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Tempo e ato na perversão

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Este trabalho aprofunda temas desenvolvidos por Ferraz no livro Perversão. Já ali ele sugeria transformar as complexidades e as reconhecidas dificuldades da clínica desta formação psíquica numa reflexão sobre sua dimensão ética. Um olhar incauto poderia considerar esse convite um desvario. Caracterizada pelo desvio, pela afronta, pela transgressão, por uma visão quase utilitária da alteridade, como poderia a perversão ser pensada sob uma dimensão ética? Para sustentar sua proposta, Ferraz se inspira no veio freudiano que contribuiu para resgatá-la do terreno do juízo moral, revelando-a numa perspectiva de continuidade com a sexualidade dita “normal”. – Rubens M. Volich

série

PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA Coord. Flávio Ferraz PSICANÁLISE

Ensaios psicanalíticos I 3ª edição revista e ampliada

PSICANÁLISE

Flávio Ferraz

Tempo e ato na perversão Tempo e ato na perversão

É livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo. É também membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF), professor, editor e ensaísta. É autor de diversos livros, entre os quais Perversão (Casa do Psicólogo, 2000) e Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade (Casa do Psicólogo, 2002), além de organizador de diversas coletâneas.

Ferraz

Flávio Ferraz

No final de Perversão, livro a que este dá continuidade, Ferraz retomava a posição de Masud Khan, para quem, na perversão, seria possível reconhecer “rudimentos de potencialidade criativa e simbólica”, suscetíveis de serem aproveitados em análise na conquista de uma maior integração egoica. Apesar dos grandes riscos da empreitada psicanalítica com este quadro clínico, o autor defendia seu enfrentamento menos por indicações técnicas do que por uma disposição ética. Naquele momento, a afirmação era pelo fazer, mesmo que os apoios não fossem tantos. O trabalho que o leitor tem agora em mãos procura trazer elementos adicionais de inteligência e sensibilidade para esta difícil clínica.

Sidnei José Casetto


TEMPO E ATO NA PERVERSÃO Ensaios psicanalíticos I

Flávio Ferraz 3ª edição Revista e ampliada

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Tempo e ato na perversão: ensaios psicanalíticos I, 3ª edição © 2023 Flávio Ferraz 1ª edição – Casa do Psicólogo, 2005 2ª edição – Casa do Psicólogo, 2010 3ª edição – Blucher, 2023 Editora Edgard Blücher Ltda. Série Psicanálise Contemporânea Coordenador da série Flávio Ferraz Publisher Edgard Blücher Editores Eduardo Blücher e Jonatas Eliakim Coordenação editorial Andressa Lira Produção editorial Ariana Corrêa Preparação de texto Bárbara Waida Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Ana Maria Fiorini Capa Laércio Flenic Imagem da capa iStockphoto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

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Ferraz, Flávio Tempo e ato na perversão : ensaios psicanalíticos I / Flávio Ferraz. – 3. ed. – São Paulo : Blucher, 2023. 146 p. (Série Psicanálise Contemporânea / coord. de Flávio Ferraz) Bibliografia ISBN 978-85-212-2203-3 1. Psicanálise 2. Perversões sexuais 3. Sexo (Psicologia) I. Título II. Ferraz, Flávio III. Série. 23-4916

CDD 150.195 Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

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Conteúdo

Apresentação

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Prefácio

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Sidnei José Casetto 1. Do desvio sexual à perversão de transferência

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2. A recusa do tempo

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3. “Gnosticismo” perverso e “religião” obsessiva: considerações sobre o estatuto do ato

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4. As montagens perversas como defesa contra a psicose

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5. Sacher-Masoch, A Vênus das peles e o masoquismo

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Posfácio

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Rubens M. Volich

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1. Do desvio sexual à perversão de transferência1

Eixos de descrição da perversão: o sintomatológico e o transferencial A figura da perversão tem sido caracterizada na literatura psicanalítica por meio de dois eixos distintos, mas articulados clínica e metapsicologicamente. Esses eixos se encontram presentes tanto na vertente inglesa da psicanálise como na vertente francesa de inspiração lacaniana, ainda que descritos a partir de um referencial teórico e de um vocabulário conceitual diferentes, como não poderia deixar de ser. O primeiro poderíamos chamar de eixo sintomatológico, e o segundo, de eixo transferencial. Meu objetivo aqui é definir cada um deles, discutindo o modo como estão presentes nas duas vertentes da psicanálise e o peso 1 A primeira parte deste texto foi publicada originalmente na revista Percurso, XVII(36), 53-62, 2006; o texto integral foi publicado no livro O sintoma e suas faces, organizado por Lucía Barbero Fuks e Flávio Ferraz (Escuta/Fapesp, 2006, pp. 197-226).

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do desvio sexual à perversão de transferência

que adquirem em cada uma delas. A pergunta que motiva esta investigação é: até que ponto esses eixos podem coexistir em uma dada definição de perversão? Ou seja: se definirmos a perversão com maior ênfase em um deles, chegaremos à mesma figura conceitual a que chegaríamos se enfatizássemos o outro eixo? Seria possível que, ao assumir um desses eixos como central, acabássemos por definir uma figura conceitual em que a presença do outro fosse cabível? O primeiro dos eixos – mais antigo, ou mesmo original – está presente na definição freudiana da perversão, cujas linhas básicas já estavam claramente traçadas em 1905, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, e foram reiteradas na conferência XXI das Conferências introdutórias sobre psicanálise (“O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais”), em 1917. A perversão é aí concebida, para dizer de modo sintético, como um desvio sexual. Mesmo considerando que a abordagem feita por Freud é francamente crítica à sexologia do século XIX, esse modelo ainda marca seu vocabulário e define o recorte que ele faz do fenômeno; o próprio termo “perversão” foi dela retirado.2 A perversão traz, assim, a rubrica das “aberrações” e da “inversão” sexuais, cuja causa repousaria em uma fixação infantil num estágio pré-genital da organização libidinal,3 que impede as diversas correntes da 2 Em outras oportunidades, tracei um histórico detalhado da concepção de perversão na obra de Freud, indicando inclusive as fontes precedentes na sexologia do século XIX e a história do emprego do próprio termo “perversão”. Ver o artigo “Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud” (Ferraz, 2000b) e o livro Perversão (Ferraz, 2000a), particularmente os capítulos 1 (“Considerações iniciais”) e 2 (“A perversão na obra de Freud”). 3 É bem verdade que, de acordo com o modo como se lê a obra de Freud, essa “fixação infantil” pode ser encarada como uma vicissitude transferencial “constitutiva”, que antecipa, em sua obra, o ponto de vista posterior que dará ênfase ao que aqui chamo de “eixo transferencial” da definição de perversão. Agradeço a José Carlos Garcia por este comentário, em comunicação pessoal.

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2. A recusa do tempo1

Ouvi dizer a um homem instruído que o tempo não é mais que o movimento do Sol, da Lua e dos astros. Não concordei. Por que não seria antes o movimento de todos os corpos? Santo Agostinho, Confissões

O mecanismo da recusa (Verleugnung), quando postulado por Freud, veio cobrir um campo que escapava do domínio do recalcamento (Verdrängung). Uma das razões pelas quais esse conceito tornou-se tão importante e operacional em psicanálise foi a possibilidade que trouxe de imprimir uma positividade à definição da perversão. Se antes esta ainda era definida, grosso modo, como formação decorrente da “ausência do recalque’ (e daí o fato de a neurose ser “o negativo da perversão”), com a postulação da recusa ela pôde então vir a ser definida por si mesma, ganhando assim uma 1 Publicado originalmente no livro Perversão: variações clínicas em torno de uma nota só, organizado por Cassandra Pereira França (Casa do Psicólogo, 2005, pp. 13-29).

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a recusa do tempo

positividade conceitual e tendo reconhecida a sua complexidade como fenômeno psíquico. A recusa foi inicialmente pensada como recusa da castração. É assim que ela aparece nos artigos de Freud dos anos 1920 sobre o complexo de Édipo, reeditando, de modo mais acabado, a noção já expressa em 1908, no artigo “Sobre as teorias sexuais das crianças”. Entretanto, o seu objeto vai se expandindo e torna-se possível – observando-se, por exemplo, o “Esboço de psicanálise”, texto de 1938 – falar em recusa da realidade. Evidentemente, por “realidade” entende-se, então, uma ampliação da própria órbita da castração. Trata-se de uma concepção particular de realidade, que vem a ser, dito de maneira sucinta, aquilo que se opõe à realização do desejo. Segundo Laplanche e Pontalis (1986), a recusa da castração é o protótipo e a origem das outras recusas da realidade. Mesmo reconhecendo que, para o sistema freudiano, trata-se essencialmente da recusa da ausência do pênis na mulher, admitem que o objeto mais amplo da recusa é “a realidade de uma percepção traumatizante” (p. 562). Diferentemente do recalcamento, cujo objeto situa-se no interior do aparelho psíquico, a recusa tem por objeto uma realidade exterior. Discutindo o objeto da recusa, esses autores indagam se ele seria a realidade mesma ou a percepção da realidade, para sugerir que tal objeto é, em verdade, “uma teoria explicativa dos fatos”. Assim, concluem que a recusa incide “fundamentalmente num elemento básico da realidade humana, mais do que num hipotético fato perceptivo” (p. 564). Ora, esse elemento básico, não explicitado em sua natureza por Laplanche e Pontalis, pode significar, a meu ver, as condições primárias do pensamento, ligadas, de algum modo, às categorias básicas de espaço e de tempo – ou categorias a priori do conhecimento

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3. “Gnosticismo” perverso e “religião” obsessiva: considerações sobre o estatuto do ato1

Os esquemas comparativos entre as diversas categorias psicopatológicas são frequentes na literatura psicanalítica. As descrições diferenciais têm o poder de aclarar a especificidade de cada campo e, ao mesmo tempo, explorar suas interfaces. É assim que a histeria ora é comparada à perversão, ora à neurose obsessiva, e assim por diante.2 O próprio Freud foi o primeiro a fazê-lo, ainda bastante precocemente, quando, na carta de 24 de janeiro de 1897 a Fliess (Masson, 1986), afirma que a histeria é o “negativo da perversão”, conclusão que viria a se converter em uma das mais conhecidas máximas da psicopatologia psicanalítica.

1 Publicado originalmente no livro Obsessiva neurose, organizado por Manoel Tosta Berlinck (Escuta, 2005, pp. 125-149), com o título “A ‘religião particular’ do neurótico: notas comparativas sobre a neurose obsessiva e a perversão”. 2 Sobre a comparação da perversão com a histeria, ver o último capítulo do livro Hysteria, de Christopher Bollas (2000); sobre a comparação da perversão com a neurose obsessiva, ver o artigo “Problemática obsessiva e problemática perversa: parentesco e divergências”, de Roger Dorey (2003).

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“gnosticismo” perverso e “religião” obsessiva

Em 1905, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, esta afirmação é refeita. Todavia, aí já não é mais apenas a histeria que figura como o negativo da perversão. A menção agora é feita às neuroses no plural, ou seja, tomadas em seu amplo espectro: “as neuroses são, por assim dizer, o negativo da perversão”, diz agora Freud (1905/1980, p. 168). Assistimos, pois, a uma generalização que daria margem à consideração das outras modalidades de psiconeuroses também como negativos da perversão, ente elas, naturalmente, a neurose obsessiva. Pois bem, o foco deste trabalho será a comparação de certos aspectos da neurose obsessiva com a perversão, procurando desenvolver uma linha de raciocínio proposta separadamente por Guy Rosolato (1990) e Janine Chasseguet-Smirgel (1991). Alguns dos aspectos necessários à demonstração da sentença freudiana mencionada são, a meu ver, mais claramente encontrados em uma confrontação da perversão com a neurose obsessiva do que na sua comparação com a histeria, por um conjunto de razões que virão à tona a seguir. Na carta de 24 de janeiro de 1897 a Fliess, Freud (citado por Masson, 1986) mostrava interesse pelo simbolismo das bruxas, especialmente em sua ligação com o universo anal. Dizia estar interessado em ler o Malleus Maleficarum3 a fim de compreender a lógica dos métodos utilizados pelos inquisidores da Idade Média. E confessava estar sonhando com uma “religião demoníaca primitiva, com ritos praticados em segredo” (p. 228). Ao proceder assim, seu intento teórico era mostrar que, na perversão, estamos diante 3 O Malleus Maleficarum (“Martelo das bruxas”), escrito por Kramer e Sprenger e publicado em 1484, tornou-se uma obra célebre da doutrina demonista. Serviu de instrumento para a orientação dos inquisidores, ensinando-lhes a detectar os possuídos pelo demônio ou quem com ele compactuava (Pessotti, 1994).

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4. As montagens perversas como defesa contra a psicose1

Neste trabalho, parto do postulado de que a perversão é, fundamentalmente, uma defesa contra a psicose. Trabalhei de modo mais extenso essa questão em outra oportunidade (Ferraz, 2000), quando detalhei a história conceitual do problema da perversão em Freud, demonstrando como, em sua obra, foi se passando paulatinamente de um axioma segundo o qual a neurose é “o negativo da perversão” (Freud, 1905/1980) para este outro que, embora não enunciado desta forma explicitamente, poderia traduzir-se pela fórmula ora proposta de que a perversão pode ser compreendida como uma defesa contra a psicose, particularmente contra a angústia, a depressão e a fragmentação psicóticas. Esse novo axioma pôde ser deduzido dos trabalhos de Freud publicados a partir de 1923, quando a psicose foi tematizada de forma comparativa com a neurose (Freud, 1924/1980a, 1924/1980b), e quando uma teoria do fetiche veio consolidar a compreensão dos mecanismos de recusa e de divisão do ego (Freud, 1 Publicado originalmente na revista Alter, XXIX(1), 41-48, 2011.

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as montagens perversas como defesa contra a psicose

1927/1980, 1940/1980). Não são poucos os autores pós-freudianos que, explícita ou implicitamente, corroboraram tal ponto de vista. Podemos lembrar, apenas a título de exemplo, M. Masud R. Khan, Joyce McDougall, Janine Chasseguet-Smirgel e Robert J. Stoller, representantes de grupos psicanalíticos geograficamente diversos. Uma montagem sintomática perversa pode aparecer com a finalidade de estancar o desenvolvimento de uma angústia psicótica, como que colmatando uma falta que, de outro modo, torna-se escancarada quando se submerge na desorganização e na fragmentação do ego na psicose. Se partirmos da noção de fetiche em Freud, temos que a recusa vem operar, no plano da crença, uma ilusão, a saber, a de que um percepto não é real. Ora, a literatura psicanalítica é pródiga no exame dessa vicissitude do funcionamento mental em que se instaura um paradoxo que adquire fixidez e permanece, portanto, funcionando dentro do registro psíquico bivalente que Octave Mannoni (1991) definiu, de forma brilhante, na fórmula “eu sei, mas mesmo assim…”. Tal funcionamento psíquico tem a “vantagem”, se é que assim se pode dizer, de proteger o sujeito da queda em uma constatação da falta para a qual não haverá restituição para além do real. O perverso, acreditando no que sabe não ser verdade (eis aí a fórmula acabada de um jogo do impossível), desenvolve um sintoma calcado em montagens que, sendo imaginárias, não podem dispensar o acting out, sob pena de caírem por terra por falta de uma sustentação que venha do plano do real. O acting out, consubstanciado na montagem perversa (cena sexual), deriva do mesmo imperativo psíquico que determinará uma modalidade de transferência baseada no desafio e na tentativa de desestabilização do objeto, que já foi chamada de perversão de transferência (Meltzer, 1979; Etchegoyen, 2003).2 2 No Capítulo 1 deste livro, trabalhei de modo extenso essa modalidade de

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5. Sacher-Masoch, A Vênus das peles e o masoquismo1

Leopold Franz Johann Ferdinand Maria Sacher-Masoch nasceu em 1836 na Áustria, que então fazia parte do Império Austro-Húngaro. Filho de família aristocrática, aprendeu quando pequeno o francês, língua em que se alfabetizou junto com o alemão, para enfim estudar filosofia e ciências. Desde cedo alimentou o sonho de se tornar um escritor importante e reconhecido. Para tanto, elaborou o projeto de publicação de um conjunto de livros que se chamaria O legado de Caim, no qual retrataria aspectos da condição humana. Esse tema era, de fato, o que mais o tocava, tendo vindo a ser o motor de sua produção literária. Tanto que o romance A Vênus das peles foi a obra que o imortalizou, exatamente por tocar, de modo direto e corajoso, em um aspecto tão misterioso e intrigante da alma humana que é o prazer sensual que se pode extrair do sofrimento. O masoquismo, como ficou chamada essa tendência, 1 Publicado originalmente como estudo introdutório à edição brasileira do livro A Vênus das peles, de Leopold Sacher-Masoch (São Paulo: Hedra, 2008, pp. 9-19).

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sacher-masoch, a vênus das peles e o masoquismo

é algo que desafia toda lógica utilitarista ou biológica, oferecendo-se como um dos enigmas mais formidáveis dos aspectos trágico e simbólico da condição humana. A curiosa história de Severino, que se faz escravizar por Wanda, contém os mais diversos ingredientes da paixão encerrada pelo sofrimento; descerra, de maneira explícita e detalhada, o universo das fantasias poderosas que nutrem a paixão e regem aquela excitação que se condiciona aos sofrimentos físico e moral. Deixar-se amarrar e ser chicoteado pela amante correspondem ao primeiro, enquanto obedecê-la cegamente, deixar-se humilhar por ela, entregar-se-lhe como posse e, requinte da fantasia, assisti-la entregar-se a um outro amante, correspondem ao segundo. Mais do que retirar o véu que costuma cobrir as fantasias mais estranhas e secretas, o texto de Sacher-Masoch põe em marcha as ações necessárias à sua consubstanciação, ali condensadas no instituto emblemático do contrato. Antes da publicação de A Vênus das peles, Sacher-Masoch já era um escritor conhecido por diversas obras, entre as quais se destacava o livro Conto galiciano, de 1858. Mas sua consagração como escritor maior viria com a publicação de romances que, embora pudessem ser vistos como obras sentimentais por olhos ingênuos ou desavisados, não tardaram a ser identificados como portadores de um plus de erotismo que transcendia os romances tradicionais. A partir daí, ele passou a ser visto primordialmente como um escritor maldito. Entretanto, por uma ironia, a fama que auferiu na qualidade de escritor seria sobrepujada por aquela que adveio da utilização de seu próprio nome na invenção da palavra masoquismo. Justa ou injustamente, Sacher-Masoch passou a ser mais conhecido por ser o escritor que emprestou seu nome a este termo do vocabulário psiquiátrico do que pela sua própria obra. Vamos aos fatos.

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Este trabalho aprofunda temas desenvolvidos por Ferraz no livro Perversão. Já ali ele sugeria transformar as complexidades e as reconhecidas dificuldades da clínica desta formação psíquica numa reflexão sobre sua dimensão ética. Um olhar incauto poderia considerar esse convite um desvario. Caracterizada pelo desvio, pela afronta, pela transgressão, por uma visão quase utilitária da alteridade, como poderia a perversão ser pensada sob uma dimensão ética? Para sustentar sua proposta, Ferraz se inspira no veio freudiano que contribuiu para resgatá-la do terreno do juízo moral, revelando-a numa perspectiva de continuidade com a sexualidade dita “normal”. – Rubens M. Volich

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No final de Perversão, livro a que este dá continuidade, Ferraz retomava a posição de Masud Khan, para quem, na perversão, seria possível reconhecer “rudimentos de potencialidade criativa e simbólica”, suscetíveis de serem aproveitados em análise na conquista de uma maior integração egoica. Apesar dos grandes riscos da empreitada psicanalítica com este quadro clínico, o autor defendia seu enfrentamento menos por indicações técnicas do que por uma disposição ética. Naquele momento, a afirmação era pelo fazer, mesmo que os apoios não fossem tantos. O trabalho que o leitor tem agora em mãos procura trazer elementos adicionais de inteligência e sensibilidade para esta difícil clínica.

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