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PNLD 2023 | O3 - TRÊS HISTÓRIAS DE ENCANTO - Editora Akpalô

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Três histórias de encanto

Três histórias de encanto 05 63 P2 30 30 20 00 00 0

A literatura está cheia de histórias de fantasia e contos de encanto. Mágica, mistério e imaginação caminham de mãos dadas para criar narrativas inesquecíveis. É justamente essa a principal qualidade deste livro. Uma casa-amiga que silenciosamente oferece conforto; um encontro inesperado e uma forma bem diferente de se livrar das preocupações do mundo e da vida; um pássaro majestoso e muito misterioso que aparece e desaparece sem deixar rastros… Três histórias que dão muito gosto de ler e contar. Acompanhe Gregório, Nina e Antero em suas singulares jornadas de descobrimento, magia e encanto!



Três histórias de encanto



SONIA ROSA

Três histórias de encanto ilustrações de Rubem Filho


© Akpalô, 2021 Todos os direitos reservados Texto © Sonia Rosa Ilustrações © Rubem Filho Direção-geral: Vicente Tortamano Avanso Direção editorial: Felipe Ramos Poletti Gerência editorial: Gilsandro Vieira Sales Gerência editorial de produção e design: Ulisses Pires Edição: Paulo Fuzinelli Assistência editorial: Aline Sá Martins Apoio editorial: Maria Carolina Rodrigues Supervisão de design: Andrea Melo Edição de arte: Daniela Capezzuti Design gráfico: Ana Matsusaki Supervisão de revisão: Elaine Silva Revisão: Martin Gonçalves Supervisão de iconografia: Léo Burgos Pesquisa iconográfica: Daniel Andrade e Priscila Ferraz Supervisão de controle de processos editoriais: Roseli Said Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rosa, Sonia Três histórias de encanto / Sonia Rosa ; ilustrações de Rubem Filho. -- 2. ed. -São Paulo : Akpalô Editora, 2021. ISBN 978-65-5907-086-2 (aluno) ISBN 978-65-5907-087-9 (professor) 1. Literatura infantojuvenil I. Filho, Rubem. II. Título. 21-90671

CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 028.5 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

2a edição, 2021

Rua Conselheiro Nébias, 887 São Paulo, SP – CEP: 01203-001 Fone: +55 11 3226-0211


Para meu mestre Francisco Gregório Filho,

minha amiga Maria Gabriela Macedo Mendonça

e meu primo Antero Henrique Galo Fernandes.

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Gregório Naquele começo de ano, muitas coisas boas e ruins aconteceram na vida de Gregório. Apesar da tristeza de precisar viver sozinho com sua mãe, depois da separação dos pais, ele sabia que podia contar, a qualquer momento, com sua avó, seus tios e seus amigos. O menino e sua mãe foram morar em um prédio numa rua muito movimentada na região mais agitada da cidade. Esta sua nova casa ficava a quase duas horas de distância da sua casa antiga. Nos fins de semana, eles retornavam ao seu antigo bairro para ficar pertinho das pessoas queridas, principalmente da sua avó. E também porque ele e sua mãe precisavam de descanso e lazer. Gregório era o xodó da sua avó. Era difícil para o menino ficar longe dos seus chamegos durante toda a semana. Isso o deixava muito triste. Ela o enchia de mimos o tempo todo. Era a única pessoa do mundo que realmente fazia a sua comida favorita e do jeito especial que só mesmo uma avó sabe fazer. Sua avó era uma costureira de mão cheia, como se costuma dizer. Costurava desde mocinha para fora e para a família também. Mas nunca trabalhava nos fins de semana. Dizia que sábados e domingos são dias para se dedicar exclusivamente à família. Todas as bermudas de Gregório tinham sido feitas por ela. E todo mundo admirava a beleza daquelas bermudas.

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Desde que nasceu, morou na casa ao lado da dela. E, agora, muita coisa havia mudado em sua vida. A cada final de semana, um sabor diferente de bolo o esperava: bolo de chocolate, bolo de banana ou bolo de cenoura. Era o amor da vovó em formato de bolos… A mudança de casa fez com que sua mãe ficasse mais perto do seu trabalho e o menino mais perto da escola nova. Ele havia acabado de fazer aniversário e estava na hora de começar a ler e a escrever. Estava orgulhoso porque já sabia o próprio nome e algumas outras coisas. Por causa da fumaça e do barulho dos carros, o menino passava um bom tempo com o nariz amassado no vidro da janela fechada olhando a vida apressada lá de fora. Desde o tempo da outra casa, ele adorava olhar a vida pela janela. E agora, naquele apartamento, estava aprendendo a olhar a vida pelo vidro de uma janela fechada. Aquele lugar era realmente muito diferente… Pelo vidro da janela dava para ouvir a agitação de gente passando apressada, buzinas cantando, ambulantes gritando. Mas dentro do apartamento, ele ouvia apenas um enorme silêncio… No fundo, no fundo, o menino achava aquele apartamento mais parecido com um esconderijo. Era pequeno demais, só havia uma janela na frente, que vivia fechada e por onde entrava pouca luz. E era tão quente que os ventiladores precisavam ficar ligados o dia todo! Ainda bem que lá nos fundos havia uma área aberta que dava pra ele brincar sentindo o ventinho no cabelo. A mãe colocou, nesse lugar, uma rede boa de balançar para alegrar o seu filhinho. Essa área era o melhor lugar do apartamento e por isso vivia cheia de brinquedos espalhados pelo chão. Os vizinhos de Gregório eram pessoas sérias e caladas. Ninguém falava com ninguém, nem quando se encontravam no corredor.

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Nos elevadores as pessoas ficavam olhando para o chão ou para o teto. Mas nunca para quem estava ao lado. “Que coisa esquisita, será que eles têm vergonha de alguma coisa?”, pensava o menino. Ele nunca tinha visto o rosto dos vizinhos que moravam na porta ao lado. Sabia que eles tinham um bebê pequeno que chorava muito porque o som invadia o corredor e entrava no seu apartamento. Ele também não sabia o nome do menino da sua idade que morava no apartamento debaixo e que só usava roupa de time. Além disso, sua mãe havia recomendado que não ficasse falando com estranhos. Para ele, todos aqueles vizinhos eram muito, muito estranhos. Na sua outra casa, não. Lá era tudo bem diferente. Havia sempre uma grande animação! Os amigos, os vizinhos, os parentes estavam sempre por perto puxando conversa. As pessoas se visitavam bastante. Seus primos entravam pela porta gritando: – Vamos brincar, Gregório? E ele sempre estava livre para brincar. Ou na rua, ou no quintal de algum deles ali por perto. A padaria que ficava na esquina da praça era bem pertinho da sua casa. Todos os dias, às cinco da tarde, saía pão fresquinho. A fila da padaria às vezes dava volta no quarteirão. Lá era um ponto de encontro da vizinhança e todo mundo conhecia todo mundo. Na casa-esconderijo não havia pão de padaria. Só comprado em supermercado mesmo. Além de todas essas alegrias, nos finais de semana, ele ainda podia soltar as suas pipas à vontade e jogar bola até cansar. No seu prédio ele conhecia poucas crianças. E não brincava com nenhuma delas. Mas havia uma menina que pegava o mesmo ônibus escolar. Eles iam todos os dias sentados juntinhos.

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Ela estava trocando os dentes e usava duas trancinhas com laços de fita na ponta, tal qual duas borboletas que se agitavam enquanto a menina andava e falava. Era a menina mais bonita de todas. E sempre sorria pra ele. Um dia a menina de tranças o convidou para a sua festa de aniversário. Ele aceitou porque a festa aconteceria durante a semana. Ele sabia que os seus finais de semana eram dedicados à casa de sua avó. Foi uma festa animada, mas havia poucas crianças. Nesse dia, ele descobriu que por ali os meninos e as meninas eram poucos. Era difícil ter amigos por perto para brincar. Agora que já se conheciam mais, a menina de tranças e Gregório brincavam, de vez em quando, um na casa do outro. Mas só de vez em quando mesmo, porque a sua amiguinha era muito ocupada. Fazia aulas de balé, natação e inglês e quase nunca tinha tempo para nada, muito menos para ficar à toa ou brincar… O menino Gregório dizia pra todo mundo que, por ali, a sua melhor amiga mesmo era uma casa verde-cinza que ficava bem em frente ao seu edifício. Pode parecer estranho um menino ser amigo de uma casa. Mas ele dizia que ela era ótima em guardar segredos! Quantas vezes, olhando através do vidro da janela, Gregório lhe contava baixinho os seus sonhos e medos. Sua mãe, que compreendia tudo, achava essa amizade muito diferente e interessante. Coisa de criança mesmo! Por causa dessa história, ela passou a observar mais e também a gostar da “nova amiga” do seu filho. Era de fato uma casa muito simpática! E estava sempre ali, todos os dias, bem na sua frente. Nos dias de testes na escola, através do vidro da janela, Gregório sussurrava para sua amiga, pedindo que ela lhe desejasse sorte. Depois, o menino saía correndo para o seu ônibus, que buzinava lá embaixo.

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A sua amiga casa verde-cinza vivia espremida entre dois arranha-céus moderníssimos. Dava dó de ver a coitadinha sendo quase esmagada por aqueles dois prédios que pareciam dois monstros espelhados. Mas a casa verde-cinza parecia que não ligava para isso e ia tocando a sua vidinha sem pressa de futuro. Ao longo do dia, ela acendia e apagava as luzes, abria e fechava as portas e também as janelas. Afinal, não era uma casa abandonada. Ali moravam dois velhinhos, aparentemente muito simpáticos, que regavam o pequeno jardim da frente. Os dois andavam devagarzinho e estavam sempre juntos. Dava para perceber que, sentados em suas cadeiras de balanço, conversavam bastante. E quase sempre estavam de mãos dadas, como dois namorados apaixonados. O menino pensava que devia ser bom para os filhos deles saberem que os pais que viviam juntos há tanto tempo eram ainda tão felizes assim… O casal de velhinhos simpáticos cumprimentava as pessoas que passavam apressadas em frente ao portão da casa deles. Davam bom-dia e boa-tarde sempre com um sorriso. Gregório percebia com tristeza que poucas pessoas respondiam àquelas delicadezas, a maioria fingia que não estava nem ouvindo. O menino não entendia o porquê daquele comportamento estranho das pessoas do bairro. Achava aquilo uma grande falta de educação! Ele aprendeu com sua mãe e com sua avó que se deve responder aos cumprimentos e respeitar os mais velhos… Talvez porque tenha sempre estado perto de sua avó e de suas tias-avós, Gregório admirava os mais velhos. Adorava conversar com eles nas ruas e nos mercados. Cada dia que passava, o menino se envolvia mais e mais com a casa-amiga e com os seus moradores. Pelo menos uma vez por semana ele e sua mãe iam ao portão da casa conversar um pouquinho com o casal de velhinhos. Ela tinha uma voz baixinha. Ele tinha um vozeirão. Ele contou ao menino que foi cantor de

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ópera durante muito tempo. Ela era bailarina. Os dois juntos conheceram quase o mundo todo. Um dia resolveram se casar e, quando chegaram os filhos, não viajaram mais. Um dia sua mãe tirou uma foto do menino junto com os velhinhos no portão da casa deles. Foto bonita e que marcou o momento da paixão do menino pela casa e pelos moradores. Ele então mostrou, todo bobo, a foto para sua avó. Nesse dia, vovó contou muitas histórias sobre as casas em que já tinha morado. Ela tinha um coração cheinho de histórias para contar. Sua avó repetia sempre que “devemos aproveitar a vida e o tempo com alegria e coragem! E cada coisa tem o seu próprio tempo…” – dizia isso com lágrimas nos olhos. Contaram ao menino que, nos finais de semana, a sua casa-amiga ficava sempre em festa. Ela se enchia de barulho e crianças de vários tamanhos. Os velhinhos ficavam na maior felicidade! O menino gostou de saber que os moradores da sua casa-amiga não eram sozinhos no mundo. Eles tinham uma família que gostava deles e os protegia. Gregório tinha muito orgulho da casa verde-cinza, mas também muita preocupação com ela. Enquanto a admirava pela janela, pensava que era muito corajosa essa atitude de ser a única casa com jardim numa rua cheia de prédios. Aqueles velhinhos deveriam ter muita saudade dos tempos em que os seus vizinhos moravam em outras casas por ali. Deviam conhecer o vizinho da frente, o vizinho da casa da esquina, o vizinho da casa ao lado… Hoje com certeza a vizinhança estava muito diferente. O casal era testemunha daquele outro tempo. O coração deles, os seus olhos e as suas mãos estavam cheios dessas lembranças. Memórias sentidas e vividas. O menino às vezes ficava pensando, com ele mesmo, quem dera fosse um menino mágico e tivesse uma porção de “pó de

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pirlimpimpim”. Ele tiraria dali a sua amiga casa com seus velhinhos simpáticos na varanda, que balançavam em suas cadeiras, e os levaria para um outro lugar em que pudessem respirar melhor e não houvesse tantos edifícios espelhados impedindo o ar de passar. Ah! Quem dera. Um dia sua mãe recebeu um convite muito especial para visitar uma fazenda com seu amigo João. Ele já a havia convidado várias vezes. E dessa vez ela aceitou. Naquele fim de semana, o menino, sua mãe e o tio João viajaram de carro para conhecer o lugar e os seus encantamentos. Tio João foi dirigindo. Por causa de uma obra na estrada precisaram pegar um atalho e fazer um caminho mais longo. A estradinha era toda de terra batida. O carro ia fazendo zigue-zague e muita poeira. Eles ouviam música. Estavam felizes. O menino ia cantarolando e se admirando com a paisagem… A mãe ia toda contente ao seu lado no banco de trás. Lá do alto da estradinha dava pra ver muitas casas com quintais enormes. Muitos jardins floridos e árvores gigantescas. Algumas delas carregavam em seus galhos balanços e crianças. De repente, numa curva, o menino deu um grito. A mãe se assustou. O carro passava por um lugarejo onde todas as casas eram iguais. E uma era de frente para outra. Assim como numa vila. Todas tinham a cor verde-cinza, como se fossem irmãs gêmeas de “sua amiga”. Gregório mostrou emocionado para sua mãe a vila de casas. E, de repente, numa das casas, apareceram dois velhinhos sentados em suas cadeiras de balanço, de mãos dadas, vendo o tempo passar. Eles estavam rodeados de crianças. Na frente deles, um jardim em flor sorria de contentamento. Olhando assim, de longe, parecia uma pintura. Uma obra de arte. Um quadro vivo. Uma cena de filme!

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– Mãe! Olha ali! Como é que pode isso? São todas parecidas com minha amiga! A mãe concordou com aquelas palavras do menino e apertou forte a mão de seu filho. Os dois ficaram assim, rostos colados e mãos entrelaçadas. O carro continuou seguindo em frente. Pela estrada afora… Ele não falou mais nada. Ficou calado e observando o caminho novo que o carro continuava a fazer. O menino descobriu, por ele mesmo, que ali era o verdadeiro lugar de sua casa-amiga. E que existia um lugar mágico, perdido na poeira da estrada. Um lugar encantado em que ela poderia se sentir mais à vontade e mais livre. Gregório entendeu que aquela poeira que o carro fazia enquanto andava na estrada era como se fosse uma porção gigante do “pó de pirlimpimpim”. Gregório adorou o passeio. O Tio João era muito brincalhão e fez todas as vontades do menino. Ele ficou feliz de ver a alegria da mãe. Fazia muito tempo que não via sua mãe tão bonita e com os olhos tão brilhantes! No final daquele ano, Gregório recebeu uma boa notícia: iria passar as festas de fim de ano com o seu pai, que já não via há um tempão. Ele ficou muito feliz! Foi tão bom o reencontro de pai e filho que os dois ficaram juntos as férias inteiras… Somente depois do Carnaval o menino voltou para a sua mãe. Estava cheio de novidades pra contar. Ao chegar ao apartamento, o menino foi logo para a janela cumprimentar a sua amiga casa verde-cinza. O menino quase desmaiou de susto. A sua amiga não estava mais lá! – Mãe, o que aconteceu?! Cadê ela?! O que fizeram com a minha amiga?! – Calma, filho. Calma… Parece que… demoliram ela. Já tem mais de um mês. Pensei em lhe contar isso toda vez que nos falamos por telefone… Mas… não tive coragem… Fique tranquilo,

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os velhinhos foram indenizados. Estão morando com os filhos. Estão felizes porque estão juntos e perto dos netos e das pessoas que os amam. – Demoliram? Demoliram a minha amiga? Quem permitiu? Quem deixou acontecer uma coisa dessas? Gregório já ia começar a chorar quando de repente se lembrou daquele lugarejo cheio de casas verdes-cinza como a sua amiga. E então ele entendeu… A sua amiga não foi destruída para sempre. Ela deixou aquele lugar, que não era mais seu há muito tempo, e foi embora dali com seus velhinhos simpáticos, sentados na varanda, rodeados de flores e crianças. Sua amiga foi ser casa de verdade, respeitada e feliz em alguma cidadezinha do interior. Ela viajou para “sua terra” nas asas da imaginação de algum menino sonhador… E Gregório ainda lembrou das palavras de sua avó: “Cada coisa tem o seu próprio tempo.” A mãe ficou olhando seu filho calado e pensativo… O menino então, num repente, abriu a janela e deu uma careta feia para os dois monstros espelhados que agora “espremiam” uma grande obra cheia de homens e máquinas trabalhando no lugar em que a sua amiga casa verde-cinza existia. Gregório e sua mãe se abraçaram forte e silenciosamente. Ficaram assim um tempão. Quanta saudade! O sol entrou pela janela e iluminou aquele abraço…

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Nina Uma moça, não tão moça, todos os dias à tardinha, ia sentar-se numa pedra à beira do rio. E sempre ao cair da tarde, antes de a noite chegar. Fizesse sol ou fizesse chuva, ela visitava aquela pedra. Tinha sempre as mãos e os pés livres. Chegava de mansinho, despretensiosa, assim como quem não quer nada… Primeiro, sentava na pedra. Depois, lentamente, como que hipnotizada, olhava o “lá longe” até o seu olhar se perder na paisagem… Em seguida, balbuciava baixinho algumas palavras incompreensíveis, como se falasse consigo mesma. Depois, sem nenhuma pressa, ela prendia os seus vastos e longos cabelos bem no alto de sua cabeça, piscava algumas vezes e espirrava estranhamente. E era então que a coisa acontecia… A moça não se importava se havia gente por perto. Muitos diziam que aquele era um espetáculo imperdível e inesquecível. No entanto, poucos conseguiam realmente acompanhar toda a cena do começo ao fim. Algumas pessoas tentaram fotografar o momento mais importante daqueles gestos. Mas, estranhamente, nada de extraordinário

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saía nas fotos, a não ser uma moça, não tão moça, com vastos longos cabelos caídos nos ombros, sentada como uma estátua numa pedra à beira de um rio. Por ninguém saber ao certo o que acontecia ali naqueles finais de tarde à beira do rio, muitas histórias eram inventadas sobre ela. O povo dali criava perguntas para aquele comportamento intrigante da mais famosa e, ao mesmo tempo, desconhecida moça das redondezas. Onde ela morava? Com quem vivia? O que fazia do seu dia? Existia de verdade ou era uma aparição, uma assombração? Eram indagações que o vento levava e nunca voltava com respostas… O rio, que margeava a cidade como um abraço, com certeza sabia de tudo. E por mais que o barulho de suas águas, sempre vivas águas, contasse, do seu jeito, a todo mundo o segredo daquela moça, ninguém conseguia realmente compreender aquele mistério nem entender os reveladores murmúrios do rio. Os boatos se espalhavam pelo lugarejo. Era tudo pura imaginação, alguns diziam. Coisas de feitiçaria, acusavam outros. Um dia apareceu por ali uma menina muito corajosa. Nina era o nome dela. Passava férias na casa de sua tia. Era uma forasteira. Foi a única pessoa que chegou, realmente, perto da moça da beira do rio e conversou com ela. Ninguém acreditou. Mas deveriam. Porque todo mundo sabia que a menina Nina, minha gente, era bem enxerida mesmo. E quando cismava de tirar alguma coisa a limpo, não tinha jeito não. Era verão e o rio refrescava os corpos e as almas das gentes de todas as idades. Era uma delícia se refrescar naquelas águas cristalinas e sentir os peixinhos fazerem cócegas nos pés da gente… O sol já estava indo embora preguiçosamente e Nina viu os seus amigos e suas amigas saírem correndo bruscamente da

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água, deixando-a para trás. Logo, logo, a menina percebeu que era a tal moça misteriosa que estava se aproximando do rio. Todos morriam de medo dela. Ela, não. Quando avistaram a tal moça misteriosa chegando devagar, com aquele seu andar que mal tocava o chão, a correria foi geral. Teve gente que saiu de tal jeito que deixou suas roupas espalhadas pelas margens. Nina foi a única que não correu. Valente como ela só, naquele dia, estava corajosa como nunca. E, tranquila como só ela, ficou boiando quietinha nas águas daquele rio, esperando. Como era uma forasteira, não tinha tanto medo assim. Aquela moça de cabelos longos não a assustava do jeito que assustava as pessoas que moravam por ali. Estava convencida de que fizera bem em não correr junto com suas amigas e amigos! Assim, poderia verificar de perto toda essa história maluca de moça misteriosa que sempre ouvia falar. Quando se sentou numa pedra, lá na outra margem do rio, a mulher não reparou na menina Nina. Ela, por sua vez, enxergava muito bem de longe e, assim, conseguiu acompanhar todos os seus movimentos. O seu campo de visão era perfeito. Sortuda aquela menina! A moça nem imaginava que estava sendo observada. Mesmo que quisesse ver a brava Nina, ela não conseguiria, porque ela tinha se aninhado atrás de uma árvore para ver melhor. Num dado momento, ela apurou o olhar. Esfregou bem os olhos e, com eles bem arregalados, assistiu, bem direitinho, aos cadenciados gestos da mulher misteriosa na pedra do outro lado do rio. Tudo acontecia do jeitinho que lhe contaram. Sem tirar nem pôr. Parecia ensaiado. Um gesto atrás do outro. Um terminando e logo outro começando num ritmo próprio. Depois de se sentar na pedra, a menina viu a moça balbuciando alguma coisa, mas só ela mesma ouvia o que era. Em seguida, ela prendeu os seus vastos e longos cabelos para trás, piscou os

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olhos rapidamente e deu um espirro estranho. Por fim, ela se inclinou na direção do rio e abriu a cabeça. É isso mesmo que você entendeu. Ela puxou a cabeça pelos longos e fartos cabelos e sua cabeça abriu um pouquinho, na altura do final da testa. Nina sentiu os olhos arregalando ainda mais quando a viu dar algumas sacudidelas com o pescoço na direção do rio e algumas coisas, que pareciam minhocas coloridas, saírem de dentro de sua cabeça, caindo rebolativas dentro das águas. Caíram emboladas, entrelaçadas e misturadas. Magicamente, viraram peixes. Peixes de vários tamanhos, agitados e coloridos. Nina demonstrou ser uma menina muito corajosa ao assistir sozinha a toda aquela cena. Estava hipnotizada. Nem piscava os olhos para não perder nenhum detalhe. Mas ela queria mais… Ah! Cabeça de menina… Já que estava se sentindo tão destemida, resolveu sair de trás da árvore e se aproximar daquela moça. Já tinha visto o suficiente e agora queria explicações. Queria também ouvir a voz dela. Será que ela falava uma outra língua? A sua imaginação estava a mil por hora… Quando conseguiu finalmente chegar até a pedra, a moça já havia fechado a sua cabeça e estava soltando os cabelos, como se nada tivesse acontecido… Assim de pertinho, Nina reparou que os cabelos tinham uma tonalidade diferente de todos os cabelos que ela havia visto até então. Era um alaranjado com tons marrons avermelhados. Os fios eram grossos e brilhantes. Nina ficou de frente para ela e a cumprimentou, tentando agir naturalmente. A moça não sorriu. Essa foi a parte que a deixou mais triste. Todos sempre sorriam para ela… Mesmo tendo ficado desapontada com a recepção da moça misteriosa da beira do rio, ela não desistiu dos seus objetivos. Afinal, não havia saído de trás da árvore à toa…

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Muito determinada, Nina foi logo ao assunto. A moça misteriosa não demonstrou nenhuma chateação, nenhuma alegria, nenhuma tristeza em falar sobre o ocorrido. Ela só se queixou que não sabia por que que as pessoas fugiam dela. Não era bicho. E nunca fez mal a ninguém. Fazia muitos anos que vinha àquele rio e nunca incomodou nenhuma criança ou gente grande. A moça quase sorriu quando disse que admirava a coragem da menina que não teve medo de se aproximar para conversar. Ela gostava de conversar. Fazia isso poucas vezes, mas achava bom… A parte de que Nina mais gostou foi quando ela disse que a menina podia contar a todo mundo que ela não era nada daquilo que as pessoas ficavam inventando por aí… E então, com a voz mais rouca do mundo, ela narrou para Nina, e somente para ela, a sua verdadeira história. De boca aberta e coração acelerado, a menina ficou ouvindo a moça misteriosa. Estranhamente, a voz dela não parecia sair da sua boca… – Quando eu era criancinha, fiquei sem dormir várias noites. Minha mãe e minha avó ficaram desesperadas. Fizeram de tudo para resolver o meu problema. Elas me deram vários tipos de chá para eu tomar. Cantaram muitas cantigas de ninar. E fizeram muitas massagens no meu corpinho de menina. Ainda tomei vários banhos de rio e até de cachoeira. Mas nada adiantava. Nada resolvia. Fiquei mais de um mês sem dormir. Minha mãe chorava pela casa. Minha avó rezava o dia todo. Um dia, minha avó lembrou de uma parente dela que sofria do mesmo mal e que só se curou na beira do rio. Minha avó explicou que eu poderia sofrer de “cabeça cheia”. Uma doença muito esquisita e que perturba muita gente. Essa doença não deixa a gente dormir de jeito nenhum… Mas era muito rara de acontecer em crianças…

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– E então? Como é mesmo essa doença? E como é que você descobriu esse seu jeito de esvaziar sua cabeça? – perguntou a curiosa e afoita Nina. – Ora, minha avó me ensinou tudo. Ela me contou que essa doença é raríssima. Você fica com a cabeça muito cheia e ela começa a pesar em você e, por isso, você não consegue dormir. Acontece assim: ao longo do dia a sua cabeça vai enchendo de palavras inúteis, de coisas sem sentido, de inquietações, de uma raiva aqui e outra ali, de coisas para fazer, de irritações, de agitações, de desejos que só vão se realizar depois, bem depois… A cabeça da gente vai enchendo que nem uma bolsa de feira. E quanto mais a gente tenta esvaziar, mais ela enche. E então não se consegue mais dormir, relaxar nem brincar direito. O viver passa a ser muito pesado e doloroso. E quanto mais nos preocupamos com tudo isso, mais a cabeça da gente vai ficando repleta de coisas e não conseguimos dormir nunca mais. Nina escutava com atenção e a olhava muito ressabiada. Ela ficava imaginando uma menina de sua idade sem dormir durante semanas. Deveria ser muito chato e desagradável. – Minha avó, muito sábia, me disse que eu tinha que vir para a beira do rio e ficar bem calminha. Deveria ouvir com o coração o gostoso barulho das águas. Ela me ensinou uns versinhos para eu falar para o rio antes de tentar esvaziar minha cabeça. E depois de piscar e de espirrar baixinho, deveria puxar meu cabelo para trás com um pouquinho de força e, desse jeito, eu conseguiria abrir um pouquinho a minha cabeça, o suficiente para esvaziá-la no rio. Fiz tudo como ela me ensinou, tim-tim por tim-tim, e deu muito certo! Na primeira vez, levei um grande susto quando vi aquelas coisas coloridas e agitadas saindo da minha cachola. Elas eram de tamanhos diferentes e saíam vivas, meio que rebolando. Foi uma sensação muito esquisita na hora. Mas o resultado foi imediato. Fiquei logo despreocupada,

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tranquila. E naquela noite, dormi muito bem. Na verdade, dormi o dia inteiro. Minha mãe e minha avó ficaram felizes! Nina era puro espanto e encanto com aquele relato tão franco e direto. Imaginava a moça ainda menina sendo abraçada e acalentada por sua mãe e por sua avó. E a sua felicidade em ter finalmente conseguido dormir depois de tanto tempo. E a moça misteriosa continuava a contar a sua história… – Desde então, não tenho mais problema nenhum. O rio carrega para bem longe tudo o que pesa e faz mal a minha cabeça. E o que faz mal a minha cabeça, prejudica o meu bem viver! O rio parece feliz em me ajudar. Todas as vezes que venho aqui me esvaziar, parece que as águas ficam alvoroçadas, como se estivessem em festa… Nunca mais deixei de dormir. E nunca mais abandonei este rio. Todos os dias, ao final da tarde, faço esse ritual, venho aqui e me esvazio. Faça sol ou faça chuva. Um grande alívio! Vou embora sempre bem levinha. Um dia, tive a sensação de que o vento me carregava de tão leve que fiquei… – E você não fica com medo? Com dor de cabeça? – quis saber Nina, muito curiosa. – Nunca tive dor de cabeça e não entendo por que teria medo… Quando ela falou isso, a garota olhou dentro de seus olhos e viu que tinham cores diferentes. E que as cores não se harmonizavam com as cores de seus cabelos. Era tudo muito colorido e fora do comum. O seu olhar não se fixava em nada. E havia um brilho diferente. Como se ela enxergasse outras coisas para além daquelas que estavam por ali entre elas e o rio. Foi nesse momento que Nina teve um sentimento desconfortável. Ela sentiu que suas pernas começavam a tremer sem ela conseguir controlá-las. Rapidamente, se despediu da moça, dizendo que já estava escurecendo e sua tia deveria estar preocupada com ela. Ela abriu um sorriso sem alegria para a garota e disse que gostou muito de conversar com ela, que ela era mesmo uma menina muito corajosa e que desejava muito sucesso em sua

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vida. A moça da beira do rio, naquela despedida, ainda falou para Nina que nunca esquecesse desse encontro e que a menina continuasse a ser mais sensível e respeitosa com as diferenças que encontrasse por esse mundo afora. Nina chegou em casa correndo. Estava pálida e sem fôlego. Contou o ocorrido para a sua tia. Mas ninguém acreditou nela. Sua tia ainda lhe falou que ela era uma menina muito imaginativa. E que, se continuasse assim, com tanta imaginação, logo, logo, iria precisar esvaziar sua cabeça nas águas do rio… Nina sabia que não havia inventado nada daquela história. E que o rio que abraçava a cidade sabia tanto quanto ela da veracidade de toda aquela história. E de muitas outras histórias que se contam por aí e que ninguém consegue explicar…

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Antero Mato alto e verde escuro, mato baixo e verde-claro, galhos entrecortando trilhas, folhas pelo chão, flores pelo ar. A estrada de barro vai ziguezagueando entre as árvores e, subindo, tenta alcançar o céu. Lá de cima do morro dá para ver a estrada abraçando as casas. Árvores de tamanhos e cores variadas, passarinhos, borboletas, sapos, grilos e cobras colorem o cenário que se move l-e-n-t-a-m-e-n-t-e. O dia está amanhecendo. Um solzinho frio tempera a manhã e um canto de galo, lá longe, anuncia a alvorada. Pingos de orvalho escondem-se nas folhas e a brisa brinca de balançar as roupas no varal, para cima e para baixo. Na paisagem encontramos uma casa pequenina onde eu sei que mora um menino magricela chamado Antero, assim como seu avô. Ele parece um indiozinho. Sua pele tem a cor de chocolate e os seus cabelos são negros e tão lisos que caem na testa. Seus olhos são pretinhos e mais parecem duas jabuticabas. Menino muito bonito! Pelo quintal da casa se esparrama uma árvore gorda e cheia de histórias. Na árvore mora um balanço, que balança o dia todo com o menino dependurado. * * *

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Quando chega a hora do almoço, é sempre a mesma gritaria: – Vem comer, menino! – Já vou, mãeeeeee… Zuuuuummmmm, zuuuuummmmm! O barulho da corda rangendo no tronco da árvore embala a teimosia do garoto: zuuuuummmmm, zuuuuummmmm! – Quem entende cabeça de menino! Tanto trabalho lá na roça e eu aqui, sentado, esperando por esse teimoso – resmunga o pai. A mãe senta-se ao lado do marido e, com toda delicadeza, coloca panos quentes no comportamento do filho e na impaciência do pai. – Deixa a criança, homem! Vamos comendo. Já, já ele vem. E a mãe sempre tem razão. Um tempinho depois, lá vem o menino e come tudo, sem deixar nada no prato. * * * Enquanto a mãe e o pai trabalham na roça, ali pertinho da casa, Antero trata de arrumar o que fazer. Cada hora ele inventa uma brincadeira nova: dá ordens às formigas, fingindo que elas são o seu exército, pula num pé só até a casa vizinha para conversar com duas garotas da sua idade (elas nunca querem conversar, mas Antero vira e mexe insiste), anda pela casa de olhos fechados tentando descobrir onde estão as coisas só com o toque das mãos, atira pedras pelo quintal para ver qual delas cai mais longe… Mas a brincadeira predileta dele é mesmo se balançar na árvore. A casa em que Antero mora é bem simples: uma sala pequena, dois quartos, uma cozinha e poucos móveis. A família vive uma vida bem modesta e sem luxo nenhum. * * *

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A chuva, o vento, o calor e o frio têm o poder de transformar a rotina dessa casa. Em tempos de colheita, o pai acorda muito mais cedo do que de costume e vai para a cidade vender os produtos que tira da terra. Quando volta, ele traz notícias dos parentes e amigos e também da casa que eles têm na cidade mais próxima, que fica a duas horas de distância, e que está alugada para uma parenta. Toda vez é a mesma coisa: o pai diz que, mais dia, menos dia, eles voltarão a morar na cidade porque Antero vai para a escola para aprender a ler e a escrever. Ele não quer ter filho analfabeto. Mas esse dia nunca é hoje, ou amanhã, ou depois de amanhã, e a escola fica só na promessa. Antero sonha com essa promessa. Às vezes, fica um tempão de olhos abertos, fitando o nada, se imaginando indo para a escola, com caderno e lápis na mão, todo uniformizado, de shorts azul e camisa branca, igualzinho ao primo que mora lá na cidade e que, de vez em quando, aparece e fica contando as maravilhas de sua escola. * * * Antero não sai para trabalhar com os pais. É menino muito pequeno para isso. A sorte é que ele é muito tranquilo e a roça fica bem perto da casa. Ficou decidido que ficaria sozinho enquanto os pais estivessem plantando e colhendo lá no roçado. De tempos em tempos, ao longo do dia, aparece o pai, a mãe ou os dois juntos para saber se está tudo bem com o filho. E está tudo sempre bem. A hora do almoço é sagrada: os três fazem a refeição juntos, ainda que o menino se atrase às vezes. Depois, os pais voltam para o trabalho e Antero volta para suas brincadeiras, sozinho e tranquilinho como sempre.

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Mas um dia, no meio da tarde, o menino sentiu uma coisa estranha. Foi assim: de repente, do nada. Pela primeira vez, Antero sentiu vontade de ter alguém para conversar, para falar umas besteiras, para contar umas historinhas. Quem seria esse alguém? Ele olhou para um lado e para o outro, mas o que viu foi um silêncio enorme rodeado de casas; uma ali e outra lá longe. Antero sabia que por ali moravam poucas crianças: as duas meninas, com quem ele sempre tentava aproximação, mas que não gostavam de falar com ninguém, e mais um menino que era tão chato que, depois de várias tentativas, ele desistiu de vez de tentar ser seu amigo. Antero também sabia que, àquela hora, todos os adultos dali ou estavam na roça ou lá na cidade fazendo as vendas de suas colheitas. Nem adulto nem criança. Ali por perto, ninguém. Só ele mesmo. Ele só. * * * Numa tarde em que seu coração ficou apertado como nunca, Antero viu, como num passe de mágica, sua mãe voltar da roça com um sorriso nos lábios e um cacho de bananas bem maduras nos braços. Aquilo foi o suficiente para mandar a tristeza do menino embora. Ele correu e deu um abraço tão forte na mãe que quase a derrubou. A mãe não entendeu direito, mas os dois juntos riram à beça de felicidade enquanto comiam aquelas bananinhas tão cheirosas e apetitosas. Depois, eles inventaram de fazer um doce. Antero ajudou a mãe a fazer aquela delícia, que foi a alegria do jantar. Naquela tarde, a mãe parecia ter adivinhado a vontade do filho de ficar perto de alguém. Ela não voltou para o trabalho na roça, ficou

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com ele o tempo todo e ainda lhe contou várias histórias enquanto faziam o doce. Antero ficou tão contente na hora do jantar que até comeu demais. Comeu até não aguentar mais! Devorou quase todo o doce de banana e acabou com uma dor de barriga daquelas. Por sorte, a mãe sabia fazer um chá que tira a dor e devolve o juízo para meninos gulosos, e ele ficou bom rapidinho. – Menino esganado! – comentou o pai. * * * Naquela semana, a mãe não foi para roça dia nenhum. O menino ficou numa felicidade só. Antero sorria até para as paredes de tanto contentamento. Aquele foi o começo de um novo tempo. A mãe passou a ficar cada vez mais em casa, e estava sempre com um sono… Depois do almoço, ela pegou o hábito de tirar uma soneca enquanto Antero se balançava no quintal. O menino ficava intrigado com aquela alegria preguiçosa, mas logo veio a novidade: ele ia ganhar um irmãozinho ou uma irmãzinha! O menino achou aquela notícia a mais feliz do mundo. – Oba! Vou ter com quem brincar, conversar e contar umas historinhas. Mas a gravidez da mãe foi compriiiida… Ela ficava quase o tempo todo deitada. Veio até uma tia da cidade para ficar com ela e ajudar nos trabalhos da casa. * * * Agora, Antero tinha uma tarefa importante: ir para a roça de vez em quando com o pai. Era ele quem recolhia os ovos que as galinhas botavam espalhados pela roça toda. E eram muitas galinhas e muitos ovos!

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Todos ficavam encantados com a astúcia de Antero em descobrir tantos esconderijos de ovos e recolher todos eles sem quebrar nenhum. Em pouco tempo, ele enchia um cesto gigante de ovos. Orgulhoso, o pai comentava: – Meu menino é pequeno, mas é muito esperto! No começo, Antero gostou da tarefa e até a chamava de “caçada”. Mas, com o tempo, a “caçada” foi ficando muito chata. Havia dias em que ele ficava morrendo de saudade do seu balanço. * * * Foi durante a espera pelo irmão que tudo aconteceu… O maior medo do menino era fazer xixi na cama e desagradar a mãe. Ela vivia dizendo para todo mundo que seu filho era um anjo, um menino bom, que não fazia xixi na cama e não dava trabalho algum. Ele não poderia molhar os lençóis e entristecer a mãe! Antero combinou consigo mesmo que acordaria de madrugada, todas as noites, para pular a janela do quarto e ir fazer xixi no mato. Com a lanterna do pai, ele entraria na mata fechada. Depois que “se resolvesse”, voltaria para a sua cama e ninguém precisaria saber do acontecido. Ah, cabeça de menino! Toda noite, depois que ele “se resolvia”, ficava passeando pelo mato, agasalhado pela escuridão, sentindo aquele ventinho frio e gostoso na ponta do nariz. Ele até inventou uma brincadeira nova: adivinhar quem fazia os barulhos esquisitos que vinham debaixo do tapete de folhas em que ele pisava: seriam barulhos de sapo, de grilo, de cobra ou de outra coisa? Apesar de criança, sabia que toda mata tem seus mistérios. E foi num desses passeios noturnos que ele descobriu a árvore! * * *

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A primeira coisa que chamou a atenção do menino e de sua lanterna foi uma árvore que não tinha nem folhas, nem frutos, nem flores. Ela era grande, com galhos em forma de escada, boa de subir. Seu tronco era castanho-escuro, lembrando muito a cor da pele do menino e da mãe dele. E, apesar de aparentar ser bem antiga, a Árvore Sem Folhas parecia muito macia. No terceiro galho mais alto da árvore havia um ninho. Isso mesmo! Um ninho cheio de ovos. O menino “subiu na escada” para ver de perto. Que ninho lindo! Havia meia dúzia de ovos muito bem arrumados. Eles eram marrons, de vários tons e brilhantes. Antero nunca tinha visto nada igual. Aqueles ovos eram especiais, ele tinha certeza. Seriam de ouro? Antero estava tonto de encantamento. Ele nunca mais esqueceria do momento em que pegou pela primeira vez aqueles ovos em suas mãos pequeninas. Eram morninhos e ao tocá-los podia sentir a textura suavemente aveludada de cada um. Fascinante! O menino teve vontade de levá-los imediatamente para sua casa. Não faria nenhum mal a eles. Só os queria por perto para protegê-los de todos os perigos. Enquanto Antero acariciava os ovos reluzentes, recolocando-os no ninho de penugem branquinha, ele viu, tomado de susto, a mãe-passarinha pousar ao seu lado. * * * Mãe-passarinha era uma ave diferente e enorme, que lembrava uma coruja, no entanto, maior que qualquer coruja adulta! Ela era marrom-escura e tinha umas pintas brancas que reluziam tais quais os ovos do ninho. Seus olhos eram grandes, castanhos, redondos e pareciam estar acesos, como faróis em estrada sem luz. Ela fitava o menino de maneira penetrante, hipnotizadora.

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Aquele olhar inesquecível ficou gravado na memória de Antero. E quanta coisa ele transmitia: susto, amizade, curiosidade, afeto e medo. Antero ficou tão perturbado com aquilo que recolocou com cuidado todos os ovos no ninho e saiu correndo para casa. Pulou a janela do quarto, se enfiou entre os lençóis e foi dormir com a impressão de que alguém o havia seguido. Pela manhã, recebeu aquele elogio de sempre da mãe: – Meu filho, que bom que você não faz xixi na cama! * * * Depois daquele primeiro encontro, Antero passou a visitar, todas as noites, a Árvore Sem Folhas, a mãe-passarinha e seu ninho de ovos reluzentes. E o encantamento não passava, ao contrário, só aumentava. Os ovos marrons de vários tons não se rompiam e a cada dia brilhavam mais. Quando chegava perto da Árvore Sem Folhas, o menino podia até desligar a lanterna, pois tudo em volta do ninho se iluminava. A mãe-passarinha já não assustava mais o menino. Ele sabia que ela sabia que ele jamais faria mal aos seus filhotes. Ficava pousada em silêncio ao lado do ninho, mergulhando o seu imenso olhar no de Antero. Ficavam assim um longo tempo. Na hora de ir embora, o menino ligava a lanterna e voltava tranquilo e feliz para sua cama. * * * Antero não aguentou guardar segredo por muito tempo. Depois de uma semana de encontros com a Árvore Sem Folhas, contou tudo ao pai e à mãe.

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Disse que havia descoberto uma árvore diferente de todas que conhecia, onde havia um ninho com ovos de vários tons de marrom que brilhavam tanto que chegavam a iluminar a noite. Contou também que uma ave bem maior que uma coruja tomava conta deles. E que os ovos do ninho eram maiores do que ovos de galinha e quase do tamanho dos ovos de pata. Comovido, Antero tentou encontrar palavras que explicassem que a mãe-passarinha era sua amiga e que tinha o olhar mais doce do mundo. Mas ninguém acreditou nele. A tia, que cuidava da mãe naqueles tempos de espera, foi logo dizendo: – Esse menino tem muita imaginação! * * * Antero decidiu consigo mesmo que iria provar a todos que a Árvore Sem Folhas, a mãe-passarinha e o ninho com ovos brilhantes não eram imaginação da sua cabeça coisa nenhuma. Bem que a mãe-passarinha poderia ajudá-lo… Antero resolveu pedir em silêncio, só com o olhar: “Será que eu poderia levar só um ovo seu para mostrar para o pai e para a mãe? Prometo que trago de volta rapidinho…” Mas a mãe-passarinha respondeu, também em silêncio, com aquela expressão que Antero já conhecia: “Impossível. Impossível. Impossível.” * * * Só havia uma saída: Antero teria de levar alguém para conhecer a Árvore Sem Folhas, a mãe-passarinha e os ovos reluzentes.

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O pai concordou em tirar aquela história a limpo. Numa manhã bem cedo, os dois entraram na mata e andaram por muito tempo em busca da árvore. Mas não encontraram nada! No outro dia, pai e filho voltaram à tardinha para procurar a árvore, mas também sem sucesso. Havia uma explicação: Antero só sabia encontrar o caminho durante a noite. Seria preciso esperar toda a casa dormir e então pegar a lanterna, pular a janela e seguir pelo tapete de folhas. Naquela noite, o menino, o pai e a lanterna saíram para visitar a Árvore Sem Folhas. Só que, misteriosamente, não a encontraram. Nem a árvore, nem o ninho, nem os ovos marrons de vários tons, nem a mãe-passarinha gigante, com penas marrons e pintas brancas tão reluzentes quanto os seus ovos. Pai e filho voltaram calados para casa. Dava dó de ver a agonia do menino. O pai tinha a chateação estampada no rosto. A maior tristeza de Antero, depois daquela noite, é que, mesmo que ninguém falasse mais nada sobre aquele assunto, ele sabia que todos pensavam que ele havia inventado tudo. * * * Foram tempos difíceis e silenciosos. Até que, junto com um novo amanhecer, chegou o choro de dois bebês. Eram os irmãos do menino vindo ao mundo, ajudados por uma parteira, trazendo alegria para todos. A natureza foi muito generosa com aquela família. Chegaram de uma vez uma menina e um menino. Os bebês fizeram tanta algazarra naquela casa que o assunto da mãe-passarinha gigante foi minguando, minguando, até se encerrar de vez. “Como meus irmãozinhos demoram a crescer!”, pensava Antero.

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Ainda bem que existiam em sua vida um quintal e um balanço, que mais parecia um pêndulo de relógio antigo. Ia para lá e para cá, sem nunca parar. E a vida ia levando o menino e a família do menino naquele vai e vem… * * * Antero ainda levou um tempão pensando na mãe-passarinha e em seus fantásticos ovos marrons de vários tons reluzentes. Mas nunca mais foi visitá-los. Muita coisa havia mudado em sua vida. Ele já não era mais tão pequenininho. Agora, ele era o irmão mais velho. E também não precisava mais acordar de madrugada para fazer xixi. Antero também já ia para a roça trabalhar com o pai, dia sim, dia não, enquanto sua mãe ficava em casa cuidando dos gêmeos. Agora, o menino não só recolhia os ovos como antigamente, em suas “caçadas”, ele trabalhava mesmo, ajudando o pai: capinava, plantava e até colhia as verduras na roça. A sua vontade de ir para a escola aumentava a cada dia. Mas, apesar de saber que já estava pronto, falavam para ele que ainda não havia chegado o momento. Enquanto aguardava a hora certa para aprender a ler e a escrever, Antero pensava que deveria ser muito bom saber ler, porque assim ele poderia conversar com os livros, aprender muitas coisas e ainda preencher os seus dias com novidades. * * * A notícia chegou de repente, como um relâmpago! – Meu filho, vamos morar na cidade e você vai para a escola aprender a ler e a escrever como sempre sonhou.

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O menino se sentiu esquisito. Não sabia se ria ou se chorava. No fundo, estava contente. Dali em diante, teria mais gente para conversar, para brincar e para falar umas besteirinhas. – Antero, você precisa se despedir do seu balanço, das suas coisas, desse lugar, vamos embora na próxima semana! * * * Com as palavras da mãe ainda matutando em sua cabeça, Antero passou os dias seguintes pensando na sua vida naquele lugar. A mãe tinha dito para ele se despedir das suas coisas. Bom, quase todos os seus brinquedos já haviam sido dados para os irmãos. Dele mesmo, além do balanço, só restava o seu tesouro esquecido: a Árvore Sem Folhas, a mãe-passarinha e o ninho de ovos marrons reluzentes. Na noite da véspera da mudança, Antero pegou a lanterna do pai e embrenhou-se mata adentro. Mas, quando chegou à sua árvore, ele a encontrou muito diferente. Em seus galhos, haviam nascido algumas poucas folhas e umas flores pequeninas que exalavam um perfume muito forte. Muito tempo havia se passado. Em busca do ninho, dos ovos e da mãe-passarinha, o menino subiu na escada de galhos e olhou em volta. Mas não havia nada por ali. Triste, Antero desceu da árvore e encontrou, no chão, vários pedaços de casca de ovos marrons. Com o coração disparado pela surpresa, ele pegou aquelas cascas. Tinham um cheiro enjoado. Com as mãos em concha, segurando as cascas como um tesouro, ele saiu correndo para casa. Aquela era a prova de que precisava. Todos iriam acreditar nele! As cores eram as mesmas, e elas ainda reluziam muito.

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Quando já estava quase chegando à casa, Antero tropeçou em uma pedra e caiu. As cascas dos ovos perderam-se no chão, sob o tapete de folhas. Ele ficou um tempão procurando por elas. “Sumiram! Mas como? Elas não eram tão brilhantes? Como isso aconteceu?!” * * * No dia seguinte, enquanto todos se aprontavam para a mudança, o menino contou sua aventura da véspera, mas a mãe, o pai e a tia comentaram que ele devia ter sonhado mais uma vez. Acabando de arrumar as suas coisas para colocar no carro de mudança, Antero repetia para si mesmo, em silêncio, que aquela história não havia sido um sonho. Junto a seus guardados, o menino calado levou para a cidade a certeza de que não era um mentiroso. * * * Depois da mudança de casa e de vida, Antero entrou na escola e ganhou muitos amigos. E como gostava da escola! Em poucos meses, realizou seu sonho: aprendeu a ler e a escrever. Depois, descobriu a biblioteca, os livros de aventuras e não parou mais de ler. Nos anos seguintes, a mãe deu mais dois irmãos para ele. Antero adorava a sua casa cheia de gente! Quanto mais distante ficava o tempo da vida na roça, mais surgiam histórias daquela época nas lembranças da família. De vez em quando, o pai provocava o jovem Antero: – Filho, conta para os seus irmãos a história daquela Árvore Sem Folhas, com mãe-passarinha e ninho de ovos brilhantes, que você inventou quando era criancinha.

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Nessas horas, Antero ficava muito sério. Ele lembrava do momento de despedida da sua árvore, do dia da mudança e de trazer suas coisas para viver na cidade. Todo aquele encantamento que viveu junto com a mãe-passarinha e seu ninho mágico ainda vivia forte dentro dele. O rapaz fechava os olhos como se estivesse olhando para dentro dele mesmo e falava com a voz cheia de saudade: – Pai, não foi sonho, não foi mentira nem imaginação! Naquele dia, o rapaz ficou realmente ferido em seus sentimentos. Antero não gostava da maneira desrespeitosa que o pai falava da sua mais valiosa experiência de infância. Também ficou sentido porque ele sempre fazia isso na frente de seus irmãos e isso o deixava triste e envergonhado. Afinal, ele era o irmão mais velho. Antero foi para a janela olhar o “lá fora” para acalmar o seu “lá dentro”. De repente, quando ele fixou o olhar no “lá longe”, avistou um grande pássaro marrom com pintas brancas brilhando ao sol, pousado num galho de árvore do outro lado da rua. Ele teve uma sensação de alegria misturada com euforia. Um cheiro enjoadinho invadiu seu nariz… Quando fixou a vista, procurando o olhar daquele pássaro tão parecido com a sua inesquecível amiga mãe-passarinha, não conseguiu. Antes do encontro desses olhares, a ave misteriosa bateu asas e voou. Voou… Voou… Voou… Antero não conseguiu acompanhar seu trajeto, mas, surpreendentemente, toda a sua tristeza voou para longe junto com aquele pássaro. Ele sabia, agora mais do que nunca e de um modo impossível de explicar, que a Árvore Sem Folhas, a mãe-passarinha e os ovos reluzentes eram de verdade, ele não inventara nem sonhara aquilo tudo! Não. Não foi mesmo sonho. Não foi mentira nem imaginação.

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Vamos falar sobre este livro? Quem conta um conto... O livro Três histórias de encanto, que você acabou de ler, é fruto de um trabalho coletivo muito cuidadoso. Isso significa que a escritora Sonia Rosa e o ilustrador Rubem Filho não foram os únicos a dedicar seus conhecimentos e talentos para criá-lo. Além deles, outros profissionais – editores, revisores, diagramadores, designers e todos os profissionais da gráfica – trabalharam juntos para garantir que você tivesse acesso a essa bela obra de arte. A literatura é uma arte, você sabia? Além da pintura, da música e da escultura, ela é um dos principais tipos de arte que existem.

Seção elaborada por Andréia Manfrin Alves, bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Didática do ensino de francês pela Sorbonne Université. Trabalha há 15 anos como revisora, preparadora, editora e tradutora de textos, e escreve materiais de apoio para livros de literatura há pelo menos cinco anos. É também atriz, locutora e contadora de histórias e adora envolver toda a sua formação prática e teórica no trabalho com textos em diferentes vertentes. A literatura infantojuvenil é a menina dos seus olhos.

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No entanto, a literatura é uma classificação vasta. Dentro dela, há vários tipos e formatos diferentes que um texto pode adotar. Cada um desses formatos, nós chamamos de gênero. Isso porque, há muitos anos, o filósofo grego Aristóteles decidiu estabelecer diferentes nomes para as diferentes criações literárias produzidas na Grécia Antiga. Elas eram: épico (histórias que usavam personagens e descrições para narrar algo grandioso), lírico (histórias que usavam versos e rimas) e dramático (histórias contadas através de atores e encenações). Claro que a literatura é quase um ser vivo e não permaneceu a mesma desde o tempo de Aristóteles. Hoje, esses gêneros evoluíram e alguns até mudaram de forma. Por isso, os gêneros hoje têm novos nomes e definições. Para entendermos melhor este livro que você acabou de ler, vamos selecionar um gênero específico: o de narrar histórias com personagens e descrições. O nome é fácil de lembrar; afinal, se você narra algo, então o texto é narrativo. Textos narrativos envolvem personagens, ações, tempo e espaço determinados e um texto geralmente em prosa (ao contrário dos textos em versos como o poema). Além disso, o gênero narrativo inclui uma quase infinidade de subdivisões, conhecidas como gêneros textuais, que incluem contos, crônicas, fábulas, novelas, romances etc., e todos eles podem ser combinados uns com os outros, resultando em textos que vão além desses listados. Que tal mergulhar no livro que você acabou de ler para entender melhor? O livro de Sonia Rosa não é uma narrativa só, certo? É o conjunto de três textos diferentes, cada um com personagens, espaços, tempos e ações, que não interagem

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entre si. Além disso, os textos são curtos, não têm muitos personagens ou detalhes, apresentam apenas um conflito e se passam em espaço e tempo limitados. Então, são contos. Sim, no plural. Cada história que você leu é um conto individual. Contos, como todos os outros tipos de textos narrativos, costumam seguir uma mesma estrutura geral, com introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho. Introdução é quando somos apresentados aos personagens, ao espaço, ao tempo e àquele que conta a história, ou seja, nosso narrador. Desenvolvimento é o recheio da história, onde descobrimos qual é o conflito central que movimenta a narrativa e quando a maioria dos acontecimentos ocorrem. O clímax é o momento de maior tensão, suspense ou ação, quando algo muito importante acontece. E, ao final, temos o desfecho da narrativa, a conclusão, com as informações finais. Vamos pensar no primeiro conto, “Gregório”, para entender melhor. Os personagens são Gregório, sua mãe, sua avó, o casal da casa verde-cinza e a menina de tranças, ou seja, é possível nos lembrarmos de todos os personagens que participam da história, mas alguns se destacam mais do que outros, concorda? O conflito central é o fato de que Gregório se mudou para um bairro muito mais urbano, onde as pessoas parecem ser mais frias e distantes umas das outras, o que faz com que ele tenha poucos amigos. Por isso, ele se torna amigo de uma casa, a casa verde-cinza, onde vive um casal de velhinhos. O clímax da his-

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tória, ou seja, o ponto máximo de tensão para os personagens, encaminhando a narrativa para o desfecho, é quando Gregório descobre que sua melhor amiga foi comprada e demolida para dar lugar à construção de mais um prédio sem memórias de seus habitantes. E o espaço e tempo restritos são o “apar­ tamento-esconderijo” para onde ele se mudou com a mãe, e o tempo é o presente, ou seja, o momento em que a história está acontecendo. Você concorda com essa análise? Destacaria outras informações para esse conto? Agora que você já entende melhor como funcionam os contos, faça esse mesmo exercício com os outros dois contos do livro.

Histórias fantásticas Você sabia que, assim como há vários tipos de narrativas, também há vários subgêneros de contos? Esses que você acabou de ler são contos fantásticos, pois falam de conflitos que envolvem o sobrenatural, o mágico, o encantador, o fantástico – em outras palavras, coisas que não veríamos normalmente em nosso dia a dia. Mas que conflitos seriam esses a que chamamos de fantásticos? Quando lemos um texto narrativo, ele pode ser sobre algo real (não ficção) ou algo inventado (ficção). No caso de textos de ficção, eles podem falar de situações possíveis de acontecer na vida real ou de coisas que só aconteceriam em nossa imaginação (ou nos livros, claro!). O mais interessante sobre contos fantásticos é que eles podem acontecer apenas em mundos mágicos e ficcionais ou em mundos que parecem o nosso, reais, mas com algo extra, mágico ou fantástico. Você com certeza conhece vários exemplos de narrativas fantásticas que misturam a realidade e o mágico, como Alice no país das maravilhas, do escritor britânico

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Lewis Carroll, que mistura realidade e fantasia com uma menina, Alice, caindo numa toca de coelho e sendo transportada para um lugar fantástico cheio de criaturas peculiares. Para identificar uma narrativa fantástica, basta pensar: Será que isso poderia acontecer de verdade? Esse exemplo de literatura se aproxima bastante do que acontece nas histórias de Gregório, Nina e Antero. Gregório faz amizade com uma casa, Nina conhece uma mulher que abre a cabeça e literalmente esvazia seus problemas no rio, e Antero descobre uma árvore especial, com ovos mágicos, que ninguém mais podia ver. Por conta desses elementos, que não fariam parte de nossa realidade, os três textos que você leu podem ser chamados de contos fantásticos.

E onde é que surgiram as narrativas fantásticas? Os contos fantásticos, como esses que você leu neste livro, surgiram no final do século XVII e início do século XVIII e se popularizaram nos países latino-americanos a partir do século XX como maneira de denunciar a opressão vivida nos anos de ditadura. Porém, as narrativas fantásticas são muito, muito mais antigas. Elas surgiram na Grécia, antes de Cristo, com as musas que narravam oralmente as histórias dos grandes heróis, como Hércules e Aquiles. Como as narrativas eram passadas de pessoa para pessoa oralmente, elas não eram escritas e viviam apenas na memória dos contadores de história e dos expectadores que as escutavam. Até hoje, muitas histórias fantásticas e filmes se baseiam nas narrativas daquela época, como a animação Hércules (1997), Percy Jackson e o ladrão de raios (2010) e Mulher-Maravilha (2017).

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O fantástico e seus principais representantes Além de Lewis Carroll, há outros escritores estrangeiros reconhecidos por seus escritos fantásticos, como Oscar Wilde (“O fantasma de Canterville”, em O crime de lorde Arthur Savile e outras histórias, 1887), Jorge Luis Borges (“O outro”, em O livro de areia, 1975), Gabriel García Márquez (“Maria dos Prazeres”, em Doze contos peregrinos, 1992), Edgar Allan Poe (“O gato preto”, 1843) etc. No Brasil, muitos escritores ficaram famosos por escrever contos fantásticos. Entre eles, é possível destacar Murilo Rubião (Os dragões e outros contos, 1965), Lygia Fagundes Telles (Os contos, 2018), Machado de Assis (“O país das quimeras”, 1862), Carlos Drummond de Andrade (“Flor, telefone, moça”, em Contos de aprendiz, 1951), Moacyr Scliar (“O cavalo imaginário”, 2003), entre tantos outros. Como você percebeu, o conto fantástico é bastante famoso e diverso, e pode abordar temas como o mágico, o insólito, o misterioso, o sobrenatural etc. Se você se interessou por esse gênero e quer ler mais contos com essa temática, sugerimos textos de Lygia Bojunga (Paisagem, 2007), Marina Colasanti (23 histórias de um viajante, 2005), Moacyr Scliar (Max e os felinos, 2013), Regina Drummond (coletânea No mundo dos cavaleiros e dragões, 2010, organizada pela autora) e Rosana Rios (Entre cães e gatos, 2019). E não se esqueça da autora deste livro que você leu, Sonia Rosa, que tem outros livros muito interessantes sobre o assunto. Sempre que ler um conto novo, você pode usar os elementos narrativos que aprendeu para expandir seus conhecimentos sobre esse gênero. Só lendo para aprendermos melhor quais os gêneros e temas que mais agradam seu gosto pela literatura. Agora, vamos conhecer um pouco sobre a autora e o ilustrador de Três histórias de encanto?

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Sonia Rosa, a autora

Arquivo pessoal

“Desde o meu primeiro dia de aula como professora, em minha primeira escola, usei a estratégia de contar histórias para os meus alunos. É dessa maneira que se forma um leitor: compartilhando histórias numa ação amorosa.” Sonia Rosa Você sabia que a escritora Sonia Rosa, autora deste livro, também é contadora de histórias, professora e pedagoga? Ela nasceu no Rio de Janeiro e foi na sua cidade mesmo que ela estudou Pedagogia e se tornou mestre em estudos étnico-raciais. Trabalhou como professora por vários anos, sempre alimentando o amor por criar histórias e por mundos diferentes. Publicou seu primeiro livro em 1995 e não parou mais. Sua primeira história, O menino Nito, já foi traduzida e publicada na Galícia (Europa). Acreditando na importância de representar todos, ela sempre criou histórias centradas em personagens negros, que vivem grandes aventuras. Nito, seu primeiro personagem, foi um deles. Seus trabalhos são tão relevantes que hoje já existem várias bibliotecas que levam seu nome, como forma de homenageá-la. A autora tem mais de 30 livros publicados, e você pode conhecer cada um deles acessando seu site: www.escritorasoniarosa.com.br/ (acesso em: 17 set. 2021). Dessa forma, poderá desfrutar da leitura de outros títulos e conhecer personagens muito interessantes que fazem parte do mundo da imaginação de Sonia Rosa.

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Rubem Filho, o ilustrador

O ilustrador Rubem Filho, assim como muitos ilustradores que conhecemos, descobriu seu gosto pela ilustração ainda na infância. Nasceu na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, e transformou seu gosto por arte em uma carreira. Já trabalhou na área da Publicidade e foi diagramador. Mas decidiu se especializar em gravura em metal e litografia, processo no qual se usa uma base de metal ou calcário para criar, por exemplo, um carimbo e depois, com tinta, transferir esse desenho para o papel. Em 1996, ele juntou seu amor por desenhos, livros e crianças e se tornou ilustrador de literatura infantojuvenil. Ele já ilustrou quase uma centena de livros e escreveu alguns, porque também é escritor. Pretinha de Neve e os Sete Gigantes e A história de Gilgamesh, o Grande são alguns deles. No site do ilustrador, disponível em: https://rubemfilho.wixsite.com/ rubem-filho (acesso em: 18 set. 2021), você encontrará os títulos de todos os livros que ele já ilustrou e alguns desenhos que criou. É interessante conhecer a página gram de Rubem Filho no Insta­ (@rubem_filho_ilustrador) para ficar por dentro de todas as novidades criativas desse profissional tão diverso.

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Arquivo pessoal

“[...] sou torcedor do Villa Nova, tenho cinco graus de miopia, gosto redundantemente de comida mineira e acho que viver é sempre a melhor coisa a se fazer.” Rubem Filho


Até as próximas leituras! Espero que você aproveite bastante todas as informações que acabou de ler e que volte a visitar muitas vezes Gregório, Nina e Antero, para que, a cada nova leitura, eles possam encantá-lo ainda mais. Experimente ler os textos de formas diferentes, em voz alta, compartilhe a leitura com amigos e familiares, reconte as histórias oralmente para quem se interessar em ouvi-las e invente outras histórias a partir delas. Dê asas à sua imaginação! A literatura também existe para isto: para que tenhamos o direito de experimentar histórias e situações que só cabem em nossa mente. E suas possibilidades não têm limite, não é mesmo? Lembre-se: se quiser chamar uma casa de melhor amiga, se topar com alguém por aí, na beira de um rio, esvaziando a cabeça, ou se encontrar ovos brilhantes e aveludados, saiba que isso tudo existe, mesmo que só na imaginação de alguém. Então, aproveite!

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Sonia Rosa

A literatura está cheia de histórias de fantasia e contos de encanto. Mágica, mistério e imaginação caminham de mãos dadas para criar narrativas inesquecíveis. É justamente essa a principal qualidade deste livro. Uma casa-amiga que silenciosamente oferece conforto; um encontro inesperado e uma forma bem diferente de se livrar das preocupações do mundo e da vida; um pássaro majestoso e muito misterioso que aparece e desaparece sem deixar rastros… Três histórias que dão muito gosto de ler e contar. Acompanhe Gregório, Nina e Antero em suas singulares jornadas de descobrimento, magia e encanto!

Três histórias de encanto

Três histórias de encanto


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