www.fgks.org   »   [go: up one dir, main page]

PNLD 2023 | O3 - UM BELO DIA... - Editora Livríssimo

Page 1

GUILHERME SEMIONATO

ilustrações de

2

LD

PN

M AT ER IA LD E

DI

GO

DA

CO LE Ç

02 DI VU 3• LG O AÇ BJ ÃO ET •V ER O SÃ 3 O SU BM ET ID A À AV AL IA ÇÃ O

ÃO

04 69 P2 30 30 20 00 00 0

VERIDIANA SCARPELLI

UM BELO DIA…

Sabe aquela pessoa que dá vontade de ter por perto a vida toda? Essa mágica que transforma um desconhecido num grande amigo aconteceu com João e Pedro. Mais forte que a distância, a amizade dos meninos atravessa três continentes, dois oceanos e uma saudade sem tamanho. Por sorte, o Sol acompanhou tudo lá de cima e escreveu este livro para você.

GUILHERME SEMIONATO

Livro do Professor





GUILHERME SEMIONATO

ilustrações de

VERIDIANA SCARPELLI


© Livríssimo, 2021 Todos os direitos reservados Texto © Guilherme Semionato Ilustrações © Veridiana Scarpelli Direção-geral: Vicente Tortamano Avanso Direção editorial: Felipe Ramos Poletti Gerência editorial: Gilsandro Vieira Sales Gerência editorial de produção e design: Ulisses Pires Edição: Paulo Fuzinelli Assistência editorial: Aline Sá Martins Apoio editorial: Maria Carolina Rodrigues Supervisão de design: Dea Melo Edição de arte: Daniela Capezzuti Design gráfico: Ana Matsusaki Supervisão de revisão: Elaine Silva Revisão: Gabriel Ornelas e Martin Gonçalves Supervisão de iconografia: Léo Burgos Pesquisa iconográfica: Daniel Andrade e Priscila Ferraz Supervisão de controle de processos editoriais: Roseli Said Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Semionato, Guilherme Um belo dia-- / Guilherme Semionato ; ilustrações de Veridiana Scarpelli. -- 2. ed. -- São Paulo : Livríssimo Editora, 2021. ISBN 978-65-84590-28-1 (aluno) ISBN 978-65-84590-29-8 (professor)

1. Literatura infantojuvenil I. Scarpelli, Veridiana. II. Título. 21-90506 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 028.5 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

2ª edição, 2021

Rua Conselheiro Nébias, 887 São Paulo, SP – CEP: 01203-001 Fone: +55 11 3226-0211


Para a minha família, para os meus amigos, para os leitores deste e dos próximos livros. E, sobretudo, para o Pedro e para o Manoel.


Bom dia!

Eu me chamo Sol e sou a principal estrela do Sistema Solar. Você provavel; às mente já me desenhou: um círculo amarelo do qual partem raios vezes até me dão um rosto, com olhos e boca. Já que eu pareço uma gigantesca bola de fogo, não posso reclamar desses desenhos simpáticos. Como você deve imaginar, sou muito atarefado. Sou o chefe do Departamento das Coisas Solares e trabalho dia e noite, noite e dia. Se você pensa que estou dormindo quando é noite em sua cidade, saiba que estou bem desperto, iluminando a outra metade do mundo. Para escrever esta história, fiz algo que jamais tinha feito antes. Atrasei o amanhecer por alguns minutos durante vários dias e usei esse tempo para colocar as palavras no papel. Alguns cientistas até ficaram preocupados por eu não nascer na hora certa e acharam que o mundo ia acabar. Como você pode ver, o livro está pronto e o mundo não acabou. Este é meu primeiro livro, então peço desculpas desde já se o texto não estiver bem escrito ou se você não entender alguma palavra ou mesmo minha caligrafia. Ele não fala de mim, mas sim da amizade entre dois meninos brasileiros, João e Pedro. Por isso, escrevo em português.


Toda hora vejo amigos se divertindo juntos, seja no Brasil, seja em Madagascar, seja na Austrália. Com toda certeza, já vi você zanzando por aí, na rua, na escola, no parque. Mas, se você me perguntar por que esta história é sobre esses dois meninos e não sobre você ou qualquer outra pessoa, eu não vou saber responder. Assim é o mundo das histórias: não há muitas explicações. E, porque você está lendo este livro, eu posso dizer: assim é o nosso mundo, meu e seu. Mas saiba que há muitas maneiras de esta história ser sua. Se você ler esta história até o fim, ela é sua. Se pensar sobre ela, a história é sua. Se você sonhar com ela, é sua. Se falar dela para outras pessoas e contar do seu jeito, você terá escrito este livro comigo. Se você imaginar João e Pedro como seus amigos, se parecer que você os conhece de algum lugar, se achar que eles vivem dentro de você, a história é sua. E imagina a minha felicidade se um dia você me contar que eu sou seu amigo também! Você nem precisa me falar, porque eu vou saber… Boa leitura! P.S.: Não estou prometendo nada, mas talvez um dia eu escreva a sua história.





Um belo dia, João e Pedro se conheceram. Tudo se passou há alguns

anos, no recreio do primeiro dia de aula. Era uma tarde bem quente. Eu me lembro de ter caprichado além da conta naquele verão… Os meninos eram alunos novos naquela escola. Estavam na fila da lanchonete, um atrás do outro. João pediu um misto-quente sem presunto e Pedro pediu um misto-quente sem queijo. – Um misto-quente sem presunto é um queijo-quente – disse a moça da lanchonete. – Mas eu nunca vi um presunto-quente na minha vida. Será que existe? Pois existia: os sanduíches ficaram prontos no mesmo segundo. João e Pedro não tinham muito mais o que fazer, então demoraram uma eternidade entre uma mordida e outra, mastigando tudo uma porção de vezes. Os colegas de sala, por sua vez, comeram seus lanches bem depressa para sobrar mais tempo de recreio. Parecia que todos ali já se conheciam. Quando os sanduíches acabaram, um puxou papo com o outro. Mas não foi assim que a conversa começou, ó: – Vamos ser amigos? – Vamos. Eles mal trocaram dez palavras no primeiro dia de aula, mas as dez palavras viraram cem nos próximos dias, e as cem logo viraram mil. As coisas sempre acontecem em seu tempo. Os dois juntos se sentiam valentes o bastante para conversar com os novos colegas de sala. Assim, eles se tornaram amigos do melhor jeito possível: um ajudava o outro a vencer seus medos, um fazia companhia ao outro, e os dois foram se enturmando aos poucos. Mas João e Pedro eram mais felizes quando estavam juntos. E eu era mais feliz quando estava com eles. Os meninos eram bem grudados: gostavam de quebra-cabeça, compartilhavam lanches, estudavam juntos para as provas. Aos fins de semana, quando havia uma peça de teatro ou um filme bacana em cartaz, a mãe de João ligava para a mãe de Pedro e lá se iam os quatro se esbaldar. Quando a chuva ia para longe e apenas o céu azul me acompanhava, o pai de Pedro ligava para o pai de João e lá se iam os quatro jogar futebol.

11


João tinha um lindo gato amarelo parecido com um leãozinho. E não é que o gato Manoel adorou Pedro desde o primeiro momento em que o viu? João achou que isso era um ótimo sinal, porque o Manoel quase sempre se escondia das visitas. Um sempre pousava na casa do outro; cada um tinha sua escova de dentes no banheiro do amigo. Certa vez, a persiana do quarto de Pedro ficou aberta a noite inteira e eu tive a sorte de amanhecer em seus rostos: João na cama, Pedro num colchonete no chão (um sempre emprestava a cama para o outro). Estavam de olhos abertos, em silêncio completo. Sem saber se João já tinha acordado, Pedro teve vontade de dizer uma coisa e disse: – Eu sempre quis ter um irmão, sabia? João sorriu e respondeu para o teto: – Eu também sempre quis um irmão. Durante vários meses eu iluminei esses rapazes. Vi tudo isso acontecer bem do alto, bem de perto. João tirando notas altas em Língua Portuguesa e Pedro gabaritando provas de Geografia e de História. João e Pedro se divertindo com outros amigos e se divertindo sozinhos. João tomando tombo de bicicleta e Pedro levando caldo do mar. No último dia de aula, bem no início de dezembro, eles pediram seus mistos-quentes esquisitos pela última vez naquele ano. A tarde passou voando! Eu já estava indo embora, porque eram quase 7 da noite, quando ouvi: – Eu vou me mudar – disse Pedro, a voz sumida. – De apartamento? – perguntou João. – Eu vou me mudar do Brasil. – Mas é aqui pra perto? – Não, é pra bem longe. Eu vou pra Rússia – disse Pedro, o rosto meio nublado, meio chuvoso. Naquele dia, pedi licença à Lua para ficar com meus amigos mais alguns minutinhos.

12


Pedro se mudaria com a família no começo de janeiro. Por isso, eles tinham dezembro inteiro para se divertir. E assim foi. Fizeram piqueniques, comeram cachorro-quente, chuparam picolé. Foram à praia, visitaram uma cachoeira, reviram os amigos da escola. João foi com Pedro e os pais dele comprar um casacão, um tão acolchoado e grandalhão que Pedro, só de experimentá-lo, ficou suando o dia todo. Certo dia, o pai de Pedro mostrou a eles o passaporte do filho, e João achou o amigo muito importante por ter um documento bonito como aquele, parecido com uma agendinha. Aquele dezembro correu depressa que só vendo. Foi um mês quente, mas não tanto. Assinei um acordo com as nuvens carregadas de chuva para que elas só viessem no dia em que Pedro fosse embora. Fiz tudo o que podia para que as temperaturas ficassem agradáveis e eles se divertissem à beça fora de casa. Mas não havia como preparar uma recepção mais calorosa para Pedro e sua família na Rússia. Eu sou uma das maiores estrelas do Universo, mas não sou tão poderoso assim para trazer calor aos países mais frios durante o inverno. Enquanto me dedicava a fazer o verão no Brasil inteiro, sabia que a Rússia, em pleno inverno, pareceria esquecida por mim. No inverno russo eu apareço por pouco tempo no céu. Lá escurece às 4 da tarde nessa época do ano. Enquanto faço as malas e me despeço dos adultos cheios de casacos e das crianças com mais casacos ainda, as pessoas olham para mim e dizem: – Sol, fique mais um pouco. Brilhe mais aqui. Mas eu não posso mesmo! Assinei o Tratado de Inverno-Verão há milhões de anos e lá diz que eu não posso deixar o inverno dos países frios menos frio nem o verão dos países quentes menos quente. Por isso, invento uma série de desculpas esfarrapadas: – Perdão, preciso comprar pão na padaria. Amanhã eu volto! – Vocês me desculpem, mas tenho de trocar o pneu da minha bicicleta ali na oficina. – Sinto muito, mas estou com dor de garganta e preciso chupar uma bala de gengibre.

13


Pedro e sua família enfrentariam um inverno com temperaturas à beira de -10 ºC. Se você não faz ideia de quão frio é isso, imagine o congelador de uma geladeira. Imaginou? Pois ainda está quente. É um freezer! Mas uma coisa eu aprendi oferecendo luz e calor entra ano, sai ano: as pessoas se acostumam com tudo. Pode demorar dias, pode demorar meses, mas se acostumam.

Quatro de janeiro. Pedro embarcaria com a família para a Rússia à noite. Conforme o acordo que firmei com as nuvens carregadas, choveu e trovejou sem parar naquele dia. A chuva desabava em lágrimas. À tarde, Pedro apareceu na casa de João para se despedir. Eu, muito acanhado, atrás das nuvens cheias d’água, pouco enxerguei da despedida dos amigos. Se já é difícil enxergar enquanto se chora, imagine como é pior ver algo quando choram à sua frente…


Apesar das trovoadas, ouvi tudo muito bem: – Daqui a um tempo eu volto. Meu pai que falou – disse Pedro. – Tem certeza de que é só por um tempo mesmo? – Tenho. Obrigado por ser meu amigo. Isso não se agradece com palavras. Isso se agradece com um abraço. E assim foi. Já era noite quando Pedro embarcou no avião com seus pais. A Lua me contou que a viagem correu bem entre o Brasil e a Rússia, sem turbulências, e que às vezes Pedro abria sua janelinha e logo a fechava. Quando o avião estava quase pousando em Moscou, atropelei todas as regras do Tratado de Inverno-Verão: coloquei lenha na fogueira do meu coração, tomei vários chás e canjas de galinha pelando de quentes, fiz de tudo para dar a melhor e mais calorosa recepção possível a Pedro, mas não consegui: -4 ºC. Ainda era frio pra burro!


Choveu sem parar no Brasil inteiro nos dois dias seguintes à partida de Pedro. Gastei tanta energia para deixar seu primeiro dia na Rússia mais ameno que brilhei com pouca força no Brasil, pálido feito um diamante branco. Por mais que tentasse, não conseguia afastar as nuvens acinzentadas e chamar para o céu aquelas branquinhas que parecem algodão-doce. João passou esses dias dentro de casa, com um pijama bem quente de flanela e o gato Manoel no colo. No terceiro dia, voltei com tudo e reluzi como a coroa de um rei. O inverno do outro lado do mundo não me fazia trabalhar muito, então tinha energia de sobra para gastar no Brasil. Eu me sentia orgulhoso ao pairar acima das filas que se formavam nas lojas: todo mundo queria desesperadamente um ar-condicionado. As pessoas se abanavam com leques e revistas, e devo lhe contar que ser cumprimentado dessa forma me deixa felicíssimo. Mas a verdade era que eu estava começando a me preocupar com João, ainda tão quietinho em casa, jogando video game ou vendo televisão o dia todo com o Manoel do lado. Às vezes meus raios quase o alcançavam, mas ele então fechava a cortina mais um pouco e se isolava mais na toca. O pai sempre perguntava: – Vamos jogar bola? – Que tal andar de pedalinho? – Quer ir ao planetário à tarde? Mas João respondia não a todas as perguntas. Eu estava tão jururu com aquilo tudo que nem fiquei chateado por ele ter se recusado a ver a mim, minhas amigas estrelas e meus amigos planetas no planetário. Tentei de todo jeito levá-lo para a rua. A cada dia de suas férias dava ao Rio um céu mais azul e limpo que o outro. Teve uma vez, inclusive, que não brilhei tão forte e deixei o vento correr livre que nem vendaval. Era o dia perfeito para dar um passeio, mas João ficou em casa.

16


Se você não conhece a vida na Rússia, pode se perguntar: o que as crianças fazem para se divertir? A matéria na escola é a mesma? O que elas comem no café da manhã? Para começar, prepare-se para a maior novidade: os russos usam outro alfabeto, o cirílico. Isso significa que o abecedário é composto de outras letras e que o nome de Pedro virou algo bem diferente: Пётр. Eu falo fluentemente todas as línguas do mundo, mas confesso que tive alguma dificuldade para aprender russo. A família de Pedro tinha aulas particulares do idioma com um velhinho português de barba muito branca. Ele usava um gorro vermelho e seus óculos escorregavam a todo instante para a ponta do nariz. – Que sorte que tu tens! Vais aprender uma língua nova num país novo – disse a Pedro na primeira aula. Mas Pedro não via sorte em lugar algum. Nem embaixo das cobertas nem em cima do aquecedor. Nem no armário de chás nem na despensa repleta de biscoitos diferentes daqueles do Brasil. Ir ao mercado, aliás, era uma experiência estranha para Pedro, que não entendia nada do que via. Ele precisava ficar perto das bananas e das maçãs para matar a saudade de entender as coisas.

Quanto tempo uma criança consegue ficar presa no quarto? No caso de João, pouco tempo. João ficou o máximo que pôde, mas algo nele começou a pinicar, a coçar. Era um desejo inexplicável de se divertir, de ir para a rua, de pisar na areia, de ver o mar, mesmo contra a própria vontade. Às vezes, a saudade de Pedro batia nele como uma dessas correntes de vento que derrubam papéis da estante e pegam as pessoas desprevenidas. Mas o fato é que João finalmente quis sair de casa! João e sua mãe passaram o dia inteiro no clube. Brisa gostosa. Da piscina para a toalha, da toalha para a piscina. Mais protetor solar. No contorno

17


das orelhas, no peito dos pés. Fiquei tão feliz de ver João fora de casa! Tomei muito cuidado para não o deixar vermelho e ardido, e o protetor solar me ajudou nisso. Quando João voltou do clube, havia um recado para ele:

Adivinha quem ligou? Amanha ele liga de novo. Fui resolver um negocinho na rua e ja volto. Papai Seu coração já sabia: era Pedro. Mas que azar! O amigo tinha ligado justo quando ele não estava em casa. João correu até o quarto. Lá, abriu a gaveta onde guardava seus tesouros (dinossaurinhos, ingressos de cinema, figurinhas para trocar, moedas dos países que o pai visitou, uma caixinha de costura que pertenceu à avó) e tirou sua caneta preferida. Então, pegou uma folha e começou a escrever uma carta para Pedro. Já era quase de noite, eu precisava partir. A Lua acompanhou tudo: João terminou a carta e a deixou em cima da escrivaninha.

18


Quando amanheci, meus raios incidiram sobre a carta e consegui decifrá-la:

Oi, Pedro! Meu pai disse que você ligou. Se eu soubesse, não teria ido pro clube. Agora vou ficar plantado em casa esperando você ligar de novo. Ele disse que vai ser amanhã. Hoje eu nadei na piscina e levei uma braçada de uma mulher. Ontem eu bati seu recorde naquele jogo de corrida, mas não fica triste, que segundo lugar não é tão ruim assim. Desde que você foi embora eu não revi os outros amigos da escola. Vou chamar o pessoal pra fazer alguma coisa. Meu pai disse que a continuação daquele filme de caratê que a gente gostou entra nos cinemas na sexta. Será que vai passar aí? Como é que você vai fazer pra ver filme dublado ou legendado em português? Caramba, deve ser bem complicado. Vi no jornal que tá fazendo -10 graus aí. Perguntei pra minha mãe como você não congela e ela disse que o corpo humano é ótimo em manter a temperatura e que as roupas são muito, mas muito quentes mesmo. Toda hora eu acho uma coisa diferente pra te falar. Você não tá aqui, mas eu te conto do mesmo jeito. Tomara que você ligue amanhã. Até queria esperar e dizer tudo isso por telefone, mas não consegui e resolvi escrever esta carta. Tô torcendo pra ela não demorar tanto pra chegar ou não se perder no meio do caminho. Tenta escrever de volta, pra não esquecer o português. O Manoel manda uma cabeçadinha. Tchau. Assinado: João

19


Algumas horas depois, João foi ao correio com a mãe. – É pro meu amigo essa carta. Ele mora no maior país do mundo – disse para a atendente, já que tinha orgulho do amigo corajoso e gostava de falar dele para todo mundo que encontrasse. À tarde, João esperou a ligação de Pedro numa ansiedade gostosa. Trouxe o telefone sem fio para perto de si e não dava um passo sem arrastá-lo junto. Bem quando ele estava comendo uma mexerica, gominho por gominho, o telefone tocou. Que alegria, era Pedro mesmo! – Oi, Pedro! Que bom que você ligou! Desculpa ter perdido sua ligação ontem. Uma tristeza fininha viajou de Moscou ao Rio: – Não tem problema, João. – Tô aqui com o Manoel. Ele tá feliz, tá fazendo rom-rom. – Manda um abraço pra ele. Como tá o tempo aí? – Tá bem quente. Ontem eu fui pro clube. – Aqui tá nevando sem parar. Não acaba nunca esse branco! Até o céu é branco! – Caramba! – O Sol nem aparece direito! A noite começa no meio da tarde, e quando fica escuro dá até saudade do branco… – E você, tudo bem? – perguntou João. – Tudo indo, né? Mas João não se convenceu disso. E ele, que estava feliz de ter um amigo vivendo uma vida de aventuras num país distante, começou a ficar desanimado de novo. A Lua depois me disse que naquela noite, antes de dormir, João abriu a cortina e olhou para o céu. Contou algumas estrelas e janelas acesas. E pediu para o céu estrelado: – Será que alguém pode ajudar meu amigo? Ele tá tão triste… E então uma estrela cadente passou, riscando o céu escuro de um lado a outro. João soube pela avó que estrelas cadentes realizam desejos. Ele sabia outras coisas a respeito delas: nas aulas de Ciências, aprendeu que

20


também se chamavam meteoros. São pedrinhas do tamanho de uma uva ou até maiores que um melão que giram ao redor do Sol… Ops! Fiquei tão empolgado contando a história que acabei me distraindo… São pedrinhas que giram ao meu redor e que às vezes penetram na atmosfera da Terra e logo se desintegram, formando um caminho de luz. Mas o que João queria mesmo era que a avó estivesse certa e que a estrela-que-não-era-estrela cuidasse do amigo Pedro. Foi aí que aconteceu algo que só acontece quando a gente acredita mesmo.





A Lua e eu sempre arranjamos um tempinho para tomar chá e re-

passar as novidades quando ela aparece no céu e eu vou embora (ou quando ela vai embora e eu apareço). Montamos uma mesa no céu com chás de várias cores, biscoitos de polvilho (para ela) e bolinhos de chuva (para mim). Dessa vez, uma estrela cadente deste tamaninho surgiu à nossa frente. Puxamos uma cadeira para ela. Seu nome era Ermenegilda. A avó de João estava certíssima: a estrela cadente ouviu o pedido do menino e faria o possível para realizá-lo. Por isso, veio até nós para criarmos um plano juntos. E assim fizemos. – Excelente plano! – exclamou Ermenegilda, já no fim da reunião. – Também achei. Vou falar com o Pedro assim que eu nascer na Rússia – disse a elas. – Então se prepare, porque eu já estou indo embora! – avisou a Lua. – Pode deixar. E você, Ermenegilda, o que pretende fazer hoje? – perguntei. – Ah, estou tão cansada. Entrar na atmosfera me deu uma baita dor nas costas. Acho que vou descansar o esqueleto mais um bocado. – Melhoras, Ermenegilda. Até mais tarde, Sol – disse a Lua. A Lua arrumou a trouxa e deixou o céu todinho para mim. Quando nasci no horizonte de Moscou, a primeira coisa que meus raios fizeram foi encontrar a janela do quarto de Pedro. Peguei uma pedra bem pequena e arremessei de leve contra o vidro para despertá-lo. Mas ele dormia que nem outra pedra e parecia que só ia acordar se eu fizesse uma vitamina de abacate com o liquidificador colado em seu ouvido. Continuei jogando pedrinhas. Na décima segunda vez, ele acordou. Eu piscando amarelinho no céu, ele olhando para mim. – Ah, o Sol voltou! – disse Pedro, os olhos acesos de felicidade. – Voltei. – Quem foi que disse isso? – Euzinho. – Eu quem? – O Sol.

25


– O Sol? – disse Pedro, não acreditando nem por um segundo que eu diria aquilo ou qualquer outra coisa. – O próprio. – E você fala? – Tenho essa habilidade, mas não a uso muito. A última vez foi em 1879, quando dei parabéns pessoalmente a Thomas Edison por ter aperfeiçoado a lâmpada elétrica. – E por que você tá falando comigo? Eu sou importante e não sei? – Todo mundo é importante, Pedro. Ele ficou quieto, só me olhando. Então eu disse: – Tenho uma proposta irrecusável para você. – Qual? – Um lugar. – Que lugar? – Um lugar onde as histórias podem continuar. – E onde é que ele fica? – Você tem certeza de que não sabe? E então deixei à beira de sua cama um envelope com instruções escritas numa folha de papel-manteiga (não queima nem derrete), um bilhete de viagem e uma balinha de gengibre (minha preferida). Depois, fui embora da janela dele, porque eu tinha um montão de neve para derreter e já estava atrasado.

Nasci no Brasil pouco depois das 6 da manhã. Encontrei a janela de João aberta e deixei uma carta em cima da mesa de cabeceira. Manoel estava na beirada da cama e deu um miado bem alto quando viu o envelope voando. João acordou na mesma hora. – O que foi, Manoel? Acabou a comida? Foi quando ele notou o envelope. Abriu-o e começou a leitura:

26


Bom dia, senhor João, É com muito prazer que informamos que seu pedido para a estrela cadente de nome Ermenegilda Pascoal, inscrita no Registro das Coisas Solares sob o número 220386190490, foi ouvido ontem às 21h52 e será atendido em breve. No entanto, pedimos sua colaboração. Leve esta carta até a estação de barcas localizada no número 12 da Travessa dos Poetas de Calçada. Se o senhor porventura se perder e pedir informações para os donos das bancas de jornal no meio do caminho e eles lhe disserem que jamais ouviram falar desse lugar, não se preocupe: ele de fato não existe (menos para o senhor, é claro). Dará tudo certo, basta consultar o mapa desenhado no verso. Hoje, às 7h15 – não se atrase! –, partirá uma barca amarela. O senhor deve embarcar nela usando o bilhete de viagem contido no envelope (também há um bilhete especial para gatinhos de estimação). Leve um pacote de comida para o Manoel, além de água e um lanche para o senhor. Não precisa levar nem um tostão. Vista roupas leves, mas, por via das dúvidas, leve um casaquinho. Não se preocupe com seus pais. Caso seja necessário, eles serão avisados de que o senhor está envolvido numa expedição especial. O Departamento das Coisas Solares agradece a preferência e lhe deseja um dia esplêndido. Saudações calorosas, Sol


“Vovó tinha mesmo razão!”, pensou João, olhando para o céu. Ele conferiu o relógio: faltava menos de uma hora. Preparou a mochila (que ainda tinha dois livros da escola), apanhou o Manoel (que tomava sol de barriga para cima perto da janela) e chamou o elevador (que custou uma eternidade para chegar). – Tchau, mãe. Tchau, pai – murmurou para si mesmo antes de fechar a porta, às 7 horas em ponto.

Pedro observava a paisagem pela janela do trem no qual embarcou minutos antes. Bosques de pinheiros, colinas onduladas, cidadezinhas russas, tudo com um lençol branco de neve por cima. Para os que estavam do lado de fora, o trem parecia uma ventania. As pessoas tentavam acompanhá-lo com os olhos, mas não conseguiam e então achavam que tinham imaginado tudo. Pedro estava tão distraído que não notou um senhor baixinho entrando no vagão com uma caneca de chocolate quente, um presunto-quente crocante e um livro com a história do trem para ele. Chamava-se Trem Tolstói e ligava Moscou a Istambul, na Turquia. Pedro era o primeiro passageiro que o trem recebia naquele ano. Na carta que escrevi para Pedro constava todo o trajeto, tim-tim por tim-tim. Assim que ele desembarcasse do Trem Tolstói, pegaria um barco a vela para a Cidade do Cabo, que fica lá na ponta da África. Nos arredores da cidade está o Cabo da Boa Esperança, onde dois oceanos, o Atlântico e o Índico, se encontram. (Os livros de Geografia dizem que o encontro dos oceanos acontece no Cabo das Agulhas, mas não é assim que eu vejo daqui de cima...) Vamos fazer uma pequena pausa. Eu sei que esse plano parece mirabolantíssimo e espero que você tenha um mapa-múndi ou um globo terrestre por perto para se situar. A Lua, como você sabe ou vai saber neste segundo, regula as marés, e sua base de operações fica na Cidade do Cabo, no lugar em que os dois oceanos se encontram. Há várias sondas submarinas, detectores de maremotos e outras máquinas ultramodernas por lá. A Lua também lidera um exército

28


de baleias-azuis, polvos gigantes e cavalos-marinhos capaz de puxar qualquer barquinho com uma força espetacular. Voltando à nossa história: a viagem de Pedro acabou num instante, assim que ele terminou o chocolate quente, o presunto-quente e o livro sobre o trem. Antes de descer do vagão, sentiu vontade de agradecer, mas não havia ninguém por perto. O porto ficava bem à frente da estação de trem e um barco a vela esperava Pedro. O menino releu um trecho da carta que tinha em mãos:

Não se preocupe: o barco será guiado pela Lua. Ela vai criar um caminho especial para ele deslizar rápido como uma flecha até o destino. Entregue o bilhete de viagem ao senhor sentado no cais.

Pois foi o que ele fez. – Boa viagem, marujo – disse o senhor, com um cachimbo no canto da boca. – Obrigado, capitão – respondeu Pedro. Ele entrou no barco e logo sumiu de vista. Eu, lá de cima, vi uma grande correnteza na superfície do oceano e imaginei ser por ali que o exército submarino da Lua carregava Pedro, toda a felicidade e a tristeza dele.

Dois senhores jogavam xadrez à beira-mar quando João chegou com o Manoel no colo. – Com licença, mas aqui é o número 12 da Travessa dos Poetas de Calçada? – perguntou o menino.

29


– Você se chama João? – disse o velhinho que jogava com as peças brancas. – E esse gato se chama Manoel? – disse o velhinho que jogava com as pretas. – Isso mesmo. – Vocês estão com seus bilhetes? – disse o velhinho das peças brancas. – Estamos – respondeu João, entregando a eles os bilhetes. – Obrigado e boa viagem! – disse o velhinho das peças pretas. – E vocês sabem me dizer pra onde é que eu vou? – Para a Cidade do Cabo, na África do Sul – responderam os dois ao mesmíssimo tempo. João era um aventureiro de verdade, por isso nem pestanejou: embarcou depressa na barca amarela, que era da cor do Manoel. O gato, mais preguiçoso e caseiro que o menino, não estava muito feliz. Tenho certeza de que preferiria mil vezes estar em casa, tomando o banho de sol que eu tanto adorava dar. Ao longo da viagem, João admirou a beleza do mar. A água estava cristalina e a barca deslizava com perfeição, sem fazer espuma. Eu me esforcei ao máximo para iluminar até o assoalho do oceano, então João pôde ver as florestas de corais, os jardins de anêmonas, os cardumes, as lulas e as lagostas. As coisas do mar trocavam cores entre si: um peixe azul brilhava segundos

30


depois na cor alaranjada de uma estrela-do-mar; os bancos de areia se esverdeavam quando uma algazarra de algas passava. Manoel, a essa altura, estava salivando de tanto ver peixe. João abriu o pacotinho de comida para ele; o gato resmungou, mas comeu um bocado. Depois de água, água, água salgada a perder de vista, João notou um pedaço de terra mais à frente: aos poucos, veio até ele a imagem de uma montanha imensa e plana no topo, como uma estrada nas nuvens, como uma mesa no céu. Seu nome era justamente Montanha da Mesa. O Cabo da Boa Esperança ficava mais ao sul da cidade, então a barca percorreu a costa até lá. Um aviso sonoro ecoou: “Atenção, passageiros! Estamos nos aproximando da estação. Uma manhã ensolarada de verão nos aguarda na bela Cidade do Cabo. Todos os passageiros devem desembarcar e se dirigir ao farol no alto da montanha. Para chegar lá, é necessário seguir a Estradinha do Farol até o fim”. – É nossa primeira vez fora do Brasil, Manoel – disse orgulhoso, com o gato no ombro. – Miau – miou Manoel.

31


O barco a vela de Pedro tinha acabado de atracar. Um oficial do Departamento de Imigração, vestindo um uniforme cinza e um quepe azul, o aguardava. – Esqueci meu passaporte! – disse Pedro, preocupadíssimo em ter de voltar naquele mesmo instante para casa. – Não é necessário, porque aqui não há fronteiras. Qual é o motivo da sua visita? – Vim visitar um lugar onde as histórias podem continuar. Foi o que me falaram… – Quem falou? – Meu agente de viagens, o Sol. – Certo. E você sabe para onde vai? – Não. Ainda não sei onde fica esse lugar. Você sabe? O oficial ficou em silêncio por um bom tempo. – Você está vendo aquele farol lá em cima? – prosseguiu, apontando para a torre listrada de vermelho e branco. – Tô. – Vá até lá. Pedro agradeceu e se pôs a caminho.

João estava quase chegando. Andava pela Estradinha do Farol, de cascalho, apinhada de girassóis muito amarelos e de árvores muito verdes ao redor. Os girassóis giravam como cata-ventos e as árvores eram tão altas que pareciam arranhar o céu. Borboletas coloriam o vento e Manoel ia atrás delas. Já no topo, João não avistou vivalma por ali. Lá embaixo, à sua esquerda, havia uma praia bonita, cheia de pedras arredondadas e de pinguins pequeninos. Foi então que viu um pontinho andando pela Estradinha do Farol. É claro que ele soube na mesma hora quem era. – Pedro! – gritou João, acenando com as duas mãos.

32


– João! – berrou Pedro lá de baixo. Pedro correu o mais rápido que pôde e chegou lá em cima todo esbaforido, com o cabelo bem bagunçado. – O que você tá fazendo aqui? – perguntou Pedro, quase sem acreditar e ao mesmo tempo acreditando em tudo. – Eu recebi uma carta e aceitei o convite! – Eu também! As borboletas ficaram aliviadas quando Manoel foi cumprimentar Pedro, dando várias cabeçadinhas nos joelhos dele. – Que saudade de vocês! – disse Pedro, e era verdade mesmo. João e Pedro falaram de mim com carinho. Também fizeram elogios à generosidade da estrela cadente e ao talento da Lua para a navegação. Deitados na grama, cobriram os olhos e acenaram para cima por vários minutos. João estendeu seu casaco no gramado e tirou da mochila um pacote de biscoito e o restinho da comida do Manoel. Os três fizeram um piquenique ali mesmo. Conversaram sobre a Rússia e o Brasil, sobre o frio e o calor, sobre as férias de um e as férias do outro. Depois, desceram a Estradinha do Farol e foram à praia. Tiraram os sapatos e andaram na areia, que estava assim de pinguins. Manoel preferiu tomar sol em cima de uma pedra. Por um longo instante ficaram em silêncio, os olhos passeando livres no mar. Foi aí que eu entendi que, mesmo distante, João ajudaria Pedro de todas as formas que uma pessoa pode ajudar outra, e que Pedro faria o mesmo por João. Os meninos cresceram, eu sabia, eu sentia. Os meninos se encheram de luz. Pendurado no céu azul, sonhei coisas bonitas para eles, dei todo o tempo do mundo para eles serem quem eram. – Eu volto – disse Pedro. – Um dia. Acho que não vai demorar. – Também acho. Mas todo o tempo do mundo não era tanto tempo assim, porque os alto-falantes do farol logo berraram: “Atenção! A barca amarela com destino ao Brasil e o barco a vela com destino à Turquia partem em 10 minutos”.

33



– Acho que é com a gente mesmo, viu? – disse João. – Que tal esperar a próxima barca e o próximo barco? E então o aviso soou de novo: “O serviço de viagens será interrompido por tempo indeterminado após as partidas de hoje. O embarque é obrigatório. Sim, estou falando com os três. Vocês têm 9 minutos”. – É, parece que não tem jeito – disse Pedro, olhando ao redor. Aquele era um lugar que lembrava tanto o Brasil: tão verde, amarelo e azul. Será que Pedro conseguiria fazer a Rússia se parecer um pouquinho com o Brasil também? Eu torcia muito para isso acontecer. Pedro, João e Manoel chegaram ao começo da estradinha. A brisa fazia carinho em todas as coisas. – Eu escrevi uma carta pra você naquele dia em que você ligou e eu não estava – disse João. – Tomara que chegue rápido. – Pode deixar que eu respondo. João escolheu duas pedrinhas da estrada de cascalho. Guardou uma na mochila e deu a outra para Pedro. – Fica com ela de lembrança. Pedro pegou o Manoel no colo e ficou com os olhos cheios d’água. – Não sei por que eu tô chorando se eu tô feliz. – É difícil entender às vezes, né? Pedro fez carinho entre as orelhinhas do Manoel, onde o gato mais gostava. João e Pedro se abraçaram e então cada um rumou para sua estação. Uma era banhada pelo Oceano Atlântico, a outra, pelo Oceano Índico.

O oficial do Departamento de Imigração agora vestia uma roupa bem alegre, toda amarela, e em vez do quepe trazia na cabeça um chapéu de palha. – Gostou do passeio? – Adorei! Foi bom rever meus amigos. – Que joia! – disse o oficial. – Agora só preciso que você passe por este Detector de Sentimentos Negativos.

35


– Preciso tirar meu relógio do pulso e minhas moedas do bolso? – Não, não é um detector de metais. A máquina verifica apenas se você traz sentimentos negativos no coração. É proibido sair da Cidade do Cabo com culpa, angústia, raiva ou desesperança. – Mas eu me sinto muito feliz! – Vamos ver o que o detector vai dizer… Pedro passou pela máquina e ela não deu um pio. Ele parecia mesmo muito contente. Antes do embarque, o oficial perguntou: – Você afinal descobriu qual é o lugar onde as histórias podem continuar? – Será que é só aqui? – Aqui e em qualquer outro lugar. As histórias começam e vivem dentro de você. Pedro abriu um sorriso como se abre um livro – então embarcou.

João e Manoel enfim chegaram em casa. João abriu a porta da sala devagarinho e foi até a cozinha na ponta dos pés para tomar água. Viu as horas no relógio da cozinha: 7 da manhã em ponto. Ele não entendeu patavina. Achou que o relógio estivesse quebrado, mas o do quarto também marcava 7 horas. E o do pulso! Abriu a mochila e ficou aliviado quando encontrou a pedrinha da estrada de cascalho. A mãe, bastante sonolenta, surgiu à porta. – Mas já acordou, filho? Tá muito cedo! Durma mais um pouco. João foi correndo dar um abraço nela. – O que houve, meu amor? – É só saudade, mãe. Fiquei ali, na janela, olhando feito bobo para os dois. Enquanto isso, Manoel tomava um banho de gato para tirar da pelagem todo o sal do mar.

36


Pedro também chegou em casa no instante exato em que tinha saído: meio-dia. A viagem de trem de volta à Rússia foi ainda melhor do que a de ida. Aquele mesmo senhor baixinho lhe trouxe outra caneca de chocolate quente, outro presunto-quente e outro livro, um cheio de histórias e curiosidades sobre Moscou. Pedro foi direto para o quarto. Antes de chegar lá, encontrou o pai pendurando um quadro no corredor. – Pai, eu quero conhecer Moscou! Vamos passear pela cidade hoje? Não tá tão frio! – Nossa! E de onde veio esse entusiasmo? – Veio de um lugar… – Que lugar? Pedro o abraçou. O pai apertou mais o abraço. – Adivinha só o que chegou pra você agorinha! – disse o pai. – Uma carta? – Isso mesmo.

A sensação de dever cumprido sempre esteve presente na minha vida. Levo luz a quem devo iluminar. Levo calor a quem devo aquecer. Mas poucas coisas me dão mais orgulho do que João e Pedro se referindo a mim como “nosso amigo Sol”. Sempre que o calendário marca 12 de janeiro – o dia da visita à Cidade do Cabo –, os meninos me presenteiam, cada um, com um girassol, que acompanha a minha trajetória no céu, do nascente ao poente. Eles deixam a flor na beirada da janela, e eu agradeço a gentileza transformando as pétalas amarelas em douradas.

37




Vamos falar sobre este livro? 1

Um belo dia... Você se descobre leitor: reconhece as letras, é capaz de decifrar o que está escrito, atribui significado as palavras e textos. Com isso, descobre uma nova forma de estar no mundo e interagir com ele. Por meio da leitura, adquirimos novos conhecimentos, nos informamos, ampliamos nosso vocabulário e nossa capacidade de reflexão, conhecemos outras culturas, recebemos mensagens, nos divertimos. Provavelmente você já ouviu falar que existem outras formas de leitura, não é mesmo? Somos capazes de ler gestos, expressões faciais e corporais, obras de arte, interpretamos tons de voz, olhares, sentimentos… e nesse imenso universo de leituras, temos ainda a literatura, que nos convida a conhecer outros lugares, reais e imaginários, diferentes pessoas, histórias de Seção elaborada por Tatiane Tanaka, mestre em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pedagoga graduada pela mesma instituição. Atua como professora de Educação Infantil e Ensino Fundamental I desde 1998 na rede privada da cidade de São Paulo, e atualmente também elabora conteúdos didáticos e realiza assessoria pedagógica.

1

40


vida e personagens diversos. Esse contato com variadas histórias e culturas é extremamente rico porque estimula a imaginação e amplia nossos repertórios linguísticos e pessoais acerca das pessoas e do mundo à nossa volta. A partir dessas interações, podemos também compreender melhor a nós mesmos e a realidade que nos cerca, atribuindo-lhes significados. Sem contar o imenso prazer e os momentos de alegria e descontração que a literatura pode nos proporcionar. Por vezes, somos embalados por sons e ritmos de poesias. E quem nunca se viu diante de um livro cuja história é tão cativante que se torna quase impossível deixá-la? Esperamos que você também tenha mergulhado neste maravilhoso universo da literatura com a obra Um belo dia…. Já parou para imaginar quantas coisas podem acontecer em um belo dia? E mesmo em outros não tão belos assim? Todos os dias vivemos diferentes histórias e experiências que podem ser contadas ou não. E como seria se um observador desconhecido pudesse acompanhar todas as suas vivências e as contasse em um livro? Um belo dia… trata, um pouco, de cada um desses aspectos. Antes de conversarmos mais sobre ele, nada mais justo que conhecer um pouquinho sobre os responsáveis por essa deliciosa viagem: Guilherme Semionato e Veridiana Scarpelli.


Guilherme Semionato, o autor

Arquivo pessoal

Nasceu no Rio de Janeiro em 1986. Ele escreve livros para crianças, jovens e, segundo suas próprias palavras, para “quem mais quiser ler”. Guilherme se formou em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem especialização em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Seu contato com o mundo editorial começou em 2007, quando se tornou estagiário no departamento de produção de uma editora. Depois disso, trabalhou como revisor e tradutor de livros. Em 2015, a dedicação às obras da literatura para crianças e jovens ganhou mais espaço em sua vida. Hoje o autor tem contos, novelas e romances escritos para leitores de diferentes idades. Alguns dos títulos foram finalistas e ganhadores de prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Barco a Vapor, da Fundação SM, em 2016 e 2017, e o Prémio Lusofonia, em Portugal, em 2018. Além do Brasil, possui livros publicados em Portugal, México e Inglaterra.

42


Veridiana Scarpelli, a ilustradora

Arquivo pessoal

Nasceu e mora em São Paulo. Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou com projetos de móveis e objetos, mas afirma que foi em 2007 que se encontrou profissionalmente, trabalhando com ilustrações para revistas e jornais. Em 2012, teve sua primeira história publicada como autora. Trata-se de um livro sem texto, somente com ilustrações que surgiram a partir de um portfólio que Veridiana fez para apresentar sua produção a editoras. Em uma delas, gostaram tanto de seu trabalho que quiseram publicar uma seleção de suas ilustrações em um livro autoral. Veridiana conta que para criar suas imagens usa diferentes recursos, como computador, tablet e programas de edição e criação de imagens, desenhando como se fosse no papel. Quando desenha à mão, prefere canetinhas e nanquim, mas também já fez uso de outras técnicas, como colagem, carimbo e lápis de cor. Três dos livros que ilustrou foram finalistas do Prêmio Jabuti, em 2014, 2017 e 2018.

43


Uma história para contar Quem nunca teve uma história para contar? Quem não se imaginou vivendo grandes aventuras com personagens extraordinários e em lugares fantásticos? Nada melhor do que perder a noção do tempo e do espaço quando se está imerso em batalhas, missões ou vivendo um grande amor, tudo através das páginas de um bom livro. Contar histórias faz parte da comunicação humana há muito tempo. Contamos histórias para informar, para ensinar ou para entreter. Desde muito cedo ouvimos muitas e diferentes histórias: de família, do seu nascimento e da sua infância, de fazer dormir, de lugares e pessoas... Os textos que contam uma história, real ou fictícia, são conhecidos como textos narrativos. Estes, também chamados de prosa narrativa, não trazem rima e estrutura métrica, como geralmente acontece nos textos em verso, ou seja, aqueles em formato de poema. Eles narram acontecimentos que podem ou não ser inspirados na vida real, acontecem em um tempo e espaço determinados e são vividos por personagens que sentem, agem, reagem e estão envolvidos na história até o seu desfecho. Cada personagem é construído ao longo do enredo e possui papel fundamental no envolvimento do leitor na narrativa. E você sabia que existem diferentes formas de narrar histórias? Um belo dia… nos conta uma história sobre amizade e saudade, e para isso se utiliza das características narrativas de um gênero textual específico: o conto. Que tal conhecer um pouquinho sobre ele? O conto é uma história curta, sobretudo quando comparada ao romance, que costuma ser bem mais longo. O conto também é diferente de um romance

44


porque narra uma história mais curta, com menos detalhes, menos personagens, e um tempo e espaço mais limitados. O gênero textual conto, assim como outros tipos de narrativa, apresenta uma estrutura bem definida, marcada por uma introdução, pelo desenvolvimento da trama, pelo clímax e pelo desfecho. Na introdução ou apresentação, que está localizada logo no começo da narrativa, somos introduzidos aos personagens e aos tempos e espaços nos quais vão se passar os acontecimentos da história. Nos contos, normalmente, não há muita variação nos espaços em que a história acontece. No entanto, em Um belo dia…, parte do conflito vivido se dá, justamente, porque a história se passa em dois espaços bem distantes um do outro: São Paulo e Moscou. Após a introdução, ocorrem ações que modificam aquilo que foi apresentado no início. Surge, então, o conflito, a situação-problema da trama, aquilo que levará os personagens a agir de modo a buscar uma resolução. No livro que você acabou de ler, é quando os amigos João e Pedro são separados pela distância. O desenrolar da história a partir do conflito é chamado de desenvolvimento. Em seguida, surge o momento de maior tensão da narrativa, chamado de clímax. Neste momento, as ações dos personagens definirão o rumo da história. Você consegue identificar esse momento em Um belo dia...? O desfecho traz o encerramento da história, que pode ou não ter o conflito resolvido, a depender do tipo de conto. Como a história de João e Pedro terminou?

Seres mágicos que falam? A história de João e Pedro, narrada neste conto, poderia ser uma história qualquer, mas tem uma característica que a torna especial. Sabe qual é? A fantasia. Um conto fantástico traz uma narrativa com cenários e personagens comuns, próprios do cotidiano, que são então expostos a uma situação que não poderia acontecer na vida real, um momento mágico ou uma reviravolta impossível ou

45


ainda um “absurdo”. É justamente essa situação fantástica que transforma o conto em algo mais. Como leitores, ficamos sempre com a dúvida: terá sido um sonho? Ou será que ocorreu de verdade na vida desses personagens? Você consegue identificar todos os elementos fantásticos no livro Um belo dia...? Temos o Sol, cheio de personalidade e vontades, temos uma viagem de um continente a outro feita em questão de minutos, temos o detector de sentimentos negativos, entre tantos outros. No entanto, só porque um conto é fantástico, não significa que ele está além do nosso alcance. Cada história nos apresenta experiências e emoções, nos ensina coisas novas ou nos faz refletir sobre algo importante, como nossas vontades pessoais ou como resolver um conflito. É por meio desse aprendizado que passamos por momentos de autodescoberta e construímos a nossa identidade, ou seja, quem nós somos.

Amizade e saudade... Um belo dia... narra a história de dois garotos que se conhecem em um belo dia de sol, e assim, sem muito esforço ou demora, se tornam grandes amigos. Tudo estaria bem se não fosse por um acontecimento que mudaria tudo: a família de Pedro iria se mudar para outro país. Pior, outro continente! Claro que João e Pedro continuam amigos, mas a distância dificulta as coisas, não é mesmo? Por isso, o resultado dessa separação é a saudade. Você sabia que a saudade está relacionada com as recordações de uma coisa ou pessoa que não está presente fisicamente, mas que habita os pensamentos e o coração? As aventuras desses dois amigos são narradas por um personagem inusitado, que também faz parte da história: o Sol. Ele é narrador da história, ou seja, é ele quem nos conta a história, mas também é personagem. Por isso, podemos chamá-lo de narrador-personagem. O Sol,

46


com a ajuda de uma parceira tão surpreendente quanto ele, auxilia os meninos a vencer esse grande desafio da distância e solidificar ainda mais a amizade deles. Afinal, quem vê distância não vê coração, não é mesmo? Esta é uma história sobre uma bela amizade que nasce ao acaso e cresce nas realizações e na simplicidade da vida cotidiana: compartilhar jogos e brincadeiras, ir ao cinema, ao teatro e estudar juntos. Você, querido leitor, certamente já vivenciou uma grande amizade. Deve se lembrar de que não há uma receita perfeita para fazer amigos e que a amizade verdadeira brota no coração e é cultivada no dia a dia, nas relações que se estabelecem entre amigos. E a saudade? O que fazer? Como encontrar um novo sentido para encarar sozinho aquilo que se fazia junto com alguém? Como viver longe de alguém tão próximo do coração? No começo, lidar com a saudade foi bastante difícil para João e Pedro. Uma enorme tristeza pairou sobre os seus dias, como uma nuvem escura em dia de sol. João ficou animado por seu amigo, e ficava atento a cada momento que poderia compartilhar com ele: um telefonema, uma carta. Pedro, em um lugar tão diferente do que ele conhecia, não estava com saudades apenas de seu amigo; estava também com saudade da sua cidade, da sua casa, do seu lar. E você? Que formas encontrou ou encontra para suavizar a saudade? Este livro lida com tudo isso, mas não apenas por meio do texto. As belíssimas ilustrações criadas por Veridiana Scarpelli tornam a história de João e Pedro ainda mais real. Sentimos o Sol, que deixa todas as cores fortes e intensas. Vemos as diferenças entre as duas cidades, São Paulo e Moscou, uma bem quente, até no inverno, e outra bem fria, até no verão. Observamos os sentimentos de alegria e tristeza no rosto dos dois amigos. Exploramos mapas, lugares, cenários, despedidas e reencontros... Afinal, as imagens não trazem palavras, mas elas também falam e, juntas com o texto, contam uma história ainda mais rica e interessante! 47


Sua história Esta história é, também, uma história sobre as histórias e a possibilidade de criá-las e apropriar-se delas. Na introdução da obra, o narrador convidou você a se sentir parte dessa história anunciando: “Há muitas maneiras de esta história ser sua” (p. 7). E assim, de história em história, convidamos você a fazer sua história também. Ou, quem sabe, ainda fazer outras histórias inspiradas, ou não, nesta aqui. Afinal, como afirma um dos personagens dessa viagem na qual você embarcou, as histórias podem continuar em qualquer lugar, elas “começam e vivem dentro de você” (p. 36). Boas histórias!



GUILHERME SEMIONATO

ilustrações de

VERIDIANA SCARPELLI

UM BELO DIA…

Sabe aquela pessoa que dá vontade de ter por perto a vida toda? Essa mágica que transforma um desconhecido num grande amigo aconteceu com João e Pedro. Mais forte que a distância, a amizade dos meninos atravessa três continentes, dois oceanos e uma saudade sem tamanho. Por sorte, o Sol acompanhou tudo lá de cima e escreveu este livro para você.

GUILHERME SEMIONATO

Livro do Professor


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.