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Impasses da alma, desafios do corpo

Page 1

Rubens M. Volich

PSICANÁLISE

Impasses da alma, desafios do corpo

Figuras da hipocondria

4ª edição ampliada

IMPASSES DA ALMA, DESAFIOS DO CORPO

Figuras da hipocondria

Rubens M. Volich

4ª edição revista e ampliada

Exemplardedivulgação

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Impasses da alma, desafios do corpo. Figuras da hipocondria

© 2024 Rubens M. Volich

2002, 1ª edição – Casa do Psicólogo

2008, 2ª edição – Casa do Psicólogo

2015, 3ª edição – Casa do Psicólogo/Pearson

2024, 4ª edição – Revista e ampliada – Blucher

Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editores Eduardo Blücher e Jonatas Eliakim

Coordenação editorial Andressa Lira

Produção editorial Mariana Naime

Preparação do texto Sérgio Nascimento

Diagramação Thaís Pereira

Revisão de texto Maurício Katayama

Capa Laércio Flenic

Imagem da capa Freepik.com

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4º andar

04531-934 – São Paulo – SP – Brasil

Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa , Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Volich, Rubens M.

Impasses da alma, desafios do corpo. Figuras da hipocondria / Rubens M. Volich. – 4. ed. – São Paulo : Blucher, 2024.

400 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2058-9

1. Hipocondria I. Título

23-6377

CDD 616.8525

Índices para catálogo sistemático: 1. Hipocondria

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Algumas palavras... 11 Vera Iaconelli Prólogo à quarta edição 15 Introdução 25 1. Imagens de uma história 31 A hipocondria na Antiguidade: da epilepsia à melancolia 35 Hipócrates e os humores 36 A herança de Galeno 40 A Idade Média, a possessão demoníaca e o Renascimento 43 A hipocondria, entre a paixão e a razão 46 A positivação da doença e o afastamento da melancolia 50 Hipocondria e histeria, estranhas familiares? 54 Impasses da nosografia 54 A fluidez das qualidades 61 Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida
Conteúdo
8conteúdo Da simpatia às doenças dos nervos 63 Simpatia, vapores e doenças dos nervos 64 O temperamento nervoso 70 A hipocondria, entre o desatino e o corpo 73 A psiquiatria, a psicopatologia e a hipocondria 79 Doença imaginária, doença da imaginação 85 Do inconsciente ao corpo imaginário 90 2. Visões freudianas 95 A hipocondria e a primeira nosografia psicanalítica 99 Da neurologia à psicanálise 99 As psiconeuroses e as neuroses atuais 101 O questionamento da neurastenia 105 A histeria, a hipocondria e as neuroses de angústia 107 Hipocondria, culpa e neurose obsessiva 116 A função da dúvida e da ambivalência 121 Projeção, paranoia e hipocondria 125 Schreber: corpo transmutado, alma perseguida 130 Narcisismo e hipocondria 137 A hipocondria, as neuroses narcísicas e de transferência 143 A hipocondria, “grão de areia” do sintoma 150 A função econômica da hipocondria 153 Hipocondria e funcionamento onírico 156 O corpo, fonte e objeto do sonho 156 O sonho, observatório privilegiado do corpo 181 Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida
9 rubens m. volich A hipocondria e a constituição do psiquismo 189 A alucinação, do corpo à pulsão 189 O inconsciente, do corpo à palavra 192 O ego, superfície corporal 195 3. O corpo, outro em si 199 Hipocondria, patoneurose, neurose de órgão 202 O corpo, das sensações à imagem 208 Hipocondria, despersonalização, neurastenia e dor 210 A hipocondria entre os objetos externos e internos 214 As angústias primitivas e a experiência hipocondríaca 217 Angústias hipocondríacas: da paranoia à depressão 221 Hipocondria, defesas e impasses terapêuticos 225 Transferência e hipocondria 230 4. O corpo entre o trauma e os ideais 235 Mal-estar no corpo 238 Corpos sãos? 247 O corpo entre a organização e as desorganizações 251 As marcas dos ideais 254 As galés voluntárias 257 5. Horizontes médicos 263 “Calma” 265 Sentir 268 Compreender 271 Lembrar 272 Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida
10conteúdo Classificar 276 Analisar 282 Conhecer 285 Transtornos somatoformes 285 Refletir 298 Fragmentar ou indiscriminar? 300 Confinar? 308 Clinicar? 311 Simular? 313 6. Desafios 319 Gritos, sussurros e silêncios 324 A perda e suas representações 325 Função materna e experiência hipocondríaca 327 Hipocondria, entre o silêncio e a cacofonia do corpo 332 O trabalho da hipocondria 334 Os estados hipocondríacos e suas nuances 340 A clínica à escuta do corpo 344 Corpo a corpo 345 O paradigma hipocondríaco da clínica 354 R azões e despedidas 359 Referências 363 Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

1. Imagens de uma história

E fez-se a luz. Por meio dessa imagem, cristalizou-se o mito de nossas origens. Imagem primordial, representação ancestral da emergência do Universo, do surgimento da vida. Imagem que traduz a experiência do homem, suas sensações, seus afetos, na passagem da escuridão para a claridade, do desconhecido para o conhecido, do invisível para o visível, do medo para o alívio. Desse movimento derivaram ainda outras figuras, reveladoras do drama do humano. Vir à luz, no nascimento, apagar-se na morte, iluminar-se na alegria, obscurecer-se na aflição.

Imagens como essas traduziram, desde sempre, nossas sensações e experiências do mundo e de nossos semelhantes. Imagens sensoriais, tentativas de materializar o etéreo, de controlá-lo, de compartilhá-lo com aqueles que nos rodeiam. O tato, o odor, o sabor, o som, a luz são as primeiras notícias que nos chegam do mundo. Mesmo com o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, é àquelas primeiras formas de conhecimento que somos remetidos quando diante do desconhecido.

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É também graças a essas experiências que apreendemos nosso corpo. Mediada pela presença e pelo corpo de nossos semelhantes, descobrimos e construímos a representação de nosso próprio corpo. Nessa relação, sentimos o calor da pele, os cheiros, os sabores, as superfícies inicialmente indistintas de dois corpos. Ouvimos seus ruídos, percebemos suas formas. Passamos a diferenciá-las. Construímos assim uma história, marcada por sensações, movimentos, por memórias do encontro com o desconhecido no outro, com nosso próprio desconhecido.

O corpo é nosso primeiro Universo. Nele somos concebidos, abrigados. A partir dele existimos. Nele se gestam os enigmas e nele buscamos as respostas. Interrogar os mistérios do corpo é tão antigo quanto investigar o mundo que nos cerca. Desde os tempos mais remotos dedica-se o homem a decifrar tais mistérios, inspirado por imagens oriundas de seu corpo.

É a essa perspectiva que nos convida a experiência da hipocondria, atravessada por impasses, dilemas e desafios…

Ela é geralmente caracterizada como uma preocupação exagerada da pessoa com seu estado de saúde. Uma preocupação que se manifesta por meio de crenças, rituais e atitudes aparentemente irracionais com relação a seu corpo, como o medo constante de adoecer, de contaminar-se, de desenvolver uma doença grave. Apesar das queixas insistentes dos pacientes, significativamente, os médicos encontram uma grande dificuldade de tratá-los, sobretudo em função da convicção do paciente na realidade de seu estado.1-2 Ela começa a ser identificada na adolescência, passando a ser mais frequente a

1 Para facilitar a leitura e o acesso aos trabalhos citados, eles aparecem em nota de rodapé com o nome do autor, data da primeira publicação original, título e, para as citações, número da página. As referências bibliográficas completas figuram no final do livro.

2 J. Postel (Ed.) (1993). Dictionnaire de Psychiatrie et de Psychopathologie Clinique, p. 264.

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32imagens de uma história

partir da quarta ou quinta década de vida. Os indivíduos com mais de 60 anos de idade são particularmente afetados.

No início dos anos 2000, estudos epidemiológicos baseados nos critérios do DSM-IV3 apontavam que a hipocondria se manifestava em 3% a 4% de todos os pacientes, com uma leve predominância da incidência entre os homens. Com o advento do DSM-5, o termo hipocondria deixou de ser utilizado, tendo sido dividido em duas categorias, o distúrbio de ansiedade da doença, e o distúrbio do sintoma somático (englobados, no DSM-5, na seção “Sintomas Somáticos e Distúrbios Relacionados”).4 Segundo E. Hedman e colegas, estudos sugerem que por volta de 75% das pessoas que, segundo o DSM-IV, cumpriam critérios de diagnóstico, para hipocondria, pelos critérios do DSM-5, vêm sendo consideradas com o diagnóstico de distúrbio de ansiedade da doença.5

Para além de referências clássicas e da perspectiva epidemiológica, é possível também perceber que, mais do que qualquer outra manifestação do humano, a hipocondria sempre se prestou, e se presta ainda, como uma preciosa fonte de imagens que buscam dar forma e representar os enigmas de um corpo oscilante entre o prazer e o sofrimento, entre as fontes de vida e as forças que podem destruí-la. Muitas vezes, a dor, a cor, o calor, a umidade, os ruídos e as tensões do corpo se apresentam como tentativas de descrever sensações e experiências do sujeito diante de si mesmo e

3 American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders – DSM-IV

4 American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders, 5th edition: DSM-5.

Cf. a discussão dos motivos e implicações dessas mudanças no Capítulo 5, Horizontes médicos

5 E. Hedman, E. Axelsson, E. Andersson, M. Lekander & B. Liótsson (2016). Exposure-based cognitive-behavioural therapy via the internet and as bibliotherapy for somatic symptom disorder and illness anxiety disorder.

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da realidade, cujo entendimento parecia inexpugnável ao seu saber e aos conhecimentos de sua época.

As diferentes concepções da hipocondria ao longo da história revelam o caminho do ser humano em busca da compreensão de seu corpo e de seu sofrimento. Por meio delas, podemos também vislumbrar a evolução das representações que resultaram nas visões atuais da doença orgânica e da medicina, bem como a articulação destas com a constituição do conhecimento psicopatológico.

Tais concepções foram impregnadas pela experiência dos médicos em seu contato com o corpo humano, seus mistérios e suas doenças. Graças a elas, é possível reconstituir diferentes momentos de uma prática clínica ainda pouco marcada pela visão da medicina de nossos dias. Uma prática que propiciava uma observação e uma escuta mais próximas da experiência do paciente.

Concordo com Sidnei Cazeto quando ele alerta para o risco que corremos ao observar fenômenos clínicos ocorridos em outras realidades históricas e culturais a partir de teorias e práticas que, afinal, são fruto dos tempos em que vivemos.6 Porém, atentos a esse risco, acredito que as diferentes representações da hipocondria no decorrer da história, talvez ingênuas aos nossos olhos, podem ajudar-nos a melhor compreender as transformações da função da queixa corporal de nossos pacientes, principalmente daqueles para os quais o corpo se constitui como uma via estreita e quase exclusiva de expressão de seu sofrimento.

Arrisquemos, pois, a adentrar o labirinto da hipocondria. Através de seus corredores tortuosos e de suas armadilhas veremos emergir imagens que nos auxiliarão a entender o caráter errante dessa manifestação, assim como sua livre circulação não apenas entre os

6 S. J. Cazeto (2001). A constituição do inconsciente em práticas clínicas na França do século XIX.

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34imagens de uma história

2. Visões freudianas

… as neuroses daqueles tempos precoces entram em cena sob uma roupagem demoníaca, enquanto que aquelas do tempo presente, pouco psicológico, aparecem sob uma roupagem hipocondríaca, disfarçadas em doenças orgânicas.1

No final de 1922, enquanto dava seus últimos retoques em O ego e o id, 2 na Biblioteca Nacional Austríaca, Freud dedicou-se ao estudo do manuscrito de número 14086, conhecido como “O troféu de

1 S. Freud (1923a). Uma neurose demoníaca do século XVII, E.S.B., XIX.

2 Conhecemos o caráter problemático da nomenclatura id, ego e superego para descrever essas instâncias do aparelho psíquico, uma vez que elas derivam da tradução inglesa dos textos de Freud a partir dos originais em alemão. Entretanto, optei por mantê-la ao longo de todo o livro em nome da uniformidade, uma vez que as citações desses textos aqui utilizadas são feitas a partir da edição da Imago, que utiliza esses termos, em vez de eu, supereu e isso, mais fiéis ao texto alemão, que seria minha preferência.

Como sugere Paulo César Lima de Souza, autor da nova tradução de Freud editada pela Companhia das Letras, “…importa, nas traduções dos termos técnicos …não esquecer que as diferentes denominações se aplicam à mesma coisa”.

P. C. L. de Souza. Nota do tradutor. In S. Freud (1923). O eu e o id. In Obras Completas, v. 16. Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

Mariazell”. Nele é descrita a cura miraculosa do pintor Christoph Haitzmann, que, em 1677, teria estabelecido um pacto com o demônio e sido possuído por ele. Analisando esse relato, Freud ressaltou que, olhando com outros olhos, poderíamos reconhecer nas narrativas de possessão demoníaca do passado aquilo que a psicanálise revelava ser a essência do funcionamento neurótico.3

Freud sugeria que, por meio de suas crenças e costumes, cada época determina os meios mais adequados para a manifestação da neurose. Ele ressaltava que, no mundo antigo, a força da crença no sobrenatural e o livre curso à fantasia faziam que manifestações neuróticas fossem compreendidas como o resultado da possessão por espíritos e demônios. Enquanto isso, o espírito científico marcava o início do século XX como “pouco psicológico”, trazendo como consequência o disfarce hipocondríaco para a manifestação do sofrimento neurótico.

Apesar da importância dessa constatação, nesse artigo de 1923, Freud não se estende sobre as implicações dessa questão. Ele sugere que as antigas descrições das possessões demoníacas seriam relatos de ataques histéricos e, no caso de Christoph Haitzmann, a figura do Demônio seria um duplo e um substituto do pai. Mais à frente no texto, Freud pondera que:

Um caso clínico de demonologia desse tipo produziria, sob a forma de metal puro, um material que nas neuroses de uma época posterior (não mais supersticiosas, mas antes hipocondríacas) tem de ser laboriosamente extraído, pelo trabalho analítico, do minério das associações livres e dos sintomas.4

3 S. Freud (1923a). Uma neurose demoníaca do século XVII, E.S.B., XIX.

4 S. Freud (1923a). Uma neurose demoníaca do século XVII, E.S.B., XIX, p. 102, sublinhado por mim

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96visões freudianas

Dessa maneira, Freud apontava que, ao longo do tempo, o “metal puro” da histeria, fonte primordial da psicanálise, tenderia gradativamente a rarear e, ao mesmo tempo, misturar-se a outros “metais”, produzindo novas ligas, desconcertantes, para a manifestação da subjetividade. Diferentemente da exuberância das manifestações histéricas, com sua profusão de sintomas, seus corpos retorcidos, suas histórias fantásticas e cativantes, gradualmente foram se configurando outras manifestações clínicas, insidiosas, silenciosas e secretas, que exigiriam não apenas dos psicanalistas, mas também de todos os clínicos, um esforço e uma energia cada vez maiores para extrair, analisar e separar os elementos que se mesclaram para manifestar o sofrimento do paciente, e, assim, compreendê-lo e tratá-lo.

É intrigante constatar que Freud, geralmente tão atento à importância dos pequenos detalhes do discurso, ao aspecto significativo das psicopatologias da vida cotidiana e às manifestações culturais do inconsciente, não tenha se debruçado de maneira mais sistemática sobre as manifestações hipocondríacas, já em 1923 reconhecidas por ele como uma “via privilegiada de manifestação do sofrimento humano”. Uma constatação profética, cujo alcance nem o próprio Freud pôde imaginar.

A hipocondria, porém, nunca foi estranha à obra freudiana. Desde seus primeiros escritos nos anos 1890, as referências a ela são constantes, porém fugazes. Ele a caracteriza quase sempre como uma manifestação sintomática inespecífica, sem vinculação patognômica a um quadro psicopatológico particular. Nos artigos desse período, Freud aponta a presença de sintomas hipocondríacos em quadros por ele caracterizados como histéricos, neuróticos obsessivos, fóbicos, na neurastenia e na neurose de angústia, e também nas então chamadas parafrenias, caracterizadas por episódios alucinatórios ou delirantes.5

5 Manifestação mencionada por Freud desde seus primeiros escritos e consagrada por E. Kraepelin nos anos 1910, a parafrenia é muitas vezes confundida

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Anos depois, em 1911, a partir da análise do relato de Schreber6 e, em 1914, com o desenvolvimento do conceito de narcisismo7, Freud buscou compreender a especificidade do fenômeno hipocondríaco a partir das dinâmicas narcísicas. A hipocondria passou, então, a ser considerada como uma das neuroses narcísicas, especialmente associada à paranoia. Mesmo depois dessa nova leitura, Freud continuou situando a hipocondria como uma das três grandes manifestações da neurose atual, ao lado da neurastenia e da neurose de angústia.8

Assim, a perspectiva freudiana evidenciou que a hipocondria não se constitui como uma entidade nosográfica autônoma, podendo manifestar-se livremente em todos os quadros psicopatológicos, fazendo parte também de muitas de nossas experiências cotidianas.

À fina capacidade de observação de Freud não escapou a dimensão hipocondríaca da atividade onírica, inspirando-o a pensar também sua função na estruturação do psiquismo. Essa compreensão não apenas revelou a capacidade mimética e migratória da hipocondria, já apontada por diversos autores ao longo da história, mas também contribuiu para compreendê-la como uma manifestação vinculada às dinâmicas inconscientes estruturantes de diferentes modos de subjetivação.

com a esquizofrenia ou vivências dissociativas mais graves. Entretanto, ela se refere especificamente a delírios crônicos, alucinações e fantasias sem a ruptura completa com a realidade, característica das psicoses. Diferentemente destas, as parafrenias são circunscritas a algumas experiências do sujeito sem comprometer mais profunda ou totalmente sua vida cotidiana, social e relacional.

6 S. Freud (1911b). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia, E.S.B., XII.

7 S. Freud (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução, E.S.B., XIV.

8 S. Freud (1916-1917b). Conferência XXII: algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão. Conferências introdutórias sobre a psicanálise II, E.S.B., XVI, p. 454.

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3. O corpo, outro em si

Queixando-se de algumas fantasias sádicas e outras masoquistas, um jovem de 22 anos apresentou-se à consulta de um psicanalista. Durante seu relato, ele fez uma leve referência a uma cirurgia que sofrera recentemente para a remoção de um testículo atacado pela tuberculose. Meses depois, ele consultou novamente esse analista para perguntar-lhe se devia acatar o conselho de um cirurgião e retirar o outro testículo, que também havia sido acometido pela doença. Diante dessa pergunta dramática, o analista ficou particularmente intrigado ao perceber que, ao invés da preocupação, do medo, ou mesmo de uma certa depressão que poderiam ser esperados nessas circunstâncias, o paciente mostrava-se eufórico, “num estado de grande excitação”. Ele solicitava realizar um tratamento psicanalítico depois da cirurgia, pois imaginava que “após a eliminação da libido orgânica seria mais fácil restabelecer os desvios patológicos da [sua] psiquê”. Surpreso com essa observação despropositada, dissociada do caráter trágico da situação, o analista sugeriu deixar a decisão sobre a cirurgia nas mãos do cirurgião, questionando ao mesmo tempo a

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utilidade da análise partindo de tais pressupostos. Dias mais tarde, o paciente foi operado.

Algum tempo depois, o analista foi procurado pelo pai do rapaz, que, desesperado, relatava grandes mudanças no caráter e no modo de vida de seu filho. Ele apresentava um comportamento bizarro, negligenciava os estudos e a música (que antes o apaixonava), não se preocupava com horários, não queria ver seus pais. O jovem justificava esta atitude dizendo estar enamorado de uma jovem cujo pai era um burguês eminente da cidade.

Diante da insistência do pai, o analista recebeu novamente o jovem constatando “o caráter erotomaníaco e interpretativo” de suas atitudes. Ele enumerava os indícios do amor da jovem por ele, ao mesmo tempo que afirmava que “o mundo inteiro interessava-se [por] seus órgãos genitais”. A ideia de que “algumas pessoas, inclusive, referiam-se diretamente a eles” levou-o a desafiar um rapaz em duelo. O paciente afirmava também que sua mãe era “inconscientemente apaixonada” por ele, tendo comunicado a ela sua impressão. O quadro clínico agravou-se, revelando rapidamente o fundo homossexual de suas ideias paranoicas. O paciente acabou sendo internado em um sanatório.

Em outra ocasião, esse mesmo analista foi consultado por uma jovem estrangeira que apresentava “crises de angústia particularmente intensas”. Sem poder ficar só nem por um segundo, ela queixava-se de sensações corporais generalizadas e do medo de morrer. Ela relatava a impressão de ter “algo na garganta”, que sentia alguns “pontos” saindo de seu couro cabeludo, que suas orelhas alongavam-se, que sua cabeça se destacava para a frente, que seu coração batia etc. Todas essas sensações eram consideradas por ela como sinais de sua morte iminente. Além dessas fantasias e sensações, a jovem pensava também em suicidar-se.

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200o corpo, outro em si

A análise dessa paciente evidenciou a relação entre seus sintomas hipocondríacos e sua angústia de morte, revelando um quadro misto de sintomas puramente hipocondríacos e sintomas histéricos. O analista chamou a atenção para o fato de que, no início do tratamento, o quadro clínico parecia configurar-se como uma esquizofrenia, mas aos poucos revelou-se como um esboço de um quadro paranoico. O analista interpretou as queixas hipocondríacas da paciente a partir de um registro simbólico. As sensações na garganta corresponderiam “ao desejo de fazer escutar e admirar sua bela voz de contralto”, os pontos do couro cabeludo representariam “os parasitas que um dia foram descobertos em sua cabeça e foram motivo de grande vergonha”, o alongamento das orelhas foi associado ao fato de que, na escola, “uma vez a chamaram de burra”.

O que haveria em comum entre esses dois casos? No primeiro, constatamos a repercussão de uma doença e de um episódio cirúrgico no desenvolvimento de um quadro grave de paranoia, enquanto, no segundo, sensações corporais, de natureza hipocondríaca, inicialmente consideradas como manifestações esquizofrênicas, com o tempo, revelaram-se associadas a dinâmicas histéricas. Até aqui, aparentemente, poucas semelhanças poderiam ser apontadas entre esses dois pacientes.

Não era essa, porém, a opinião de Sandor Ferenczi, o analista desses dois pacientes. Discutidos em momentos diferentes de sua obra, esses casos são evocados por ele para destacar a importância das concepções freudianas sobre o narcisismo e sobre a hipocondria em particular. Segundo Ferenczi, eles convidam à reflexão sobre a compreensão psicanalítica das doenças orgânicas e de seus desdobramentos psíquicos.1

1 S. Ferenczi (1917). Des pathonévroses, p. 268.

S. Ferenczi (1919). Psychanalyse d’un cas d’hypocondrie hystérique, p. 73.

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Hipocondria, patoneurose, neurose de órgão

Poucos discípulos de Freud se dispuseram tanto como S. Ferenczi (1873-1933) a se aventurar na clínica para além do terreno das psiconeuroses, até então delimitado como o campo exclusivo de ação da psicanálise.2 Aceitando o desafio de tratar psicóticos, pacientes com doenças orgânicas e mesmo com doenças neurológicas, Ferenczi sustentava que a teoria psicanalítica oferecia preciosos instrumentos conceituais para compreender as dinâmicas de tais pacientes e, sobretudo, para desenvolver novos recursos clínicos a fim de tratá-los em contextos psicoterapêuticos. Por meio de diferentes manejos dos dispositivos clínicos, do enquadre e da técnica psicanalítica clássica (alvo de inúmeras polêmicas, inclusive com Freud), Ferenczi pôde, a partir da clínica com esses pacientes, ampliar a clínica psicanalítica para além das fronteiras estabelecidas por seu mestre vienense.

Inspirado pelo caso do jovem com tuberculose nos testículos, Ferenczi ampliou as formulações freudianas sobre o narcisismo apontando que o retraimento narcísico provocado por uma doença ou sintoma orgânico pode tanto ser a fonte de uma manifestação psicopatológica como de um outro sintoma orgânico. Segundo ele, o caráter traumático da castração cirúrgica do jovem teria desencadeado seus transtornos mentais. Admitindo que o quadro apresentado pelo jovem pudesse ser considerado como o de uma paranoia traumática, Ferenczi sugere também uma outra perspectiva para compreendê-lo. A experiência com outros pacientes com doenças orgânicas levou Ferenczi a caracterizar um grupo específico de neuroses consecutivas a essas doenças, que denomina neuroses de doenças ou patoneuroses. Segundo ele, “em muitos casos, a libido, retirada do mundo exterior, volta-se não para o ego, mas para o

2 Cf. As psiconeuroses e as neuroses atuais, no Capítulo 2. Ver também Nosografia psicanalítica e A clínica do recalcamento, em R. M. Volich (2000/2022). Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise. Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

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4. O corpo entre o trauma e os ideais1

Todos os dias, as redes sociais e a mídia nos oferecem uma legião de pessoas sorridentes, bonitas, bem-humoradas, exibindo algumas vezes de maneira ostensiva sua beleza, seu poder, sua inteligência, seu dinheiro. Cidadãos do mundo, viajam, valorizam seus dotes, cultivam seus corpos, enaltecem seus feitos, divulgam suas fórmulas de sucesso. Pessoas que convocam a admiração, suscitam a inveja, alimentam as especulações em torno de sua vida, monetizam sua marca e suas imagens, fazendo a fortuna de uma verdadeira indústria de celebridades, de produtos e de empresas de tecnologia que os promovem. Parecem felizes, exibindo uma satisfação, aparentemente, sem fim… Sofreriam?

Misturam-se nesses comportamentos diferentes doses de vaidade, de autoestima elevada, a busca de novas formas de relacionar-se com o outro e de ganhar seu sustento, ou ainda, para alguns, apenas o

1 Este capítulo amplia algumas hipóteses desenvolvidas no artigo “Sofrer, gozar, idealizar. O corpo entre os traumas e os ideais”, publicado em Viver Mente&Cérebro, junho de 2005, pp. 28-36.

Agradeço a Ananda Honorato a atualização e ampliação de algumas das informações e perspectivas desenvolvidas nesta nova versão. Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

desejo de registrar momentos de bem-estar e de satisfação. É claro que é bom sentir-se bem consigo mesmo, com seu corpo, com a vida social e profissional, sonhar e fazer projetos, ter sucesso em suas realizações. Porém, muitas vezes, chama a atenção o excesso.

A exuberância e a insistência de sorrisos que parecem nunca se desfazer, de biografias que não registram derrotas, dúvidas nem decepções. Uma felicidade muitas vezes plastificada, impermeável às intempéries do existir.

Mais do que o próprio prazer, tais pessoas solicitam permanentemente o reconhecimento e o encantamento do outro. Entretanto, mesmo a admiração esperada, quando recebida, rapidamente se revela insuficiente, desencadeando novas ações para a superação de seus feitos, alimentando uma busca sem fim por likes, seguidores e notoriedade.

Vislumbramos nessas cenas as tramas nas quais, desde o nascimento, se tecem as relações do ser humano com seu semelhante e consigo mesmo. As marcas de satisfações e prazeres, os traços narcísicos, o interjogo entre as forças pulsionais, os afetos e seus objetos de satisfação, os anseios e frustrações que forjam a subjetividade, as dinâmicas identificatórias, a busca por um lugar satisfatório no mundo e nas relações sociais. A luta para existir para si, de existir para o outro.

A aparência física, a inteligência, as habilidades, os sinais de poder e de riqueza são apenas alguns dos meios pelos quais o sujeito busca ser reconhecido pelo outro e por si mesmo. Entre esses atributos, o corpo e as experiências a ele relacionadas se constituem como referências especiais para a apreensão das relações com o mundo, com o outro e consigo. Matriz da subjetividade humana, o corpo guarda as marcas de nossa chegada ao mundo, das formas como fomos acolhidos, cuidados, reconhecidos, satisfeitos ou frustrados em nossas necessidades e desejos. O corpo é nosso principal “patrimônio”.

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236o corpo entre o trauma e os ideais

Nem todos podem oferecer ao olhar do outro o poder, o sucesso, o dinheiro. Em busca do reconhecimento, todos podemos oferecer nossos corpos a esse olhar, assim como também somos solicitados pelo corpo do outro a reconhecê-lo com nosso olhar.

Como vimos, a partir de dois corpos somos concebidos, o corpo materno nos abriga, desde o início, ainda no ventre, em nossos corpos mutantes registramos as primeiras impressões.2 Após o nascimento, no corpo ficam marcadas as experiências que temos do mundo: cheiros, sabores, luzes, sons, calor, frio. São estados e movimentos desse corpo que estabelecem nossas primeiras formas de comunicação, muito antes do pensamento e da linguagem. Nele se constrói uma história, marcada por sensações, movimentos, percepções e traços do encontro com o desconhecido. É o corpo, ainda, o último reduto ao qual nos recolhemos nos momentos de dificuldade, tristeza, desamparo e de dor. Essas e outras dimensões hipocondríacas de nossas relações com o mundo e com aqueles com quem convivemos acompanham-nos ao longo de toda a vida.

Não surpreende, portanto, encontrarmos o corpo na linha de frente dos modos de expressão do modo de existir contemporâneo, e, particularmente, como porta-voz privilegiado, das dificuldades do sujeito em lidar com o outro, com suas expectativas, com suas próprias condições de vida.

Insatisfeitos com a degradação de nossas formas de existir e do meio ambiente, com a radicalização de ideias, discursos e com a violência crescente e indiscriminada com a qual convivemos, inseguros quanto à situação econômica, solitários e empobrecidos por relações pessoais e sociais esgarçadas e vazias, incapazes de constituir valores, símbolos e identidades organizadoras de nossa vida individual e coletiva, uma vez mais, buscamos o reconforto em nossos corpos… Porém, nesses tempos em que, como nunca, se promove o culto, a

2 Cf. A hipocondria e a constituição do psiquismo, no Capítulo 2.

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exibição e os cuidados do corpo, surpreendentemente, também ele nos decepciona. É fato: estamos de mal com nossos corpos.

Mal-estar no corpo

Uma pesquisa realizada na França em 2003, com mil mulheres pelo Observatoire Cidil des Habitudes Alimentaires (OCHA), revelava que 86% das mulheres se diziam insatisfeitas com suas formas anatômicas. Apenas 14% afirmavam sentir-se bem com seu corpo sem terem para isso utilizado qualquer procedimento.

No Brasil, nos últimos vinte anos, esse quadro não é diferente. Nesse período, o país tem oscilado entre os três países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas. Em 2003, ele se situava em segundo lugar no mundo, tendo realizado cerca de 400 mil cirurgias.3 Naquele ano, uma pesquisa mencionada por C. Finger revelava que 50% dos entrevistados estavam insatisfeitos com seu corpo, enquanto uma outra, realizada pelo Instituto InterScience com uma amostra de 12.477 entrevistados, mostrava que 90% das mulheres e 65% dos homens afirmavam sonhar com mudanças no próprio corpo. Entre os pesquisados, 5% já tinham feito alguma plástica, dos quais 90% deles pretendiam fazer outra. Entre aqueles que nunca haviam realizado um procedimento dessa natureza, 30% declararam que esperavam criar coragem para realizá-la.4

Em 2009, o Brasil ocupou o terceiro lugar na realização de cirurgias plásticas estéticas, depois dos Estados Unidos e da China, um aumento significativo para mais de um milhão de procedimentos estéticos cirúrgicos, enquanto em todo o mundo foram realizadas

3 R. Valladares, B. Moherdaui, M. Jaggi & S. Brasil (2004). Mudança radical.

4 C. Finger (2003). Brazilian beauty.

R. Valladares, B. Moherdaui, M. Jaggi & S. Brasil (2004). Mudança radical. Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

238o corpo entre o trauma e os ideais

5. Horizontes médicos

O período das Grandes Navegações pelos misteriosos oceanos da vida humana ainda não foi concluído. Os horizontes da medicina foram imensamente ampliados desde a Antiguidade. A Renascença propiciou a descoberta de novos continentes e, nos últimos dois séculos, inúmeras terras se revelaram, num ritmo cada vez mais acelerado, aos investigadores dos processos do viver. Das descobertas anatômicas de Vesalius (1543), passando pela do sistema circulatório de Harvey (1628), a pesquisa médica e biológica vem traçando atlas cada vez mais minuciosos, com paragens antes desconhecidas. Nos séculos XIX e XX, a fisiologia, o sistema nervoso, a genética, os sistemas neuro-hormonoimunológicos foram apenas alguns dos continentes mais explorados para desvendar os mistérios do humano.1

Em nosso século, vivemos particularmente as esperanças depositadas nas novas paisagens da biologia molecular e da genética. O mapeamento completo do genoma humano continua permitindo aprofundar o conhecimento dos mecanismos fisiológicos, anatômicos

1 Cf. Perspectiva histórica. In R. M. Volich (2000/2022). Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise.

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e biológicos de inúmeras doenças e desenvolver o tratamento de muitos males que escapavam ao nosso conhecimento.

As teorias dos “vapores”, da “simpatia”,2 da “vizinhança” aparentemente não mais ocupam as mentes nem os debates científicos, mas a presença de sua herança no imaginário das mais modernas teorias da medicina é ainda perceptível. Os cientistas do projeto Genoma Humano confrontaram-se, por exemplo, com a surpreendente constatação de que as áreas consideradas “desertas” de informação, ou o DNA-lixo, supostamente sem serventia, influem de uma forma ainda não completamente compreendida sobre as áreas denominadas “urbanas”, carregadas de informações, até então consideradas como as únicas significativas para o deciframento do código genético.3 Eles se depararam ainda com a surpreendente descoberta de que é a função que deveria resultar da ação de um certo gene que, de certa maneira, determina a ação do gene, numa verdadeira inversão da causalidade antecipada por suas hipóteses. Além disso, a epigenética tem revelado que estímulos ambientais e a experiência podem ativar determinados genes e silenciar outros, produzindo transformações

2 Cf. Simpatia, vapores e doenças dos nervos, no Capítulo 1.

3 Lançado em 1988, o Projeto Genoma Humano tinha como missão realizar o sequenciamento completo dos pares de DNA humano. Concluído em 2003, ele revelou que cerca de 45% do genoma é composto de DNA não codificante (muitas vezes denominado “DNA-lixo”) que, em princípio, não contém nenhuma informação passível de ser traduzida em uma proteína cuja função inicialmente não foi compreendida. Com o tempo, a pesquisa vem mostrando que essa parte do DNA tem uma importante função na regulação e no controle da expressão dos genes, determinando, por exemplo, a diferenciação de células-tronco em neurônios, ou ainda provocando a formação de tumores, se expressa de modo ou em tempo errados.

Human Genome Project.

A. C. S ouza Góes & B. V. X. de Oliveira (2014). Projeto Genoma Humano: um retrato da construção do conhecimento científico sob a ótica da revista Ciência Hoje.

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profundas no organismo, não apenas na expressão fenotípica de um gene, mas também no DNA e no código genético.4

Se a localização do gene e a decodificação de suas sequências não permitem explicar completamente a ação dos processos genéticos, se o ambiente também pode influenciar esses processos, até há pouco considerados determinantes e imutáveis, que tipos de relação a distância e de causalidade permitir-nos-iam compreender uma organização que escapa aos minuciosos modelos e técnicas da pesquisa do Genoma?

“Calma”

Não precisamos ir tão longe, até a escala molecular, para percebermos que algo falha no modelo predominante de compreensão dos processos vitais, da doença e do sofrimento humano. Apesar dos reconhecidos e importantes progressos diagnósticos e terapêuticos da medicina, é ainda grande o número de pacientes que apresentam sintomas e manifestações cujas causas permanecem inexplicadas, mesmo após as mais minuciosas investigações, e para as quais são inócuos os tratamentos prescritos ou paradoxais os efeitos que produzem. Até mesmo a saúde ou os quadros benignos apresentados por muitos doentes confrontam os médicos com situações surpreendentes.

Um número significativo de estudos aponta que muitos pacientes simplesmente não acreditam nas boas notícias comunicadas por seus médicos.

I. G. McDonald e colaboradores relatam que, apesar de terem sido comunicados por seus médicos quanto à normalidade de seus exames cardiológicos, muitos pacientes continuavam “inexplicavelmente”

4 R. C. Francis (2011). Epigenetics: How environment shapes our genes.

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ansiosos a respeito de sua saúde.5 Em um estudo prospectivo, R. Mayou indica que, nos três meses seguintes ao recebimento do resultado normal de exames cardiológicos, um terço dos pacientes permanecia ansioso por temer padecer de algum problema cardíaco.6 R. Fitzpatrick e A. Hopkins apontam que 40% dos pacientes que consultaram serviços especializados de neurologia queixando-se de dores de cabeça e que receberam um diagnóstico benigno para seus sintomas ainda continuavam preocupados um mês após a consulta, considerando que aquelas dores seriam reflexo de uma “doença séria”. Essa preocupação persistia apesar das tentativas de tranquilização por seus médicos.7 J. L. Donovan e D. R. Blake constataram reações semelhantes em serviços de reumatologia. Um grande número de pacientes considerava ineficaz o esforço dos médicos em diminuir a ansiedade que eles sentiam insistindo no caráter benigno dos sintomas, ressaltando o bom prognóstico quando da detecção da doença em seu estágio inicial, ou ainda as grandes probabilidades de cura. Alguns desses pacientes, inclusive, relacionavam tais tentativas de tranquilização com a emergência futura de dor ou de uma piora de seu estado funcional.8 Numa pesquisa com mulheres assintomáticas que apresentavam risco pessoal ou familiar de desenvolverem uma patologia da mama, pude constatar que, muitas dessas mulheres permaneciam preocupadas e com medo de abrigarem uma doença maligna, apesar dos resultados negativos de exames para o controle e a detecção precoce de sinais suspeitos.9

5 I. G. McDonald, J. Daly, V. M. Jelinek, F. Panetta & J. M. Gutman (1996). Opening the Pandora’s box: The unpredictability of reassurance by a normal test result.

6 R. Mayou (1976). The nature of bodily symptoms.

7 R. Fitzpatrick & A. Hopkins (1981). Referrals to neurologist for headaches not due to structural disease.

8 J. L. Donovan & D. R. Blake (2000). Qualitative study of interpretation of reassurance among patients attending rheumatology clinics “just a touch of arthritis, doctor?”

9 R. M. Volich (1992). Sein reel et sein imaginaire: une approche psychosomatique des pathologies mammaires et des risques oncologiques. Exemplardedivulgação Reproduçãoproibida

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6. Desafios

“Eram todos incompetentes.”

“Não” – ele tinha certeza – “nunca mais voltaria ali”. “Humilhado”, “esquecido”, “desrespeitado” eram apenas alguns dos incontáveis adjetivos que Jean utilizava para expressar sua decepção com o médico que consultara em um famoso serviço de gastroenterologia da cidade. Uma decepção tanto maior pelo fato de ele haver depositado (mais uma vez…) toda a sua esperança no renome daquele hospital, depois de uma série de consultas e exames inconclusivos em vários outros serviços especializados.

Seu estômago queimava, seu apetite lhe escapava, ir ao banheiro tornara-se um gesto angustiante diante dos veredictos que, a cada vez, seus dejetos emitiam sobre suas entranhas. As sensações de sua língua seca, da sudorese e das noites de insônia, acalantadas apenas pelos borborismos, que as noites silenciosas amplificavam, pareciam nada significar para os médicos que consultara. Noites insuportáveis, solitárias, nas quais ele travava uma luta inglória contra suas lembranças. O que fizera de seus 38 anos?

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Em meio à escuridão dessas noites, às vezes, de repente, saltava diante de Jean, um bem-sucedido executivo de uma multinacional, um ágil moleque que se divertia nos meses de junho pulando os muros da vizinhança em busca das ameixas, abricós e pêssegos que surgiam com a aproximação do verão. Seu mundo, então, parecia imenso, povoado de uma multidão de paisagens, cores, amigos e odores típicos do sul da França. Ofuscados pela luz de julho, seus olhos brilhavam cada vez mais na medida em que se aproximavam as tão esperadas férias de verão.

Não fora apenas a luz da Provença que se eclipsara de sua vida. Ainda no escuro do quarto, Jean a cada vez baixava os braços diante de sua incapacidade de afastar outras imagens, essas, traiçoeiras. Não podia ele ficar apenas com seus amigos de escola, com seus cúmplices de brincadeiras à beira-mar? Não podia ele pensar em suas conquistas profissionais que fizeram que alcançasse um cargo invejável para alguém de sua idade? Uma fisgada no abdômen testemunhava sua impotência. Sucediam-se as imagens de alegres passeios de carro com seus pais e seus dois irmãos mais novos, as visitas de seus tios em Bordeaux, as adegas, com seu cheiro acre e o frescor do ar de seu ambiente.

Muitas vezes fizera aquela viagem, menos uma. Escolhera ficar com seus amigos, que planejaram um passeio pelas montanhas da redondeza. Um passeio cujo encantamento foi bruscamente quebrado quando, ao retornar, foi comunicado pela mãe de Sylvain que seus pais haviam tido um acidente na estrada. Apenas isso. Era a hora do Sol poente.

Não era um sonho. Eram puras lembranças. Milhares de vezes, durante aqueles 23 anos elas se infiltraram em suas longas noites. Sensações vivas, imagens presentes, reais. Seguiam sempre o mesmo curso, interrompiam-se no mesmo ponto. Congelavam. Mesmo quando ele queria prosseguir, a sensação de secura na boca

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obrigava-o a levantar-se para beber água, sua bexiga impunha sua presença obrigando-o a urinar, ou, então, ele passava a ruminar sobre aquela queimação no estômago, que “certamente não deveria prenunciar nada de bom”.

Durante 23 anos, poucas vezes conseguira lembrar do enterro de sua mãe. As imagens que guardava dela eram sobretudo de fotografias que, com o tempo, cada vez menos ele contemplara, assim como nunca mais voltara às montanhas da Provença.

Desde o acidente, a vida em sua casa, com seu pai e seus irmãos, passou a organizar-se por uma série de rituais que fazia que tudo “funcionasse”: as compras, a limpeza, a alimentação – quase tudo era assumido por eles, com pouca ajuda de fora. Tudo era pautado por regras que faziam que a ordem se mantivesse na casa e que todos fossem muito bem-sucedidos em seus estudos e profissões. Regras explícitas, cuidadosamente enumeradas num quadro de avisos. Regras implícitas, jamais mencionadas, mas, como as demais, minuciosamente respeitadas. Entre elas, nunca aludir àquela última viagem a Bordeaux, nem às montanhas da Provença.

“Por sinal”, foi logo após o acidente que se mudaram para a região parisiense. Também “por sinal” – surpreso, lembrou-se ele, numa sessão após quase um ano de análise – foi pouco tempo depois da mudança que começara a sentir as sensações abdominais. Meses depois, Jean, com 16 anos, fez sua primeira consulta num serviço de gastroenterologia, em função de uma suspeita de gastrite, que foi imediatamente descartada pelo médico. Da primeira vez, o diagnóstico o aliviara, e, por alguns meses, nada sentira. Porém, pouco tempo depois, as mesmas dores voltaram, gradativamente se estendendo em preocupações com sua respiração, com seu hálito, com a sua suposta palidez, com os gases intestinais, inaugurando seu périplo entre as especialidades médicas.

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No início, os médicos espantavam-se. Quase se divertiam, ao ver alguém tão jovem tão preocupado com sintomas, que, segundo eles, “se existiam, nunca indicaram a presença de qualquer doença”. Muitas vezes, cautelosos, obtinham sempre a confirmação de numerosos exames complementares que “deveriam provar” a Jean que não havia realmente nenhum motivo para se preocupar. Algumas vezes, esperando que os medicamentos fossem mais eloquentes do que eles conseguiam ser, prescreviam um ou outro remédio sintomático que, em alguns casos, realmente conseguiram por um tempo tranquilizar Jean, até que suas sensações reaparecessem novamente.

Por mais de vinte anos, Jean permaneceu nessa ciranda cada vez mais frenética. Num certo momento, chegou a considerar “cuidar ele mesmo de seu caso”, estudando medicina. “Sem saber por quê”, pensou que não suportaria os estágios cirúrgicos e os plantões no Pronto Atendimento… Resignou-se a ser “só paciente”… Resignação que – no contato com os médicos, com a inocuidade de seus tratamentos e com ele cada vez menos paciente – transformou-se lentamente em contrariedade, ressentimento, mágoa, amargura. Do ódio ainda não suspeitava.

Foi “sem ódio”, portanto, que ele chegou à análise. Nunca considerara a necessidade de uma psicoterapia. Tão reais eram suas sensações corporais, seus incômodos, seus sintomas que sempre julgara que apenas os médicos poderiam trazer-lhe a solução. Dos médicos nunca ouvira a sugestão de um trabalho psicoterapêutico. De seus colegas executivos, pragmáticos, muito menos. Estes, inclusive, tentavam tranquilizá-lo, entre envergonhados e orgulhosos de suas pontes de safena, de suas calvícies prematuras, de suas úlceras e de suas altas taxas de colesterol, explicando-lhe que muitas vezes “eram essas as provas de seus sucessos profissionais precoces”… Nenhum deles nunca estivera nas montanhas da Provença…

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Negar a mensagem embutida na garrafa do sintoma é obrigar o paciente a dobrar a aposta em sua manifestação do desencontro entre a experiência no mundo e sua capacidade de sustentá-la simbolicamente sem padecer demais. Negar as formas próprias de construção de uma relação com um corpo que não cessa de pulsar é deslegitimar o que foi possível fazer com a precariedade constitutiva.

Ser herdeiro de Freud é assumir a revisão constante de nossas próprias formulações para delas extrair o máximo. Rubens Volich faz parte dessa tradição de autores que mostra que o psicanalista se revela a partir de uma ética e não por qualquer título que se possa acumular.

Neste livro, ele faz um levantamento rigoroso de diferentes representações da hipocondria ao longo dos séculos e dos caminhos pelos quais estas foram progressivamente descartadas pela linguagem médica contemporânea. Além de sua instigante interpretação e manejo das manifestações da hipocondria, Volich reconhece a dignidade das saídas do sujeito diante do inexorável do sexual e da morte.

PSICANÁLISE
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