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Dores e amores na parentalidade

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Dores e amores na parentalidade

Caminhos de elaboração da tristeza materna

PSICANÁLISE
Cristiane da Silva Geraldo Folino

DORES E AMORES NA

PARENTALIDADE

Caminhos de elaboração da tristeza materna

Cristiane da Silva Geraldo Folino

Dores e amores na parentalidade: caminhos de elaboração da tristeza materna

© 2024 Cristiane da Silva Geraldo Folino

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editores Eduardo Blücher e Jonatas Eliakim

Coordenação editorial Andressa Lira

Produção editorial Ariana Corrêa

Preparação de texto Catarina Tolentino

Diagramação Guilherme Salvador

Revisão de texto Ana Maria Fiorini

Capa Laércio Flenic

Imagem da capa iStockphoto

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4º andar

04531-934 – São Paulo – SP – Brasil

Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Folino, Cristiane da Silva Geraldo

Dores e amores na parentalidade : caminhos de elaboração da tristeza materna / Cristiane da Silva Geraldo Folino. – São Paulo : Blucher, 2024.

280 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2104-3

1. Parentalidade 2. Maternidade I. Título

23-6237

CDD 306.874

Índice para catálogo sistemático: 1. Parentalidade

Conteúdo

1. Gestando o tema: construindo um caminho para a introdução ao campo 15 2. Esperando uma nova vida: gravidez, maternidade e parentalidade 41 3. Os impactos e os destinos do nascimento 59 4. Baby blues: que ritmo é esse? 75 5. Gestando dores e amores no encontro gestacional: um bebê crescendo no ventre e na alma 107 6. Dores e amores no primeiro encontro após o nascimento: o que trazem as águas do parto? 145 7. Dores e amores no segundo encontro após o nascimento: reverberações e sedimentações? 187
Dores e amores no terceiro encontro após
nascimento: ruptura dos ritmos e novas cadências 217
8.
o

9.

conteúdo 14
Tecendo e bordando os ritmos da parentalidade: tramas continentes 249
Considerações finais 257 Referências 267
10.

1. Gestando o tema: construindo um caminho para a introdução ao campo

Há algum tempo tenho me interessado pelo universo envolvido no tornar-se mãe, nas relações iniciais pais-bebê e na constituição psíquica da criança. Eu conjecturava que a maternidade simbolizava uma experiência de importância ímpar e parecia ser emblemática do desenvolvimento psíquico que o processo de gestar poderia representar para uma mulher; dar à luz e cuidar de um filho quando fruto de um desejo genuíno de ser mãe.

No dia a dia do processo de ajudar o bebê a viver e crescer, ir apresentando e dividindo com ele suas experiências no mundo faria a mulher crescer e se desenvolver, como seu filho, e essa relação seria atravessada pelo compartilhamento de um prazer.

Inicialmente, empenhei meus esforços no sentido de compreender o que diziam sobre o tema os autores psicanalíticos. Alegrei-me ao encontrar aportes teóricos para minhas impressões, o que, num primeiro momento, permitiu que eu me aventurasse ainda mais no tema da maternidade e suas reverberações.

Por outro lado, comecei a encontrar autores que, apesar de não negarem efeitos positivos, introduziam elementos que tornavam mais complexa a trama do gestar e do cuidar.

Nesse caminho, algumas questões vieram expandir e, de certa forma, até complicar o campo, culminando numa inquietação acerca das dificuldades ou impossibilidades de se vivenciar a vinda de um filho e o ser mãe como uma experiência de qualidade eminentemente fértil. Assim, a outra face do fenômeno começou aos poucos a se revelar, até fazer parte das minhas indagações: o que poderia nos ensinar o sofrimento de algumas mulheres que se tornavam mães?

Em um momento posterior, integrei a equipe responsável pelo projeto “Diagnóstico da evolução de recém-nascidos de baixo peso no Hospital do Campo Limpo antes a após a implantação do Método Canguru”, realizado pelo Instituto de Saúde, Secretaria Estadual de Saúde do Estado de São Paulo (SES/SP), com apoio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Japan International Cooperation Agency, JICA), em 2004/2005. Essa pesquisa investigou o impacto da implantação do Método Canguru – um projeto de humanização hospitalar (Feliciano et al., 2007).

Ao acompanhar essas mulheres, compreendi o que pode ser para os pais a outra face da vinda de um filho. Defrontei-me com a angústia causada pelo risco que correm os bebês nascidos prematuramente, constatando a dor e o sofrimento das mães que temiam pela vida de seu bebê e a dificuldade de muitas de se apropriar de seu filho e ajudá-lo a superar suas dificuldades iniciais.

Por outro lado, essa experiência revelou a importância do acolhimento das angústias maternas no período perinatal e como ela pôde ajudar as mães a voltarem a se vincular com seu bebê, oferecendo-lhes um colo psíquico, fundamental nesses primeiros tempos de vida.

A primeiríssima infância, da gestação até os 3 anos de vida da criança, é considerada um período sensível para o pleno

gestando o tema 16

2. Esperando uma nova vida: gravidez, maternidade e parentalidade

Antes de nos determos mais especificamente nos lutos que envolvem a construção da parentalidade e que podem figurar como pano de fundo nas depressões pós-parto ou nos casos de baby blues, discutiremos os acontecimentos físicos e psíquicos da gestação.

A gestação não só gera um novo ser e modifica fisicamente os órgãos e os contornos da mulher, mas também pode ser entendida como um modo de prepará-la psiquicamente para a complexa tarefa de se tornar mãe.

Ao ouvir mulheres que estavam no final da gestação, tivemos contato com o caminho que percorreram antes mesmo da concretização da gestação. Nesse período, cada mulher faz um percurso até vir a engravidar. Para algumas delas houve uma série de adiamentos e desvios, e, uma vez já grávidas, algumas intercorrências. Alguns discursos indicam perdas nesse percurso, marcando de determinada forma a história dessas mulheres e o processo de se tornarem mães, e nos ensinam que já aí se põe em movimento um delicado exercício de elaboração de perdas e ganhos para os pais no projeto de um filho.

Algumas mulheres que acompanhei tiveram certa dificuldade de engravidar quando gostariam – uma delas fala a respeito de um sapatinho que fez quando começou a investir na vontade de ser mãe e do adiamento da entrega aos avós até saber que realmente estava grávida. A “esperança contida no sapatinho” exemplifica parte do processo que inclui idas e vindas, esperanças e dúvidas, pressupondo sucessivas elaborações e novos reinvestimentos até a concretização.

Por outro lado, uma outra mulher indica as perdas e mudanças às quais ficou sujeita assim que a relação com seu marido ganhou um estatuto mais sério, tendo que renunciar à sua liberdade pessoal e mudar de país. Parecia sinalizar que as relações impõem uma necessidade de investimento e que dão certo trabalho; deve-se renunciar a algumas coisas para obter ganhos nesse espaço compartilhado que representa a relação com um outro.

Outras mulheres contam que a segunda gestação remete, de certa forma, à história da primeira. A necessidade de repouso absoluto que tiveram que fazer e o parto traumático que uma delas vivenciou deram à experiência atual uma aura de preocupação e atenção, marcando a história dessas mulheres e suas gestações.

Alguém crescendo dentro de si

O que acontece com a mulher quando ela engravida? Que alterações sofrem seu corpo e seu psiquismo? Do ponto de vista físico, a gravidez é um processo extremamente complexo, que envolve a síntese de vários hormônios em momentos específicos.

Desde a concepção, para se unir, um espermatozoide e um óvulo devem vencer inúmeros obstáculos e enfrentar uma árdua jornada, que pode também malograr. Quando todo esse caminho se dá a contento e o encontro entre óvulo e espermatozoide logra êxito,

esperando uma nova vida 42

3. Os impactos e os destinos do nascimento

Penso ser fascinante perceber que em suas origens a psicanálise se serviu da investigação dos modos comuns de expressão do psiquismo para, paralelamente, examinar os modos não tão comuns. Com isso, não só iluminou o terreno dos quadros psicopatológicos como os aproximou de maneira brilhante de fenômenos cotidianos como sonhos, atos falhos, lapsos e o luto, indicando que, além de um desconhecido de base, há em nós as manifestações do inconsciente e que não há fronteiras tão sólidas entre o que se pode considerar normal ou patológico. Há, talvez, uma linha tênue que os separa.

Tomando a especificidade da vida humana como pano de fundo e considerando que, nos primeiros tempos, todo ser precisa de alguém que o ampare – tamanha é sua prematuridade intrínseca –, devemos ter em mente que esse alguém que ampara foi também cuidado por um outro ser, nos seus primeiros tempos. Esteve na posição que agora seu filho ocupa, também está atravessado por questões, conteúdos, conflitos de toda espécie, muitos dos quais vêm transmitidos por gerações precedentes.

Nesse contexto, soma-se a contribuição de Freud em relação à revivescência do narcisismo dos pais na relação com os filhos, assinalando uma continuidade na vida psíquica entre as gerações (Correa, 2003).

Transmitindo psiquismo entre as gerações

A fim de compreender o significado dos termos transmitir e transmissão, recorremos a sua etimologia: derivados do latim, significam, respectivamente, “mandar de um lugar para outro, ou de uma pessoa para outra”, e “transferência de coisa, direito ou obrigação” (Ferreira, 2008, p. 787).

Dessa maneira, pode-se compreender a transmissão psíquica como aquela que enseja modos de passagem de um lugar (psiquismo materno, paterno e psiquismo das gerações anteriores) para o bebê que nasce, para compor-se com seu psiquismo. É, assim, um meio de propagação das histórias e também dos conflitos de uma geração a outra.

Fundamentalmente, cada ser vem ao mundo no contexto de uma (pré-)história desenvolvida pelas gerações anteriores, de modo que os termos mais pertinentes não têm ligação com a culpa por possíveis disfunções ou desvios no filho. Partindo da premissa de que os fenômenos humanos são tingidos por determinações inconscientes e que uma mãe, um pai e outros membros da família são inevitavelmente afetados por esses conteúdos que não estão facilmente acessíveis – e menos ainda elaborados –, devemos considerar que eles muitas vezes imprimem nos indivíduos certas formas de ser e/ou de reagir ao contato com o outro e com tudo o que ele traz.

A transmissão psíquica pode ser intergeracional, relativa à transmissão de pais para filhos, e transgeracional, de avós para netos. Ela

os impactos e os destinos do nascimento 60

4. Baby blues: que ritmo é esse?

Vamos à dança

Para compreender as forças envolvidas na vivência da mulher no nascimento de um filho, percorreremos a literatura a respeito do estado denominado baby blues. Como mencionado anteriormente, em virtude de grande parte de meus interesses teóricos e clínicos estarem amplamente vinculados ao período da perinatalidade, no qual se dão as relações iniciais de um bebê na família, na aurora de seu psiquismo, bem como nos encontros e desencontros que podem figurar nesse momento com seus pais, e em especial com sua mãe, a depressão pós-parto converte-se em um importante vértice de meu olhar, e o baby blues entrou mais tarde no meu foco de interesse.

Inicialmente, parti da acepção mais amplamente conhecida de que o baby blues é considerado um estado depressivo benigno, transitório, presente na vivência da maioria das mulheres que se tornam mães, e que geralmente surge após o terceiro dia, podendo perdurar por alguns dias após o parto. A tristeza e o choro aparecem de forma intermitente e podem ser a tradução de um estado de hiperemotividade, fragilidade

e de falta de confiança em si e em sua capacidade de cuidar do bebê. Trata-se de um tempo no qual a mulher percebe que o bebê é um outro diferente de si mesma (Szejer & Stewart, 1997).

Junto com essa emoção do parto, de… ficar superfeliz, né? Colocar uma coisa dessa no mundo . . . mas, junto com essa sensação de felicidade, tudo, vem essa insegurança: “será que eu vou dar conta, será que eu vou estar sempre fazendo o melhor pra ele?”. Porque é uma sensação… é um serzinho que depende de você.

Fomentada pelas experiências que se foram apresentando, sendo uma parte delas representada pela fértil parceria com os profissionais vizinhos no cuidado à família nesses primeiros tempos de um bebê, me vi intrigada e insatisfeita em ficar somente com a ideia inicial do que o baby blues representaria.

Pressupus primeiramente que o baby blues seria uma espécie de chave para compreender melhor a depressão pós-parto. Simultaneamente, permanecia em mim a noção de que o aparecimento dele no puerpério imediato, além de surpreender, causava certa preocupação para as mulheres e seu entorno, pois ninguém espera uma tristeza, ou algo próximo a um sofrimento nessa ocasião. Fiquei intrigada por algumas questões, uma das quais é que parte da literatura que trata do tema, apesar de entendê-lo como um estado benigno e transitório, o vê como parte da psicopatologia do puerpério, junto com as depressões e as psicoses puerperais.

Ao mesmo tempo, fiquei com a impressão de que ele não era considerado algo a ser levado muito à sério, uma vez que não parecia acarretar muitos danos. Pelo menos era isso que os escritos abordavam de maneira breve. Colocava-me mais uma questão: então por que ele era considerado um quadro psicopatológico?

baby blues : que ritmo é esse? 76

5. Gestando dores e amores no encontro gestacional: um bebê crescendo no ventre e na alma

Susto e suas nuances

Quando entendido como parte de um processo, o período pré-gestacional inclui e marca a construção da parentalidade, tingindo a dinâmica da relação do casal com o bebê. E me parece ser um caminho repleto de sustos, antecipações, expectativas e mudanças desde a pré-gravidez.

Nos encontros que tive com as mulheres quando estavam grávidas, percebi uma referência constante a algo que se processava nas experiências vividas ao longo do percurso de se tornarem mães, ainda antes de engravidarem. Esse caminho não era vivido sem muitos adiamentos e desvios, e depois, já na gestação, com algumas intercorrências. Essa questão me chamou atenção e, apesar de ter se manifestado de forma diferente em cada uma das mulheres, me alertou para a necessidade de escutar cuidadosamente e procurar compreender o valor intrínseco dessas falas de maneira geral, também no que tangia a perdas e a sua necessária elaboração.

Algumas falas indicam perdas no período pré-gestacional, como os adiamentos da gravidez, que mostram como pode ser angustiante essa espera:

Então, ao mesmo tempo, é um período em que você sabe que vai ter que estar tranquila pra que isso aconteça e tal… Todo mundo diz que você tem que desencanar, mas não é fácil; todo mundo diz “fica tranquila, que acontece”. Eu fui tentando, e nada…

A partir de vértices distintos, as representações acerca do susto, além dele próprio e da surpresa, podem assumir a faceta de antecipação e suas variações, de expectativas, e expectativas de mudanças, podendo até significar perdas.

Ah, é um período complicado, né? Porque é muito cheio de ansiedade. Você fica esperando: ah, e agora, será que a menstruação vem? Aquela expectativa…

Algumas mulheres encontram certa dificuldade para engravidarem no momento que gostariam, deflagrando o risco de não conseguirem. Entre elas, algumas fazem uma longa investigação médica para encontrar e tratar o motivo pelo qual há o impedimento da gravidez. Em um desses casos, foi detectado um nódulo no ovário, e a preocupação deixou de ser a gravidez e passou a ser esse fato e a necessidade de fazer uma cirurgia. Logo depois dessa notícia foi descoberta a gravidez.

A demora da gravidez esperada suscita ansiedade e frustração seja nos pais, seja na família e amigos. Depois de tantas tentativas, quando se descobrem grávidas, algumas mulheres custam a acreditar que possa ser verdade. Apesar de viverem um conturbado período

gestando dores e amores no encontro gestacional 108

6. Dores e amores no primeiro encontro após o nascimento: o que trazem as águas do parto?

Susto e suas nuances

A experiência do parto parece ser um divisor de águas: simboliza um momento de transição por excelência, além de representar a concretude do nascimento, repleto de sensações e sentimentos.

Pensamos que seja, por si só, uma aventura transbordante, mas chegamos a alguns elementos importantes que apontam para alguns motivos pelos quais vale a pena examinar atentamente esse momento e as experiências em torno dele, prestando à mulher e à família uma assistência mais alinhada com suas reais necessidades.

Embora o objetivo aqui não seja quantificar os fenômenos estudados, é notável o número elevado de mulheres que se submetem a cesarianas. Esse dado remete ao âmbito altamente complexo e discutido sobre uma cultura da cesárea no Brasil, reflexo de uma igualmente complexa situação social:

A medicalização do parto é um reflexo da medicalização social, descrita como processo sociocultural complexo

que transforma em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que antes eram administradas no próprio ambiente familiar ou comunitário. A medicalização transforma culturalmente as populações, com um declínio na capacidade de enfrentamento autônomo das dores e adoecimentos. (Tesser, 2006)

Por ser um tema altamente intrincado, não nos parece fruto de um único determinante, mas de uma situação social muito mais ampla. No entanto, pensamos que vale considerar o uso relativo dos avanços médicos, que podem substituir ou complementar outros dispositivos de cuidado, sejam eles oferecidos pelo grupo social, ou por outros saberes, como nos parece o caso dos conhecimentos e da assistência oferecida pela psicanálise.

Assim, a nosso ver, a medicalização do parto pode ser entendida em parte pelo viés da intolerância e da fuga das dores, sejam elas físicas ou – principalmente – psíquicas, em nossa sociedade atualmente.

Algumas mulheres que podem ter a chance de optar pelo tipo de parto que desejam ter talvez tentem evitar que o parto seja algo de que não consigam dar conta, e por essa ameaça velada evitam fazer um parto normal. Outras localizam na episiotomia o receio maior pela dor, ou por outras reverberações que ela pode causar.

Dito isso, voltamos à compreensão do parto como um evento transbordante. A vivência emocionante implicada nele é ilustrada pelo relato de algumas mulheres: “não ter como descrevê-lo” , ser uma “experiência mágica” ou a “experiência mais bonita” vivida. E temos ainda sua representação como uma espécie de susto.

Penso que uma dessas mulheres talvez desejasse prolongar a gravidez e adiar esse momento fronteiriço e angustiante, pois, para

dores e amores no primeiro encontro após o nascimento 146

7. Dores e amores no segundo encontro após o nascimento: reverberações e sedimentações?

Susto e suas nuances

O material que reuni contém elementos preciosos sobre os transtornos e as transformações que o papel materno e a presença do bebê ensejam na intensidade dos impactos a que as mulheres ficam sujeitas no puerpério.

Esse encontro se mostrou como uma espécie de inventário das perdas e, para alguns participantes, também dos ganhos com a vinda do filho. É intrigante que, ao ganhar um bebê, a mulher também sofra perdas significativas, e parece que só com a possibilidade de realmente entrar em contato com os prejuízos e elaborá-los é possível vivenciar os ganhos que essa presença também implica.

Em outras palavras, é só no encontro com a realidade e, portanto, com as perdas e sua necessária elaboração que se podem recuperar os ganhos que, antes disso, eram apenas idealizados.

Dessa maneira, acredito que, apesar de muito difícil senti-las, as emoções desafiadoras em torno dessas experiências podem ajudar

as mulheres a terem um contato mais real e profundo com elas próprias e com o entorno, podendo fazer parte de seu acervo pessoal, e significarem um ganho em termos de desenvolvimento emocional, o que podemos pensar ser um enorme benefício que a maternidade pode trazer, caso não seja subtraído, ou excessivo, o enorme desafio que ela comporta.

De um modo ou de outro, todas as mulheres contam que a maternidade traz um turbilhão de emoções, podendo provocar um enorme transtorno (e/ou transformação) na vida, e que o recém-nascido exige algo de valor inestimável: a liberdade pessoal da mulher, fazendo com que muitas vezes, nesses primeiros tempos, sintam-se aprisionadas, privadas da “liberdade de ir e vir”, como me disse uma das mulheres:

chegou o momento mais difícil pra mim: não é ficar sem dormir, é perder a liberdade de ir e vir, né? Cê não poder fazer as coisas que você precisa. Sei lá, preciso ir a uma farmácia, preciso comprar uma roupa, preciso sei lá… sair um pouco… Você não tem mais essa liberdade de ir e vir, você não consegue sair, você não consegue fazer essas coisas…

A perda de liberdade sentida com a vinda de um filho pode parecer opressiva, e elas se sentem numa prisão. O engajamento necessário à dedicação a um recém-nascido é sentido como excessivo e aprisionante:

Eu não saio da minha masmorra! Eu não saio! Eu vou pro médico, volto. O máximo que eu faço: eu vou até a esquina e volto.

dores e amores no segundo encontro após o nascimento 188

8. Dores e amores no terceiro encontro após o nascimento:

ruptura dos ritmos e novas cadências

Susto e suas nuances

Os impactos continuam sendo vivenciados nas famílias, mas em algumas, há uma possibilidade de serem paulatinamente elaborados, o que pode fazer real diferença na vida dessas pessoas. Em outras pode haver uma transição mais difícil, e podemos ver, assim, que há mais ou menos elaboração.

Podendo perceber mudanças, as mulheres podem vivenciar as perdas, e a capacidade de entrar em contato com elas e de elaborá-las lhes permite admitir o ganho, o prazer com a vinda do filho, podendo ser nutridas por suas presenças.

Algumas mulheres lidam com o impacto das mudanças que o bebê traz, mas agora conseguem ter uma maior tranquilidade para lidar com algumas questões:

depois que completa três meses, a médica falou também que a alimentação não precisa ser mais tão restrita,

porque [ele] já tá acostumado… Foi um alívio. Eu não sabia. Achei que, enquanto estivesse amamentando, eu não poderia comer um monte de coisas. Ela falou “não, três meses”… Tô evitando leite, derivados de leite, porque ela achou que o refluxo e as coisas na pele dele pudessem ser rejeição à lactose. Então, eu cortei tudo o que é leite, iogurte, queijo – tudo o que eu adoro. Cortei. Isso me deixou muito mal, quando ela falou que era para cortar, porque cê já não come chocolate, não toma café, não come não sei o quê, não sei o quê… e leite. Em tudo vai leite… mas eu acho que não, porque agora, não tô mais tão… antes, cê fala “ah, uma pizza, na massa”… uma pizza sem queijo, mas na massa pode conter queijo. Agora, não tô nem aí… agora, não vou comer o leite em si, nem o queijo, mas num bolo tem leite, paciência! Tô comendo, e ele tá bem, melhorou bastante do refluxo…

Seguir o pensamento de algumas mulheres nos faz perceber que poder ir contando com os acréscimos sem precisar negar ou se afastar veementemente daquilo que as preocupa ou da próxima perda pode ser muito importante no atravessamento da experiência: Acho que o próximo drama é o desmame. Eu já tinha falado assim “não, quando ele completar três meses, na mamada da noite, eu já vou dar o [marca do leite]. Agora, ele tá completando três meses, eu tô repensando. Agora, eu vou jogar pro quarto: no quarto mês, eu começo a dar o [marca do leite]… porque… cê tem leite, né? Cê vê os seios cheios, cê não vai dar? A gente sabe que faz bem pra ele, né?

dores e amores no terceiro encontro após o nascimento 218

9. Tecendo e bordando os ritmos da parentalidade: tramas continentes

Todas as mães têm encontros e desencontros com seus bebês – é natural. Mas, a partir destas experiências que tive com as mulheres e seus bebês, vê-se que instalar uma rotina, um ritmo alinhado às necessidades que a mãe percebe na criança, pelos sinais que ela dá, aumenta a possibilidade de haver encontros e eles serem mais prazerosos. Acerta-se mais quando se conhece o filho, e uma rotina plástica e que emerge dos sinais que o bebê dá concorre para isso.

Além de ser um momento de passagem, o início da vida pode remeter a uma vivência de caos e desamparo. Vimos que o estabelecimento de uma rotina viva é capaz de ajudar a dar um contorno a essa situação disforme do começo de vida do bebê, e me parece que isso vale também para a mãe e a família. Todos os envolvidos têm acesso a terras desconhecidas, ou pouco exploradas, e, assim, configura-se uma novidade por excelência, podendo ser uma experiência fronteiriça e potencialmente desorganizadora.

Pudemos ver que uma rotina viva e a capacidade da mãe de se conectar sensivelmente ao filho concorrem para que a dupla encontre um lugar de abrandamento do desamparo materno.

As questões apontadas convergem para o tema do ritmo e levam a pensar que, no início da vida, ele é importante não só para o bebê, mas para a família. A partir da análise do material, suponho que o nascimento de um bebê quebra o ritmo anteriormente estabelecido e atinge a mãe e todos da família.

A esse respeito, Victor Guerra (2010, p. 280) sublinha que o ritmo está presente desde a sonoridade da língua materna, ajudando a formar “parte do itinerário existencial do ser humano”. Assim, podemos pensar que desde o ventre o bebê escuta a música contida na fala da mãe. O autor também sugere que o ritmo estaria ligado e significaria:

reiteração de uma experiência de forma cíclica e com certo grau de previsibilidade . . . organização temporal da experiência . . . [uma das] primeiras formas de inscrição da continuidade psíquica, um núcleo primário de identidade ( identidade rítmica ) . . . A vitalidade rítmica que estabeleceria essa indicação primária de “estar com” outro ser humano estabelece, além disso, uma forma primária de identidade no interior do bebê . (Guerra, 2010, pp. 281-282, grifos nossos e do original)

Esses três vértices do ritmo nos levam a pensar que a experiência dos cuidados, a alternância da presença-ausência materna e o respeito às reais necessidades do bebê instalariam um núcleo primário de identidade rítmica (Guerra, 2010, p. 282).

Por outro lado, a perda de ritmo sentida pelas mulheres indica o quão violenta a ruptura do ritmo pode ser, como se se tratasse de algo ligado à própria identidade do indivíduo. Perde-se muito quando se perde o próprio ritmo – é isso que parece indicar o sofrimento

tecendo e bordando os ritmos da parentalidade 250

10. Considerações finais

Eis uma palavra boa em nossa língua: CURA. Se essa palavra pudesse falar, esperar-se-ia que ela contasse uma história. As palavras têm esse tipo de valor: têm raízes etimológicas, têm história. Como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade . . . Acredito que “cura”, em suas raízes, signifique cuidado. Mais ou menos por volta de 1700, ela começou a degenerar, passando a designar um tratamento médico . . . O século seguinte acrescentou-lhe implicação do desfecho bem-sucedido. O “cuidar-curar” pode ser mais importante para o mundo do que a “cura-tratamento” e do que todo o diagnóstico e prevenção que acompanham aquilo que geralmente se denomina abordagem científica.

É frequente em nosso fazer nos dedicarmos a trabalhos como esses, especialmente pesquisas científicas, por diversas razões,

mas fundamentalmente um trabalho é disparado por uma questão pela qual nos sentimos interpelados, e é ela que norteia e marca as trilhas que se seguem.

Assim, o envolvimento com a questão pela qual nos intrigamos nos aponta um norte. No caso deste trabalho, foi um caminho de atenção às sutilezas exigidas pela perinatalidade e pela construção da parentalidade – um trabalho marcado pela delicadeza implicada no encontro com o universo dos cuidados e dos impactos do nascimento de um bebê na família. Mais especificamente, é da elaboração das dores e dos amores nesse percurso que nasce a possibilidade da genuína parentalidade. E a falta ou a insuficiência dessa elaboração pode acabar resultando num quadro depressivo mais sério, como acontece com muitas mulheres.

A escrita é uma tentativa de dar significado ao impacto e às vivências sentidas ao longo do processo de gestação dessas questões e, pela possibilidade de pensá-las, transformar sua complexidade inerente em pensamento e talvez numa contribuição efetiva a esse campo do saber.

Acredito que a pesquisa tem interface com a assistência, e com a clínica: não se pesquisa academicamente apenas para satisfazer a curiosidade e o desejo do pesquisador de saber mais – embora isso dê à pesquisa um caráter vivo e pulsante. Para enriquecer o campo do fenômeno estudado, a pesquisa deve proceder a um giro de perspectiva, no sentido de afinar seus instrumentos para que os achados se convertam em subsídios para pensarmos de outra forma a assistência oferecida às pessoas. Esse é sempre meu desejo primário.

Assim, depois de condensar os achados e as reflexões que me foram possíveis, destaco os pontos que me pareceram mais relevantes.

O mergulho que fiz neste estudo mostrou a importância de se valorizar os fenômenos do gestar e do cuidar e de dar-lhes a devida atenção, não a partir de medidas controladoras ou normatizadoras,

considerações finais 258

Em Dores e amores na parentalidade, Cristiane da Silva Geraldo Folino nos leva de forma delicada e sensível para o universo, muitas vezes, obscurecido pela idealização da maternidade, das emoções que acompanham a experiência de tornar-se mãe de um bebê.

A maternidade não é constituída apenas de ganhos, e poder acompanhar com a autora essas profundas transformações geradas pelo nascimento de um bebê, tanto na identidade feminina quanto no ambiente familiar, permite uma ampliação do olhar e um aprofundamento importante nesse tema.

A abordagem teórico-clínica presente em seu texto enriquece sobremaneira a experiência do leitor, que ao acompanhar seus relatos da clínica pode se apropriar de forma mais viva dos conceitos discutidos.

Com esta publicação, a psicanálise ganha em conhecimento e clareza e todos aqueles que podem se beneficiar da ampliação oferecida pela escuta psicanalítica.

Audrey Setton Lopes de Souza Psicanalista, membro efetivo da SBPSP e doutora em Psicologia pela USP

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