um prefixo “per” se aproximou e nos meteu no meio das coisas. “Manecer” não existe sozinho, ou existe? Para o dicionário, aqui ao lado, não há tal palavra… E eu ainda não conheço todos os verbos do mundo. Nem tenho a ilusão de um dia conhecer.


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Enquanto isso, sobrevivo com os meus velhos amigos. E conjugo esse belíssimo exemplo da sonoridade da minha língua-mãe. Permanecer. Eu permaneço, tu permaneces, nós permanecemos... Não importa se os ventos sopram, a terra treme, os tsunamis 14

invadem as cidades e submergem a vida, se os poderes constituídos me censuram ou me ordenam partir. Não quero conjugar verbos como fugir, seguir, abandonar, desistir. Continuo agarrada àquele que significa tanta coisa dentro de mim. E acho engraçado como uma simples palavra pode dar força para a gente. Então, dessa palavra, desse verbo, dessa afirmação, tiro energia, faço a minha vontade e renuncio ao óbvio. Ventos, tremores, tsunamis, censuras e poderes? Como disse o poeta, eles passarão. Eu permanecerei.


DAS SÍLABAS AOS RATINHOS

Foram muitos os livros no meu caminho. E o primeiro a ser lido não foi nem mesmo um livro de verdade: era um almanaque bem velho, sem capa, que rolava pela casa e que tinha de tudo nas suas páginas meio amarelas. Receitas, crônicas, poemas, curiosidades, riscos de bordado. Minha mãe “bordava pra fora”, como dizia meu pai. Lenços, fronhas, toalhas: bordava monogramas e iniciais de pessoas que queriam personalizar seus enxovais de casamento. Daquele almanaque ela copiava os desenhos de letras sinuo­sas e enfeitadas que iam de A a Z. Mas no meio das páginas tinha outras coisas que me interessavam. Principalmente uma história ilustrada que mamãe lia para mim, quando dava tempo: O flautista de manto malhado em Hamelin.


As imagens eram marcantes. Os ratos invadiam a cidade, entravam nas xícaras, subiam nos móveis e comiam a comida sobre as mesas. O Burgomestre, espécie de prefeito feio e corrupto, não queria pagar ao Flautista pelo trabalho de livrar a cidade dos ratos. Crianças de olhos brilhantes eram encantadas pela música mágica da flauta... 16

Essa não foi a primeira história da minha vida, é claro. Eu já escutava os contos de fadas que mamãe contava e as aventuras de Pedro Malasartes narradas por minha avó. Sentia medo por Chapeuzinho Vermelho, que tinha de enfrentar os dentes de um lobo, e toda vez que saía na rua morria de pavor de me perder como João e Maria, tão tontos que haviam marcado o caminho de casa com migalhas de pão. Ria quando Malasartes enganava o gigante que queria arrancar sua pele. Mas aquela foi a primeira história que li decifrando sílaba por sílaba... Em meados de 1960, eu tinha 4 anos e meio e morava nos fundos da casa construída pelo meu falecido avô. Então fui matriculada numa escolinha que ficava no mesmo quarteirão: era só virar a esquina e chegávamos lá. A escola, recém‑inaugurada, tinha só duas turmas, o jardim e o pré. Ambas abrigadas na mesma enorme sala de aula, com um grupo de crianças em cada canto. A professora das duas era a Dona Mariazinha. Eu a adorava. Ela passava atividades para os pequenos do jardim, como eu, fazerem. E aí seguia para o outro lado do salão.


Escrevia na lousa. Desenhava letras. Formava sílabas. As sílabas se juntavam em palavras. Eu ficava só olhando... tentando entender a lógica daqueles pequenos sinais. Um dia, passeando com meus pais, li o que estava escrito em uma placa na rua. Minha mãe se alarmou. Em casa, peguei o velho almanaque e fui decifrando os escritos. Era uma coisa mais ou menos mágica para mim, mas apavorante para mamãe. O caso foi levado à escola. Como assim, vocês ensinaram minha filha de cinco anos a ler?! Os poderes envolvidos (professora e diretora da escolinha) investigaram e descobriram o óbvio: eu simplesmente olhava para as aulas do pré e aprendia o que era ensinado. Não teve volta. Chegaram à conclusão de que não dava pra me desensinar a leitura... Fui alfabetizada naquela escola (no ano seguinte colocaram as turmas em salas separadas) e fiz o pré, depois fui “acompanhante” do primeiro ano. Em 1962, já tendo completado 7 anos, entrei para o Grupo Escolar do bairro e fiz de novo o primeiro ano, dessa vez oficialmente... Eu já lia feito doida. Do Flautista, a primeira história lida de verdade, restou em mim o respeito pelos artistas – adorava o músico que encantava ratos e crianças com sua flauta – e o horror pelos poderosos – como eu desprezava o Burgomestre! Um político nojento, que guardava os sacos de moedas de ouro para si e seus comparsas, dando apenas uma moedinha ao

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salvador da cidade. Dos tempos medievais de Hamelin para cá, parece que pouco mudou... Décadas depois, já virada em escritora, visitei uma livraria a convite da dona, que me disse para escolher um livro, qualquer livro. E olha só! Dei com uma edição bilíngue de O Flautista de Manto Malhado em Hamelin, com o texto ori18

ginal de Browning e a tradução em português, cheia de ilustrações gostosas, do jeitinho que eu lembrava. Esse foi um presente muito amado. Um livro que se fincou no meu caminho e de lá nunca vai sair.


FILOSOFIAS

A lembrança mais antiga que trago da infância é de estar no quintal da nossa modesta casinha, construída nos fundos da casa de meu avô. Estou sentada no chão ao lado de uma caixa de madeira. Nela eu coloco meus poucos tesouros, bonecas, pedaços de madeira e uma pilha de forminhas de alumínio para empadas (pertencentes à minha mãe, mas de que eu me apossava). A sensação dessa recordação é de angústia, pois os “brinquedos” estão todos espalhados pelo quintal e algum adulto – pai ou mãe, não me lembro – insiste para que eu os guarde na caixa. Tal feito me parece impossível, antevejo uma bronca, daí a razão da angústia. Tenho uma foto de mim mesma aos dois anos, brincando com a tal caixa. Talvez a fotografia tenha me ajudado a manter aquele dia na memória... Não me recordo se guardei ou não os brinquedos, mas a sensação ficou.


Outra lembrança é também distante. Eu não devia ser tão nova quanto na outra, pois nessa época já dormia em outro cômodo da casa; quando bebê, meu berço ficava no mesmo quarto de meus pais. Lembro-me distintamente de acordar e de estar ao lado da cama de mamãe. Vejo que ela acorda assustada, querendo saber o que eu faço ali, no escuro, tarde da noi20

te, e de não saber responder. Sabia que estava dormindo no outro cômodo e de repente acordei lá. Andei durante o sono... O mais interessante é que não conseguia entender o susto adulto, já que aquilo me parecia perfeitamente normal. Por mais criança que fosse, eu sabia exatamente o significado da palavra “sonambulismo” e ela não me espantava. Recordo ainda alguns dos sonhos que me perturbavam quando morei naquela casa. Num deles, recorrente, eu corria pelo quintal dos fundos. Era perseguida por alguma criatura voadora que ameaçava me pegar enquanto eu fugia, apavorada, para o quintal da casa da frente. Eu tinha uma vaga ideia de que era uma criatura alada, monstro ou demônio. Tentava gritar para chamar ajuda, porém a voz não saía. Em outro pesadelo eu me via espiando pela janela do quarto de mamãe para o mesmo quintal, onde sabia que outras criaturas abomináveis me aguardavam, não sei para que fins. Só recordo o pavor que sentia. O pior é que essas criaturas à minha espreita tinham uma leve semelhança com os Três Patetas. Nessa ocasião meu avô já tinha um aparelho de televisão e íamos lá assistir


tevê nos fins de semana. Um dos programas que eu mais detestava na época era justamente o daqueles três sujeitos esquisitos que viviam batendo uns nos outros, em branco e preto. As pessoas riam, mas eles me pareciam assustadores... E o pior é que, quando eles apareciam na tela, eu não conseguia sair da sala. Parava para ver o episódio até o fim, hipnotizada. Vai entender. Na época em que entrei para o Grupo Escolar – o que quer dizer, após comemorar meus sete anos –, eu costumava me sentar no batente da janela da sala, os pés descalços balançando, olhando para o quintal, para as árvores ao longe e os prédios na rua ao lado. Fazia elucubrações filosóficas. Hoje sei que aquilo era filosofia, mas na época eu rotulava as ideias que me ocorriam como “coisas estranhas”. Passava horas ali sentada, matutando estranhezas. O que mais me incomodava era não saber a razão por que eu estava ali sozinha, sentada naquela janela, e não estava por trás de qualquer uma das inúmeras portas e janelas que meus olhos divisavam lá longe, na rua. Por que eu via apenas o que estava na minha frente? Por que experimentava unicamente o que podia ver, ouvir, tocar, se o mundo era imenso e cheio de criaturas e lugares sem fim? Eu sentia uma tristeza esquisita ao perceber a impossibilidade de estar nos outros lugares e de me comunicar com o resto do mundo... Hoje imagino que, instintivamente, questionava a condição humana de isolamento e incomunicabilidade. Era como se tivesse saudades de uma existência mais completa,

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integrada com o resto do Universo; sentia falta de pessoas que não conhecia e de lugares que nunca vira. Será? Ou pode ser que eu fosse só uma criança estranha que ruminava coisas estranhas. Anos depois, quando estudei Filosofia no colégio, fui muito mal. Foi a única matéria em que quase bombei! Tive de es22

tudar muito para passar... O curioso é que era novembro ou dezembro, e naquela semana em que estudei sozinha – no desespero para fazer o último exame – descobri que a Filosofia não era a chatice que a professora havia espalhado na sala de aula o ano todo. Era divertida! E era cheia de gente que um dia tinha ficado parada e pensando em coisas estranhas. Foi um alívio saber que eu não estava isolada nas minhas esquisitices. Hoje, às vezes, eu ainda me sento no degrau da porta de casa (“grave, como convém a um deus e a um poeta”, disse Pessoa) e fico ruminando estranhezas. Rio sozinha. Falo com a gata. Imagino outras portas e janelas com pessoas por trás delas, ao longe. Estou filosofando? Pode ser. Meu relacionamento com a Filosofia passou por altos e baixos até hoje, mas com certeza começou cedo.


QUERIDO DIÁRIO

Aos onze anos, quando começava a cursar a primeira série ginasial – hoje chamado sexto ano do Fundamental II –, decidi escrever um diário. Tinha lido alguns livros nesse formato e sabia que muitas garotas do colégio o faziam. Achei interessante registrar minha vida, podendo mais tarde (quem sabe?) transformá-lo num romance. Um romance!... Arrumei um caderno da escola com várias páginas em branco, pouco usado no ano anterior, arranquei as páginas escritas e comecei do zero. Escrevia quase todo dia, embora tenha feito inúmeras pausas. Os períodos “pulados” depois eram resumidos: eu contava o que tinha me acontecido de mais marcante na semana, no mês. Ou no ano. Porém o meu diário, a quem eu me dirigia como se fora uma pessoa, nunca foi um registro fiel dos fatos


que ocorriam. Era mais um sumário de meus estados de espírito, reclamações e mágoas. O que é uma pena, pois corria o ano de 1967; a vida no Brasil daquela década era confusa, conturbada, caótica, e nada disso ficou traduzido (objetivamente, claro) em meus escritos. Hoje, olhando lá pra trás, sei que não seria lógico esperar 24

que uma garota de onze anos, nascida numa família de classe média baixa, estivesse a par do que então se dava nos subterrâneos da Ditadura Militar. A história dos anos 1960 não poderia saltar para fora das páginas de meu singelo diário. De qualquer forma, continuei escrevendo. Às vezes as pausas duravam muito tempo, e mesmo assim eu sempre reto­rnava. Quando não dispunha de restos de cadernos, escrevia em folhas soltas, pedaços de papel de pão cortados, sobras de folhas de almaço das provas escolares... Claro, aquilo era tremendamente terapêutico. Eu podia ser introvertida, tímida, solitária; e, já que não tinha com quem desabafar fisicamente, podia contar tudo por escrito, dizer todas as abobrinhas que quisesse – e aquilo me libertava das angústias. Tive diários até meu último ano de faculdade, em 1976. Lembro-me de haver transcrito todos os estados de espírito e desilusões amorosas daquela época. Então parei. Em 1977 completei 21 anos. Eu e meu namorado da época tínhamos decidido nos casar e marcamos a data para novembro daquele ano. Comecei a fazer uma triagem dos objetos que levaria para o apartamento onde ia morar com ele – não


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chamarei meu marido de noivo, pois até agora (estamos casados há mais de 40 anos) nunca ficamos noivos, jamais usei aliança nem me lembro de ter sido sequer pedida oficial­mente em casamento, como acontece nas comédias românticas. O fato é que, ao recolher cadernos, papéis e mil e uma inutilidades guardadas no fundo dos guarda-roupas, desencavei o 26

que restava de dez anos de diários. Foi estranho... Minha vida sempre me pareceu acontecer em ciclos que se sucediam, e ali eu me deparava com o encerramento de um. Reli os diários e senti de novo as emoções, as raivas, as paixões ali registradas sem o menor traço de estilo, elegância ou verve, e decidi: – Lixo! Não podia me arriscar a deixar aquele material solto pelo mundo. Era por demais pessoal, e só em pensar que alguma pessoa pusesse os olhos sobre minha alma desnudada ali, confessada em relatos e desabafos, eu sentia revoluções no estômago. Assim, rasguei pedacinho por pedacinho daquela papelada toda e encerrei com tal ritual mais um ciclo da minha vida. Depois de casada, tentei por várias vezes retomar a prática, sem sucesso. Na verdade, não precisava mais da terapia que um diário proporciona. Tornei-me escritora, publiquei dezenas de livros e tenho tido o prazer de exorcizar demônios interiores e exteriores através da ficção. Estou chateada com alguém? Transformo a criatura em personagem e faço o coitado ou a coitada enfrentar vilões horrorosos e passar por lugares tenebrosos, ha, ha, ha.


A política me enoja? Crio um personagem que é tão nojento quanto alguns políticos da vida real e invento uma situação ficcional em que ele é cassado, preso, eliminado, raptado por alienígenas malignos, he, he, he. Funciona, tenho certeza. E nem preciso escrever “querido diário”... 27


CRÔNICA DE UM FERNÃO DOS anos 1960

Foi em 1967. Eu: 11 anos de idade. Meu cenário: o bairro de Pinheiros, em São Paulo. A vida passada era uma infância tranquila, apesar da turbulência política que desfilava insuspeita pelo pano de fundo de minha inocência. A vida à frente era uma vasta incógnita, e nem eu nem ninguém àquele momento suspeitava dos caminhos amplos que o final do milênio nos abriria. Única certeza da menina que migrava do Grupo Escolar Godofredo Furtado, na quieta Rua João Moura, para o Instituto de Educação Fernão Dias Paes, na agitada Pedroso de Morais: mudanças estavam prestes a acontecer. Eu havia passado 6 meses no cursinho de admissão de Dona Guiomar e Dona Iolanda. Na sala de sua casa, na Rua Mateus


Grou, preparara-me para o desafio de, aos 11 anos, ser admitida nos mistérios dos Institutos de Educação... Testemunho da qualidade do curso primário do Grupo, bem como do ensino das duas irmãs, foi o fato de meu nome figurar não apenas entre os primeiros colocados no exame de admissão do Fernão, mas também no do colégio Caetano de Campos. Pinheiros, porém, bairro amado da família, teve precedência: e a Rua Pedroso de Morais se tornaria o ponto em torno do qual eu gravitaria nos 7 anos seguintes. Primeira Série A da manhã, 42 meninas vindas de diferentes Grupos, com diferentes antepassados e costumes. Durante os 4 anos do Ginásio, com as naturais inclusões e exclusões, o cerne da turma permaneceu inalterado. Aquela lista de chamada, recheada dos mais díspares sobrenomes, permaneceu em minha memória. A colônia nipônica era forte em Pinheiros; a lista, que se iniciava com Aiko, terminava com Yassumi. E em 1967 tinha início uma coleção de amigas que, se os anos separariam fisicamente, manter-se-iam unidas em espírito. Dos professores, houve alguns que minha memória não deixa escapar. Dona Maria do Carmo e as exigências da Análise Sintática; Dona Maria Rita, com quem cantamos “Allons enfants de la patrie, le jour de glorie est arrivée”, sem desconfiar que, em Paris, outros jovens cantavam a Marseillaise ao som do estourar das bombas da polícia. Paris, para nós, era apenas o ponto com o qual Dona Deolinda nos ensinava a bordar... E, entre a descoberta da temível Matemática e do canto orfeônico com as melodias singelas do professor Aricó Jr., a inesquecível Dona Maria José irrompia na sala de aula

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entusiasmando-nos com a transformação das rochas ígneas em metamórficas, assombrando-nos com a descrição das ruínas de Pompeia, dos fiordes da Noruega e da garra dos holandeses que arrancavam seu país do mar. 1967 passou e veio 1968, com toda a efervescência em que o governo militar, o Tropicalismo, a incerteza, o rock, o AI-5, a 30

contracultura e a puberdade nos mergulhariam. Em 1969, ouvíamos os Beatles na Rádio Excelsior, assistíamos a românticas novelas na incipiente TV Globo, líamos a Coleção das Moças na biblioteca do Fernão e começávamos a conhecer a língua inglesa com o Let’s Learn English de Dona Zilda. Decorávamos Castro Alves e Gonçalves Dias para os jograis da aula de Português: “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?”, “Tu choraste em presença da morte? Em presença da morte choraste?”. Quantos textos declamados sob as luzes de lanternas cobertas com papel-celofane colorido... Superprodução que os recursos informatizados de hoje não imitam! A década de 1970 iniciou-se com nossa entrada no mundo quase-adulto: tínhamos 14 anos e as salas masculinas nos atraíam. Apenas no Colegial (hoje, Ensino Médio) é que o Fernão nos permitiria o luxo das classes mistas. A timidez era a regra, apesar das nossas minissaias e dos jornaizinhos escolares: para eles escrevíamos inocentes dissertações sobre dezenas de assuntos sérios a respeito dos quais nada sabíamos. Mas escrevíamos, mesmo assim. O Colegial começou a nos separar. Algumas partiram para outras escolas, outras mudaram de período; e tantas de


nós iniciamos os primeiros namoros ali mesmo, no pátio amplo entre as árvores, os murinhos e a cantina. 1973 trouxe a formatura e me viu deixar o Fernão. Pinheiros havia mudado: a Rua Teodoro Sampaio, que nos anos 1960 abrigava bondes e tinha duas mãos, agora era de mão única, centro comercial de intenso tráfego motorizado e humano. O Fernão crescera e ganhara a estátua do bandeirante (que hoje desperta emoções controversas). O uniforme fora trocado duas vezes, e o comprimento exigido das saias passara por tantas alterações quanto nossas flutuações hormonais adolescentes... Estávamos prontas para tentar o ingresso no mundo universitário. E partimos daquele ponto rumo a outros desafios. Algumas garotas se mantiveram em contato; outras voaram longe e sumiram no horizonte. Porém nenhuma de nós, daquela primeira série A de 1967, pode negar a influência enorme que o colégio teve em nossas vidas. Faz décadas que deixei o Fernão e, às vezes, ainda sonho que estou ali, sentada em uma sala de aula; e é apenas nesses sonhos que um vislumbre da criança e adolescente que eu fui aflora em mim. Um não-sei-quê de entusiasmo, esperança, medo do desconhecido e ansiedade pela abertura de caminhos que o futuro traz... Então acordo e lembro que não me sento mais em bancos escolares. O meu Fernão ficou parado em 1973. Mas nunca será esquecido.

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Para QUE SERVE A POESIA?

Lá em casa, o rádio ficava ligado o dia inteiro. A gente não tinha televisão nem telefone, e eram as estações radiofônicas que nos conectavam com o resto do mundo. Papai ouvia futebol e notícias (mais futebol que notícias). Mamãe ouvia música e cantava junto. Foi nas letras de música, antes de aprender a ler, que eu descobri a existência da poesia. Prestava atenção aos textos elaborados, verdadeiros poemas parnasianos, sonetos complicados. Como sempre tive boa memória, decorava todas as canções – muitas vezes sem nem entender bulhufas. Aí perguntava para os adultos: – O que quer dizer “nostálgico”? E “quietude”? E “esplendor”? De onde eu tirei tais palavras? De versos assim:


Dorme, fecha esse olhar entardecente / Não me escutes nostálgico a cantar Ou: Noite alta, céu risonho / A quietude é quase um sonho O luar cai sobre a mata / Qual uma chuva de prata de raríssimo esplendor... Eram as serestas. Seriam seguidas por sambas-canção, tangos, guarânias, boleros. Ainda sei todos de cor, sessenta anos depois... Dessa forma, descobri nas ondas do rádio o que era verso, quadra, metrificação, rima, ritmo. Mais tarde, quando fui para a escola, tínhamos de decorar poemas para recitar. Obras de poetas como Casimiro de Abreu (Eu me lembro! eu me lembro! / Era pequeno e brincava na praia; o mar bramia / E, erguendo o dorso altivo, sacudia / A branca escuma para o céu sereno) ou Vicente de Carvalho (Essa felicidade que supomos / Árvore milagrosa, que sonhamos, / Toda arreada de dourados pomos, / Existe, sim: mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos.). Nada mais natural, então, que lá pelos meus 9 anos eu compusesse os primeiros poeminhas. Eram muito ruins! Mas eram o começo de alguma coisa.

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Dois dos poemas que escrevi na infância foram marcantes. Não consigo lembrá-los inteiros, mas recordo fatos memoráveis que os dispararam. Um deles, compus lá pelos meus 11, 12 anos. Estava passando o dia na casa da minha avó e, por algum motivo, tomei uma bronca. O porquê da bronca? Sei lá. Mas foi inesquecível a raiva que eu senti. Saí para o quintal, subi para o canteiro 36

alto onde ficava a jabuticabeira e me sentei no telhadinho do quarto de despejo, que podia alcançar facilmente dali. Peguei um caderno e poetei. Pus para fora a raiva em geral e nomeei o poema “Vontade de odiar”. Era algo assim: Odeio E o ódio sobe ao meu peito Tanto que não consigo pensar direito E tenho vontade de gritar Grito E meu grito sobe ao ar, aflito Queria ser maior que o próprio infinito E me dá vontade de chorar... Terminei a escrita e senti um alívio tão, tão, tão grande, que comecei a rir sozinha, me achando ridícula, ali sentada no telhado. O motivo da raiva tinha sumido, ficou só o poema. Percebi que aquele era bem melhor que os meus primeiros, tão bobinhos... E que eu tinha descoberto como botar os problemas para fora. Era só escrever poesia!


Deve ter sido pelos idos de 1968 que nos mudamos para a Vila Madalena. E lá, numa casa alugada que dava para a rua – antes, a gente morava numa casa de fundos –, eu vi cair uma chuva torrencial, dessas bem assustadoras. Olhando a enxurrada furiosa que roncava na rua, pela janela da sala, vi uma criança feliz da vida brincando na chuva. Deu um clique na minha cabeça. Corri a pegar um caderno e escrevi outro poema: Quando o céu toldou-se, a chuva grossa e o vento fino Castigaram a rua suja e empoeirada De rosa vestido, um vulto pequenino Esgueirou-se pela corrente da enxurrada. Sorria e molhava os dedinhos na água Pulava e espirrava a chuva para os lados Como quem não tem dor, tristeza ou qualquer mágoa Só a felicidade dos pés enlameados. O poema do ódio havia preocupado meus pais, mas com o da chuva eles ficaram em êxtase... Uma das minhas tias, então, entusiasmou-se tanto que, pouco depois (era 1969), me deu de presente um livro, o primeiro que ganhei que só continha poemas. Não sei se ela tinha ideia da maravilha que havia colocado nas minhas mãos, ou se tinha entrado na livraria e pedido: “Tem algum livro de poesia para crianças?”. O fato é que ela me deu Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles.

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Nem me importei com a descoberta de que eu não era nem nunca seria poeta. Cecília é que era! Ela brincava com as palavras de um jeito que eu nunca conseguiria imitar. Depois de ganhar esse presente escrevi menos e li mais. Fui apresentada a outros autores, como Drummond e sua pedra no meio do caminho. E no ginásio, certo dia, uma de minhas amigas 38

chegou na escola com um poema decorado na ponta da língua. Eu e outras colegas ficamos curiosas para ouvir, aí ela recitou uns versos muito, muito estranhos... O poeta falava num sujeito chamado Bentinho Jararaca, que estava caçando e encontrou o tinhoso, o Cussaruim. Sem rimar nem de leve, o curto poema terminava de forma assustadora, com o ser dos infernos comendo, bem devagar, o cano da espingarda do caçador... Manuel Bandeira! Conhecê-lo foi uma libertação. Então para poetar a gente não precisava de rima, de aliteração, de ritmo, de nada! E nem era obrigatório falar de amor, de coisas bonitas, da natureza ou de sentimentos nobres... Podia-se até falar de um coisa-ruim que comia espingardas. Mal sabia eu que, pouco tempo depois, minhas leituras poéticas se expandiriam loucamente. Em 1971, uma professora de Português do Instituto de Educação Fernão Dias Paes me surpreendeu como ninguém jamais faria. Numa manhã inesquecível daquele ano, ela


entrou na sala de aula, largou os diários de classe sem fazer chamada, apoiou-se na mesa e começou a declamar: Vem, noite antiquíssima e idêntica Noite rainha nascida destronada Noite igual por dentro ao silêncio. Noite Com as estrelas lantejoulas rápidas No teu vestido franjado de Infinito... Ela declamou. O poema inteiro. DE COR. Todos os alunos ficaram em silêncio, abismados, encantados. Eu tinha 15 anos e acabava de ser apresentada a Fernando Pessoa... Hoje eu é que sei esse poema, um dos “Dois excertos de odes”, de cor; não inteiro, que isso era privilégio da Dona Clélia, mas boa parte dele. Continuo lendo compulsivamente todos os gêneros. Amo poesia. Descobri Manoel de Barros, Mário Quintana, Mia Couto. Escrevo feito doida. Tenho milhares de livros na minha biblioteca. Respiro literatura... E não duvido de que, embora os poemas não sirvam mesmo para nada de útil ou prático, não dá para viver sem eles. Nunca esquecerei aquela manhã inusitada em que uma professora genial recitou Pessoa para um bando de adolescentes perplexos. Ela não disse que tínhamos de estudar poesia

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portuguesa. Ela não disse que ia cair na prova ou no vestibular. Ela apenas mostrou que amava POESIA. E nos ensinou a amar a PALAVRA. Onde quer que esteja, obrigada, Dona Clélia!

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MARK TWAIN E OS DEUSES DO SEBO

Eu devia ter uns dez anos quando achei, num canto de casa, um livro amarelado que provavelmente tinha pertencido a meu falecido avô. Naquela época eu já era louca por livros. Infelizmente tínhamos poucos e eram relidos dezenas de vezes. Custavam caro; eu só podia pedir um livro aos meus pais no Natal ou no aniversário, e olhe lá... Uma vez, desesperada para ler algo diferente, peguei a Bíblia de minha mãe e li inteirinha. Por isso, foi uma alegria encontrar aquele volume. Um livro novo para mim! Chamava-se Aventuras de Huckleberry Finn, e o autor tinha um nome bizarro: Mark Twain. Editado em 1934 e traduzido por Monteiro Lobato, que já era meu autor preferido! Devorei a história. Tinha tudo a ver comigo, mesmo pertencendo a uma realidade totalmente diferente. O que haveria em comum entre uma garota morando em São Paulo nos anos


1960 e um órfão vivendo no Mississipi, Estados Unidos, na época da escravidão? Apesar disso, eu me identifiquei instantaneamente com o personagem, que narrava em primeira pessoa sua vida de garoto solitário tentando sobreviver num ambiente hostil. O texto transbordava ironia, criticando a sociedade estadunidense sulina e o povo de mentalidade estreita, funda42

mentalista e escravocrata. Eu ria sozinha, alto, de quase engasgar em vários trechos da narrativa. Minha mãe ia me olhar preocupada, como quem diz “o que deu nessa menina?”. Apaixonei-me pelo autor e desejei ler mais obras dele. Desde os oito anos tinha essa mania, quando gostava de um livro. A lista de obras desejadas crescia assustadoramente, eu continuava ganhando só um ou dois livros por ano... E percebi que Mark Twain era quase um desconhecido. Ninguém que eu conhecia tinha obras dele para emprestar, nem a biblioteca do colégio. Tempos depois, meu pai achou numa banca de jornal uma edição barata de Tom Sawyer, recém-publicada. Eu já havia descoberto que Huck era uma sequência desse, e me agoniava não ter lido o primeiro volume. Por ter falado muito no autor a papai, ele se lembrou do nome e comprou o livro. Finalmente pude ler o início da aventura de Huck, Tom e Jim! Para minha alegria, um tio também me conseguiu, sei lá onde, uma edição antiga, já sem capa, que contava uma viagem dos mesmos personagens pelos ares, em um balão; agora sei que o título original era Tom Sawyer abroad. E, num aniversário, ganhei de


presente O príncipe e o mendigo. Outra realidade, outro tempo e outro país, mas a mesma ironia subjacente. Eu amava cada vez mais aquele sujeito, que havia descoberto, na verdade, chamar-se Samuel Langhorne Clemens. Bem, já possuía quatro livros de Mark Twain na minha bagagem de leituras. Mas eu queria mais. As pesquisas me diziam que ele tinha escrito muito, inclusive um livro que eu estava doida para ler: Um ianque na corte do Rei Artur. Tentei encontrar esse nas bibliotecas, pedi emprestado às amigas, aos tios leitores da família, e nada. Fui às duas livrarias do bairro, disposta a juntar meses de mesada para comprar. Disseram que não havia edições em português dessa obra. Mas, na adolescência, passei a frequentar os sebos. Tinha descoberto a paixão por fuçar estantes confusas e encontrar tesouros escondidos... Minha mais importante aquisição na época foi uma coleção de Alexandre Dumas em volumes pequenos, ortografia antiga e páginas amareladas. Então, com o desejo pelo livro de Twain entalado na garganta, resolvi recorrer ao sobrenatural. Numa conversa com Deus, pedi que, de alguma forma, eu encontrasse o Ianque para ler. Não tinha grandes desejos na vida. Queria só obter livros legais para me deliciar com eles. Pouco tempo depois de fazer esse pedido mental, aconteceu. Estava eu no centro de São Paulo, encaminhando-me ao ponto do ônibus para voltar ao meu bairro, quando passei diante do mesmo sebo onde havia comprado a série de Dumas. E na vitrine, junto à calçada, vi o livro.

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Parei, sem poder acreditar. Era ele mesmo. Um ianque na corte do Rei Artur. Velhinho e maltratado, ali, à minha espera. Catei os trocados na bolsa e consegui comprá-lo. Depois de agradecer a Deus, aos anjos, aos espíritos ou a quem quer que tenha colocado aquele livro em meu caminho, peguei o ônibus, eufórica, e já comecei a ler no balanço da 44

condução. Aí percebi que, sempre que eu precisava de material de leitura específico, tudo que tinha de fazer era percorrer os sebos. Não chamava os vendedores: era só me dirigir, mentalmente, aos Deuses do Sebo. Alguma coisa ou alguém invisível me levava às prateleiras certas, nas costumeiras salinhas lotadas de pilhas empoeiradas. E encontrava o que me serviria, a preços que podia pagar; mesmo que não fosse o que eu queria, sempre era algo que seria útil. Mas, se contava a alguém sobre minha crença nos Deuses do Sebo, ou riam ou me olhavam com a expressão com a qual eu já estava acostumada: “é doida, coitada”. Reli várias vezes o Huck, que foi meu preferido bem antes de descobrir que esse é considerado um dos maiores clássicos, talvez o mais importante marco da literatura norte-americana. Tive até a alegria de ver na tevê o escritor transformado em personagem, em um episódio de Jornada nas Estrelas: a nova geração. E, um dia, sei lá por quê, quis tirar a limpo minha hipótese sobre a existência dos Deuses do Sebo. Uns quarenta anos haviam se passado desde aquele primeiro encontro com o Ianque.


Eu estava no centro de São Paulo de novo, mas aquele meu querido sebo já não existia, tinha virado lanchonete. Dei com um diferente, em que nunca havia entrado: o Sebo do Messias. Sorri para mim mesma. Pedi: “Deuses do Sebo, sejam lá quem forem, se vocês existem de verdade, me mostrem o livro que preciso ler”. Entrei. Percorri sem rumo os corredores estreitos, sem um pingo de pressa, até que uma estante me chamasse a atenção. Então, lá no fundo, vi uma prateleira cheia de volumes encadernados, com um único livro detonado e sem capa no meio dos mais bonitinhos. “É aquele”, disse a mim mesma. Fui direto para a estante e puxei o livro que compraria. Era uma edição em português da Autobiografia de Mark Twain. Eu nem sabia que ele havia escrito isso, pouco antes de morrer. Uma obra deliciosa de ler, em que reencontrei meu ídolo com toda a sua ironia! Claro, a crença no poder dos sebos e de seus deuses, ou anjos, ou orixás, só aumentou. Mas minha história com Samuel Clemens não havia terminado. Em 2013, após uma visita à Feira do Livro de Frankfurt, meu marido e eu fomos visitar uma prima que mora no norte da Alemanha, em Lüneburg. Estávamos passeando pela bela cidade medieval, quando, sobre uma das pontes que atravessam o Rio Ilmenau, vi um desses peculiares bancos de ferro com escultura humana. Era um homem em tamanho natural, sentado como se olhasse o fluir do rio.

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Parei. Olhei a estátua. Achei que se parecia com Mark Twain. Mas eu devia estar enganada. Por que um escritor do sul dos Estados Unidos teria uma escultura numa pequena cidade alemã? Não havia placa identificando a obra. Perguntas sobre aquilo resultaram na resposta “Parece que é um escritor”. E fui pesquisar. 46

Era ele mesmo. Encontrei fotos da estátua e descobri até um livro em formato e-book, chamado A Tramp Abroad, em que Twain conta uma viagem que fez à Europa, incluindo aí várias cidadezinhas alemãs! Estava solucionado o mistério. E sei que ele – ou os Deuses do Sebo, seja quem forem – ainda guarda surpresas para mim no futuro. Lerei mais obras desse autor, e mal posso esperar para saber o que elas conterão em suas páginas – sejam amareladas, sejam virtuais.


INSIGNIFICÂNCIAS

Sempre fui apaixonada por palavras estranhas. Um amigo disse, certa vez, que sou a única pessoa que ele conhece que consegue usar, sem hesitar, expressões como concomitantemente no meio da conversa. Numa palestra para pré-adolescentes em um colégio, percebi as professoras se apavorarem quando disse aos meus leitores que adoro xingamentos e que iria ensinar-lhes uns palavrões novos! Mas respiraram aliviadas e a meninada adorou quando comecei a colocar no quadro-negro palavras como biltre, azêmola, estúrdio. São ofensas graves, de que gosto mais do que daquelas já tão gastas – e às vezes a vítima nem desconfia de que está sendo xingada. – Meu amigo, você é um biltre! – eu diria, e o ofendido sorriria como quem recebe o maior elogio. Não sabe o que significa? Ora, vá consultar o dicionário. Talvez a culpa de eu adorar palavras escabrosas seja daquelas serestas que ouvia, no rádio, com minha mãe – e que


continham pérolas como “as estrelas tão serenas, qual dilúvio de falenas, andam tontas ao luar”... Uma palavra que me impressionou, quando comecei a estudar filosofia, foi o adjetivo “peripatético”. Fazia-me lembrar de Peri, o herói de O guarani, de Alencar – eu adorava aquele livro! – e do Pateta, personagem dos gibis e desenhos animados. 48

Também me recordava a sinfonia “Patética”, de Tchaikovski... Mas o significado de tão bizarra palavra não tinha nada a ver com literatura, Disney ou música russa. Peripatético vem do grego e quer dizer “aquele que gosta de passear”. Aplicava-se aos filósofos do tempo de Platão e Aristóteles, que ensinavam filosofia durante longos passeios a pé. Bem, eu sempre fui adepta de andar a pé. Mesmo porque tinha de caminhar bastante para ir da minha casa aos colégios em que estudei. E, claro, andando sozinha pelas ruas de Pinheiros e da Vila Madalena, tinha tempo para pensar na vida, na morte, na existência de discos voadores e nos livros que desejava e que eram difíceis de conseguir... Certa manhã de sol, no início dos anos 1970, eu voltava do colégio para casa. Estudava em Pinheiros e morava na Vila Madalena, o que me fazia andar aproximadamente 2 km na ida e mais 2 km na volta. Mas quem liga para isso quando tem 14, 15 anos? Eu praticava o peripatetismo e só resmungava na cruel subida da Rua Harmonia, uma das mais íngremes pirambeiras que enfrentava. Ainda não havia, na região, restaurantes, bares ou prédios – muito menos o Beco do Batman. A Vila era reduto de imigrantes portugueses e só abrigava casas.


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Aí, pouco antes de fazer a curva da Rua Aspicuelta para a Harmonia, parei para respirar e vi, na calçada, uma plantinha brotando nas rachaduras do cimento. Não era nada importante. Não era um fato relevante nem devia me fazer parar, mas fez. Fiquei ali, feito boba, olhando o broto verde no chão cin50

zento. Pensando. Pensava em como a vida era teimosa, em como a natureza se mantinha viva, em como um matinho sem nome vencia a engenhosidade dos homens que invadiam os terrenos, desmatavam e jogavam concreto sobre o solo. Concluí que não importava o que os seres humanos construíssem no planeta, a força da terra, da flora, era mais poderosa que tudo. E me senti repentinamente feliz por estar viva... É muito estranho. Aquilo aconteceu há quase 50 anos. Eu estava sozinha, diante de algo absolutamente corriqueiro. Ainda viveria muitas emoções, tristezas, alegrias, mortes, nascimentos, mudanças radicais de vida e de trajetória. No entanto, por algum motivo, a lembrança de um momento tão insignificante apegou-se à minha memória e de lá não sai. Aí está outra palavra que me agrada: insignificância. Talvez seja das insignificâncias da vida que eu – muito peripateticamente – me alimente.


ACHADOS, PRESENTEADOS E EMPRESTADOS

Em 1964 eu tinha 8 anos. Do mundo lá fora, só sabia que minha mãe tinha um vago medo. Ela dizia que haveria uma revolução e que, se houvesse, meu pai podia ser convocado, pois ele tinha feito Tiro de Guerra e era reservista. Na prática, a revolução existiu, mas não convocou meu pai, e eu ignorei o Golpe Militar, pois tinha mais em que pensar. Naquele ano nasceu meu único irmão. Lembro-me muito bem do dia 13 de março de 1964, porque naquele final de tarde meus avós foram com minha mãe para a Maternidade São Paulo, e eu segui com um tio e uma tia para a casa deles. Ficaria lá enquanto mamãe estivesse no hospital. As ruas de Pinheiros estavam forradas com folhetos espalhados no chão; meu tio segurava minha mão e minha tia olhava para todos os lados, preocupada. Eu perguntei por que motivo tinha tanto papel no chão, e ela me disse:


– É coisa da política. Vai ter um comício do Jango hoje. Eu sabia que Jango era o presidente do Brasil e pensei que, se ele lá no Rio de Janeiro queria falar de política, o fato não me interessava. Nem imaginava que aquele discurso desencadearia uma encrenca federal. O importante era que eu ia ganhar um irmão naquele mês! 52

Ganhei mais que o irmão. Ganhei o presente mais maravilhoso de todos naquele ano, comprado a prestações por meus pais – talvez um tipo de prêmio de consolação por ter deixado de ser filha única. Era uma coleção de livros: 17 volumes da obra infantil de Monteiro Lobato. Juntei os volumes encadernados de verde-escuro ao meu exemplar adorado de A Rainha da Neve, de Andersen, e a uma série de contos de fadas que tinha ganhado dos meus avós, e esse foi o início da minha biblioteca. Aí comecei a devorar cada volume. Mamãe ficou tão alarmada que fez meu pai guardar a caixa com os livros no alto do guarda-roupa: ela passou a só me dar um por semana para ler. Mas não fiquei triste, pois assim que a leitura acabava eu voltava à página 1 e relia, relia, relia... Eis porque, até hoje, sei trechos de cor e recordo passagens lobatianas obscuras de que ninguém se lembra. O guarda-roupa do quarto dos meus pais era um esconderijo de livros. Foi nele que achei, um dia, o livro de Mark Twain que adorei, As aventuras de Huck. Foi nele também que achei uma série policial bem detonada – quatro volumes que não sei se foram do meu pai, quando criança, ou do meu avô Joaquim: as Aventuras do detetive Dick Peter, escritas por um tal Ronnie


Wells; o primeiro livro, editado em 1938, chamava-se O fantasma da 5a Avenida. Décadas depois eu descobriria que o autor era na verdade o brasileiríssimo Jeronymo Monteiro, precursor da ficção científica e da literatura de gênero por aqui. As histórias eram divertidas, um tanto ingênuas, e eu as devorei. Dick Peter e suas aventuras mirabolantes viraram citação constante na minha família! Em 1967 ganhei de presente Mary Poppins, de P. L. Travers – que eu nem imaginava ser uma mulher. A única autora que eu lia na época era a Condessa de Ségur; os seus livros falavam sobre crianças bem-comportadas, como As meninas exemplares... Coisa que eu nunca seria. Acho que foi no meu aniversário de 12 anos (ou talvez no de 13) que ganhei, da mesma amiga que me apresentou a Manuel Bandeira, a obra O meu pé de laranja-lima. Eu não queria ler aquele livro. Tinha lido, por indicação da professora de Português, Coração de vidro, do mesmo autor, José Mauro de Vasconcelos, e chorado todas as lágrimas possíveis... Mas como resistir? Li, chorei tudo de novo, e até hoje tenho o exemplar na biblioteca aqui de casa. É um dos meus tesouros, a quarta edição, de 1968. O fato é que os livros continuavam aparecendo no meu caminho. Presenteados no Natal ou no aniversário, achados nos cantos de casa e no quarto de despejos da casa da minha avó, onde eu adorava brincar e encontrava as coisas mais incríveis. Foi lá que dei com um volume restante de uma enciclopédia meio destruída, chamada Os trópicos. Continha curiosidades,

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contos, histórias da Bíblia ilustradas, mitos gregos e noções de ciências. Foi ali que comecei meus estudos de literatura comparada, pois depois de ler Os 12 trabalhos de Hércules, de Lobato, apaixonara-me por mitologia e andava buscando outras versões dos heróis e deuses com que a turma do Sítio do Picapau Amarelo se havia deparado. Passei a ler todos os mitos que encontrava 54

pelo caminho e a comparar as narrativas... Naquele quarto encontrei também um volume da Coleção Tesouro da Juventude. Só tinha aquele e, por sorte, nele havia a história fascinante de Aladim, ou A lâmpada maravilhosa. Mais literatura a comparar para mim, pois eu já ganhara uma edição de Aladim facilitada, com ilustrações em branco e preto que prontamente colori com lápis de cera. Uns anos depois, encontrei naquele quarto de despejo um livro que, coisa incrível, chamava-se justamente Quarto de despejo. Com o subtítulo Diário de uma favelada, era a 2a edição da obra de Carolina Maria de Jesus. Ler aquilo fez um mundo se abrir na minha cabeça. Àquela altura eu já havia lido todos os romances da Coleção das Moças, que emprestava da biblioteca do colégio; acostumada com doçuras, nada me havia prepa­ rado para tal baque com a realidade das favelas. Na faculdade, novos baques me esperavam. Ouvi uns colegas comentarem sobre certa autora chamada Lygia, e foi meio por acaso (será?) que encontrei numa banca de jornais a edição de bolso de Ciranda de pedra. Comprei, me maravilhei – e, de lá para cá, nenhuma escritora (nem Clarice!) foi ou será mais importante para mim do que Lygia Fagundes Telles.


Para coroar os baques literários, um amigo da faculdade me emprestou um livrão que li nas férias – acho que foi em 1975. Chamava-se Quarup, de um tal Antonio Callado. Meu deus, meus deuses, minhas deusas, que livro! Como ele me fez pensar! A gente, na época, ouvia falar em prisões de estudantes, em exílio de músicos, em protestos contra o governo militar. Contudo, foi o Quarup que me abriu a cabeça para tantas coisas que eu não imaginava que estavam acontecendo, na sociedade e na política. Eu tinha 20 anos e nem imaginava que um dia seria escritora, mas acabava de encontrar, no meio do caminho, mais um livro que me acompanharia para sempre.

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UMA CANÇÃO, UM TREM, UM BEIJO

Eu não morava perto de ferrovia nem precisava tomar trem. Mesmo assim, minha infância foi marcada por certos apitos distantes que me faziam parar e procurar uma silhueta ferroviá­ria no inexistente horizonte paulistano; e aí batia uma saudade estranha de um trem que eu nunca havia tomado. Coisa de louco? Filosofia barata? Pode ser... Ou talvez fosse profecia. Pois, como para tudo há uma primeira vez, um belo dia eu tomei um trem. Era adolescente, e minha turma da época quis porque quis marcar um piquenique. – Para onde vamos? Ninguém sabia. Mas logo de início foi resolvido que iríamos de trem, porque piquenique que se preze tinha de começar num trem. E foi assim que, num belo sábado, estávamos todos na Estação Júlio Prestes, antes da reforma – corria a década de


1970. Todos com mochilas nas costas, sanduíches e refrigerantes, carregando a típica excitação de quem vai viver uma aventura inédita e tendo ideia nenhuma de nosso destino. Olha-se o quadro das cidades visitadas pelos trens. Per­ gunta-se aos funcionários em que cidade haveria um parque “bom-de-piquenique”. – Mairinque – diz alguém. – Pois vamos para Mairinque. E todos embarcamos, eu mais alerta que os outros, pois era minha primeira viagem por uma ferrovia. Desconfiava que seria inesquecível... A primeira coisa que notei foi o estranho balanço que o trem proporcionava. Aquilo não se parecia com ônibus, carro, nem mesmo bonde. Era uma malemolência própria, um ritmo específico e mágico, que eu jamais sentira antes – e me fazia cantar mentalmente uma canção muito querida, de Chico Buarque: Vem, meu menino vadio Vem, sem mentir pra você A segunda coisa que notei foi que um dos meus amigos, de repente, parecia diferente. Como se a magia do balanço do trem tivesse acordado nele (ou em mim) algo que eu, até ali, não notara. Olhei de novo. E de novo. Começava a achar que estava me apaixonando. Seria isso?

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Chegamos à cidade-destino, encontramos o parque, piquenicamos à vontade em meio às grandes árvores e à nossa saudável balbúrdia adolescente. E, finda a tarde, voltamos. No trem de volta, algo estranho aconteceu. Meu amigo não se sentia bem, talvez algum dos sanduíches não tivesse concordado com seu estômago. Fosse como fosse, ele passou a 58

viagem de volta quietinho, encolhido. Foi-se chegando. Encostou. Deitou a cabeça no meu colo. E me olhou. Vi nos olhos dele a mesma perplexidade que sentira em mim na ida. Como se apenas dentro do trem, efeito daquele balanço ritmado, nós dois tivéssemos a capacidade de enxergar além da amizade, além do racional, além de nós mesmos. Nada mais aconteceu dentro do trem a não ser a troca de olhares, um ocasional afago mudo, e a mesma música do Chico, que eu cantarolei – agora em voz alta. Vem, por favor não evites Meu amor, meus convites Minha dor, meus apelos No dia seguinte ele foi até minha casa e, no portão do prédio, sob os olhares cúmplices da vizinhança, me beijou. Naquela semana começamos a namorar. Culpa do trem, é claro.


ENQUANTO MEUS OLHOS PROCURAM POR DISCOS VOADORES NO CÉU

Um dia, sem mais nem menos, eu vi um disco voador. Não, não estou brincando. Foi bizarro... Era 1989 e eu tinha um bebê. Na época, morávamos num apartamento minúsculo em Perdizes; da janela do nosso quarto tínhamos uma visão parcial de casas simples do bairro, mansões no Pacaembu e prédios na Avenida Doutor Arnaldo. Nada interessante de se ver, mas era uma vista ampla, com árvores, e via-se mais céu que terra. Pois estava eu reclinada na cama, olhando pela janela e amamentando minha filha, quando vi uma luz estranha no alto, à frente das nuvens. O troço riscou o espaço e foi do Pacaembu para a Doutor Arnaldo. Era uma luz branco-azulada forte, que passou rapidamente na escuridão até sumir na região da Rebouças.


Não era helicóptero nem avião, disso tive certeza. Não fez o ruído característico, não havia luzinhas piscantes e era grande demais, rápida demais, mantinha a velocidade constante. Abracei minha filha com força. Ela continuava mamando. E quase pirei. Eu tinha visto um disco voador? 60

Bem que podia ser. OK, poderia ter sido uma cochilada, um meio-sonho, minha imaginação doida de escritora. Mas houve algo mais. Não me lembro se foi no dia seguinte ou no outro que, já quase esquecida do fato, e com a bebê adormecida no berço, fui zapear pela televisão. Em um canal qualquer, vi um sujeito que estava sendo entrevistado dizer que acreditava em discos voadores, e ainda afirmar: – Foi avistado um OVNI esta semana sobrevoando o Hospital das Clínicas. Custei a registrar a ideia e, automaticamente, continuei za­ peando; mas aí a ficha caiu e voltei a procurar o canal até encontrar o mesmo sujeito. Esperei uns minutos até que ele falasse mais sobre o assunto, só que o papo havia tomado outros rumos. Desliguei o aparelho, cismada. Eu não tinha imaginado a fala do sujeito nem a silenciosa e estranha luz. Ela sobrevoava o mesmo local em que alguém disse – na tevê! – ter sido avistado um Objeto Voador Não Identificado. Concluí que tinha sido real: eu havia mesmo visto um disco voador. Por que não?


Muitas vezes havia procurado OVNIs no céu; não tinha motivos para não acreditar em inteligência extraterrestre. Umas duas décadas antes daquela noite, nos tempos horrendos da Ditadura Militar, Caetano Veloso, que fora exilado do Brasil, havia composto a canção “London, London”. Cantei muito o refrão, na época, que incluía o verso: “While my eyes go looking for flying saucers in the sky”. Como leitora contumaz, comecei a ler ficção científica muito cedo. O primeiro livro do gênero que apareceu no meu caminho (por acaso?) foi outro volume que achei num dos incríveis quartos na casa da minha avó. Sempre foi um mistério para mim como os livros mais diversos e interessantes apareciam por lá; mas eles supriam minhas necessidades de leitura, então nunca me aprofundei no mistério e deixei por isso mesmo. Lembro-me de que perguntei a tios e avós se podia ler aquilo e ninguém me proibiu; assim, com 11 ou 12 anos, degustei a obra A nuvem negra, de Fred Hoyle. Foi marcante. Adorei o livro, bem perturbador para a minha idade, sem desconfiar de que o tal Fred Hoyle era um importante astrônomo britânico. Hoje sei que foi ele que criou a expressão “big bang”, embora na verdade criticasse a teoria que explica o surgimento do Universo em expansão através de uma explosão inicial. Naturalmente, virei fã de sci-fi, como começou a ser chamada a ficção científica – apesar de me ser bem difícil na época conseguir livros desse tipo. Porém havia os seriados de tevê: Túnel do tempo, Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas (até

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hoje sou Trekkie). Anos depois, eu veria o filme 2001: uma odisseia no espaço e leria Asimov, Clarke, Bradbury, mais dezenas de clássicos do gênero, até descobrir a mais importante autora de ficção científica que conheci: Ursula K. Le Guin. E uns 20 anos no futuro eu veria um disco voador... Não posso negar: continuo cantarolando a canção do exí62

lio de Caetano e olhando o céu em busca de OVNIs. Nunca mais vi outro, porém. Embora tenham se passado décadas, ao fechar os olhos, revejo com nitidez aquela cena. Enxergo os detalhes do quarto, a janela aberta, a paisagem urbana e a luz azulada cortando o espaço em silêncio. Sinto a leve brisa e o peso mínimo de minha filha, agasalhada em meus braços, mamando placidamente – sem desconfiar de que sua mãe contemplava mistérios do Universo. A Ditadura Militar acabou e o compositor baiano não vaga mais exilado sob os céus de Londres, mas a política nacional continua um horror e dá vontade mesmo é de cantar sem parar o sucesso “Alô, alô, marciano”, da Rita Lee. Tenho mais de 60 anos. Os filhos já voaram de nossa casa. Nossas janelas, hoje, não têm vista para o céu, só para o muro do vizinho. Quanto a mim... Continuo lendo ficção científica e acreditando em vida extraterrestre.


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ENCONTROS INESPERADOS

Publiquei meus quatro primeiros livros infantis em 1988. Eu era oficialmente uma escritora! Já fazia dois anos que trabalhava na TV Cultura de São Paulo, escrevendo roteiros para o programa infantil Bambalalão, mas só me senti escritora de verdade quando tive os livros em mãos, com meu nome impresso na capa. Era a mesma sensação de ver os filhos pela primeira vez após o nascimento, já bonitinhos e vestidos pelas enfermeiras da maternidade... Nos anos 1990 fiz parte de um grupo chamado Celiju: Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil. Aprendia muito com os membros do centro e conheci autoras incríveis. Uma delas, a querida Lúcia Machado de Almeida, escreveu o delicioso livro O caso da borboleta Atíria, que me encantou pela


forma delicada com que mencionava a questão da deficiência: a borboleta-personagem tinha um problema na asa, o que não a impediu de ser uma heroína vencedora. Tive a alegria de receber a Lúcia no lançamento de um livro meu. Ela me pediu um autógrafo, dá para imaginar uma coisa dessas? Foi também em 1990 que escrevi minha primeira novela juvenil; enviei para um concurso literário que tinha sido comentado pelas colegas do Celiju. Na época, já era casada, meu marido e eu tínhamos dois filhos pequenos e morávamos na Vila Madalena numa casa alugada, que eu adorava, pois era ampla, ventilada e iluminada. Um dia o telefone dessa casa tocou e, ao atender, ouvi uma voz masculina dizer que era o presidente de uma fundação importante. Claro, pensei que era trote ou engano... mas não era! Aquele senhor ligou para me avisar que eu havia ganhado o primeiro prêmio em Literatura Infantil e Juvenil de uma premiação importantíssima! Foi um acontecimento. Não só havia um prêmio em dinheiro e o livro seria publicado, mas eu estava convidada a comparecer aos seminários que a empresa patrocinava. Além da premiação, haveria, num hotel em São Paulo, jantares, almoços, palestras. De repente, eu era VIP, coisa que jamais teria adivinhado... No primeiro jantar comemorativo a que compareci com marido ao lado, ambos tímidos e sem saber direito o que fazer, já subimos no elevador com autores que eu tinha lido e que admirava. Arregalei os olhos e não desarregalei mais. No salão onde seria servido o jantar, não me lembro direito com quem conversei, mas sei que a pessoa foi identificando

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para mim os autores presentes. Estavam lá Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Millôr Fernandes, Marcos Rey, Nélida Piñon, Tatiana Belinky, Ruth Rocha e – quando soube disso, eu quase gritei – Antonio Callado! Aimeudeus. Eu estava jantando no mesmo lugar que o autor de Quarup. 66

No outro dia houve um almoço e, então, eu almocei com mais pessoas cujas obras havia lido, como a maravilhosa Sylvia Orthof. Como definir a emoção de estar com aquela mulher exuberante, bem-humorada, que tinha escrito o delicioso livro Os bichos que tive, em que ela conta suas memórias zoológicas quase fazendo o leitor engasgar de tanto rir? Acho que nunca me acostumarei em estar na presença de autores amados. Sei que já escrevi muito, recebi prêmios, tenho uma carreira bem estabelecida. Mas estar diante daqueles que me encantaram com sua ficção ainda é uma sensação indescritível. Em 1993 passei por outro momento desses, de não acreditar no que estava acontecendo. Eu havia sido convidada para uma feira de livros num colégio. Até aí tudo bem, esses convites já estavam se tornando rotina na minha vida de autora de livros infantis. O caso é que o convite era do colégio espanhol Miguel de Cervantes, que fazia questão de servir aos autores convidados uma paella legítima – algo que eu nunca havia experimentado. Na hora do almoço daquele dia 8 de maio de 1993, eu bati papo com os alunos e depois fui para o refeitório do colégio. Estava lá timidamente esperando minha paella, quando surge


uma senhora simpaticíssima, senta-se à minha frente e puxa conversa. Dali a pouco chegam nossos almoços, vem a pessoa que a acompanhava e nos apresenta formalmente. Eu congelei. Aquela senhora era Rachel de Queiroz. Eu estava ali, almoçando e batendo o maior papo com a autora de O quinze e de outros livros que marcaram a literatura brasileira... Dá para ficar mais deslumbrada que isso? Dá. E o deslumbre retornou quando, anos mais tarde e já no novo século, fui de novo convidada para uma feira de livros, dessa vez em terras gaúchas. Na cidade de Estrela, fui levada a um colégio para conversar com leitores de seus 7, 8, 9 anos. Tudo ia muito bem até que o trabalho acabou e fui apresentada a um autor que estava ali, ao mesmo tempo que eu, só que conversando com os adolescentes. Ele se chamava Moacyr Scliar. Que livros maravilhosos aquele homem escrevia! Eu sabia que ele era médico, morava em Porto Alegre e era membro da Academia Brasileira de Letras. Autor de uma das minhas leituras favoritas de todos os tempos, A mulher que escreveu a Bíblia… Dessa vez fui mais esperta que na ocasião em que conheci Rachel de Queiroz. Corri para a feira de livros, comprei uma obra do Scliar e, sem vergonha nenhuma, perguntei se me daria seu autógrafo. Para minha surpresa, além de autografar, ele pediu ao rapaz da editora – que nos levaria de volta a Porto Alegre, juntos – um dos meus livros. E, com a maior simplicidade, como um

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dia a Lúcia Machado de Almeida havia feito, estendeu o volume para que eu lhe desse o meu autógrafo! No papo que se seguiu no carro, durante as poucas horas de estrada que separam Estrela de Porto Alegre, conheci o mais alegre e generoso escritor com quem já trombei. Ouvi fatos curiosos de sua vida na colônia judaica da capital gaúcha e 68

causos bizarros de reuniões na ABL. Encontrei o Scliar ainda duas vezes antes de seu falecimento, conversamos, e ele sempre foi o mesmo sujeito calo­ roso, simples, simpático, inteligente e bem-humorado. Não sei quantos anos viverei nem quantos escritores ainda encontrarei. Foram muitos mais do que esses poucos de quem falei, e cada um deles me ensinou alguma coisa – com sua fala, seu sorriso, sua escrita. Sei que esses encontros ficarão guardados no fundo de mim, recordações inesquecíveis de pessoas que também amam a palavra e reverenciam os livros. Talvez seja essa a sensação que alguns chamam de felicidade.


INVISÍVEL

Anoitecia quando passei pela praça e vi um livro esquecido sobre um banco. Parei. Passei a mão sobre a capa vermelha de couro antigo. Estava úmida de sereno; devia ter ficado ali a noite anterior e mais o dia. Por que ninguém o pegara? Vi muita gente apressada na praça: adultos, estudantes, crianças. Uns falando ao celular, alguns com fones no ouvido, outros comendo algo. Muitos fitavam eletrônicos, roupas, perfumes, nas vitrines da calçada em frente. Mas ninguém notava o livro ou reparava em mim. As pessoas só prestam atenção ao que é vistoso. Ao novo. – Ah, meu amigo – eu disse a ele. – Somos invisíveis, você e eu. Invisibilidade sem magia. Mas eu sei da magia que você pode conter.


Uma recordação me atingiu. Por volta de 1967, alguém me presenteou com um livro muito popular na época: O pequeno príncipe. O título, a princípio, me sugeria algo na linha dos contos de fadas, e eu não imaginaria que me suscitaria elucubrações políticas e filosóficas. Embora a obra fosse passar anos sendo ridicularizada como um “livrinho”, leitura apropriada 70

para as crianças e as belas candidatas ao título de Miss Brasil, tornou-se um best-seller perene; e, após entrar em domínio público, virou parte da cultura pop, filme e seriado de sucesso. Uma frase desse livro o tornou marcante na minha cabeça. “O essencial é invisível para os olhos”, declarara o autor, Antoine de Saint-Exupéry. Eu concordava com ele. Na época, filosofei: a invisibilidade que me atingia era compartilhada por outras invisibilidades – e essa não era necessariamente uma coisa ruim. Às vezes é bem útil ser invisível, até Harry Potter concordaria comigo ao usar sua famosa capa (o que me lembra de que eu fui uma das primeiras pessoas no Brasil a ler Harry Potter! Quando o primeiro livro saiu, uma amiga que viajava muito ao exterior comprou o livro original, em inglês, e me emprestou. Adorei a leitura, previ que seria um sucesso – e não me enganei!). Claro, existem pessoas que conseguem enxergar além da magia da capa da invisibilidade. Ver o essencial, o que se esconde sob o véu da superficialidade... Mas essa capacidade parece se tornar cada vez mais rara, verdadeiro superpoder reservado apenas aos esquisitos, quem sabe aos mutantes do Professor Xavier...


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Na praça, peguei o livro, senti a textura da capa, vi as folhas amarelas. Abri na primeira página... Invisíveis, nós dois. Ignorados por tanta gente. Apesar disso, cheios de vida. De histórias, aventura, poesia, emoção. Não resisti: sentei‑me no banco e li até o final. Já tarde, fechei meu novo amigo e deixei‑o no mesmo lugar. 72

Mesmo que às vezes pareça invisível, nada é mais mágico – e poderoso – que um livro. Fui embora. Ele passaria ali outra noite, outro dia, talvez meses. Até que mais alguém descobrisse sua magia.


cisco

Uma das coisas que mais gosto de fazer é visitar colégios, bibliotecas, feiras de livros, pois aí tenho a oportunidade de interagir com meus leitores, descobrir o que eles gostam e o que não gostam de ler. Além de encontrar colegas de todo o país, é claro! E muitas vezes, nessas ocasiões, em entrevistas e bate-papos com crianças e adolescentes, perguntam-me: “De onde vem a inspiração para seus livros?” Difícil responder. Essa pergunta poderia ter tantas respostas... Cada livro é único, nasce de circunstâncias diversas, de pessoas que vi na rua ou com quem conversei, de livros que li ou seriados a que assisti, de coisas gostosas que comi em algum restaurante perdido em qualquer canto do mundo. É isso, as coisas que me rodeiam acabam fornecendo uma, duas, três sementes…


E cada semente vai brotando, crescendo, transformando-se em uma personagem na minha cabeça. Em geral, meu ponto de partida é mesmo uma personagem; e conforme ela surge, começa a ser independente, a falar dentro do meu cérebro, a querer sair de lá para existir. Resultado: se eu não escrever sua história, fico mais doida 74

do que já sou. E olha que a doideira aqui já é abundante... Outra coisa: inspiração não existe. Essa ideia de que o escritor é um ser abençoado, que recebe uma “luz que vem do alto” e que escreve assim, fácil, fácil, ao receber a inspiração de alguma Musa, é a maior balela que já escutei na vida. O que existe é transpiração, suor, trabalho sem fim. Observar o mundo, recolher ideias, deixá-las brotar feito plantinhas, regar as mudas que sobrevivem com mais leituras – e pesquisar muito. A pesquisa é fundamental, se se quer construir uma base sólida para a história que se vai contar. No fundo, nós, escritores, somos apenas contadores de histórias. Queremos criar ficções que encantem alguém – a começar pela gente mesmo, nós, os malucos que conceberam as personagens e colocaram-nas em apuros dentro de um enredo. Muitas vezes uma bobagem qualquer acaba virando história, crônica, poema. Outro dia mesmo isso me aconteceu. Passando pelo meu quarto, parei ao ver um raio de luz vindo de uma abertura mínima da janela, bem na minha frente. A cabeça disparou em ideias e comecei a escrever:


Uma fresta de janela, um pouco de sol, um cisco no ar. E eis que eu cometo um poema... O risco luminoso corta o quarto à minha frente. É um clandestino raio de sol que se esgueira pelo canto da janela e vai pintar estreita mancha dourada no chão. Em pleno ar, entre janela e mancha, paira o risco de luz invulnerável, intocável, imóvel presente do sol para mim, pois só eu o vejo. Dentro dele, poeiras invisíveis se tornam magicamente reais; e um cisco, fragmento ínfimo de pó, baila sozinho no recorte de ar desafiando a mim, ao planeta, ao Universo. Paira, impávido. Sobe um pouco, desce. Sua mera existência me parece ousadia suprema: pois que importa a este mundo insano, em que os poderes e as posses e as raivas e as bombas se chocam, a persistência de um cisco que o raio de sol fez visível? Nada, dirão todos os sensatos. Mas eu, que me alimentei dos Pessoas e Quintanas

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e Barros e Mias, sei a verdade. Aquele cisco é tudo, é o Universo, sou eu – eu bailando entre as minhas incertezas e as certezas dos outros enquanto tudo explode lá fora. 76

Aquele cisco pode ser ínfimo, desimportante, efêmero. Mesmo assim, nos poucos segundos em que o raio de sol riscou o ar, ele se tornou parte de mim, foi insensata reflexão e agora – para sempre – será poema. Registrei o acontecimento – e o texto – no meu blog. E não é que agora ele acabou virando crônica? Assim funciona a cabeça de muitos escritores. De um cisquinho sem valor algum se tira um poema. De uma lembrança escreve-se uma crônica. Do vislumbre de um rosto desconhecido, de um objeto jogado na rua, de qualquer insigni­ficância, pode nascer um conto, uma novela, um romance. Ou isso tudo pode ficar só na cabeça da pessoa, num momento de parar, olhar para o nada e ruminar estranhezas. Escritores são mesmo uma gente muito estranha.


Vamos falar sobre este 1 livro? Como assim, no meio do caminho? Um livro no meio do caminho, como se fosse jogado no meio de uma passagem? Ou era um caminho que fisicamente não existe, como um modo de dizer, um algo que se interpõe entre mim e meus objetivos como um obstáculo? Como você pode ver, muito além de trazer uma informação, um texto (neste caso, um título) não se encerra em somente informar o que aquelas palavras reunidas significam. Além desse óbvio objetivo, as palavras convidam para uma reflexão. Como assim? Vejamos, o título é Tinha um livro no meio do caminho. Ok, entendido! Conseguimos até imaginar um livro parado numa rua, numa calçada ou numa trilha. Mas como um livro foi parar lá? Como este livro foi parar lá? É natural encontrar uma pedra (tal como nos versos do poeta

1 Seção elaborada por Filipe Martins Ribeiro, formado em Psicopedagogia (Unifieo)

e pós-graduado em Gestão Escolar (USP). É revisor, editor, professor e coordenador pedagógico, além de atuar como acompanhante terapêutico e trabalhar com educação inclusiva e psicoterapia. Trabalha com todas as faixas etárias, mas tem uma leve inclinação para adolescentes e pré-adolescentes. Atua no campo de jogos educativos, acredita muito na influência da ludicidade no desenvolvimento e é apaixonado por longas conversas, por café e pela educação.


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infinitas de poeira. Mas um livro? Ele não brotaria ali no caminho... Seja como for, o fato é que basta parar para refletir apenas sobre esse título que, rapidamente, o livro no caminho pode se tornar um bocado de coisas. No caso deste livro, que encontramos no meio do nosso caminho, o convite é para percebermos como não nascemos prontos, assim como nos conhecemos, mas nos tornamos o que somos pouco a pouco. E não é somente nos grandes eventos da vida que vamos acertando os contornos da nossa personalidade. É no dia a dia, na forma como lidamos com o mundo que vai sendo revelado a nós, fazendo escolhas, assumindo responsabilidades, criando expectativas. E de pensamento em pensamento, de ação em ação, vamos nos tornando quem somos. Em um determinado momento da história, a autora afirma que por muito tempo não havia sequer imaginado se tornar escritora. Contudo, nunca deixou de amar os livros e de fazer questão desses fiéis companheiros de aventuras em sua vida. Em cada uma das crônicas que ela reúne nesta obra, é possível perceber como o amor pelos livros sempre esteve presente em sua vida. Esse amor foi sendo nutrido e as experiências foram se intensificando. Da mesma maneira que a jovem Rosana percebeu que não seria possível desaprender a leitura, tampouco fora possível deixar de se tornar uma escritora.

O que é uma crônica? O título, ao evocar outras referências e convidar o leitor a refletir, resume com precisão o que uma crônica se propõe a fazer. Mas isso não significa que os assuntos precisam ser


profundos, filosóficos ou complexos, que é o que pensamos imediatamente quando lemos a palavra “reflexão”. Esse gênero literário também nos apresenta a um tipo de reflexão dife­rente, sobre o cotidiano, coisas corriqueiras, eventos que podem acontecer no dia a dia de cada um e a todos nós, como, por exemplo, passar manteiga no pão para fazer um delicioso café da manhã, andar com o cachorro pela rua torcendo para ele não encontrar nenhum gato arisco pelo caminho, sair com um amigo para conversar e comer algo ou até mesmo encontrar um livro no meio do caminho. Como a maioria dos textos literários, a crônica traz várias camadas e significados, desenvolvidos em forma de narrativa, sem necessariamente atentar para uma ordem temporal. Os fatos podem também ser apresentados de maneira mais poética, menos concreta, o que é um dos pontos que separa a crônica de outros tipos de textos narrativos. O tempo não prende a história, pelo contrário: há uma sensação de liberdade na condução da narrativa, que pode ir e vir mais do que uma vez para comunicar algo de maneira mais eficiente. Por exemplo, pense na sua relação com o seu melhor amigo ou amiga. Ela não nasceu do jeito que é hoje, não é mesmo? Certamente, vocês já passaram por muitos altos e baixos até a cumplicidade se estabelecer desse jeitinho que está agora. Caso você resolva escrever a história da sua própria vida, pode determinar um capítulo para falar especialmente de como essa amizade nasceu, cresceu e se tornou tão importante. E essa apresentação pode também ocorrer por meio de casos que aconteceram ao longo do tempo, sem seguir uma ordem temporal. A ordem, na verdade, não importa. O que importa é que o resultado final seja uma leitura gostosa, fluida, de fácil entendimento e que prenda a atenção do leitor.

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Memorizar é preciso?

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Considerando que uma crônica vai narrando os fatos corriqueiros do cotidiano, um autor precisa ter uma memória genial para retratar pixel por pixel, tim-tim por tim-tim, tudo o que aconteceu, certo? Não! Como qualquer lembrança, a crônica não se trata exatamente de uma cópia do que aconteceu no tal dia. Não é preciso fazer um esforço hercúleo para resgatar com exatidão cada momento nem mesmo ficar preso tentando remontar cada detalhe. As lembranças, devagarzinho, vão mudando… Você pode, inclusive, testar isso com as suas próprias! Procure se lembrar de alguma coisa que aconteceu faz tempo, quando você era bem pequeno. Tente se lembrar das pessoas que estavam lá, por que estavam lá, que roupas vestiam, se haviam almoçado… Será que foi exatamente assim? Você se lembra de todos os detalhes, como se fosse uma fotografia digital? Se perguntar a alguém que esteve presente nessa história, será que suas lembranças serão exatamente iguais? Se fizer pouco tempo que essa memória efetivamente aconteceu, é provável que você se lembre de muito mais detalhes. Contudo, à medida que o tempo vai passando e vamos criando mais e mais memórias, a lembrança vai ficando um pouco menos clara. Alguns detalhes se confundem com os de outras situações mais ou menos parecidas e até mesmo com a cena de algum filme, o trecho de uma revista ou a história de outra pessoa que você ouviu no ônibus a caminho de casa. Mas, afinal, por que será que as memórias ficam embaralhadas ao longo do tempo na nossa cabeça? Por que nos lembramos melhor de algumas coisas do que de outras? Do que nos lembramos melhor? Daquilo que nos marca, daquilo que nosso corpo e mente entendem que foi muito importante. Por exemplo, imagine que hoje é uma segunda-feira e você está na escola,


pela manhã, fazendo análises sintáticas (animador, hein?!), quando não mais que de repente entra um cavalo na sala de aula. O que você acha que vai ficar gravado para sempre na sua memória: as regras do predicado verbo-nominal ou o equino invadindo a sala? Assim fica claro que o que torna um fato importante para a nossa memória é o que sentimos! E não estamos falando exclusivamente da felicidade, de sentimentos alegres. Pode ser um sentimento triste, de medo, angústia. O mesmo acontece com a crônica. Os detalhes físicos, aqueles que nossa memória pode não recordar, são menos importantes do que os sentimentos e as emoções evocados pelo evento. Tem uma coisa meio óbvia que até agora não discutimos. O próprio termo, a palavra que designa esse gênero literário: crônica. Com certeza, você já viu este radical (“cron”) em outras palavras. Cronologia, cronômetro, sincronia, entre outras. A palavra tem origem no termo grego krònos e significa, literalmente, tempo, o mesmo tempo usado para medir o passar das horas ou observar uma sucessão de fatos. Então, a primeira dica para identificar uma crônica e diferenciar esse gênero de outros parecidos, como o conto, é observar se a narrativa se restringe a determinado intervalo de tempo. Pode ser bem curtinho, entre um andar e outro no elevador. Pode ser também um lapso de tempo maior, como a trajetória de uma menina encantada pelos livros que, quando cresceu, acabou se tornando escritora. Tão importante quanto o tempo é o espaço, ou seja, onde a crônica se passa. Assim como existe um recorte temporal no qual a história se desenvolve, o espaço também é delimitado. Não é limitado no sentido de que restringe o autor a falar somente sobre um quarteirão ou dois: é de-limitado. Em outras palavras, assim como o tempo, o espaço onde a história se desenrola também já está configurado, marcado

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– delimitado. E, mais uma vez, podemos ter uma delimitação bem restrita, como dentro do elevador, ou uma bem maior, que abranja toda uma cidade, por exemplo.

Como definir o gênero? 82

A esta altura, você já deve conhecer bem o que define um texto narrativo, certo? É uma história que vai se desenvolvendo por meio de uma sucessão de fatos, com personagens, tempo e espaço determinados, e que é contada através da figura de um narrador. Aliás, um narrador pode assumir diferentes formas, como você bem sabe, dependendo da sua participação na história (narrador-personagem ou narrador-observador). Bom, a crônica, como gênero, na verdade nasceu fora dos braços da literatura, como parte de outro gênero: o jornalístico. As primeiras crônicas eram textos de não ficção usados para relatar algo ou comentar um fato, sem se prender ao formato jornalístico clássico. Assim, a crônica está em algum lugar entre a poesia e o texto jornalístico, pois conta uma história, narra um evento não necessariamente como aconteceu, como no caso de um texto de jornal ou revista, mas como foi percebido pelo autor. E o ser humano não é um observador imparcial: cada sentimento, cada emoção, cada percepção passa pelo filtro do nosso repertório e da nossa bagagem cultural. Além de ter essas variações pessoais ao recontar um relato, a crônica também já nasceu com um pé na literatura, pois pode usar e abusar da poesia para entreter ou fantasiar para prender o leitor no enredo. Pode até inventar uma história todinha do zero, do nada, para passar uma ideia, comentar um fato etc. O céu é o limite!


Se uma crônica pode ser completamente ficcional, por que esse tipo de texto não é simplesmente um conto? Boa pergunta. A crônica não é nem um gênero jornalístico nem um texto narrativo exatamente por ser uma mistura dos dois e, por isso, ela pode ser considerada um gênero híbrido que nasce do desejo de relatar, entreter e até comentar algum fato engraçado, curioso ou reflexivo. Então o mais importante não é a verossimilidade do fato, mas o quanto o texto vai agradar, prender o leitor e fazê-lo refletir. Por isso, a linguagem empregada pelas crônicas é geralmente simples, de fácil acesso e interpretação. Já que se trata de um texto livre, com tantas possibilidades, naturalmente pode ser difícil classificá-lo. Em geral, são usados alguns termos que o conceituam de acordo com características um pouco mais específicas. Ou seja, apesar de todas as crônicas apresentarem pontos em comum, como a linguagem, o recorte no espaço-tempo e as ações do cotidiano, são as peculiaridades que ajudarão a definir o gênero e seus subtipos. Veja um recorte dos principais subgêneros possíveis: • Narrativo: um texto mais simples, desses que apresentam os elementos comuns (personagem, tempo, espaço e enredo), mas não contam com longos trechos de reflexão ou argumentação; • Jornalístico: um texto que apresenta fragmentos narrativos de determinado evento e em seguida promove uma reflexão sobre o assunto. São mais comuns em jornais (o nome já tinha dado uma pista, claro) e exigem que o autor considere o seu público leitor. Ou seja, ele precisa atender a uma demanda que não é somente sua mas também de quem terá acesso ao texto; • Reflexivo: nesse tipo, o autor projeta aquilo que sente em relação às experiências da vida, promovendo uma reflexão sobre esses fatos do dia a dia e o efeito que eles produzem em nós como indivíduos ou como comunidade;

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• Humorístico: esse tipo de crônica, que tem um nome bem autoexplicativo, é um texto que se apresenta com humor, sarcasmo, ironia. É uma forma sutil e leve, muito utilizada para trazer à discussão assuntos sérios, pesados, difíceis de lidar a princípio, por impactarem a sociedade, como é o caso de política, morte, economia, aumento abusivo do preço das coisas etc.; • Lírico: nessa forma de crônica, o autor vai tecendo os relatos com nostalgia e sentimentalismo, em uma linguagem poética, metafórica, que pretende ampliar as sensações do leitor. Depois de ler essas cinco definições, você deve estar pensando: Como assim, difícil de classificar? São cinco tipos bem distintos, basta analisar um pouco o texto e será possível classificar a crônica com facilidade. Mas não é bem assim. Uma crônica não precisa ser somente de um ou de outro tipo. Você pode muito bem escrever uma crônica narrativa com elementos poéticos ou uma crônica lírica que conduza a uma reflexão. E quem sabe até uma crônica jornalística que narre elementos factuais, verídicos, mas traga também a leveza do humor, fazendo piada com a situação ao mesmo tempo que promove uma reflexão social. Não é que seja difícil classificar os subgêneros por eles terem elementos muito requintados, complexos de entender. Muito pelo contrário! A dificuldade aqui está exatamente no fato de serem características simples, porém bastante variadas. O autor pode passear entre esses subtipos de crônica tranquilamente para produzir uma obra que comunique aquilo que ele tem em mente, sem medo de errar, de sair do gênero. Com o mundo em constante mudança, o cotidiano também muda e, assim, mudam também as temáticas e abordagens das crônicas. Analisando o que vem sendo feito desde o surgimento do gênero, poderíamos listar muitos outros tipos de crônica e, assim, perceber como a realidade mudou desde então.


E o que tem “o livro no meio do caminho” a ver com a autora?

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Arquivo pessoal

O livro que foi encontrado no meio do caminho foi o evento que desencadeou a criação das crônicas que você acabou de ler. Com um tom leve e descontraído, entre e durante um caso e outro, a autora traz momentos de sua própria história, sempre ancorados no impacto que o objeto livro teve sobre a sua vida. Ela traz lembranças de um momento da infância do qual mal consegue se lembrar e de situações mais recentes, igualmente marcantes em sua vida, que, de um jeito ou de outro, foram desenhando a sua história com os livros e construindo o relacionamento que, assim como qualquer outro, passou por diversas fases. Algo que é verdade para todos os livros, mas ganha particular importância com este que você tem em mãos, é a importância de conhecer um pouco sobre o autor para melhor compreender aquilo que ele escreveu. Vamos conhecer, então, Rosana Rios, a autora deste livro? Rosana Rios nasceu em 1955, na cidade de São Paulo, e se formou em Arte-Educação na faculdade de Belas Artes. Ela já publicou mais de 170 livros ao longo de seus 30 anos como autora, mas seu currículo também traz suas experiências como roteirista de quadrinhos e programas de televisão. Em meio à sua gigante coleção de importantes premiações no mundo da literatura, há um destaque especial para o consagrado Prêmio Jabuti de Literatura Juvenil, em 2016, com o livro Iluminuras. Em 2019, Rosana foi


eleita presidente da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ), posição que garantiu à autora mais força e amplitude em sua constante luta pela valorização da leitura literária por crianças e jovens.

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E foi a autora que ilustrou o livro? No nascimento de um livro, o autor cumpre um papel extremamente importante; afinal, um livro é feito de palavras, e é o autor quem as escreve. Embora existam livros que sejam exclusivamente feitos com palavras, há outros que trazem algo a mais, assim como este. As imagens aqui apresentadas não são aleatórias, muito pelo contrário. Da mesma maneira que as palavras são cuidadosamente entrelaçadas em um enredo, as imagens transformam essas mesmas palavras em traços, curvas, pontos, rostos, cores, texturas... Tudo para dar forma às palavras e oferecer mais uma camada de significado ao texto, criando uma segunda narrativa, que corre paralela à narrativa verbal, ilustrando, complementando e, às vezes, até trazendo novos elementos para a história. No caso de livros ilustrados, essa interação é ainda mais intensa e garante ao ilustrador, o responsável pela criação da narrativa visual, um grande destaque. Vamos conhecer um pouco melhor a ilustradora deste livro? Ana Matsusaki nasceu em 1989, também na cidade de São Paulo, e desde sempre se interessou por tudo que envolvia palavras e imagens. Concluiu, na faculdade de Belas Artes, sua graduação em Design, e trabalhou por muitos anos como diretora de arte em uma editora voltada para o público infantojuvenil. Ana já ilustrou mais de 20 obras literárias e, em 2020, lançou o seu primeiro livro como autora, A colecionadora de cabeças. Esse


A cada livro, uma nova descoberta Parabéns, leitor! É chegado o fim desta história. Muito obrigado por nos acompanhar nesta jornada. Agora você conhece um pouco mais o gênero literário chamado crônica, uma narrativa híbrida, localizada entre a poesia e o jornalismo, que se apresenta em determinado recorte no espaço-tempo e promove a reflexão partindo de considerações do dia a dia contadas por um narrador. Lembre-se também de que, nesse gênero, a relação com o tempo não é restrita à ordem dos acontecimentos, sendo possível passear pelo passado e pelo futuro livremente, a fim de fazer com que a leitura seja agradável do início ao fim. Assim como nas histórias que você acabou de ler, a partir de mais esta leitura, você também teve a sua relação com os livros modificada. A cada livro que lemos, descobrimos novas coisas em relação ao mundo e a nós mesmos, transformando-nos um pouquinho aqui, outro pouquinho ali. Além de nos abastecer com um conhecimento novo, a experiência acaba por reorganizar todos aqueles que já temos; afinal, nossa visão é ampliada, fazendo com que tudo se renove, evolua, e com que novos

Arquivo pessoal

título recebeu uma premiação importante no mesmo ano de seu lançamento, o Selo de Seleção da Cátedra Unesco. Hoje, Ana mora em Curitiba e trabalha como professora de ilustração, ajudando outras pessoas a realizar o sonho de transformar um texto em imagens e, assim, levar magia e encantamento a cada vez mais leitores.

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caminhos cheios de possibilidades se abram. Rosana Rios, autora desta obra, por exemplo, nem sequer sonhava que poderia se tornar uma escritora. Contudo, o tempo foi passando, o relacionamento dela com os livros foi se estreitando, e felizmente o sonho (que ela nem sabia que tinha) foi tomando forma. A menina que adorava livros aos poucos se descobriu autora. E autora de sucesso! Quais sonhos será que você tem e nem sabe? Agora que você já consegue identificar uma crônica, já conhece a sua estrutura e sabe como conduzir a narrativa, o que acha de escrever a história de sua própria vida? Podem ser crônicas que falem um pouco de você mesmo e de seus gostos, de sua rotina e das pessoas com quem compartilhou momentos marcantes. Não se esqueça de escrever também sobre as suas estranhezas, dê-se a liberdade de filosofar um pouquinho. Olhar para dentro é uma experiência incrível, pois há um mundo a se explorar, o seu mundo. E posso garantir que a jornada fica ainda mais incrível quando registramos tudo isso em um texto! Por mais que estejamos falando de crônicas, não se prenda a isso. Seu caminho é livre, e conhecer novos gêneros literários, cheios de novas possibilidades, permite que você descubra com qual se identifica mais. O universo dos livros é imenso e continua infinitamente em expansão. Basta escolher um destino e seguir em frente! Ao conhecer novos mundos, novas personagens e outras realidades, você expande sua visão, sua perspectiva, e de brinde fica mais inteligente. Quem sabe o seu hábito de leitura não contagie amigos e familiares próximos? Afinal, uma coisa é certa: é um caminho sem volta! Quem se encanta com a maravilha dos livros nunca vai se desencantar.

Até a próxima!


MATERIAL DE APOIO AO PROFESSOR CATEGORIA 2 8º e 9º anos do Ens. Fundamental GÊNERO Conto, crônica, novela, teatro, texto da tradição popular TEMA Encontros com a diferença

Elaborado por Filipe Martins Ribeiro Filipe Martins Ribeiro é formado em Psicopedagogia (Unifieo) e pós-graduado em Gestão Escolar (USP). É revisor, editor, professor e coordenador pedagógico, além de atuar como acompanhante terapêutico e trabalhar com educação inclusiva e psicoterapia. Trabalha com todas as faixas etárias, mas tem uma leve inclinação para adolescentes e pré-adolescentes. Atua no campo de jogos educativos, acredita muito na influência da ludicidade no desenvolvimento e é apaixonado por longas conversas, por café e pela educação.

Carta ao professor e à professora A crônica nasceu como um híbrido de jornalismo e literatura. Com texto simples, descontraído e de fácil compreensão, seu propósito é se aproximar do leitor e convidá-lo à reflexão. As crônicas também se diferenciam de outros textos literários por trazerem temas centrados no cotidiano, o que torna o texto ainda mais acessível, mas não menos profundo. A diversidade de gêneros em sala de aula expande o aprendizado do estudante e enriquece o processo de ensino. A crônica, em particular, permite a exploração de valores

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morais e éticos, muito necessários para viver em sociedade, além de estimular uma reflexão e interpretação do mundo através de olhos objetivos e principalmente subjetivos. Ler uma crônica é refletir sobre si mesmo ao mesmo tempo que olhamos para o mundo e o lugar que ocupamos nele. A obra Tinha um livro no meio do caminho, da autora Rosana Rios, com ilustrações por Ana Matsusaki, é uma excelente opção para trabalhar o gênero crônica com os estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental (8º e 9º anos), já que traz uma coletânea de textos desse gênero, que tem, como tema principal, os encontros com a diferença. A narrativa é desenvolvida com base em memórias da autora, que vão desde a infância até a profissão de escritora, passando por escola, família e tantos outros assuntos do cotidiano que o jovem poderá se identificar. As ilustrações também facilitam essa identificação, já que Ana Matsusaki transformou memórias cotidianas em imagens bastante expressivas. A obra é um convite à reflexão de si e do outro e permitirá que o estudante se encontre nas páginas deste livro, refletindo não só sobre seu presente e passado mas também sobre seu futuro. Este material de apoio ao professor, com orientações para o trabalho desta obra em sala de aula antes, durante e após a leitura, visa ajudar você, professor e professora, a se aprofundar nos temas do livro, no gênero utilizado e em vários outros pontos de interesse. Destina-se à disciplina de Língua Portuguesa, mas também traz propostas para abordagens interdisciplinares, buscando uma experiência de leitura ainda mais rica e interessante tanto para o professor quanto para o estudante. Esperamos que este material possa ser de grande utilidade na preparação de suas aulas! Filipe Martins Ribeiro


Introdução A BNCC na sala de aula A leitura deste livro literário, somada às práticas de sala de aula sugeridas neste material, tem como objetivo atender aos aspectos inerentes às dez Competências Gerais propostas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), além de muitas das competências específicas do ensino de Língua Portuguesa. De acordo com a BNCC, os estudantes que estão cursando o Ensino Fundamental – Anos Finais estão aptos a enfrentar desafios mais complexos, que exigem maior abstração do raciocínio. Nessa faixa etária, “os estudantes tornam-se mais capazes de ver e avaliar os fatos pelo ponto de vista do outro, exercendo a capacidade de descentração” (BRASIL, 2018, p. 60), e essa evolução é “importante na construção da [sua] autonomia e na aquisição de valores morais e éticos” (BRASIL, 2018, p. 60). Ao considerar as transformações inerentes à essa faixa etária e essa atualização da demanda intelectiva dos estudantes, é fundamental que sejam propostas atividades capazes de sensibilizá-los, despertando seu interesse por meio de uma linguagem acessível, e que assumam uma função enquanto meio, não como fim; ou seja, a leitura do texto não se encerra em si mesma, e isso não significa descredibilizá-la, muito pelo contrário, tampouco exclui a prática da leitura por puro prazer. O objetivo é vincular a prática da leitura literária com a possibilidade de atingir esses potenciais de criticidade e análise incipientes nos estudantes, adolescentes emergentes. É proporcionar que o uso da literatura viabilize um espaço de

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reflexão sobre o mundo – ou sobre si mesmo – e suas transformações, dando as condições adequadas para isso de acordo com a faixa etária. A BNCC também defende que a função “utilitária da literatura” necessita dar lugar à algo mais humanizador, transformador e mobilizador. Assim, a função de trabalhar o texto não é apenas trabalhar a linguagem mas desenvolver um leitor que seja verdadeiramente fruidor, ou seja, “um sujeito que seja capaz de se implicar na leitura dos textos, de ‘desvendar’ suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas demandas e de firmar pactos de leitura” (BRASIL, 2018, p. 138). O que a BNCC propõe, então, implica a total participação dos estudantes na leitura, de forma que sejam capazes de entendê-la e interpretá-la em seus diferentes níveis. Essa é uma tarefa que exige derrubar algumas barreiras comumente erigidas entre os estudantes e a leitura, construídas e reforçadas pela frequente falta de referência de leitores em seu meio social. Para lograr a tarefa com êxito, é preciso compreender a realidade desses estudantes e o modo como sua relação com os livros e a literatura se construiu. A leitura também vai assumindo valores condizentes com as relações sociais e a sociedade atual. Para entender esse movimento, podemos observar o uso dos aplicativos eletrônicos de envio de mensagens que substituíram o (quase extinto) SMS, que, por sua vez, já assumira o lugar das antigas cartas impressas que eram enviadas manualmente pelos correios. Atualmente, as mensagens nem mesmo precisam ser escritas, já que é possível enviar áudios e até imagens. Então, à medida que a tecnologia avança, as modalidades de relação e comunicação sofrem alterações, adaptando-se para facilitar a vida. Nesse contexto, ler passa a ocupar um lugar muito específico, e isso amplia o desafio de aproximar os


adolescentes – naturalmente imersos na tecnologia – do universo da leitura. O lugar da literatura na sociedade já assumiu diversas formas, mas nunca perdeu seu destaque. Em festivais literários periódicos que ocorrem por todo o país, são reunidas milhares de pessoas com o objetivo de prestigiar obras novas e consagradas e discutir a importância da literatura na sociedade e na formação das pessoas. No festival literário Fliaraxá de 2016, por exemplo, a programação contou com a presença do escritor, professor e filósofo Mario Sergio Cortella, que apresentou uma palestra a respeito da importância da leitura em sua vida. O filósofo destacou o poder de desenvolvimento pessoal e social que a prática da leitura apresenta ao nos levar para o desconhecido, promovendo, assim, a expansão de nosso universo. Na academia, temos referências como a professora Isabel Solé, do departamento de Psicologia Evolutiva e de Educação da Universidade de Barcelona, que publicou, em 1998, a obra Estratégias de leitura, na qual apresenta considerações sobre como formar leitores considerando não só os aspectos cognitivos, mas também os afetivo-relacionais. Entre outros conceitos, a professora relaciona a importância da motivação da leitura, destacando que o bom aproveitamento de uma leitura está diretamente relacionado a como o estudante se posiciona diante dessa atividade. O gênero crônica, então, por essa sua característica de brevidade e exploração do cotidiano, apresenta um potencial maior para a ressignificação dessa relação entre os estudantes e a leitura. O estudante se vê imediatamente imerso no mundo da escrita, sem dificuldades de compreender ou se submergir na literatura. A narrativa da crônica se desenvolve sempre nesse tom, com elementos de fácil identificação que, juntos, vão tecendo uma história maior que a soma de suas partes.

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Apresentar essa estrutura ao estudante, mostrar-lhe que a literatura não é algo distante, tampouco insignificante, e que cada indivíduo, incluindo ele, pode contar sua história através de crônicas é um dos principais objetivos de trabalhar a obra Tinha um livro no meio do caminho. De fato, a autora convida o leitor a conhecer a sua história, que foi moldada de várias formas através de seu contato e envolvimento com livros e a própria literatura. 94

Propostas de atividades Nem todos os adolescentes apresentam, logo de cara, gosto e apreço pela literatura, e a lista de motivos que condicionam esse resultado pode ser tema de uma ampla e frutífera discussão, talvez para outro momento. Há, decerto, um número considerável de estudantes que nem sequer se relaciona com os livros, mas também existem aqueles que já adquiriram, em diferentes níveis, o hábito da leitura. Por isso, há chances de existir um grupo aficionado por quadrinhos, mangás, blogs, revistas eletrônicas e ficção científica, por exemplo. Como a intenção é atingir todos os estudantes, é importante estabelecer algumas estratégias que começam antes mesmo da leitura da obra.

Pré-leitura Estimular um adolescente a ler um livro de literatura nem sempre é uma tarefa simples. Nos tempos atuais, todos têm uma agenda cheia, e tempo livre é algo cada vez mais raro. Os livros competem diretamente com conteúdos eletrônicos, nas mais variadas plataformas, com recursos audiovisuais feitos


exatamente para prender a atenção. Mas, ainda que pareça, a escolha por um livro não é uma tarefa impossível. Uma boa forma de atrair o leitor em potencial é investir um tempo maior na apresentação da obra, estimulando a curiosidade dos estudantes. A seguir, veja algumas sugestões de atividades de pré-leitura. Significação com objetos pessoais Para essa atividade, solicite com antecedência que os estudantes tragam para a sala de aula algum item que represente algo bom em sua vida. Reforce que não se trata de valor econômico, mas de valor sentimental, afetivo, algo que possa significar muito para seu dono, mas que pode não ter valor para outras pessoas. Sugira que não mostrem os objetos aos colegas antes da atividade. No dia marcado, reúna todos os objetos e acomode-os dentro de uma caixa de papelão. Etiquete cada um dos itens antes, garantindo o retorno de cada um ao seu respectivo dono. Se não for possível usar uma caixa, coloque um anteparo na frente dos itens para que a atenção dos estudantes se volte exclusivamente ao item destacado. Retire um item de cada vez e mostre-o à turma. Incentive o diálogo, convidando todos para descrever o objeto observado e especular o valor sentimental que ele pode ter para o seu dono. Se achar interessante, essas observações podem ser anotadas na lousa. Faça um sorteio ou selecione alguns estudantes para falar sobre seu objeto, sem descrevê-lo fisicamente. Em seguida, peça que a turma tente adivinhar qual objeto foi descrito. Essa é uma excelente oportunidade para abordar o respeito e a empatia, especialmente se houver alguma manifestação desrespeitosa em relação a algum dos itens utilizados na atividade.

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Caso isso aconteça, o ideal é acolher o comentário e reiterar a importância do respeito nas relações. Com essa atividade, é possível mostrar aos estudantes que, da mesma maneira que a descrição de um objeto pode assumir diferentes perspectivas, uma história também pode ser contada de diversas formas e que, no processo criativo, um fator muito importante é o sentimento que está envolvido. No caso dos itens levados pela turma, é provável que seus donos apresentem uma perspectiva subjetiva do objeto, enquanto os demais estudantes apenas descreverão concretamente um boné, uma bola, uma boneca etc. Explorar a multiplicidade dos sentidos que podem ser atribuídos a um único objeto é uma excelente forma de estabelecer relação com a obra a ser lida e com as experiências individuais compartilhadas pela autora. O exemplo de como cada pessoa apresenta uma perspectiva única e singular auxilia no autoconhecimento e no desenvolvimento da autoestima e incentiva a criação de narrativas e habilidades de argumentação. Exatamente por isso, essa sugestão pode progredir, posteriormente, para uma atividade escrita após a leitura. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP01, EF69LP20 e EF69LP21.

Escrita com base no cotidiano É muito comum, especialmente nas idades mais tenras, que os estudantes comecem um texto com “Era uma vez”. Essa atividade pretende estimular a criatividade da turma e quebrar esse paradigma, tendo como principal apoio as características dos relatos do cotidiano apresentadas no gênero crônica.


Proponha aos estudantes que escrevam frases que relatem momentos do cotidiano, como: “Enquanto escovava os dentes...”, “Em um dia muito nublado de outono, eu...”, “No dia em que esqueci a senha do meu e-mail...”, “Pegando uma cebola no cesto para ajudar no jantar, eu...” e assim por diante, em tiras de papel. Reforce que as frases devem ser curtas e escritas em primeira pessoa. Reúna todas as tiras em um saco. Em seguida, faça um sorteio e leia a frase em voz alta. Escolha, aleatoriamente, um estudante para continuar a frase, criando uma breve narrativa, algo como um post em redes sociais. O processo pode ser repetido diversas vezes, e é interessante que um estudante anote as histórias que forem sendo criadas. A utilização do gênero crônica na sala de aula é um terreno fecundo para aproximar os estudantes da literatura, pois a proposta de reflexão se apresenta de forma acessível. Dessa maneira, é possível ampliar o repertório deles, estimulando-os a começar uma narrativa a partir de diferentes situações cotidianas, e assim mostrar que dar início a um texto não precisa ser algo sofrido e que não há regras sobre o que vale a pena ser escrito ou não. Se contar uma história fizer sentido para seu autor, ela merece ser escrita! Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP42, EF69LP46, EF69LP47 e EF89LP35.

Leitura A tecnologia vem redesenhando muitos relacionamentos, e essa é uma realidade dinâmica que existe desde o surgimento da escrita, há milhares de anos. Com o advento da internet, muitas pessoas migraram do papel para a tela do computador e depois para o celular. Grande parte do que é lido atualmente

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está nos feeds e stories das redes sociais. São leituras de poucos minutos, talvez segundos, roladas com o dedo, dando lugar a uma nova informação. Em geral, o tempo de leitura encurtou bastante, e ler uma obra literária exige maior dedicação de tempo. Aqui, temos mais um ponto favorável ao trabalhar as crônicas: elas são narrativas curtas, que permitem ao leitor ir ampliando gradualmente o tempo de concentração na leitura. Considerando essa realidade e a reforçada importância das relações sociais na adolescência, a seguir sugerimos algumas atividades de leitura. Roda de leitura Comece a leitura do livro em sala e em grupo. Essa é uma prática muito usada desde a Educação Infantil e pode ajudar no processo de “contágio” do hábito da leitura. A participação e o entusiasmo dos estudantes podem variar, considerando que cada estudante é um universo particular e já apresenta uma relação estabelecida com os livros, mas é imperativo incluir todos em um momento prazeroso de leitura. Comece organizando a turma em um círculo ou semicírculo, garantindo que todos possam se ver e trocar ideias durante a atividade. Pergunte se há algum voluntário para iniciar a leitura. Se não houver, comece você mesmo. A obra Tinha um livro no meio do caminho contém 16 crônicas, que podem ser lidas em sequência, fora de sequência ou até separadamente. Recomendamos, no entanto, que a primeira crônica seja lida primeiro, já que ela estabelece uma base para o desenvolvimento de todas as crônicas seguintes. Veja o que funciona melhor para a turma. A leitura das crônicas pode ser feita com um leitor para cada parágrafo ou para cada crônica, dependendo de quanto da leitura será realizada nessa configuração. Tente fazer isso da


forma mais dinâmica possível, para que o texto não fique fragmentado, dificultando a compreensão de todos. Além disso, peça que a turma acompanhe a leitura com o livro em mãos. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP42, EF69LP46, EF69LP47 e EF69LP53.

Leitura em pares A leitura em sala de aula também pode ser feita em pares. Para essa atividade, deixe que os estudantes escolham um par. Diga à turma que a atividade pode ser silenciosa, cada um lendo em seu próprio livro, ou em voz alta, o que permite o treino da dicção e elocução sem expor os estudantes à turma toda. Após a leitura da crônica ou das crônicas, peça aos pares que conversem sobre o que leram, sobre os sentidos e temas explorados pelo texto e as sensações produzidas. Reforce que, nesse momento, o importante não é concordar com seu parceiro, mas trocar ideias e perspectivas. Não há certo ou errado. O objetivo é ampliar a perspectiva dos estudantes e a abrangência da reflexão, tanto individual quanto coletiva. Passeie pela sala, prestando apoio quando necessário e garantindo que as trocas sejam respeitosas. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP42, EF69LP46, EF69LP47 e EF69LP53.

Leitura individual A proposta da leitura em sala ajuda a despertar o interesse pela leitura de todo o livro, que pode ser feita em casa, individualmente. Estimular os estudantes a ler sozinhos é fundamental para que eles possam aprimorar suas habilidades de leitura, mas pode ser um pouco desafiador.

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Organizar, junto aos estudantes, um cronograma que relacione o total de dias disponíveis para a leitura e quantas páginas precisam ser lidas por dia para concluí-la até o prazo combinado é uma estratégia bastante útil. Com o desenvolvimento conjunto dessa programação, os estudantes sentem-se incluídos na estruturação da atividade e, consequentemente, estimulados a fazer a sua parte. Além disso, a fragmentação de objetivos ajuda a reduzir a ansiedade diante de tarefas mais complexas, como a leitura do livro completo dentro de determinado prazo. Propor aos estudantes que anotem os trechos que considerarem importantes, seja por não compreenderem, seja por terem gostado muito, também costuma servir de estímulo, já que essas anotações podem ser apresentadas durante as aulas, ao longo da leitura. Dessa forma, eles podem compartilhar seus gostos e dúvidas, além de terem a oportunidade de confrontar suas interpretações e expandir seus pontos de vista. Outra sugestão é valorizar a narrativa construída pelas ilustrações, estimulando-os a inferir o texto baseando-se nas imagens antes de ler a crônica e/ou identificando as relações entre texto e imagem depois da leitura. Ao socializarem suas observações, será possível entender como cada um percebe o conteúdo imagético de maneira diferente, o que, além de expandir a perspectiva de todos, reitera a importância do respeito e da valorização da singularidade. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP34, EF69LP42, EF69LP47, EF89LP32 e EF89LP33.

Pós-leitura Tinha um livro no meio do caminho, de Rosana Rios, convida-nos a refletir sobre a relação que temos com as coisas e


como elas vão mudando e tomando rumos nem sempre imaginados anteriormente. No começo da história, a autora reconhece, em meio aos escombros, um livro. Esse é o desencadeador para todos os textos seguintes, ou seja, a partir do livro identificado no meio do entulho, surge uma reflexão sobre quantas emoções ele já teria despertado em seus leitores. A autora parte dessa reflexão e segue contando sobre sua própria relação com o objeto livro, mostrando sua evolução. A seguir, veja algumas sugestões de atividades de pós-leitura. Contextualização O prazer pela leitura passa pela importância de deixar o leitor se sentir livre para expressar sua opinião, o que pode ser um desafio ao lidar com adolescentes. Uma sugestão para aprofundar a relação do estudante com o livro é explorar a obra a partir de uma abordagem mais concreta, pautando-se no conteúdo do paratexto apresentado ao final do livro literário, que traz informações sobre a autora e a ilustradora, além de apresentar o contexto em que a obra foi produzida. É importante ressaltar que esses fatores influenciam o modo como a narrativa é desenvolvida e que compreendê-los pode abrir novos horizontes para a interpretação do tema e da história. Após a leitura do paratexto, que pode ser feita em sala ou em casa, organize os estudantes de forma que todos consigam se comunicar durante a atividade. Peça a um voluntário que fale um pouco da autora do livro: o que ela já fez, quais prêmios já ganhou, onde vive. Deixe a palavra aberta para quem quiser complementar as informações. A partir do local onde a autora vive, São Paulo, peça que os estudantes resgatem as referências que a obra trouxe em relação a essa cidade.

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Em seguida, peça que outro estudante fale sobre as ilustrações e as impressões que teve ao observá-las, o que elas transmitiram. Proponha também que os estudantes façam inferências em relação aos métodos utilizados na produção das imagens e abra espaço para que eles possam discutir suas interpretações da narrativa oferecida pelas ilustrações. A partir daí, é possível começar a se aproximar de elementos do texto em si, ainda concretos. Proponha que eles comentem as características que definem uma crônica e direcione a conversa para garantir que a expressão do cotidiano seja entendida como uma das principais marcas desse gênero textual. Peça que resgatem relatos ao longo do texto que exemplifiquem essa simplicidade da construção. Com base nesses trechos, retome a referência que a autora faz à década de 1960. Pergunte aos estudantes o que eles sabem dessa época. Destaque os movimentos culturais e o impacto que a Ditadura Militar teve em tais manifestações, mencionando – mas não se limitando – o Tropicalismo, que foi referenciado no texto, e abordando como a criatividade na escrita pôde driblar a repressão e garantir a produção cultural da época. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF69LP42, EF69LP44, EF69LP46 e EF69LP47.

Criando uma crônica Comece esse momento de pós-leitura retomando a atividade realizada durante a pré-leitura, com a descrição de objetos pessoais dos estudantes. Caso não tenha feito a atividade antes da leitura, você pode realizá-la nesse momento. Nessa atividade, o estudante pode usar o mesmo objeto e a mesma construção oral realizada na atividade anterior. No entanto, pode ser que, após a leitura do livro, ele opte por


outro objeto. Encoraje-o, pois essa segunda escolha já partiu de uma reflexão sobre a obra literária lida, o que pode resultar em uma escolha mais interessante para ele e para a turma. Com base nos objetos escolhidos, peça que escrevam uma crônica. O texto não precisa ser objetivamente sobre o item, podendo ser, alternativamente, referente ao que ele representa para o autor. Por exemplo, o objeto pode ser um carrinho de brinquedo, e a crônica sobre a infância. Aproveite o título do livro e sugira que as crônicas sejam nomeadas com base nele, adotando o padrão: “Tinha um... no meio do...”. Por exemplo, se o objeto escolhido for um gorro, o título poderia ser “Tinha um gorro no meio da minha mochila” ou “Tinha um gorro no meio do banco de trás”. O complemento de localidade pode variar infinitamente, de acordo com a proposta de crônica dos estudantes. Contudo, caso eles queiram despir-se desse padrão de título, encoraje-os. Essa proposição relacionada ao título da obra lida serve apenas para auxiliar na superação da frequente dificuldade em dar início a uma produção textual. O texto produzido pelos estudantes deve apresentar a estrutura e as peculiaridades de uma crônica, então aproveite o paratexto, explorado na atividade anterior, e reitere as principais características desse gênero textual: narrador, enredo, recorte no tempo-espaço, relatos do cotidiano, linguagem simples. Considerando a brevidade desse tipo de texto, também oriente os estudantes para que a produção escrita se limite a mais ou menos uma página. Isso pode ajudar tanto na atividade, que deverá ser realizada em sala de aula, quanto no momento de compartilhar o resultado com o resto da turma. Ao final, convide alguns voluntários para ler suas crônicas ao restante da turma.

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Uma possível complementação dessa atividade envolve conversar com os estudantes sobre as redes sociais. Nessa discussão, é fundamental abordar o perigo de se expor demais aos completos desconhecidos que acessam essas plataformas e como utilizá-las de forma positiva, como ferramentas para a difusão de iniciativas e atividades artísticas e culturais, a exemplo da produção literária que acabaram de criar. A proposta de publicar as crônicas usando a hashtag #Cronicando deve ser conversada com os responsáveis, para que eles possam entender e autorizar a participação dos estudantes, o que também os incentiva a apresentar os textos a suas famílias e a experimentar o papel de autores fora da sala de aula, a partir da experiência leitora, desmistificando a imagem do escritor como alguém distante, raro e incomum, o que também incentiva o aprimoramento de suas habilidades de interpretação e reflexão. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Língua Portuguesa: EF89LP35 e EF08LP04.

Atividades interdisciplinares As sugestões de atividade apresentadas neste material orientativo não excluem umas às outras, elas servem como base para organizar o seu planejamento e podem ser utilizadas de acordo com a realidade do ambiente escolar e da turma. A intenção é promover um ensino que tenha abrangência e profundidade, mas que respeite os imperativos da realidade plural do país. Uma excelente maneira de ampliar o alcance do trabalho com uma obra literária é propor atividades interdisciplinares, já que elas contribuem para romper com a visão limitante das disciplinas como estanques e permitem uma perspectiva mais integrada da aprendizagem. “Independentemente da opção


feita, é preciso destacar a necessidade de ‘romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substituí-las por aspectos mais globalizadores e que abranjam a complexidade das relações existentes entre os ramos da ciência no mundo real’ [...]” (BRASIL, 2018, p. 479). Literatura e Geografia O texto relaciona as mudanças no espaço urbano com as memórias e as histórias de vida das pessoas. A dica aqui é explorar, no âmbito da Geografia, o processo civilizatório e as implicações que ele causa no cotidiano da sociedade. Essa tarefa pode ser elaborada em parceria com o professor ou a professora de Geografia. Peça aos estudantes que produzam um texto descrevendo o lugar onde moram e como a paisagem mudou ao longo dos anos. Como um disparador para o processo criativo, podem ser feitas perguntas como: • O bairro cresceu? • Foram construídas novas moradias? • Casas deram lugar a prédios? • Ainda existem terrenos baldios? • Há ponto de ônibus perto da sua casa? • Sempre houve? • Há alguma outra forma de transporte? • As ruas são iluminadas? • Há água tratada e esgoto? • Sempre houve? • Você percebe mudanças que tenham sido pensadas para facilitar a vida na região, como a inauguração de

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uma estação do metrô ou o aumento no número de mercados e farmácias? No final da atividade, cada estudante deverá elaborar um texto que permita aos leitores perceber como o processo de urbanização influenciou a sua vida. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Geografia: EF08GE16, EF08GE20, EF09GE11 e EF09GE12. 106

Literatura e Matemática Aproveitando a oportunidade que este livro oferece ao abordar o apreço pela leitura, os estudantes podem realizar uma pesquisa para conhecer o público leitor da escola, atividade que pode ser planejada e executada em conjunto com o professor ou a professora de Matemática. Peça que os estudantes se organizem em grupos de aproximadamente cinco integrantes, dependendo do tamanho da turma, e abra o debate para que todos possam participar da definição do público-alvo da pesquisa e da escolha das perguntas para obter as informações necessárias. Em relação à definição de quem será entrevistado, lembre-se de que é possível fazer a pesquisa apenas com os estudantes da instituição. Incluir os profissionais e/ou os familiares dependerá do quão abrangente desejem que a pesquisa seja. As perguntas devem permitir a identificação de padrões do público da amostragem selecionada, portanto, precisam ser elaboradas tendo isso em mente. O que vocês desejam descobrir? Quem tem o costume de ler? Quais os gêneros textuais preferidos dessa população? Quem frequenta bibliotecas? Com essas definições, criem uma lista com no máximo cinco perguntas, para que a pesquisa não fique muito extensa, o que pode diminuir a adesão.


Algumas sugestões de perguntas são: • Qual foi o último livro que você leu? • Quantos livros você leu nos últimos seis meses? • Você tem o hábito de frequentar bibliotecas? • Você lê livros digitais no celular ou no computador, ou apenas livros impressos? Divida a população a ser entrevistada entre os grupos, e, quando tiverem os dados em mãos, peça que os estudantes produzam gráficos que representem as informações obtidas e organizem uma apresentação coletiva com os resultados da pesquisa. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para o componente curricular Matemática: EF08MA26, EF08MA27, EF09MA22 e EF09MA23.

Literatura e Arte Muito mais do que desenhos bem-feitos, as ilustrações que compõem uma narrativa literária há muito tempo deixaram de apenas reproduzir as informações trazidas pelo texto – atualmente, elas oferecem sentidos que o complementam. Muitas são as possibilidades de técnicas empregadas nas ilustrações de livros – literários ou não –, como pintura, colagem, decoupage e recursos digitais, que se somam a diferentes materiais e texturas para formar essa narrativa própria, que explora vieses imagéticos que vão além das palavras e ampliam as possibilidades de interpretação. Em grupos de até cinco integrantes, proponha aos estudantes que criem uma narrativa com ilustrações que tenha como base uma das crônicas do livro Tinha um livro no meio do caminho. O material produzido pela ilustradora Ana Matsusaki pode ser usado como referência, contudo, a tarefa aqui será

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produzir uma narrativa que reproduza a crônica escolhida, acrescentando alguns detalhes escolhidos pelo grupo. Na aula de Arte, o professor pode apresentar diferentes técnicas, comentando suas características e dando referências imagéticas que possam ampliar o repertório dos estudantes, mas é importante que eles fiquem livres para escolher quais desejam utilizar. Além da expressão da criatividade ser incentivada apenas com referências, sem traçar o caminho que os grupos deverão seguir, essa liberdade favorece um aumento de autoestima e maior engajamento na atividade, que, ao final, poderá gerar uma exposição em que cada grupo apresente sua obra e as técnicas que utilizou. Essa atividade contempla as seguintes habilidades descritas na BNCC para os componentes curriculares Língua Portuguesa e Arte: EF69LP51, EF69AR02, EF69AR03 e EF69AR06.

Sugestões de referências complementares O gênero crônica surgiu em terras brasileiras na segunda metade do século XIX, no meio dos cadernos dos jornais. Muitos romancistas da época, como Coelho Neto, José de Alencar e Machado de Assis, aderiram ao movimento e passaram a escrever breves textos para os folhetins. Desde que surgiu, o gênero vem se modificando, adaptando-se às novas modalidades de socialização e comunicação. Ao longo da história, vários cronistas brasileiros se destacaram, cada um assumindo características singulares, misturando os elementos do ambiente e da época (recorte no espaço-tempo) com as peculiaridades individuais (sentimentos). Para conhecer um pouco mais os expoentes desse gênero literário, apresentamos a seguir algumas sugestões de leitura.


MASSI, Augusto (org.). Os sabiás da crônica: antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Organizado pelo poeta, professor universitário e editor brasileiro, essa antologia traz belíssimas crônicas de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira. O livro traz também diversas fotos de época, com os autores e outras figuras históricas. SANTOS, Joaquim Ferreira dos (org.). As cem melhores crônicas brasileiras. São Paulo: Objetiva, 2007. Organizado pelo jornalista e cronista Joaquim Ferreira dos Santos, o livro reúne uma coletânea de crônicas de autores como Rubem Braga, Chico Buarque e Arnaldo Jabor, que marcaram época no cenário brasileiro. VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola. Apresentação e seleção de Ana Maria Machado. São Paulo: Objetiva, 2001. Esse livro apresenta dois excelentes autores: Luis Fernando Veríssimo, com suas crônicas; e Ana Maria Machado, que fez a curadoria cuidadosa dessas crônicas para criar um excelente caminho para inspirar leitores, dentro e fora da sala de aula.

Referencial bibliográfico comentado BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 16 maio 2022. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o documento de caráter normativo que define as aprendizagens essenciais da Educação Básica, auxiliando na elaboração dos currículos escolares. BRASIL. Ministério da Educação. Histórico. In: BRASIL. MEC. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Brasília, DF: MEC, c2017. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/component/k2/item/518hist%C3%B3rico#:~:text=O%20Programa%20Nacional%20do%20 Livro,nomes%20e%20formas%20de%20execu%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 16 maio 2022.

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O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é uma autarquia federal responsável pela execução de políticas educacionais do Ministério da Educação (MEC) que busca garantir a qualidade da educação em nosso país.

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HISTÓRIA do evento. In: FLIARAXÁ. Araxá, [202-]. Disponível em: https:// fliaraxa.com.br/o-fliaraxa/historia-do-evento. Acesso em: 16 maio 2022. Site dedicado à divulgação do Festival Literário de Araxá, apresentando uma linha do tempo com fotos e descrições dos acontecimentos de cada uma das edições do evento, realizado desde sua criação. SIEBERT, Silvânia. A crônica brasileira tecida pela história, pelo jornalismo e pela literatura. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 14, n. 3, p. 675685, set./dez. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/19824017-140313-4713. Acesso em: 9 jun. 2022. O artigo apresenta uma análise sobre como, a partir do século XIX, o gênero crônica foi incorporado às produções culturais brasileiras. SOARES, M. V. N. A crônica brasileira do século XIX: uma breve história. São Paulo: É Realizações, 2014. Esse livro apresenta um estudo amplo e detalhado a respeito de como o gênero crônica surgiu no Brasil e como foi se desenvolvendo desde então. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Penso, 2015. Nesse livro, elaborado com linguagem simples e agradável, Isabel Solé aborda a complexidade dos processos envolvidos na leitura sob o enfoque do construtivismo.


ROSANA RIOS

tinha um livro no meio do caminho ROSANA RIOS

tinha um livro no meio do caminho

Sou amiga dos verbos. Sem eles, o que seria de nós? Toda fala, toda escrita, todo pensamento depende deles... Pensamos. Falamos. Escrevemos... E verbalizamos. Hoje acordei com um verbo me encantando: permanecer. Sei que o dicionário, os revisores e os corretores ortográficos vão me sugerir usar um sinônimo, como “ficar”. Mais curto, direto, simples. Mais óbvio. E sei que minha absurda capacidade de complicar a vida vai se insurgir contra isso. Não. Não quero o óbvio. Não quero ficar. Quero permanecer!

ilustrações de ANA MATSUSAKI


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