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Odes - Bilíngue (Latim-Português)

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Organização, tradução e notas Guilherme Gontijo Flores

HO RÁ CIO

Odes

EDIÇ ÃO BILÍNGUE

C L Á S S I C A


Horácio Odes EDIÇ ÃO BILÍNGUE


Organização, tradução, introdução e notas

Guilherme Gontijo Flores

HO RÁ CIO

Odes

C L Á S S I C A


Copyright da tradução © 2024 Guilherme Gontijo Flores Copyright desta edição © 2024 Autêntica Editora Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. AUTOR

REVISÃO

Quinto Horácio Flaco (65 - 8 a.C.)

Carolina Lins

EDITORAS RESPONSÁVEIS

Alberto Bittencourt (sobre imagem de Musa tocando a lira, de Pintor de Aquiles)

CAPA

Rejane Dias Cecília Martins COORDENADOR DA COLEÇÃO CLÁSSICA, EDIÇÃO E PREPARAÇÃO

Oséias Silas Ferraz

DIAGRAMAÇÃO

Waldênia Alvarenga

ORGANIZAÇÃO, TRADUÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS

Guilherme Gontijo Flores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Horácio, 65 a.C. - 8 a.C. Odes / Horácio ; tradução e notas Guilherme Gontijo Flores. -- Belo Horizonte : Autêntica, 2024. -- (Clássica). Edição bilíngue: português/latim ISBN 978-65-5928-355-2 1. Poesia latina I. Flores, Guilherme Gontijo. II. Título. III. Série. 23-179187

CDD-871

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura latina 871 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500

São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional Horsa I . Sala 309 . Bela Vista 01311-940 . São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468

www.grupoautentica.com.br SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br


para nanda, íris e dante. no começo desta história éramos 2 em 4 tudo é tanto mais



Agradecimentos

Inevitável agradecer a algumas pessoas que me ajudaram muito no desenvolvimento e aprimoramento deste livro, de modos os mais diversos e muitas vezes mesmo sem perceberem: a eles toda minha gratidão. Em ordem alfabética, sem hierarquias: Adriano Scandolara, Adriano Scatolin, Alessandro Rolim de Moura, Alexandre Hasegawa, Amélia Reis, André Capilé, Bernardo Brandão, Brunno Vieira, Bruno D’Abruzzo, Caetano Galindo, Érico Nogueira, Fábio Frohwein, Fernanda Baptista, Fernanda Scopel, Gladys Gontijo, Guilherme Bernardes, João Angelo Oliva Neto, João Paulo Matedi Alves, João Triska, Leandro Battisti, Leandro Cardoso, Leonardo Antunes, Leonardo Fischer, Luana Prunelle, Luciane Alves, Luiza Souza, Marcelo Tápia, Marcio Gouvêa Junior, Maria de Lourdes do Nascimento, Mauricio Cardozo, Nair Rubia Baptista, Nina Rizzi, Odete Gontijo, Oséias Ferraz, Patrícia Lino, Philippe Brunet, Rafael Dabul, Raimundo Carvalho, Raphael Pappa Lautenschlager, Reynaldo Damazio, Roberto Pitella, Robson Cesila, Rodrigo Tadeu Gonçalves, Sandra Bianchet, Sergio Flores, Sergio Maciel Junior, Simone Petry, Valquiria Araujo, Vinicius Barth.



Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente – tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia, não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada. (Giorgio Agamben, “Ideia do Amor”, em Ideia da prosa)



Abreviações

Brink Brink, 1963; Brink, 1971 (Arte poética); Brink, 1982 (Epístolas 2). Bekes Bekes, 2005. Collinge

Collinge, 1961.

Fraenkel

Fraenkel, 1957.

Mayer

Mayer, 2012 (livro 1).

K-H

Kiessling & Heinze, 1968 (Odes e Epodos);

Kiessling & Heinze, 1970 (Epístolas).

N-H

Nisbet & Hubbard, 1970 (livro 1);

Nisbet & Hubbard, 1978 (livro 2).

N-R

Nisbet & Rudd, 2004 (livro 3).

Romano Romano, 1991. Shackleton Bailey

Horatius opera, 2001.

Syndikus Syndikus,1972 (livros 1 e 2); Syndikus, 1973 (livros 3 e 4). Thomas Thomas, 2011 (livro 4 e Carmen saeculare). Villeneuve

Villeneuve, 1946.

West West, 1995 (livro 1); West, 1998 (livro 2); West, 2000 (livro 3). Williams

Williams, 1969 (livro 3).



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Apresentação Guilherme Gontijo Flores

29 115 163 251 299

Odes 1 Odes 2 Odes 3 Odes 4 Canto secular

NOTAS

307 413 457 517 555

Notas às Odes 1 Notas às Odes 2 Notas às Odes 3 Notas às Odes 4 Notas ao Canto secular

561

Referências

585

Lista de metros das Odes

CARMINA / ODES



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Apresentação

Um viajante senta à sombra e toma um trago: treze anos na estrada com Horácio

Guilherme Gontijo Flores

A poesia do poeta romano Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) nunca foi deixada para segundo plano. Seu estatuto canônico, por mais que se possa alterar ao longo do tempo e do espaço, nunca foi efetivamente contestado, e exemplos da sua influência na poesia ocidental são inúmeros: temos Boileau e Ronsard, na França; Fernando Herrera, na Espanha; Pope e Milton, na Inglaterra; Ezra Pound nos Estados Unidos; Fernando Pessoa em Portugal, dentre vários outros que atestam a força poética de sua obra e confirmam os vaticínios de Odes 3.30, de que não morreria completamente, mas que cresceria com o louvor dos pósteros: non omnis moriar e usque ego postera crescam laude recens (vv. 6-8); oráculo certeiro, sua imortalidade vem se garantindo pela recorrência viva na boca de outros poetas, muito além da duração caduca do Império Romano. Para além dessa reescritura literária, e mais especificamente na língua portuguesa, ele também foi um dos poetas romanos mais traduzidos: são pelo menos três traduções poéticas completas das Odes, nove da Arte poética, duas dos Epodos e uma das Sátiras e Epístolas, pelo que posso averiguar; além delas, são incontáveis traduções esparsas em prosa e verso. Dos tradutores recentes, temos, só no Brasil, Paulo Leminski, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Bento Prado de Almeida Ferraz, Maria Luiza Roque, Dante Tringali, Ariovaldo Augusto Peterlini e Paulo Sérgio Vasconcellos, dentre outros – cf. várias traduções que aparecem em Achcar (1994, passim): o poeta não morreu de todo. Simultaneamente, sua obra continuou sendo muito estudada no último século. No entanto, é surpreendente que o Brasil parece ter se interessado menos por sua poesia nos últimos anos. Há estudos, não se pode negar, mas têm sido poucos, e as traduções realmente continuaram existindo, mas falta mais tradução completa das obras em geral. As exceções são uma versão dos Epodos por


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Alexandre Pinheiro Hasegawa, em sua tese de doutorado (2010), minha própria tradução da Arte poética (2020) e uma das Epístolas, por Bruno Francisco dos Santos Maciel, em sua dissertação de mestrado (2017, que inclui a Arte poética); entretanto, seguimos sem nenhuma tradução poética nova e completa das Odes e das Sátiras, há mais de um século e meio.1 É uma lacuna grande demais para ignorarmos. Traduzir é gesto de ação no presente, e não mera comunicação de informações do passado. Aqui tento dar o sumo do que importa. Esta apresentação não precisa apresentar quem foi o autor do livro, um dado que pode ser consultado facilmente na Wikipédia ou em qualquer outra enciclopédia de papel ou gigabytes. E muito do que eu poderia repetir aqui está escrito em outros lugares, da minha própria lavra, entre notas e ensaios que indicarei logo adiante. Então digo o que mais vale, para encurtar assunto. Este livro começou cerca de treze anos atrás, quando dei uma disciplina optativa no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná, que propunha um percurso por toda a poesia de Horácio a partir de traduções experimentais que buscassem recriar a variedade de metros (vinte, no total da obra) e também a variedade discursiva (do mais baixo dos Epodos, passando pelo coloquial das Sátiras e pelo irônico-reflexivo das Epístolas, até chegar a píncaros de sublime de certas Odes). Vejam o que diz Giuliano Bonfante sobre o conjunto da obra: As Odes e as Sátiras, obras da mesma época e do mesmo autor, ocupam aqui aquilo que podemos definir como os dois polos opostos da língua latina: as Odes estão escritas na língua mais nobre, mais refinada, mais pura que se possa imaginar; as Sátiras naquela mais popular que o estilo literário da época poderia permitir (1994, p. 159).

Era necessário também retomar a dimensão experimental de tudo aquilo, sobretudo das Odes, que são o maior conjunto de polimetria romana registrado num só autor; uma aventura tão radical que, além de não ter antecessores do mesmo nível, não gerou imitadores no futuro. Quer dizer, era preciso tirar Horácio do lugar de conservador estático da tradição, para que pudesse ser

1

Há que se lembrar que Pedro Braga Falcão publicou em Portugal uma tradução, a meu ver, sem pretensões poéticas, das Odes, Epodos e Epístolas; sendo que a edição das Odes saiu no Brasil em 2021. Até o momento, não tenho conhecimento de uma edição das Sátiras. No fim de 2023, foi publicada pela editora Quetzal uma tradução integral de Horácio em Portugal, intitulada Poesia completa, feita por Frederico Lourenço. Nosso volume já estava em fase final de diagramação; e por isso não tive ainda oportunidade de consultar o trabalho em minúcia; mas posso dizer que, como a de Falcão, não se pretende uma tradução poética.


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lido de novo como poeta de risco e dificuldade, como figura afetiva e sutil ao mesmo tempo. Podemos ver um antecedente nas Sátiras de Ênio, nos primeiros livros das Sátiras de Lucílio, na lírica de Lévio (que praticamente desconhecemos), no Livro de Catulo e nos próprios Epodos horacianos. Destes, temos conhecimento mais detalhado apenas dos Epodos e de Catulo, mas no caso deste não temos tanta clareza sobre sua disposição original.2 Outro ponto a ser lembrado é a herança alexandrina da variedade (ποικιλία); pois, como diz Paolo Fedeli (2010), “O livro de poesia era vário pela estrutura, motivos, metro e estilo: o exemplo típico é constituído pelo livro dos Jambos de Calímaco”, mas, mesmo nesse caso, ainda é pouco o que sabemos sobre a organização métrica, e nada resta de teorização a respeito. Trocando em miúdos: até segunda ordem, tudo indica que as Odes eram um acontecimento experimental que exigia muito esforço do leitor romano e estava longe de poder ser lido como um pretenso “clássico” de sua própria época; se eu fosse traduzir o anacronismo, dava mais para pensar que Horácio estava bebendo na Grécia arcaica para dar um salto vanguardista no Principado romano. Por isso tudo, eu queria, já naquela época, demonstrar que, ao contrário do que o senso comum do mundo das letras não clássicas repete com frequência, a poesia de Horácio, longe de ser um modelo de classicismo estanque e conservador, é talvez um dos grandes momentos de experimentalismo entre as letras romanas. Monumento não de uma ordem fechada, mas do próprio movimento complexo da vida, dos impérios, dos colapsos. Tanto me moveu esse experimento tradutório, que no fim do mesmo ano me candidatei para o doutorado em Letras Clássicas na Universidade de São Paulo, com um projeto de tese que viria a se tornar Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio. Aviso aos navegantes que o texto revisado dessa tese é uma espécie de duplo das traduções que aqui estão, e poderá ser acessado em formato digital disponibilizado pela Autêntica Editora como um dos duplos desta tradução. Não é absolutamente obrigatório para compreender os poemas traduzidos, mas dará, por assim dizer, um norte do modo de entender poesia antiga, sobretudo a romana, para um público que pode ir do leigo curioso ao classicista de cabeça aberta. Mas aqui quero contar um pouco mais do que aconteceu. Na época, ainda em 2010, eu tentava demonstrar que uma leitura das Odes pode se formular pela tendência de conectar níveis heterogêneos (tema, metro, fraseologia, léxico, figuras, contextos, etc.) numa espécie de unidade fractal. Para isso acontecer com toda sua força, cada ode convida o leitor a cruzar informações para produzir leitura, por tópica, métrica, sintagma ou 2

Há uma tendência para a tripartição do Livro de Catulo, que resultaria em pelo menos duas obras polimétricas catulianas. Cf. Skinner, 2003 e 2007, e Oliva Neto, no prelo.


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o que mais se sugira; de modo que a delimitação dessas correlações acaba sendo a função do leitor em resposta à materialidade da obra. Isso (assim eu depreendia um tanto intuitivamente, e hoje posso dizer com convicção) está em toda a obra horaciana, numa espécie de prazer da desautorização da leitura imediata, para colocar sempre cada poema em perspectiva, seja em abismo para dentro da sua estrutura, seja em vertigem para fora, na organização de cada livro. Só que, no caso das Odes, isso se tornava ainda mais radical, porque o excesso de tudo imediatamente impõe a delimitação, por oposição às suas multiplicidades. Nesse sentido, graças a tal entrecruzamento de feixes heterogêneos, senti-me tentado a sugerir que uma leitura em obra aberta das Odes horacianas poderia também dialogar com o conceito de rizoma em Deleuze & Guattari. Para estes, seu principal efeito é aplicável ao nosso entendimento do real e, por conseguinte, ao nosso pensamento sobre as subjetividades; então “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (1995, p. 15), e essa ideia pode ser aplicada ao modo de um conceito para efeitos diversos. Diz a dupla francesa que “toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação” (p. 14). Ora, se seguirmos tal linha de raciocínio, esse seria o grande mal do pensamento dicotômico, radicular, portanto, ocidental, porque encerra a multiplicidade na racionalidade categórica do pensamento num centro unitário, dando assim um formato simplificado ao caos (ou caosmo, como preferirá nomear Guattari anos mais tarde) inapreensível da realidade, e reduz as leis de combinação à simplicidade da explicação lógica, sem assumir que algo escapa ao pensamento. Obviamente ninguém ali estava pensando em poesia romana ao fazer essas afirmações; e sim no estruturalismo francês, com sua tendência a delimitar uma pequena série de regras que possam explicar a complexidade dos acontecimentos empíricos, como no caso exemplar das Estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, ou da Morfologia do conto maravilhoso, de Vladímir Propp (1984). De modo um pouco diverso, mas ainda perto, eu dizia, já pensando em poesia, que toda multiplicidade demanda uma redução, o que, por sua vez, faz dela um processo estruturante por onde se inicia o processo humano de interpretação e produção de sentido. Uso o termo “estruturante” (derivado do particípio presente latino, portanto infectum, inacabado, a caminho), e não “estrutural”, por não ver na poesia, muito menos nas Odes, uma estrutura fechada, e sim uma série heterogênea (daí possivelmente rizomática) que pode se fechar estruturantemente diante de cada leitor para assim ganhar sentido. Na introdução ao livro digital, eu tento desenvolver isso com mais calma, do ponto de vista tanto teórico como analítico. Aqui não é o caso, mas


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busco apenas dar a entender que esta tradução das Odes de Horácio é uma tentativa de criar (em criação e crítica, como dizia Haroldo de Campos do processo tradutório) um paralelo também dessa multiplicidade acachapante que nos força a alguma redução interpretativa. A proposta deste trabalho como um todo (livro digital e tradução anotada) sempre foi mostrar um caminho possível, ainda que bastante aberto; para tanto, não podia me fiar numa tentativa de recriação da forma mentis do período romano do principado sob Otaviano Augusto, porque simplesmente não existe uma teoria antiga específica sobre o que pretendia tratar: não há um conceito bem definido de abertura textual entre os antigos; não nos chegou uma clara teorização antiga sobre o que fazer com um livro composto, por exemplo, de vários metros diferentes (Horácio é um caso peculiar na poesia romana, com pouquíssimos sucessores, nenhum com a mesma ousadia); e praticamente nada acerca de como iunctura e series (dois termos tratados na Arte poética do próprio Horácio) se inter-relacionam num poema para criar um efeito poético, que não é necessariamente o mesmo da oratória; a não ser, é claro, nas palavras de Horácio. Isso não implica, como já se pode depreender, que deixei de lado a pesquisa filológica, os comentadores, o aparato crítico editorial, ou as informações sociais, religiosas, políticas, históricas, etc. que hoje temos à nossa disposição; nem nos comentários aqui, nem no estudo lá. Pelo contrário. Eu não desejo reafirmar nenhuma espécie de polarização entre, de um lado, os “teóricos” e, de outro, os “tradicionalistas”, como aponta Susanna Morton Braund (2002, pp. 55-56); já que ela mesma afirma que hoje temos uma variedade muito maior de modos de leitura dos textos antigos do que há cem anos e que isso deveria gerar maior versatilidade e tolerância mútua (pp. 59-60). Ao contrário, pretendo, tanto quanto possível, tirar proveito de tudo o que puder, por ver, como Gian Biagio Conte, que “a boa filologia é aquela que […] desqualifica tanto o empirismo como atenção obsessiva […], quanto a teoria como algo de nebuloso, genérico, que perde de vista as articulações ou o tecido fino e específico do texto” (1991, p. 145). Eu já chamei isso em outro momento de “filologia dos sonhos”; e é o que continua sendo para mim. Assim, este trabalho teve, ao longo de décadas, seu lugar no entrecruzamento premeditado das duas frentes. E o que aconteceu nesse tempo todo? Bom, comecei considerando que, para dar conta dessa heterogeneidade significante da poesia das Odes, a recorrência dos metros era fundamental. Quer dizer, dois poemas num mesmo metro dialogam, mesmo quando estão muito distantes (é o caso da ode 1.1 e da ode 3.30, a primeira e a última do longo ciclo dos três primeiros livros de Odes), assim como dois poemas estranhamente diversos podem dialogar em contraste por sua proximidade (compare-se a mesma ode 1.1 com a 1.2, para não complicarmos o meio de campo). Tudo isso está


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anotado ao fim das traduções, e aqui apenas indico como exemplo. Então, assim eu pensei em 2010, preciso criar uma métrica paralela para cada um dos vinte metros utilizados por Horácio em sua poesia. E especificamente para cada um dos treze metros das Odes (que vocês poderão conferir ao fim deste volume, na “Lista de Metros das Odes”). A primeira tentativa buscava criar estrofes com metros lusitanos, isto é, aclimatar os desafios da métrica greco-romana, baseada em quantidades, à métrica de língua portuguesa, baseada na contagem de sílabas e no acento tônico das palavras. Assim eu fiz uma primeira tradução dos dois primeiros livros das Odes, até que pude conferir o trabalho impressionante dos franceses Philippe Brunet e Fantine Cavé-Radet, que vieram ao Brasil e performaram com canto, música e dança a poesia grega arcaica e um pouquinho de poesia romana. Ali eu compreendi que poderia recriar os metros como formas cantáveis (e cantadas) em português. E assim começou uma longa aventura de recriação desses metros greco-romanos sem mediação direta da métrica tradicional lusófona. Eu terminei a tese em 2014, pouco antes de nascer o meu segundo filho; precisei fazer uma pausa para colocar a vida em dia, mas sabia que não estava ali o fim do projeto. Ele precisava se desdobrar na poesia completa de Quinto Horácio Flaco, para que as Odes também tivessem seu sentido específico dentro do projeto maior de uma vida e de um tempo. Precisei fazer uma melodia para cada um desses metros, que agora estão disponíveis em gravações caseiras também publicadas on-line, de modo a oferecer, para quem quiser saltar da posição de leitor à de ouvinte, um desdobramento dessa métrica estranha aos ouvidos sem treino. E preciso dizer que foram as melodias que me serviram de guia final na revisão tradutória: já não era mais o esquema métrico como abstração, e sim a curva melódica, o contorno das palavras em música, que me fazia encontrar deslizes na transcrição do latim e na versão brasileira. E isso acontece porque uma melodia para um esquema métrico serve perfeitamente para qualquer outro poema escrito no mesmo metro; canto se torna metro, medida, organização geral do discurso. E isso eu só pude incorporar, no sentido etimológico de “colocar dentro do corpo”, com o tempo, a prática, a abertura do lugar de tradutor para o lugar de performer. Houve mais: passei a fazer parte do grupo Pecora Loca desde 2015, que passou a se especializar em tradução e(m) performance, onde foram parar algumas dessas traduções, como a da ode 2.15, que é realizada quase obrigatoriamente em todos os nossos shows; ou a 1.11, que já performamos nas mais variadas formações. Traduzi os Fragmentos completos de Safo (2017); publiquei a Arte poética de Horácio (2020) com muitas notas, dando início a essa poesia completa; traduzi também as Trobairitz provençais (2022) com metros para manter as melodias existentes ou ainda por serem descobertas. Mas também publiquei, com Rodrigo Tadeu Gonçalves, e fotos de Rafael


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Dabul, um livro inteiro dedicado a pensar as implicações de poesia, tradução e performance, quando o corpo está em jogo: Algo infiel (2017). Eu diria que muito do que discuti nessa tese está no germe de tudo o que fiz dali em diante; seja no ensaio A mulher ventriloquada, a respeito de Arquíloco, seja nos recantamentos de cantos iorubanos, fon ou bantos, presentes em Tradução-Exu (2022), feitos com André Capilé. E digo tudo isso porque este livro, mais do que uma tradução de poesia romana clássica, é um esforço que tenho feito há anos de dar à voz (assim, com crase mesmo, “dar para a voz”), anacronicamente, cheio de vida e erro e delícia, um modo de interagir com gregos e romanos do passado distante que não passe por botá-los num pedestal da tradição incontornável. E a voz é ponto central pra isso. Como é hoje de conhecimento bem difundido entre os latinistas, a performance da poesia romana seguia uma prática vocal, mesmo quando se difundia também pela escrita. Ao tentar extrair um ritmo dessa poesia que nos chega por escrito, podemos depreender que os pés da poesia antiga funcionariam como uma partitura desprovida de notas, como apenas uma sequência alternada, fundada na oposição entre sílabas longas e breves. Se, por um lado, recebemos um corpus de textos escritos que convidam à “leitura silenciosa na mente”, por ser essa a nossa prática moderna (cf. Minarelli, 2010, p. 28), por outro, não podemos deixar de lado a questão factual de que a poesia em Roma acontecia majoritariamente em ambientes orais, mesmo que projetada como escrita. Isso quer dizer que um poema como de aparência quase tratadística, como a Arte poética, é simultaneamente um texto para leitura solitária e uma poesia de acontecimento oral, marcada por ritmos musicais de uma poética grega, feita para ser performada em ambientes coletivos e recebida também pelos ouvidos. Philippe Brunet (2014) demonstra vários casos em que o hexâmetro datílico francês se revela ritmicamente indeterminado na escrita, o que demanda do intérprete vocal uma decisão que aparece apenas na performance: dessa forma, escrita e oralidade não se opõem pura e simplesmente, mas formam uma rede intricada, já que o texto se dá tanto ao olho como ao ouvido. As vagas fronteiras entre oral e escrito não se restringem ao mundo greco-romano e são tema de Ruth Finnegan, em seu clássico livro Oral poetry (1977, passim). O caso da poesia antiga clássica, helenística e romana, é exemplar para demonstrar essa porosidade. Se levarmos isso em consideração, podemos concluir que a realização de uma leitura em voz alta de um poema romano não é tão genérica a ponto de cada leitor poder emiti-la de qualquer modo, porque, como percebe Paul Zumthor (2014, pp. 55-57), mesmo na leitura solitária, o leitor passa por uma espécie de performance ausente: o metro, por exemplo, é uma exigência de identificação do subgênero e de


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formatação do ritmo da leitura, porque interfere sobre o corpo do leitor/ ouvinte; a presença ou não do instrumento musical e da entoação também poderia interferir profundamente sobre o resultado de uma performance, muito embora não tenhamos tantos dados materiais que explicitem em detalhe como seria a performance da poesia horaciana em específico. Assim, apesar de traduzir um texto escrito, que nos chegou sem notação musical, pretendo levar em consideração a oralidade inerente ao substrato métrico de um texto antigo quando traduzo, sinto, canto ou penso a poesia antiga.3 Nesse sentido, os já famosos comentários de Gregory Nagy (1996, pp. 7-39) sobre as relações entre a poética homérica e a cansò dos trovadores provençais, em especial de Jaufré Rudel, poderiam ser ainda mais efetivos, se fossem uma comparação entre os trovadores e a poesia helenística e romana, já que nesses dois casos há uma inter-relação complexa entre escrita e performance oral que não interviria na criação dos aedos homéricos antes da fixação escrita das epopeias. Com isso, se estabelece uma relação dupla entre o criador e o intérprete: no caso do período helenístico – grego e romano –, podemos pensar em cantores e liricistas, citaredos, ou pantomimos profissionais, bem como em cortesãs, ou até mesmo um escravo encarregado de leituras, supondo que tal escravo deveria marcar adequadamente as oposições de longas e breves num poema, mesmo que não cantasse (Arte poética, vv. 273-274, e Odes 4.6, vv. 35-36, tratam do gesto físico do dedo na marcação do tempo do poema); tal como fazia, mutatis mutandis, o jogral no período medieval, encarregado de performar as cantigas do trovador (cf. Zumthor, 1993, pp. 55-74). Nos dois casos, a importância da mídia oral na transmissão interfere no seu caráter escrito, mesmo que as variantes não tenham chegado integralmente até nós: “Nas tradições trovadorescas,

3

Philippe Zimmermann (2009, p. 44). Emanuelle Valette-Cagnac (1997) leva a questão adiante e problematiza a tendência a vermos na cultura romana apenas a leitura em voz alta, para então modular essas afirmações. Interessante também é conferir o vocabulário latino usado para leitura em diversos modos (pp. 19-26 e 313): por um lado, “legere” e lectio” (com uso mais neutro e amplo, servindo para a leitura em voz alta ou silenciosa, em geral na esfera privada), por outro, “recitare” e “recitatio” (mais especializado, com a união entre o trabalho do olho e da voz, em geral na esfera pública, com um destinatário em mente); enquanto a fala feita de memória usaria outros termos, como “dicere”, “declamare”, “narrare”, “habere”, “pronuntiare”, “expoente” ou “agere”. Em todo caso, temos uma gama de termos que implica a vocalização dos textos, o que demonstra a importância da incorporação do vocal desses textos como acontecimento da cultura. Ou, nas palavras acertadas de Giovanni Comotti (1991, p. 7): “A difusão e transmissão de textos acontecia por meio de audição e memorização. Mesmo quando os poetas já não mais improvisavam, mas escreviam suas composições, elas continuavam a ser conhecidas pela audiência por meio da performance oral”.


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o transmissor das canções torna-se um troubadour em potencial pelo fato de re-performar a canção” (Nagy, 1996, p. 20), mesmo que a cultura trovadoresca insista sem parar na divisão entre trovador e jogral: quer dizer, no momento em que o jogral performa, ele assume a voz do trovador, de modo similar ao aedo que, quando narra a épica, torna-se Homero (pp. 4-61). Então, o que se faz é uma dupla relação: por um lado, o primeiro veículo é a performance (declamações, recitações, cantos) do poema escrito, seja na própria voz do poeta ou de um profissional específico, e geralmente só depois este mesmo poema será publicado com o intuito de leitura; por outro, até que ocorra a publicação, certamente o poema é alterado pelas performances e pelas recepções do público e, portanto, tem uma vida de variante oral. Porém aqui entra um novo fator, o poema publicado para leitura inevitavelmente guarda sua vocalidade e, por isso, é passível de novas performances nos/por seus leitores/tradutores, quando estes se investem da máscara de performers. Uma série de exemplos da recepção moderna da poesia antiga em geral, mesmo que mais centrados nos textos de Catulo e Horácio, é a coleção de partituras apresentada Stuart Lyons (2010, pp. 132176), com base em códices medievais que musicavam poemas antigos; ou a organizada por Giovanni Battista Pighi (1958, pp. 145 e ss.) com partituras do séc. XVI ao séc. XX; ou Draheim & Wille (1985), num conjunto ainda maior dedicado apenas às partituras em torno da obra horaciana; nessas recolhas, é possível ver como os metros dos poemas antigos foram interpretados musicalmente até meados do século XX. Esse efeito de “re-performance” derivada da leitura pode ser ainda mais forte em nosso contexto se tentarmos recriar a oralidade dos textos originais em português, seja de uma cansò provençal ou de uma ode horaciana. É, em linhas gerais, o que já havia feito Augusto de Campos (2003, p. 70) nas suas versões de Arnaut Daniel, como na “Chanson dο·ill mot son plan e prim” (“Canção de amor cantar eu vim”), comentada por Carlos Rennó, que conclui que “os versos de Augusto são perfeitamente cantáveis sobre suas frases melódicas” (2003, p. 51). Na verdade, Augusto de Campos segue o mesmo projeto métrico que as versões de Ezra Pound (2003, p. 481) para o mesmo poema, “A song where words run gimp and straight”: no caso, trata-se de respeitar até o final do verso, manter rimas oxítonas ou paroxítonas, para preservar as possibilidades do canto. Augusto de Campos (1998, pp. 49-69) ainda verteu os poemas franceses do Pierrô Lunar de Albert Giraud, com o intuito de manter sua cantabilidade na composição homônima de Arnold Schönberg. O próprio Rennó já apresentou versões de Cole Porter (1991), com o projeto de serem cantáveis segundo a mesma melodia: “Fui ortodoxo nesses aspectos, fazendo coincidir o mais rigidamente possível as sílabas fortes e fracas com os tempos fortes e fracos dos compassos” (p. 42). A lista


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de traduções pensadas para execução vocal poderia ir longe, mas convém parar por aqui. Em todos os casos, a tradução é o modo da performance oral, mesmo que escrita. Voltemos à Antiguidade: como bem afirmou Rosalind Thomas, “por ideal, deveríamos ler toda a literatura antiga em voz alta – ou melhor, tentar recitá-la ou ‘performá-la’” (1992, p. 117). Thomas trata sobretudo da cultura grega, mas sabemos que, no caso de Roma, a consciência oral de um auditório teria sido imensa, se acreditarmos nas palavras de Cícero (Do orador, 3.196): “Pois quantos são os que compreendem a arte dos metros e dos ritmos? Mas se alguém por acaso comete apenas um pequeno deslize neles, seja uma abreviação por contração ou um alongamento por produção, todo o auditório reclama”. Uma passagem similar aparece no Orador 173: “por certo que no verso o auditório brada, se uma sílaba foi mais breve ou mais longa”. Plínio, o Jovem (Epístolas 5.3.7-11) comenta como ele próprio recitava em público e incorporava críticas que aconteciam nesses momentos. E por aí vai. Já nossa contemporânea Valette-Cagnac (1997, pp. 111-169) analisa diversas passagens das cartas em que Plínio trata da recitatio romana, para concluir que esta “não é a exibição de uma obra pronta, mas um lugar de produção, onde se cria um monumento literário” (p. 138), exatamente por meio das críticas incorporadas após a performance vocal de um leitor. Desse modo, transpondo as palavras de João Angelo Oliva Neto acerca dos estudos de poesia grega arcaica para os de poesia romana, eu diria com ele que “de modo deveras curioso, assume-se a oralidade de bom grado e com justeza, mas não se assumem ulteriores implicações dela” (2013, p. 32). Ora, é certo que a oralidade que determina os textos romanos do Principado romano não é igual àquela que vemos na Grécia arcaica, mas é preciso insistir que, a seu modo, os estudiosos da poesia romana também tendem a centrar seus estudos na materialidade escrita dos textos, e muitas vezes deixam de lado suas possibilidades de performance como um meio que altera os modos de produção e percepção dessas mesmas obras. Há certamente casos interessantíssimos de estudo sobre performance em Roma. Eis alguns exemplos: Wiseman (1985) considera a possibilidade de Catulo 63 ter sido apresentado com um dançarino solo nos Jogos Megalenses. Sargent (1996) sugere a hipótese de que as Heroides de Ovídio possam ser encaradas como libretos para pantomimos performarem, enquanto Ingleheart (2008) defende que as Metamorfoses teriam servido aos atores. Panayotakis (2008) indica que os textos virgilianos (das Bucólicas e dos livros 4, 6 e 10 da Eneida, ao menos) serviram de material para a adaptação de mimos e pantomimas, com base nos comentários de Sérvio às Bucólicas, 6.11, e de Suetônio (Dos poetas 103-104). Aqui no Brasil há gente desdobrando possibilidades interessantíssimas de presença do corpo e da voz nos Estudos Clássicos,


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como Leonardo Antunes, Renata Cazarin, Marcelo Tápia, Érico Nogueira, Rodrigo Tadeu Gonçalves, etc. Porém, como venho argumentando, isso não se restringe à Antiguidade; e no convívio do presente, existe uma atenção cotidiana à oralidade, já que, de modo similar ao descrito por Cícero, o público do século XXI também pode explodir em vaias, caso o intérprete erre o tempo da música numa canção popular. Este livro, com seus duplos digitais num estudo em formato digital (Uma poesia de mosaico nas Odes de Horácio) e as gravações caseiras (Outro findável verão), é apenas um dos modos possíveis de experimentar agora, no corpo, na garganta, a poesia do passado e fazê-la poesia vocal do presente. Aqui o leitor vai encontrar todas as 103 odes publicadas nos quatro livros de Carmina (que também poderíamos traduzir apenas por Cantos), que Horácio publicou ao longo de vários anos, seguidas do Canto secular, uma ode feita sob encomenda para ser performada por um coral nos Jogos Seculares promovidos por Augusto. A edição de base utilizada foi a de Shackleton Bailey (2001), pela editora Teubner, e todas as divergências estão indicadas em nota. Além de recriar os metros e tentar fazer essa poesia cantar de novo, senti que era necessário habilitar Horácio ao leitor contemporâneo com um bom bocado de notas e comentários, entre uma reflexão introdutória aos livros e poemas, e também com as notas pontuais para esclarecer questões literárias, históricas e culturais. Estas estão ao fim da tradução, para deixar o formato bilíngue do poema fluir livremente (como faço sempre desde a publicação das Elegias de Sexto Propércio, em 2014), mas indicam com precisão o poema e o verso a que se referem; então cabe ao leitor decidir se precisa, ou não, delas. Eu penso, cada vez mais, que as notas, longe de serem um empecilho à leitura, ou uma assunção de fracasso do tradutor, são o verdadeiro trampolim onde o poético se faz no cruzamento de tempos e culturas muito distantes. As notas são, portanto, mais que esclarecimento intelectual, um ponto onde se cria a oportunidade para uma estese do presente. Só existem em diálogo contínuo com os poemas em tradução, servem a eles, vivem com eles, partem e retornam a eles. E, no emaranhado delas, há uma boa lavra de outros poemas, sobretudo gregos, também traduzidos, para criar as relações de uma literatura hoje longínqua, mas que sabemos tão viva. Outra coisa: talvez a primeira leitura seja estranha, mas optei por fazer três procedimentos de base na tradução, além da recriação métrica. Em primeiro lugar, guardo a sintaxe tortuosa, cheia de ambiguidades, dos poemas em latim. Sim, o latim já tem uma liberdade na ordem das palavras muito maior que o português; mas eu não imitei essa ordem, e sim busquei o efeito da expressividade na poesia, que Horácio leva aos limites do latim, então forcei também na sua recriação brasileira. Em segundo lugar, para inclusive reforçar o efeito de mosaico truncado e ambíguo, diminuí ao


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máximo a pontuação, o que convida o processo de leitura a tomar suas próprias decisões interpretativas, por vezes sustentando um suspense frasal por alguns versos a fio. Em terceiro e último lugar, arrisquei o repertório da língua como Horácio, juntei coloquialismos com arcaísmos, alguns neologismos, passei do íntimo ao sublime em poucas linhas, usando deliberadamente o tratamento em “tu” e “vós” para distanciar os poemas da fala e aproximá-los da afetação que as Odes alcançam. Nesse sentido, entendo que o efeito final das Odes precisa ser lido em contraponto com os efeitos (tanto de pontuação quanto de linguagem, estilo, tom e metro) do resto da obra, nos Epodos, Sátiras, Epístolas e Arte poética, porque as Odes existem também dentro da obra maior, em contraponto e contraste, de um jeito que o nosso poeta manipulava como ninguém, como marquei na citação de Bonfante, mais acima; então o estilo horaciano aqui emerge pelas suas potências em outra língua, recriado, e não pela uniformidade monótona. Poemas das Odes, notas a tudo, estes estão aqui. O canto e o ensaio aguardam o leitor ainda mais insaciável na internet; assim como as traduções por vir. Preciso dizer, antes de acabar, que com Horácio eu aprendi pelo menos duas coisas. Na vida, a dura lida do convívio, com a força do silêncio, o carinho do silêncio, a ironia da frase bem colocada, e talvez o único modo de conviver num mundo conturbado de política e morticínio sempre à vista; por exemplo, rir de si mesmo em primeiro lugar, dar-se ao ridículo como modo de poesia e pensamento. Na forma, a sutileza máxima, o peso de cada palavra em seu lugar devido, ponderado, mesmo que seja para fingir o mais banal dos pensamentos; a arte de um sorriso leve, com a queridagem que nos dá sentido. Nos dois casos, forma e conteúdo, que na prática nunca se diferem por inteiro, aprendi com Horácio que somos seres absolutamente complexos, difíceis. O que me lembra uma resposta de entrevista dada pelo poeta britânico Geoffrey Hill (The Paris Review 154, Primavera de 2000), que certa feita me veio, assim, já traduzida como um presente, em um e-mail pessoal de Érico Nogueira: Somos difíceis. Os seres humanos somos difíceis. Difíceis para nós mesmos, difíceis uns para os outros. – E um mistério para nós mesmos, um mistério uns para os outros. Topa-se com muitíssimo mais dificuldade real num dia comum do que na mais “intelectual” das obras de arte. Por que julgam que a poesia, a prosa, a pintura, a música devam ser menos do que somos? Por que a música e a poesia têm de nos interpelar por meio de simplificações, quando seria aviltante se descrevessem o que somos com termos simplificados? Creio que a arte tem o direito – embora não a obrigação – de ser difícil, se quiser. E, porque daqui é um passo para falar-se em elitismo contra


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democracia, acrescento que a arte genuinamente difícil é verdadeiramente democrática. E é a tirania que requer simplificação.

Com Horácio tenho aprendido a não querer um milímetro a menos do que somos. Difíceis. Fascinantes. Daí que não acaba. E o plano é que, depois de publicar a Arte poética em 2020, e agora as Odes, possamos seguir para a obra completa de Quinto Horácio Flaco, acrescentando os Epodos ou Iambos, as Sátiras (ou Conversas) e as Epístolas (ou Cartas). A primeira tradução integral e poética a ser feita por uma só pessoa em língua portuguesa, que eu saiba, todas anotadas. Se for mesmo o caso, acho que também posso dizer que ergui um monumento, mesmo que ele não dure mais que o bronze. Meus últimos treze anos foram muito dedicados a isso, e quase tudo o que fiz foi uma espécie de satélite derivado desta aventura que começa a tomar mais claramente sua forma. Aqui ela não termina, apenas abre vias, dá sentido a algumas novas encruzilhadas, beiras de estrada onde tomar um trago, por onde quero passar e trazer amigos. Curitiba, 7 de novembro de 2023.

Ouça uma gravação das melodias e metros horacianos Leia o ensaio Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio


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