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Homens em análise

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Lima

Quais destinos uma análise pode oferecer aos homens que se dispõem a essa travessia? Redesenhando o debate entre psicanálise e masculinidades, este livro disseca a virilidade enquanto modo particular de um ser falante buscar se fazer “homem” – um arranjo cujas coordenadas subjetivas podem ser não apenas traçadas teoricamente, como também atravessadas em um percurso de análise. As construções de Freud e Lacan quanto à masculinidade são aqui colocadas em movimento a partir dos casos clínicos que as fundamentaram e as desdobraram, sem perder de vista suas ressonâncias sociais e políticas. Nessa esteira, a obra convida as referências clássicas da psicanálise a se deixarem engajar com as produções contemporâneas em torno de gênero, raça, sexualidade e geopolítica, mantendo, ao mesmo tempo, sua orientação pela radicalidade da clínica psicanalítica. Prefácio Marcus André Vieira Posfácio Gilson Iannini

Homens em análise

Psicanalista, é doutorando e mestre em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e graduado em Psicologia pela mesma universidade. Membro sob condição especial suspensiva da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise pela Nova Política da Juventude. Pesquisador e autor de publicações em psicanálise, gênero, sexualidade e masculinidades.

O que querem os homens? Esperamos um século para poder formular essa pergunta. Foi preciso cair alguma coisa, foi preciso fazer vacilar os semblantes, para que as masculinidades surgissem como questão. Neste livro, estamos diante de um autor que oferece uma leitura refinada do paradigma dos estudos de gênero e queer, que transita com invejável familiaridade pelos corredores intricados das obras de autores como Judith Butler e Paul Preciado.

Vinícius Lima PSICANÁLISE

Vinícius Lima

Homens em análise Travessias da virilidade

PSICANÁLISE

Mas o principal mérito de Vinícius Lima é que ele preserva a infamiliaridade indispensável ao ofício impossível do psicanalista. Seu trabalho estabelece um marco para a psicanálise contemporânea. Ao mesmo tempo que escuta o que este século tem a dizer e que acolhe pacientemente suas interrogações, não perde por nenhum segundo sequer o gume da lâmina cortante que a radicalidade da clínica psicanalítica exige. Gilson Iannini


HOMENS EM ANÁLISE Travessias da virilidade

Vinícius Lima

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Homens em análise: travessias da virilidade © 2023 Vinícius Lima Editora Edgard Blücher Ltda. Publisher Edgard Blücher Editores Eduardo Blücher e Jonatas Eliakim Coordenação editorial Andressa Lira Produção editorial Lidiane Pedroso Gonçalves Preparação de texto Vânia Cavalcanti Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Ana Lúcia dos Santos Capa Laércio Flenic Imagem da capa Glenn Brown, Architecture and morality

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Lima, Vinícius Homens em análise : travessias da virilidade / Vinícius Lima. – São Paulo : Blucher, 2023. 416 p. : il. Bibliografia

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

1. Psicanálise 2. Homens 3. Masculinidade I. Título.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

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ISBN 978-85-212-2159-3

23-4853

CDD 150.195

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Conteúdo

Heterotopias heterossexuais da clínica psicanalítica da masculinidade

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Marcus André Vieira Introdução: Homens e masculinidades na psicanálise

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De onde falamos

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Homens em análise

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Butler com Lacan: o falo cômico e suas consequências para a virilidade

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Travessias da virilidade

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1. Virilidade cômica: a ostentação fálica do ter e seus avessos 63 Falo e pênis: a cômica (não) relação entre significante e órgão

71

Para além do trágico: o cômico na releitura lacaniana do falo

80

O falo como significante da falta e a comédia da heterossexualidade 95 A virilidade cômica como negação da castração: um “macho” angustiado

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conteúdo

Virilidade e degradação do objeto: a significação do falo na vida amorosa dos homens

112

O lugar da raça na comédia do falo

129

O amor se endereça à castração: dificuldades masculinas com o mais-além da lógica fálica

142

2. Fazer o luto de ser o falo

151

O paciente de Ella Sharpe: ser o falo para proteger o Outro da castração

158

O paciente impotente de Lacan: ser o falo para não correr o risco de tê-lo

177

A desidentificação ao falo na direção de tratamento dos homens na neurose obsessiva

198

3. O casamento com o falo

211

O falocentrismo danificado pelo objeto a

214

A detumescência do falo

229

O inferno da ereção e a angústia do pequeno Hans

243

O fantasma da detumescência no Homem dos Ratos

252

4. Atravessar o fantasma, autorizar-se do feminino

261

A travessia da fantasia à luz da lógica da sexuação

264

Gênero, diferença sexual e sexuação: masculinidade e feminilidade como modos de gozo

272

Sexuação, raça e racismo

291

A comédia do gozo fálico

302

Travessia da fantasia, travessias da virilidade

318

Bernardino Horne: o pintinho esmagado que abre para o feminino 340 Jésus Santiago: a plasticidade do feminino para além da rigidez fálica

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5. Epílogo: Masculinidades além do falo

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365

Virilidades sinthomáticas: das travessias da virilidade às virilidades atravessadas pelo feminino

373

Coda: o não-todo nos homens

376

Posfácio

383

Gilson Iannini Referências

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Heterotopias heterossexuais da clínica psicanalítica da masculinidade Marcus André Vieira

Quando se trata do debate sobre a masculinidade, a psicanálise costuma ficar na defensiva. Acusados de heteronormatividade, pelo destaque dado ao falo e ao pai na teoria freudiana, nós, psicanalistas, afirmamos: “Não é bem assim”. Verdade. Afinal, Freud descreveu o modo de subjetivação padrão em seu tempo, o da normasculina – segundo o neologismo cunhado por J. Lacan –, mas não conferiu, em nenhum momento, valor positivo a esse modo. No entanto, a subjetividade que corresponde à norma, heterossexual, posta no centro da cena de sua teoria, não deixa de incomodar. Este livro responde a essa inquietação sem se perder, porém, no jogo do ataque vs defesa, e isso graças a uma manobra essencial. Seu autor assume a causa da psicanálise, em nada cis-heteronormativa, mas, em vez de colocar a subjetividade masculina em debate, toma-a como objeto de estudo, examina-a no detalhe, no microscópio clínico da própria psicanálise. Vinícius não deixa de discutir o quanto o masculino se apresenta no registro da opressão e da submissão, mas essencialmente

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o investiga. Assume, assim, que se trata de uma posição em análise, e não a posição do analista ou da psicanálise. Nesse movimento, refaz o gesto original de Freud, para quem as variações em torno do masculino eram abordadas, em um plano bem concreto, a partir do que se descrevia à época como neurose obsessiva. A tradição freudiana associou essa entidade clínica e suas dores aos tormentos vividos por aqueles conformados como machos – fossem eles tomados como casos patológicos, os neuróticos da época, ou não. Lacan segue o mesmo modo de abordagem, mas rompe explicitamente a relação entre esse modo de ser e a anatomia. Desloca a ênfase: se aos nascidos com pênis atribui-se o poder, é esta atribuição que importa, e não o órgão. É o falo, nome freudiano das insígnias culturais dessa atribuição e desse poder, que conta, e não o pênis. Outros órgãos, inclusive, em tese, poderiam desempenhar essa função. A formalização lacaniana, ao distinguir falo e pênis com rigor, delimita o masculino como um modo de viver e gozar, de estar na partilha dos sexos, longe de qualquer determinação biológica. Haveria os que têm acesso direto ao gozo, por supostamente serem os detentores do falo, e aqueles que acessam o prazer necessariamente passando pelo corpo de outro. Para uns a natureza, cultural, de uma ação direta e individual; para outros, a de uma ação necessariamente relacional e coletiva. De um lado, os homens; do outro, as mulheres. Essa partilha fálica dos sexos se distingue, então, do falocentrismo, nome de uma forma social, muito infelizmente comum, de vincular falo e pênis em uma suposição de naturalidade discriminatória e opressora. Tudo, porém, pode ser tomado a contrapelo. Essencialmente antifalocêntrica, a operação lacaniana engendrou, em alguns casos, efeitos contrários a suas premissas. Muitos, apoiados em Lacan, tomaram o modo de partilha fálica como o dos seres humanos em geral, necessariamente especificados entre os polos homem-mulher.

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homens em análise: travessias da virilidade

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Alguns psicanalistas passaram a considerar o teatro binário dos sexos como o standard subjetivo, em uma perigosa universalização, ainda mais excludente por prescindir da anatomia. O caminho de Vinícius é outro. Apenas por tomar o masculino como objeto clínico, já nos leva a assumir que podem haver formas de ordenar o desejo que não a fálica. Tomamos, então, posição no debate entre universalismo patriarcal, fálico, e a multiplicidade trans, eventualmente não fálica. Ao mesmo tempo, podemos avançar com as questões próprias à posição cis-heteronormativa. O que faz uma análise com o modo de vida masculino? Qual destino ela lhe dá? Para começar, Vinícius opta pelo termo virilidade como forma específica de estruturação da subjetividade, apenas uma dentre as possíveis no campo das masculinidades. Dito de outra maneira, existem masculinidades, mas só uma será coordenada pela estruturação da fantasia viril. Torna-se possível, então, uma descrição fina de suas coordenadas. Contemplar, assim, a posição masculina do ponto de vista do analista permite-nos observar o modo como essa posição se erige a partir de uma exclusão. O masculino se funda em uma maneira específica de descartar determinadas experiências de vida, de vibração corporal, que chamamos com Lacan gozo, em um sentido mais amplo, não apenas sexual. Esses gozos excluídos são exatamente aqueles que à época de Freud eram considerados próprios das mulheres, por serem exatamente os de um registro exterior aos prazeres codificados pela normasculina. Deve ser essa exclusão necessariamente violenta? O percurso de Vinícius destaca como se trata, para o homem, sobretudo de uma incapacidade de processar a vida quando vem em excesso, tanto em seus parceiros quanto neles mesmos. Esse excesso será interdito e mantido fora de cena de modos mais ou menos intensos,

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de acordo com a moralidade vigente. Acompanhamos os detalhes e as idiotias dessa exclusão na própria constituição da virilidade. O macho só alcança experimentar gozos bem concretos ao alcance da mão. No campo da sexualidade, esses gozos concretos são os que costumamos chamar prazer, e seu paradigma é o orgasmo, entidade com começo, meio e fim bem marcados. Este será, então, sempre fálico, quer seja vivido em um corpo anatomicamente feminino, quer masculino, a partir do pênis ou do clitóris, por exemplo. O paradoxo do viril torna-se claro. Os gozos fálicos são corroídos pela impressão, no instante mesmo em que se realizam, de que há algo que ainda não chegou, um gozo a mais, sempre no outro. É o que formaliza Lacan em suas fórmulas da sexuação. Esse gozo que haveria-se-houvesse é o Outro gozo, que não está excluído, apenas inacessível; por isso, chama-o, além de feminino, opaco, ou ainda, suplementar. Ele não tem começo nem fim bem definido, como o gozo fálico, por isso é dito ilimitado, sem rima nem razão, sem remédio. Esse gozo não é eliminado, só permanece como porta continuamente fechada. No entanto, é exatamente essa porta que pode ser abertura. Na travessia do viril-obsessivo em análise, que este livro apresenta, torna-se evidente que, desde o princípio, essa abertura já estava lá, apenas o homem, ocupado com suas proezas, não podia vê-la. Dito em uma fórmula: a análise do macho segue necessariamente em direção ao feminino. Só assim ela pode empreender uma reconfiguração subjetiva no plano do que realmente conta, o corpo e o gozo. Vinícius opta, então, por só nos apresentar este Outro gozo juntamente com a abertura de seus protagonistas a ele, ao final do percurso analítico, na conclusão do livro. Antes, percorreremos as trapalhadas do masculino com esta vida que não se deixa capturar pelos prazeres ao alcance da mão.

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Introdução: Homens e masculinidades na psicanálise

De uns anos para cá, já deixou de ser novidade constatar que haveria relativamente poucas produções sobre masculinidade na psicanálise, contrabalançadas por uma proliferação de trabalhos sobre o feminino, que seria resultado da naturalização de uma perspectiva masculina (ou masculinista) implícita em nosso campo (Ambra, 2015; Bonfim, 2022). Não foi à toa que Paul B. Preciado, filósofo trans espanhol, nos fez uma importante provocação ao intervir na jornada de 2019 da Escola da Causa Freudiana, em Paris, organizada em torno da temática “Mulheres na psicanálise”: lá, ele afirmou que, ao contrário de continuar a exotizar esse “tipo peculiar de animais” que chamamos de “mulheres”, “como se ainda estivéssemos em 1917”, teríamos de fazer, hoje, um congresso sobre “homens heterossexuais brancos e burgueses na psicanálise” (Preciado, 2020, pp. 19-20, tradução nossa). Além do convite de abertura ao novo, em termos políticos, que testemunhamos no discurso de Preciado,1 sua fala também nos interessa porque, com 1 No livro Eu sou o monstro que vos fala, Preciado (2020) interroga a posição de enunciação política dos psicanalistas europeus, apontando o que entende ser

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introdução

um giro em nosso olhar, é possível encontrar, na literatura psicanalítica, uma série de contribuições sobre os homens e as masculinidades – que, até então, talvez não tenham sido suficientemente negritadas enquanto tais. Pensamos aqui nas contribuições ao tema que podem ser extraídas das obras de Freud e Lacan, com as quais trabalharemos mais diretamente neste livro, como também nos diversos outros autores e autoras na história da psicanálise que, à sua maneira, se debruçaram sobre essa temática: Karen Horney; Rudolph Loewenstein; Robert Stoller; Ralph Greenson; Silvia Bleichmar; Jac­ques André; Michael Diamond; Irene Fast; Gerald Fogel; Ken Corbett; Monique Schneider entre tantos outros. Mais do que isso, gostaríamos de destacar ainda o rico e crescente campo de pesquisadores(as) que têm se dedicado a estudar psicanálise e masculinidades no Brasil, a exemplo de Pedro Ambra (2013; 2015), Flávia Bonfim (2021; 2022), Luciano Oliveira (2020), Edgley Lima (2021a), Melissa Scaramussa (2022), Hugo Bento (2018; 2022), Maria Virgínia Grassi (2002; 2006), Susana Muszkat (2006; 2011), Ronaldo Sampaio (2010), Walter de Oliveira-Cruz (2014), André Oliveira (2017), Felippe Lattanzio (2011; 2021) e Fernando Mascarello (2020; 2022) – nomes que são apenas alguns entre tantos analistas que têm se embrenhado nessa temática nos últimos anos. Esse ponto chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que nos habituamos a dizer, há, hoje, diversas contribuições da psicanálise ao tema das masculinidades, sendo apenas preciso que

a cumplicidade destes com os dispositivos de poder heteropatriarcal-colonial. Essa cumplicidade teria consequências patologizantes para os dissidentes de gênero e de sexualidade, isto é, para os corpos que, assim como o filósofo, desafiam o estatuto naturalizado da diferença sexual, entendida em termos de “homens” e “mulheres” cisgênero e heterossexuais. A esse respeito, ver Lima (2022b).

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saibamos localizá-las, nomeá-las como tais e delas extrair suas consequências. Incluindo-se nesse cenário, Homens em análise: travessias da virilidade propõe uma abordagem teórico-clínica dos homens e das masculinidades na psicanálise freudiana e na lacaniana, fazendo um recorte em torno da virilidade enquanto um modo particular de um ser falante buscar se fazer “homem” – um arranjo cujas coordenadas subjetivas podem ser não apenas traçadas teoricamente como também eventualmente atravessadas em um percurso de análise. Trata-se, portanto, de um livro sobre aquilo que acontece numa experiência analítica, sem perder de vista suas ressonâncias sociais e políticas. Interessa-nos aqui colocar em movimento as construções de Freud e Lacan quanto ao campo da masculinidade a partir de seu encontro com os casos clínicos que podem fazê-las avançar, desde os homens analisantes escutados por Freud – o pequeno Hans, o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos –, passando por casos da literatura lacaniana – o paciente de Ella Sharpe, o paciente impotente de Lacan, os relatos de passe de Jésus Santiago e de Bernardino Horne, entre outros –, numa discussão cujo pano de fundo é o debate contemporâneo em torno de gênero, raça, sexualidade e geopolítica. Para começar, apresentemos brevemente as chaves de leitura que guiarão nosso uso das obras de Freud e Lacan e que nos servirão para orientar/tensionar nossa escuta dos homens em análise. Sob nossa perspectiva, os achados freudianos quanto à subjetivação dos homens podem ser organizados em torno de pelo menos três elementos principais: i) a ameaça de castração (o fato de se verem constantemente ameaçados de perder o “falo” que supõem ter – e ameaçados, ainda, por significarem a perda do falo como uma castração); ii) a divisão do objeto na vida amorosa (uma divisão entre a degradação do objeto sexual e a idealização do objeto de amor, a partir da qual já não podem reunir amor e desejo em uma

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introdução

mesma parceria); e iii) a recusa da feminilidade (uma definição de “ser homem” baseada na negação do feminino e de tudo aquilo que se conecte com ele: passividade, feminilidade, homossexualidade, analidade etc.). Em Lacan, também encontramos várias pistas para pensar masculinidade, as quais condensaremos aqui em torno de quatro vertentes: i) a posição (cômica) de “ter o falo” na ordem simbólica, pela via da ostentação fálica da posse, que permanece a todo instante ameaçada de ver desvelado o vazio que ela busca ocultar; ii) o caráter detumescente do pênis, esse pedacinho de carne que fica oculto sob as ilusões de potência daqueles que são simbolicamente portadores do falo; iii) o “macho” como criação de discurso, assombrado pela posição de objeto que tanto busca recusar e que ainda o organiza de forma inconsciente em sua fantasia; e iv) a lógica do “todo fálico” na sexuação masculina, que reduz o parceiro ao objeto de sua fantasia e orienta-se por uma tensão entre o universal da castração e a exceção mítica que o institui. Ao longo deste livro, utilizaremos essas articulações freudianas e lacanianas buscando recolher, com elas e a partir delas, alguns dos efeitos que uma experiência analítica pode produzir na configuração subjetiva dos homens que se dispõem a atravessar essa experiência. Como se pode ver, as definições de masculinidade que acabamos de reunir podem ecoar certo caráter universalizante. Ao contrário de tomá-las como uma tentativa ingênua de descrever um ilusório funcionamento único de toda masculinidade possível – estratégia que teria como base uma cegueira para a multiplicidade de configurações subjetivas existentes nesse terreno –, essas construções freudianas e lacanianas podem ser lidas como a formulação paradigmática da maneira normativa de se construir masculinidade na cultura ocidental. Isso significa que esse arranjo tem impactos tanto na subjetivação dos seres falantes que buscam se submeter a essa organização – daqueles que querem se

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1. Virilidade cômica: a ostentação fálica do ter e seus avessos

Quais são as consequências da comédia do falo para a configuração subjetiva da masculinidade? É como uma resposta antecipada a essa pergunta que propomos aqui o sintagma “virilidade cômica”, com o qual acreditamos transmitir o que localizamos como uma posição reiterada de Lacan, ao longo de seu ensino, quanto à questão do que é um homem. No Seminário 16, o psicanalista aborda diretamente essa questão tomando o homem não como sinônimo de humanidade, mas como o “vir”, o “sexo masculino”: “Ele é ativo, diz-nos Freud. De fato, tem motivo para isso. Precisa até dar um golpe para não desaparecer no buraco. Enfim, graças à análise, agora ele sabe que, no final das contas, é castrado” (Lacan, 196869/2008, p. 382). E não por um acidente histórico qualquer, isto é, não se trata de dizer que apenas hoje, nesse mundo contemporâneo em que o viril teria supostamente desaparecido, ele o seja: “como ele finalmente o sabe, sempre foi castrado”. A castração masculina seria, então, um fato de estrutura. Assim, no ponto em que poderíamos esperar uma definição lisonjeira do que é um homem, Lacan nos responde: um homem, no final das contas, é... castrado.

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virilidade cômica

O que está implícito nessa resposta é o giro promovido pela releitura lacaniana sobre a noção de “castração” em Freud: ao ser tomada como uma função simbólica, que chancela a impossibilidade de um sujeito realizar plenamente suas aspirações no campo do desejo, a castração passa a definir mais centralmente a subjetivação dos homens, deslocando-a de sua conhecida apreensão a partir da ausência de pênis no corpo das mulheres: “Todos sabem que a castração está aí no horizonte e, evidentemente, jamais se produz em lugar algum. O que se efetua está em relação com o fato de que desse órgão, desse significante, o homenzinho é um suporte sobretudo lastimável, e que ele parece, antes de mais nada, sobretudo privado dele” (Lacan, 1959-60/2008, p. 361). A castração, no campo do masculino, demarca a discordância entre a expectativa dos homens de serem portadores do falo (simbólico) e o fato de se reconhecerem castrados, isto é, desprovidos daquilo que constituiria, de fato, o termo último que garantiria uma posição estável e segura no plano do desejo. Da passagem acima, ressaltamos os termos não quaisquer com os quais Lacan joga: o “homenzinho” – no diminutivo – é, quanto ao significante fálico, um suporte “lastimável”, indicando que há uma distância (cômica) entre o que se espera do falo (ou dos homens enquanto seus portadores simbólicos) e o órgão que eles carregam entre as pernas (ou aquilo que esses homens são capazes de realizar do ponto de vista dos ideais da masculinidade normativa). Mesmo que Lacan não tenha ele mesmo articulado explicitamente a noção de “virilidade” à sua abordagem do cômico, sustentamos que esse ponto é o que atravessa e define tacitamente sua concepção de masculinidade construída a partir da comédia do falo – donde a nossa proposição de uma virilidade cômica, que aqui buscaremos desdobrar. Por mais diversos que possam ter sido os (des)usos da psicanálise em termos de uma naturalização – ou de uma não interrogação

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– da masculinidade normativa, podemos encontrar, atravessando toda a obra lacaniana, uma série de marcações de posição que de alguma forma depreciam comicamente a masculinidade ou as figuras masculinistas do poder. Ao contrário de uma idealização religiosa da lei, a posição de Lacan como psicanalista1 nos parece operar uma dessacralização do campo do masculino, ao abordar o falo a partir do cômico e ao se referir à própria “lei paterna”, em diversos pontos de seu ensino, com um tom de zombaria,2 gesto que nos permite entrever uma posição de distância crítica – e não de cumplicidade – em relação ao arranjo normativo que ele descreve. 1 O que não significa que o homem Lacan não se beneficie dos dividendos patriarcais, isto é, de seu lugar enquanto homem cisgênero, heterossexual, branco, europeu, de origem católica, e tampouco que Lacan fosse algo como um protofeminista. Longe de querer salvar ou idealizar o mestre colonial, trata-se aqui de recolher de sua obra elementos que possam nos interessar, hoje, em nosso contexto, para pensarmos a radicalidade ético-política da posição de um psicanalista na clínica e na cultura, particularmente no tocante ao problema das masculinidades. 2 Encontramos uma depreciação cômica do Nome-do-Pai em diversos momentos do ensino de Lacan, ao referir-se à lei paterna como “os princípios de papai”, sendo que “desde há algum tempo, papai não tem mais princípio” (Lacan, 1961-62/2003, p. 245); ou ainda ao tratar da “comédia edipiana”, da qual o psicanalista diz que podemos “começar a nos divertir – Foi papai quem fez isso tudo” (Lacan, 1962-63/2005, p. 220, grifos do original), num gesto que deprecia a lei paterna por meio de uma derrisão da sacralidade do Pai. Por sua vez, a anedota mítica da castração, segundo a qual o pai seria o agente castrador que ameaça o sujeito com a punição de cortar fora seu falo, não passaria de uma “história para boi dormir” (Lacan, 1967/2006, p. 51), a ponto de, mais tarde, Lacan afirmar uma posição ético-política fundamental: “Sobretudo, nada de pai educador; antes, que ele esteja aposentado de todos os magistérios” (Lacan, 1974-75, lição de 21 de janeiro de 1975, tradução nossa). É por esse mesmo motivo que ele chega a reformular o que seria a própria direção de uma análise: “a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele” (Lacan, 1975-76/2007, p. 132). A esse respeito, ver o trabalho de Miller (1991/1997) sobre o desejo de Lacan.

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virilidade cômica

Para a pensadora feminista estadunidense Jane Gallop (1982, p. 36), Lacan estaria mais para um autor “falo-excêntrico” (“phallo-eccentric”) do que para um ingênuo reprodutor de normas sociais, pois, em seu estilo mesmo, ele faz troça da norma fálica que veio formalizar, não se deixando iludir pelo lugar da autoridade ou da tradição. Ao denunciar a impostura cômica de quem se pretende o verdadeiro representante da Lei, apontando para a castração das figuras de poder que historicamente se vinculam aos semblantes da masculinidade, a obra de Lacan indica que não devemos nos deter diante das insígnias fálicas que conferem um privilégio simbólico aos seus portadores. Pelo contrário, o cômico comparece aí como uma forma de denunciar o engodo da virilidade, uma vez que escancara o fato de que o mestre é “um babaca” (Lacan, 1968-69/2008, p. 371); ou que o personagem do pai, no fundo, “é um idiota”, “um pobre-diabo”, “um velho caquético” (Lacan, 195960/2008, p. 361); ou, ainda, que a figura do rei, esse “velho cretino” (p. 357), é marcada pela “cegueira” (Lacan, 1957/1998, p. 42, grifos do original) e pela “imbecilidade” (p. 42). O que está em jogo é algo que Lacan nomearia como uma discordância entre simbólico e real, em sua discussão sobre a distância entre o Nome-do-Pai e o personagem paterno no caso do Homem dos Ratos: A assunção da função do pai pressupõe uma relação simbólica simples, em que o simbólico recobriria plenamente o real. Seria preciso que o pai não fosse somente o nome-do-pai, mas representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função. Ora, é claro que esse recobrimento do simbólico e do real é absolutamente inapreensível. Ao menos numa estrutura social como a nossa, o pai é sempre, por algum lado, um pai discordante com relação à sua função, um

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2. Fazer o luto de ser o falo

Neste Capítulo, buscaremos discutir alguns dos destinos dados ao falo na direção de tratamento dos homens, em particular nos casos de neurose obsessiva, tendo como horizonte a perspectiva de final de análise desenvolvida por Lacan em 1958, nomeada como “desidentificação fálica” – a qual tem sido menos discutida hoje do que concepções mais tardias na obra lacaniana, como a travessia da fantasia nos anos 1960 ou a identificação ao sinthoma, nos anos 1970. Na perspectiva de final de análise dos anos 1950, a contribuição de um processo analítico, a partir de Lacan, seria permitir a um homem se desidentificar do lugar de falo materno, consentindo com a castração do Outro: esse falo o qual recebê-lo e dá-lo são igualmente impossíveis para o neurótico, quer ele saiba que o Outro não o tem ou que o tem, pois, em ambos os casos, seu desejo está alhures – em sê-lo –, e porque é preciso que o homem, macho ou fêmea, aceite tê-lo e não tê-lo, a partir da descoberta de que não o é. (Lacan, 1958/1998a, p. 649)

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Resgatando essa dimensão clínica de 1958, que oferece uma série de contribuições para situarmos os destinos do falo numa experiência de análise, percorreremos aqui alguns casos clínicos de homens encontrados na literatura lacaniana, contingentemente situados no tipo clínico da neurose obsessiva, mas que, por esse motivo, vão nos permitir recortar alguns elementos estruturais de sua relação com o falo, bem como das modificações que uma análise pode aí introduzir. É certo que esses elementos não compõem a totalidade das formas de subjetivação masculinas, mas apenas algumas coordenadas estruturais mínimas quanto ao lugar do falo na neurose obsessiva. Longe de operarem como modelos universalizantes, essas coordenadas poderão nos servir para pensarmos, no caso a caso, suas variações singulares e atravessamentos interseccionais (de raça, classe, gênero, sexualidade, entre outros marcadores sociais da diferença) que virão modular sob diversas formas seus modos de incidência – mas que não nos impedem de aqui formular um saber, assumidamente fraturado, sobre os destinos do falo na psicanálise a partir da clínica lacaniana. Assim, enquanto o falo na cultura tende a ser empregado muito frequentemente como um signo do poder masculino, na clínica psicanalítica, por sua vez, temos acesso à dimensão do falo como significante da falta, descolado da pretensa eminência imaginária do pênis. Nos casos que discutiremos a seguir, procuraremos apresentar de que modo a assunção do falo como significante da falta opera na direção de um tratamento analítico, por meio de sua diferenciação clínica com relação ao imaginário do órgão – ainda que, como trabalhamos no Capítulo 1, essas duas dimensões não deixem de estar articuladas. Partiremos, portanto, de alguns casos clínicos discutidos por Lacan nos anos 1950, nos quais o psicanalista busca ir além dos efeitos imaginários do falo ao reconfigurá-lo como um significante da posição do sujeito diante do desejo do Outro. Nesse

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ponto, ainda que os homens sejam simbolicamente convocados no laço social a ocuparem a posição subjetiva de “ter o falo” (Butler, 1990/2015), veremos, no entanto, que essa injunção não se traduz necessariamente em uma assunção simples ou direta dessa posição. A esse respeito, a contribuição da clínica psicanalítica reside na constatação de que, no fundo, o sujeito é dividido em relação aos ideais que o governam – mesmo que ele possa, eventualmente, tentar ocultar essa divisão, muitas vezes ao preço do exercício da violência (Lima, 2020) –, de modo que um sujeito jamais assume inteiramente ou de maneira unívoca o lugar que lhe é designado pelas normas sociais. No caso da identificação fálica, o que está em jogo é a releitura lacaniana do problema do falo a partir da noção de desejo do Outro, ou seja, o fato de que, em sua ereção de vivente, um sujeito sofre os efeitos de ter sido desejado – ou não desejado – pelo Outro que o antecedeu, jogando com o anseio de ser aquilo que, no fundo, não é: o falo que completa o desejo do Outro, frequentemente o Outro materno. Assim, o lugar de falo1 que um homem 1 Gostaríamos de assinalar, apenas de passagem, um possível desdobramento dessa discussão do “lugar de falo” para uma série de dificuldades que encontramos nas pessoas brancas – em especial, homens – diante da noção de “lugar de fala” (Ribeiro, 2019; Bentes, 2020). Vivida muitas vezes como uma espécie de perda narcísica sob a égide da lógica fálica, como se se tratasse de “quem tem” versus “quem não tem”, o lugar de fala indica, antes, a importância de localizarmos o lugar específico desde onde falamos no laço social, quebrando a ilusão de neutralidade e universalidade que tradicionalmente marca a posição discursiva dos homens brancos, intelectuais, de classe média alta. Ou seja, longe de se distribuir entre “ter” ou “não ter”, todos nós temos um lugar de fala, isto é, todos falamos a partir de um lugar, corporificado pelas dimensões de raça, classe, gênero, sexualidade, religião, localidade, entre diversos outros marcadores sociais da diferença, o que de alguma maneira expõe e limita nossa perspectiva, por fornecer, muitas vezes, o enquadramento daquilo que conseguimos ou não enxergar a partir do modo como as relações de privilégio ou de subalternização visibilizam ou invisibilizam o nosso lugar e o do

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pode ocupar diante de um Outro – querer ser desejado pelo Outro, querer preservar um lugar especial diante do Outro –, muitas vezes, o acompanha ao longo da vida, lugar erigido muito antes de o sujeito ser convocado a ocupar um lugar de “macho” no laço social, mas podendo coexistir com a identificação com as insígnias da virilidade na cultura ligadas ao “ter”. Esse arranjo eventualmente produz efeitos cômicos na vida amorosa, já que, ao ser convocado a responder como sujeito desejante, um homem pode recorrer ao lugar de falo que permanece submetido a um Outro idealizado ali onde poderia bancar seu próprio desejo, preferindo atender à demanda para se abster dos riscos de sustentar uma posição desejante separada do Outro. Enfatizamos aqui que a desidentificação fálica não incide apenas sobre sujeitos que puderam encontrar lugar no desejo do Outro em sua história; a identificação à imagem fálica pode ser, também, um esforço para compensar a própria precariedade ou as próprias falhas na inscrição do desejo do Outro para um sujeito. Afinal, a imagem fálica é marcada, muitas vezes, pela vizinhança com a perfeição ou com o ideal, o que pode ser uma tentativa – nem sempre outro no laço social. A produção de conhecimento, nesse sentido, nunca é desvinculada do lugar de onde falamos. Curiosamente, nos últimos anos, muitos intelectuais brancos têm enfrentado uma dificuldade particular em suportar a relativização da sua posição pela nomeação de seu lugar de privilégio, de alguém que é limitado em sua formulação de saber, por se situar, como qualquer pessoa, a partir de um ponto específico no laço social – mas, nesse caso, a partir dos privilégios da branquitude, da classe média alta, da masculinidade cisgênero etc. Não à toa, a resistência em consentir com a perda narcísica implicada pelo reconhecimento do seu lugar de fala pode ressoar no lugar de falo como identificação ao que falta ao Outro, isto é, como a ocupação de um lugar especial diante do Outro, do qual o sujeito não quer fazer seu luto – assim como a posição de privilégio dos homens brancos no discurso. Nessa esteira, a própria angústia de castração pode ser pensada como o “medo da perda de um lugar privilegiado no desejo do Outro e no laço social” (Bispo, Peixoto & Scaramussa, 2021, p. 166).

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3. O casamento com o falo

Em um ensaio publicado no ano de 1993, intitulado “O falo lésbico e o imaginário morfológico”, Butler (1993/2019) faz uma provocação decisiva à psicanálise lacaniana ao extrair algumas consequências da discordância entre falo e pênis. Ao considerar as propriedades do falo como um significante, a saber, sua plasticidade, sua transferibilidade e sua expropriabilidade, a filósofa propõe pensar, provocativamente, na possibilidade de um falo lésbico – isto é, de um funcionamento do falo “sem um pênis” (Gallop, 2019, p. 21, tradução nossa). Longe de reduzi-lo à figura do dildo,1 1 Ainda que fuja ao escopo deste trabalho discutir em profundidade a noção de “dildo” na obra do filósofo Paul B. Preciado (noção que também não se reduz ao dildo como prótese plástica), cabe constatar que sua contribuição se insere na esteira das interrogações da equação falo-pênis, enquanto mais um índice da discordância entre esses dois termos. O dildo seria uma ferramenta prática e conceitual que desvela a insuficiência do pênis nos caminhos do gozo, sua limitação diante daquilo que se esperaria do falo. Aqui, no entanto, para interrogar o funcionamento do falo, interessa-nos menos o dildo como objeto imaginário do que a posição do sujeito que dele se serve para compor seu modo de gozo, como veremos no Capítulo 4.

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o convite de Butler é para que não façamos uma justaposição rápida demais entre homens, posição masculina e posse do falo, já que diversas outras posições subjetivas podem existir diante desse significante, sob as mais variadas configurações corporais e identificatórias – posições que não obedecem à clássica comédia dos sexos da cis-heterossexualidade, em que homens têm o falo e mulheres o são. Nesse ponto, caberia salientar que nem mesmo na cis-heterossexualidade esse arranjo normativo funciona plenamente. Enquanto ser e ter o falo ficam no campo dos ideais da cultura, as configurações subjetivas que se apresentam concretamente são muito mais complexas e mais sutis do que uma mera adesão às normas sociais que pretensamente governam essas identificações. Inclusive, podemos encontrar uma importante demonstração dessa circulação do falo como significante nas parcerias sexuais e amorosas mais além da norma cis-heterossexual (e, igualmente, mais além do pênis) na seguinte passagem de Butler: homens que desejam “ser” o falo para outros homens, as mulheres que desejam “ter” o falo para outras mulheres, as mulheres que desejam “ser” o falo para outras mulheres, homens que desejam tanto “ter” como “ser” o falo para outros homens [...], homens que desejam “ser” o falo para uma mulher que o “tem”, mulheres que desejam “ter um falo” para um homem que o “é”. (Butler, 1993/2019, p. 181) Mas paralelamente à plasticidade da dimensão significante aí explorada, gostaríamos de destacar também a maneira como o percurso de Butler permite interrogar a dimensão do órgão em sua (não) relação com o significante fálico. Trata-se do fato de que, na constituição da masculinidade, o pênis é tomado como um centro

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de controle corporal, permitindo uma ilusão de mestria do portador sobre o seu órgão, ilusão que se encontra na base da construção da virilidade. Em seu ensaio, Butler (1993/2019, p. 147) deixa entrever o engodo que está implicado em assentar a masculinidade sobre essa crença em razão do caráter “diminuto” e “limitado” do órgão, em comparação com a idealidade do falo: “o falo (re)produz o espectro do pênis apenas para provocar sua inconsistência, para reiterar e explorar sua perpétua inconsistência como a própria ocasião do falo” (p. 161). O raciocínio da filósofa (Butler, 1993/2019, p. 114) pretende, assim, localizar como as propriedades de plasticidade, transferibilidade e expropriabilidade do falo simbólico acabam por fazer esse significante exceder sua referência ao pênis, dando margem à circulação do falo lésbico. Nessa esteira, qualquer tentativa de restringir a posse do falo aos portadores do órgão dito masculino testemunharia um desejo de “restaurar a propriedade fálica do pênis”, resguardar seu “poder imaginário” a partir de um ideal do órgão como uma eminência penetrante. Butler (2009) retornaria mais tarde a esse ponto, argumentando que a “erótica da penetração”, que pode ser feita seja com um pênis, seja com um membro do corpo, seja com algum instrumento, faz o falo circular “fora de seu apego fetichista ao pênis” (p. 218, tradução nossa). Com isso, o falo não é eliminado ou ridicularizado, mas “abraçado sob novas formas”. O que está em questão, portanto, é o falo considerado um privilégio masculino, um signo da potência viril do “macho”. Assim, a filósofa nos convida a extrair consequências do fato de que os homens não têm a posse exclusiva do falo e, mais do que isso, que essa mesma posse é instável e ilusória, frequentemente ameaçada de se esvair. Como buscaremos desdobrar neste Capítulo, essa perspectiva vai ao encontro de algumas construções lacanianas à época do Seminário 10, em que o falo aparece não tanto como potência viril, mas antes como um órgão detumescente, que

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assombra os homens com a angústia de castração. Acreditamos que essa articulação nos permitirá situar o (-φ) como ingrediente oculto da virilidade, um ingrediente que o engodo viril se esforça por dissimular – e ao qual uma experiência de análise permite conferir outros destinos para além da ilusão de potência herdada das normas da tradição. Diante desse convite, buscaremos desdobrar neste Capítulo duas formas de contingência implicadas na posse do pênis que desmentem a esperança de mestria masculina sobre o falo, a saber, as contingências ligadas à ereção e à detumescência do órgão, trabalhadas por Lacan em diversos pontos de sua obra. Nas Seções a seguir, discutiremos de que maneira a formulação do objeto a franqueia uma leitura do falo como um órgão caduco, detumescente, articulado à função da queda, e não apenas à sua eretilidade – oferecendo-nos ainda uma concepção do desejo não mais centrada no falo. Depois, interrogaremos a imprevisibilidade e a impossibilidade de pleno controle de um sujeito sobre as ereções a partir de elementos extraídos de dois casos freudianos: o pequeno Hans e o Homem dos Ratos. Esse giro de perspectiva nos permitirá interrogar a imagem do pênis como um centro de controle, na medida em que o funcionamento precário desse órgão, materializado pelas contingências que envolvem a ereção e a detumescência, frequentemente frustram as expectativas de mestria de seu portador.

O falocentrismo danificado pelo objeto a A invenção do objeto a marca um ponto de inflexão na obra de Lacan. Durante a década de 1950 e, mais especificamente, no ano de 1958, o psicanalista buscou cifrar o funcionamento do desejo a partir do significante fálico, entendido enquanto um elemento simbólico indexador da falta e operador de negatividade que, até

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4. Atravessar o fantasma, autorizar-se do feminino

Ao longo do Capítulo 3, partindo da formulação de Butler quanto ao falo lésbico, realizamos uma interrogação relativa às contingências da ereção e da detumescência que afetam a experiência corporal de posse – se é que podemos dizer propriamente de posse, nesse caso – do pênis. Na construção da virilidade, essas contingências precisam ser apagadas por meio da ostentação dos semblantes da potência ou substituídas pela ilusão de uma mestria do portador sobre o seu órgão, convertendo o genitivo subjetivo do gozo fálico – um órgão que goza à revelia do seu sujeito, como vimos no caso Hans – em um genitivo objetivo – um sujeito que goza plenamente do seu órgão, ao modo da fantasia de Don Juan. Nesse arranjo, situamos o casamento com o falo (sob a roupagem do gozo fálico) como um elemento central na estrutura da virilidade. Ao contrário de permitir ao sujeito se relacionar ao Outro como tal, o casamento com o falo limita aquele que se quer “macho” a só poder gozar do gozo do órgão (ou ainda, dos semblantes fálicos que dão consistência à ilusão da potência viril), mantendo-o escravo do roteiro solitário de seu fantasma. Não à toa, esse

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modo de gozo recebe a alcunha de “gozo do idiota” por parte de Lacan (1972-73/2008) – o que nos permite jogar com a equivocação entre o seu sentido grego, daquele que não se interessa pelos assuntos da pólis (e resolve-se sozinho em seu gozo, como na masturbação), e o seu sentido contemporâneo em nossa cultura, ligado à ostentação da imbecilidade. Trata-se aí de uma derrisão cômica da virilidade, evidenciada em seu apego autístico ao gozo fálico, ponto central para a posição do “macho” na sexuação. Nessa perspectiva, aquele que se quer todo fálico, sustentando para tanto os semblantes da potência, acaba por se revelar um sujeito castrado que, no fundo, não detém a posse do falo que busca exibir: no limite, esse falo sempre escorrega entre os dedos. Por isso somos capazes de formular a dimensão cômica da própria virilidade: o cômico desfere um golpe sobre a estrutura de semblante do falo, revelando-o como (-φ), isto é, revelando a castração de seu portador, ali mesmo onde ele buscava se colocar como dotado de um grande Ф. Nesse sentido, o engodo viril se caracteriza pela operação de ocultamento do menos-phi da castração por meio de seu acoplamento à fantasia fálica (Miller, 2011): a posição masculina na sexuação, na medida em que se encontra orientada pelo todo fálico e sua exceção mítica fundadora,1 é uma composição 1 Trata-se aqui da formalização lacaniana do mito de Totem e tabu, forjado por Freud a partir da escuta de seus pacientes neuróticos. Nesse mito científico, a humanidade se organizaria inicialmente em pequenas hordas, cada uma chefiada por um pai tirânico que subjugaria os seus filhos e teria acesso irrestrito a todas as mulheres do bando. Diante desse arranjo, os filhos se uniriam para matar e devorar o pai, como vingança por sua violência e arbitrariedade. Mas logo após, percebendo que outros conflitos de poder surgiriam e que ninguém acessa de fato o gozo pleno suposto nessa figura, juntamente com o remorso e a culpa pelo assassinato do pai que, afinal, também amavam, os filhos fazem um pacto simbólico de manter vazio o lugar da exceção paterna, assim instaurando simbolicamente a castração enquanto renúncia a uma satisfação pulsional completa, operação que seria fundadora da cultura. Já que não se

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que articula falo [Ф] e fantasia [$ → a] – sendo o resultado dessa combinação nomeado como gozo fálico, como veremos adiante. Assim, se o cômico se apresenta pelo desvelamento da estrutura de semblante do falo, revelando o menos-phi no avesso da ostentação fálica, a virilidade se torna cômica porque, mesmo buscando negar a castração, ela sempre acaba por deixar aparecer, em algum ponto, a falta fálica que a fundamenta. Mas o enredo da virilidade, no qual transparece o (-φ), só é cômico para quem assiste a ele com alguma distância; para um homem identificado com esse drama, como vimos no caso do Homem dos Ratos diante de seu falo no espelho, a ameaça de castração é vivida em sua dimensão trágica por causa do temor pela possibilidade de uma eventual reaparição do (-φ) cuja negação orienta a construção de sua masculinidade. Diante desse cenário, o valor do cômico para a abordagem lacaniana da masculinidade reside no fato de nos orientar rumo a uma desmontagem do engodo viril, e é por isso que Lacan (1974/2003, p. 513) pôde dizer que o lugar do analista “vem se revezar com” o cômico, “ou até substituí-lo”, na medida em que uma análise levada até seu fim, se produz uma travessia da fantasia, tem também como resultado uma espécie de travessia da virilidade, ou ao menos sua decomposição estrutural. Nesse ponto, uma experiência analítica permite modificar a relação de um sujeito com o menos-phi, dissolvendo a angústia de castração por meio da assunção de sua falta fálica, o que pode lhe franquear, de maneira contingente, o acesso a um Outro gozo mais além do falo e de seu engodo viril, como veremos neste Capítulo. pode gozar de tudo, goza-se apenas um pouco, com a consequência de poder ansiar por um pouco mais de gozo – que é o ponto formalizado pela lógica da sexuação masculina: o pai morto de Totem e tabu como índice de um gozo pleno inalcançável [Ǝx ~Фx], fazendo função de exceção ao conjunto dos homens castrados, que só acessam um gozo parcial, limitado, que deixa a desejar [ x Фx].

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Nessa perspectiva, a desmontagem do engodo viril formalizada por Miller (2011) – e que desdobraremos mais adiante – não se propõe a uma desconstrução teórica ou textual da virilidade, mas antes se constitui como a formalização de uma operação que se produz concretamente na experiência analítica. Diante disso, buscaremos investigar os efeitos de uma análise sobre a aspiração à virilidade na neurose, servindo-nos, para tanto, do cômico como direção ética que abre a possibilidade de uma transformação na relação de um sujeito ao falo. Se a virilidade cômica é o efeito da captura do sujeito numa relação trágica com a angústia de castração, em função de seu casamento com o falo, quais outros destinos uma análise pode oferecer aos homens para sua relação com o gozo?

A travessia da fantasia à luz da lógica da sexuação No Capítulo 2, discutimos a desidentificação fálica como uma das primeiras concepções do final de análise na obra de Lacan. Mas o que resta depois dessa desidentificação? Desdobrando a obra lacaniana, Miller sustenta que, após a descoberta da falta no Outro [S(Ⱥ)], há uma segunda descoberta na análise, que se articula a uma pergunta quanto ao gozo: “Que sou Eu [Je] mais além da identificação fálica? Resposta: Eu [Je] sou no lugar do gozo” (Miller, 1993-94/2011, p. 458, tradução nossa). Ao fazer sua primeira transcrição do impasse da análise freudiana, Lacan traduz a recusa da feminilidade pela identificação fálica, propondo o consentimento com o S(Ⱥ) e a assunção do (-φ) como chaves do fim da análise. No entanto, seu uso desses termos estava inserido, em 1958, “no marco de uma problemática relativa à identificação e ao desejo” (Miller, 1993-94/2011, p. 470, tradução nossa).

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5. Epílogo: Masculinidades além do falo

Ao fim deste percurso sobre os homens em análise, gostaríamos de enfatizar o caráter não universalizável – mas, mesmo assim, com algo de transmissível – das trajetórias analíticas e das construções teóricas aqui discutidas em razão da impossibilidade de generalização que, longe de ser um problema, vem preservar o efeito de surpresa que se dá no encontro com o singular de cada caso. Está em jogo o desafio freudiano de escutar cada caso que atendemos como se fosse o primeiro, no sentido de não nos deixarmos ensurdecer por um saber já constituído a fim de darmos lugar ao novo que cada análise comporta. Vejamos, então, o que resta como precipitado deste trajeto, pelo menos até o ponto em que pudemos conduzi-lo neste livro. À luz dos casos do paciente de Ella Sharpe e do paciente impotente de Lacan, conectados aos casos de Leonardo Gorostiza, Christian e Guillaume Gallienne, sob a perspectiva da desidentificação ao falo, o percurso de uma análise permitiria a um sujeito fazer o luto de ser o falo que completa o Outro (um luto de sua identificação imaginária ao falo), consentindo com a barra que

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marca a incompletude – ou mesmo a inexistência – desse Outro e autorizando-se a assumir a dimensão esburacada do desejo, sem precisar subscrever aos imperativos da virilidade ou aos roteiros da cis-heteronormatividade. Com os testemunhos de passe de Bernardino Horne e Jésus Santiago, sob a perspectiva da travessia da fantasia, a operação de uma análise conduziria um ser falante a acessar o modo como interpretou seu lugar como objeto diante do Outro e a forma como respondeu a isso em sua empreitada de tornar-se sujeito, franqueando um processo de destituição subjetiva mediante um duplo esvaziamento: por um lado, o esvaziamento da consistência imaginária do objeto, no sentido de que o sujeito possa se desenganar dos encantos do objeto fantasmático enquanto figurador da relação sexual; por outro, o esvaziamento da miragem fantasmática do gozo do Outro. Pois se a virilidade é definida como uma posição de defesa a esse gozo (uma defesa ao gozo do Outro, erigido enquanto projeção e recusa neurótica de um Outro gozo que atravessa o corpo), visando a afastá-lo em função da fantasia de feminização que assola o sujeito, a análise drena a consistência dessa cena fantasmática, conduzindo ao reconhecimento – ou mesmo à instauração – de que o (gozo do) Outro não existe, de que o Outro é barrado ou inconsistente, de que não é preciso continuar a fazer o seu Outro existir. Ao fazê-lo, uma análise permitiria a um analisante fraturar sua aspiração à virilidade, abrindo caminho para autorizar-se do feminino que o atravessa à sua maneira. Com o passe de Jésus Santiago e de Bernardino Horne, verificamos a formulação de Miller (2011) segundo a qual a virilidade tem uma estrutura de fantasia, no sentido de que o embrutecimento fálico da posição viril se apoia sobre a rigidez do fantasma, composto pelo roteiro de gozo em que um sujeito castrado toma

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uma parte do corpo do Outro como objeto de sua satisfação. O que se desvela numa análise é, por sua vez, o fato de que o apego a esse roteiro vem dissimular a posição em que o sujeito permanece ele mesmo encapsulado como objeto diante do seu Outro no inconsciente. Assim é que nos habituamos a considerar que um homem – no sentido dos seres falantes que ocupam a posição viril na sexuação – não deixa de ser “um monstro” (Miller, 1998/2015, p. 98), um bruto, isto é, alguém embrutecido, enrijecido pelo fantasma, com a consequência de buscar desconhecer a própria castração e de se fechar para as coisas do amor, do feminino ou do que quer que se encontre para além das miragens da posse fálica. É nesse ponto que o cômico faz sua entrada como instrumento ético na direção de uma análise, na medida em que permite desarmar a seriedade trágica da virilidade, evidenciando a precariedade de seu arranjo e convidando a não se deixar por ele enganar tanto assim, isto é, a desidealizá-lo, desinflá-lo, desinvesti-lo, deixá-lo cair. Assim como Bernardino diante do “pintinho esmagado” ou Jésus diante da “mulher do amor degradado”, trata-se do reconhecimento do fato de que a virilidade não passa de semblante. Em contraponto à enfatuação da posição viril, que busca se afirmar por uma crença rígida no semblante fálico (nos semblantes da posse, da mestria), uma análise pode permitir que um ser falante consinta com ser afetado, atravessado por algo do feminino ou do não-todo fálico, para além da ilusão masculina de fechamento no todo viril. Nesse sentido, propomos considerar a travessia da fantasia uma travessia da virilidade, por se constituir como uma operação de desmontagem do engodo viril. Afinal, por meio dessa travessia, um sujeito é levado a reconhecer a estrutura de semblante da própria virilidade, franqueando-lhe a possibilidade de consentir com a sua castração e, eventualmente, dizer “sim” a Outro gozo mais além do falo, que se permite ser atravessado por algo do furo.

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Inclusive, essa já era também, até certo ponto, a aposta de Jane Gallop em 1981, quando afirmava que o falo “faz parte da lógica monossexual, que não admite diferença, nem outro sexo” (Gallop, 1981/2001, p. 279), sugerindo, ainda, que uma das formas de ultrapassar os estreitos domínios da primazia fálica na sexualidade passaria por tornar-se capaz de distinguir falo e pênis, algo que não é um dado, e, sim, muitas vezes, um produto de uma análise: “Distinguir o pênis do falo seria localizar uma certa masculinidade que não necessariamente oblitera o feminino” (p. 279). Mas ela acrescenta: “Permanece ainda aberta a questão sobre se em verdade existe [...] alguma masculinidade que vai além da fase fálica, que não precisa considerar a feminilidade como castração”. A interrogação de Gallop sobre o ponto da existência é bem-vinda, pois abrir-se ao não-todo enquanto um além do falo envolve, ao contrário, consentir com ser afetado pela dimensão da inexistência, com aquilo que não está determinado de antemão e que não tem um lugar a priori no discurso, sendo antes marcado por uma experiência de indeterminação e por invenções contingentes com o singular do gozo. Enquanto a vertente fálica do gozo precisa se preocupar com a norma discursiva da castração, seja para obedecer a ela, seja para transgredi-la, mantendo a satisfação pulsional inteiramente referida ao limite fálico e àquilo que o ultrapassa, o não-todo permite um modo de gozo que não se orienta pela relação entre a norma e a transgressão ou entre a regra e a exceção. Uma vez que não há aí um ponto de exceção que dê um limite ao gozo, essa abertura ao ilimitado dá margem ao encontro com o arrebatamento amoroso, o êxtase místico, a devastação, bem como às experiências produtivas de indeterminação, que permitem acessar modos de satisfação que não se deixam restringir pelas determinações identitárias que regulam o Eu. Em vez de se aferrar exclusivamente ao gozo fetichista do fantasma, isolado do amor, e em vez de manter distante a

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Posfácio Gilson Iannini

O que quer uma mulher? Até bem pouco tempo atrás, essa era uma das questões mais debatidas nos corredores da psicanálise. O “enigma da feminilidade”, como se dizia à época, nos intrigava a todos e todas, quaisquer que fossem nossas posições subjetivas e configurações corporais. A reiteração da mulher como “continente negro”, ainda que sob as vestes de modernidade, nunca deixou de ser um clichê meio cafona. Moscas presas dentro da garrafa, circulávamos em torno da perplexidade de Freud. É de amplo conhecimento o episódio célebre no qual, depois de confessar a Marie Bonaparte que havia pesquisado a sexualidade feminina por três décadas, sem chegar a resultados satisfatórios, Freud teria perguntado a ela: “Afinal, o que quer a mulher?”. Essa pergunta fez correr muita tinta. Era o século XX. Não faz muito tempo, todo mundo carregava a tiracolo um livro cuja capa exibia O êxtase de Santa Teresa, escultura de Bernini que estampava o Seminário 20 de Jacques Lacan. As intrincadas lições lacanianas sobre a tábua da sexuação, sobre o gozo feminino, sobre o não-todo, sobre o gozo suplementar, o gozo místico e assim

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por diante nos encantavam a todos. Mobilizávamos um sofisticado arsenal conceitual para lidar com o lado não-todo da sexuação, o feminino. Tudo se passava como se o lado masculino fosse límpido e claro, quase isento de contradições. Não havia muito o que interpretar do lado masculino, pois éramos intérpretes. Mais de uma geração de psicanalistas, homens e mulheres, reconhecia em Chico Buarque uma espécie de “intérprete da alma feminina”. Parecia haver algo a interpretar, e que esse algo estaria no lado feminino, de seu enigma, de sua opacidade. O enigma era nossa certeza. Como tudo que é sólido desmancha no ar, todas essas certezas se dissiparam de uma hora pra outra. Sem que tivéssemos respondido àquelas perguntas, sem que nossas inquietações tivessem sido apaziguadas, sem que pudéssemos sequer perceber o ocaso de tudo isso, de repente, tudo aquilo pareceu obsoleto. De repente, nossas perguntas ficaram velhas, nossas respostas não fascinavam mais. O que querem os homens? Esperamos um século para podermos formular essa pergunta. Foi preciso cair alguma coisa, foi preciso fazer vacilar os semblantes, como dizemos no jargão psicanalítico, para que as masculinidades surgissem como questão. Esperamos esse tempo todo pelo livro de Vinícius Lima. E essa espera não era ingênua. Para nos darmos conta do que está em jogo nessa interrogação contemporânea acerca das masculinidades, e, mais especificamente, em um de seus roteiros típicos, a virilidade, é preciso recuar um pouco no tempo. Antes de tratar desse brilhante trabalho, quero retomar rapidamente o contexto de formação teórica e cultural dos psicanalistas que o antecederam. *** “Os artistas estão muito adiante de nós” Não faz tanto tempo assim, minha geração e a de meus mestres lia o Seminário Encore, o Mais, ainda, sob o embalo dos dancing

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days, ou regados a Tropicália. Àquela altura, quem não sabia de cor, junto com Gilberto Gil, que o mundo masculino não passava de uma ilusão? Não sem melancolia, protestávamos contra a vanidade do mundo masculino: “Que nada!”. A melhor porção do homem, até então resguardada, era a porção mulher. Não sem contradição, enquanto a letra reconhecia que é a porção mulher que faz viver, o solo de saxofone não esconde um tom ao mesmo tempo melancólico e erótico. Quando Caetano Veloso ou Gilberto Gil subiram aos palcos vestindo saias, não nos surpreendíamos. Tínhamos passado por David Bowie, pelas performances de Ney Matogrosso na Secos e Molhados; os mais jovens cantavam Renato Russo. Na arte e na cultura, já havia versões subversivas de masculinidade, que, no entanto, não ganharam, àquela altura, sistematização ou tratamento conceitual. Dizia Freud: “No conhecimento da alma, [os artistas] estão muito adiante de nós, pessoas comuns, porque criam a partir de fontes as quais ainda não abrimos para a ciência”.1 Perseguíamos com afinco as trilhas da escrita feminina: nossos textos sobre o gozo respiravam Clarice Lispector. Em termos teóricos, a aposta na escritura feminina era uma resposta a um momento anterior, ligado mais diretamente à recepção da teoria lacaniana entre as feministas francesas e americanas. O feminismo lacaniano da década de 1970, que consolidou nomes como Julia Kristeva, Juliet Mitchell, Hélène Cixous, Luce Irigaray e muitos outros, não teve uma recepção imediata e organizada no Brasil de então. Quase não havia quem traduzisse esse movimento e esses livros, que enchiam as bancas dos sebos do Quartier Latin.

1 Tradução inédita, realizada por Ernani Chaves, de uma passagem de “O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen”, no prelo pela Editora Autêntica, na Coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud.

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Não era difícil notar que o feminismo lacaniano, entre nós, era suplantado por uma outra maneira de tratar dos impasses da sexuação. Uma vertente que culminou nas investigações acerca do gozo não-todo fálico, nas escritas ou escrituras femininas (mais do que feministas), com forte inflexão também nos passes. O feminino por aqui dispensava solenemente, ou nem isso, dispensava insolentemente, a categoria de identidade. Era, portanto, político sem ser identitário. Era combativo sem ser reivindicativo. Arrisco a dizer que minha geração, das pessoas que estão hoje na casa dos 50, mas pelo menos mais duas gerações depois de mim, ainda foram formadas nesse mesmo universo, em que o feminino na tábua da sexuação era lido de uma maneira clínica e literária. Certamente era político de ponta a ponta, mas não encampava as bandeiras dos feminismos gringos. Havia uma sutileza e uma subversão bastante antropofágica em tudo isso. Aos poucos, nas últimas décadas, o jogo se inverteu e uma nova onda de feminismo e subversão das identidades surgiu, especialmente depois de Judith Butler. Em todo esse período, quando mergulhávamos fascinados no continente opaco do gozo feminino, no indizível, no impossível e até mesmo no místico, quase não havia lugar para questionar o masculino. O masculino parecia consolidado, impávido colosso, inamovível. Parecia que o falo não era um grande problema. Havia a lógica da castração, a querela falo-pênis, mas o lado masculino da lógica da sexuação parecia mais consistente, mais idêntico a si, parecia garantir aos homens – e às mulheres que eventualmente os amassem – alguma garantia. Éramos intérpretes. *** De lá pra cá, no mundo inteiro, os estudos sobre a sexualidade masculina conheceram um boom. De repente, a masculinidade explodiu e fragmentou-se em sua pluralização: as masculinidades; e

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Lima

Quais destinos uma análise pode oferecer aos homens que se dispõem a essa travessia? Redesenhando o debate entre psicanálise e masculinidades, este livro disseca a virilidade enquanto modo particular de um ser falante buscar se fazer “homem” – um arranjo cujas coordenadas subjetivas podem ser não apenas traçadas teoricamente, como também atravessadas em um percurso de análise. As construções de Freud e Lacan quanto à masculinidade são aqui colocadas em movimento a partir dos casos clínicos que as fundamentaram e as desdobraram, sem perder de vista suas ressonâncias sociais e políticas. Nessa esteira, a obra convida as referências clássicas da psicanálise a se deixarem engajar com as produções contemporâneas em torno de gênero, raça, sexualidade e geopolítica, mantendo, ao mesmo tempo, sua orientação pela radicalidade da clínica psicanalítica. Prefácio Marcus André Vieira Posfácio Gilson Iannini

Homens em análise

Psicanalista, é doutorando e mestre em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e graduado em Psicologia pela mesma universidade. Membro sob condição especial suspensiva da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise pela Nova Política da Juventude. Pesquisador e autor de publicações em psicanálise, gênero, sexualidade e masculinidades.

O que querem os homens? Esperamos um século para poder formular essa pergunta. Foi preciso cair alguma coisa, foi preciso fazer vacilar os semblantes, para que as masculinidades surgissem como questão. Neste livro, estamos diante de um autor que oferece uma leitura refinada do paradigma dos estudos de gênero e queer, que transita com invejável familiaridade pelos corredores intricados das obras de autores como Judith Butler e Paul Preciado.

Vinícius Lima PSICANÁLISE

Vinícius Lima

Homens em análise Travessias da virilidade

PSICANÁLISE

Mas o principal mérito de Vinícius Lima é que ele preserva a infamiliaridade indispensável ao ofício impossível do psicanalista. Seu trabalho estabelece um marco para a psicanálise contemporânea. Ao mesmo tempo que escuta o que este século tem a dizer e que acolhe pacientemente suas interrogações, não perde por nenhum segundo sequer o gume da lâmina cortante que a radicalidade da clínica psicanalítica exige. Gilson Iannini



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