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Freud e o casamento - O sexual no trabalho de cuidado

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Maíra Marcondes Moreira

Freud e o casamento O sexual no trabalho de cuidado

PSI XXI

COLEÇÃO

SÉRIE

Psicanálise no Século XXI

Crítica e clínica


Copyright © 2023 Maíra Marcondes Moreira Copyright desta edição © 2023 Autêntica Editora Todos os direitos desta edição reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editor da coleção psicanálise no século xxi

capa

Gilson Iannini

Alberto Bittencourt

coordenador da série crítica e clínica

revisão

Christian Dunker

Lívia Martins

editoras responsáveis

diagramação

Rejane Dias Cecília Martins

Waldênia Alvarenga

projeto gráfico

Diogo Droschi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moreira, Maíra Marcondes Freud e o casamento : o sexual no trabalho de cuidado / Maíra Marcondes Moreira. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica, 2023. -- (Psicanálise no século XXI ; 5) Bibliografia. ISBN 978-65-5928-332-3 1. Casamento (Psicologia) 2. Freud, Sigmund, 1856 -1939 3. Lacan, Jacques, 1901-1981 4. Psicanálise 5. Psicologia 6. Relacionamentos não-monogâmicos 7. Sexualidade feminina I. Título. II. Série. 23-171273

CDD-155.53 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia da sexualidade 155.53 Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253

Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500

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A coleção Psicanálise no Século XXI

A coleção Psicanálise no Século XXI quer mostrar que a psicanálise pode se renovar a partir de perguntas que a contemporaneidade nos coloca, assim como sustentar a fecundidade da clínica e da teoria psicanalítica para pensar o tempo presente.

A série Crítica e Clínica

Conhecida e atacada pela sua longevidade, a psicanálise tem se mostrado, além de método clínico e uma teoria do tratamento, um dispositivo crítico. No universo anglosaxônico, esse papel crítico fica evidente pela associação com as teorias antirracialistas, pós-marxistas e feministas, mas também pela sua aproximação com teorias do cinema, da crítica literária e da filosofia. No Brasil, conhecido pela disseminação da psicanálise como prática psicoterapêutica tanto no âmbito privado quanto em sua inserção institucional nas redes assistenciais e na saúde pública, a relação entre crítica da cultura e clínica do sofrimento encontra agora uma sistematização editorial. Este é o objetivo e a proposta da série Crítica e Clínica: mostrar que a crítica social pode se reverter em renovação e aperfeiçoamento de


procedimentos clínicos. Isso significa combinar produção conceitual e reflexão psicopatológica com trabalhos de análise de transformações sociais, enfatizando o que podemos chamar de “políticas de sofrimento psíquico”. Formar uma nova política de saúde mental e dar voz e suporte narrativo para posições subalternizadas de gênero, classe e raça em nossa história é também uma forma de modificar, pela raiz, os processos de transmissão e pesquisa que vieram a caracterizar o estilo próprio e a ética da psicanálise. Nosso objetivo consiste em traduzir um montante significativo de produções da psicanálise crítica, combinando-o com a nascente produção brasileira orientada para a renovação da psicanálise. Pretendemos iluminar experiências alternativas e proposições inovadoras que se multiplicaram nos últimos anos, acolher esse movimento intelectual e organizar o debate que essas experiências e proposições suscitam ao operar transversalmente em relação às escolas de psicanálise e suas tradições. Uma nova forma de relação entre a produção universitária e o trabalho desenvolvido nas escolas de formação torna-se, assim, parte da desobstrução dos muros e condomínios que marcaram até aqui a distribuição iniquitativa dos recursos culturais e sociais no Brasil.

Gilson Iannini Editor da coleção Psicanálise no Século XXI

Christian Dunker Coordenador da série Crítica e Clínica


Para Lucas Lopes, que cuida bem de todas as suas coisas.



Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a Cura quem primeiro o formou, ele deve pertencer à Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se Homo, pois foi feito de húmus. (Higino)



Agradecimentos

Em 2021, recebi a seguinte mensagem numa rede social: “Você é a Maíra, filha da Miriam? Aqui é a sua babá!”. Maíra, 33 anos, e sua babá Naná, Isnar Dias, quem, reza a lenda, ensinou-lhe a primeira palavra: “Naná” – um nome de amor e sono. Quero agradecer nominalmente a todas as meninas e mulheres que eu consigo me lembrar de terem me dispensado algum cuidado, e às quais eu espero ter, ao meu modo, retribuído. Eu sou vocês. À Naná, Lúcia, Ângela, Almira, Magna, Betinha, Gabi, Grazi, Chel, Nininha, Marcelinha, Vivis, Carol, Aninha, Carina, Lisi, Kika, Isa, Mi, Clara, Ana Júlia, Natália, Faby, Marinão, Path, Fabs, Ana, Mamãe Lulude, Vovó Yedda, Dindinha, Tia Mary, Tia Beré, Tia Nara, Tia Lê, Tia Izamara, Tia Aninha, Tia Marcinha, Tia Leo, Lud, Paola, Laurinha, Luiza, Bê, Mandinha, Rosana, Cristiana, Patrícia, Letícia, Marilda, Jacque, Flora, Elka e Miriam – a primeira. À mulher como é minha mãe, que tem a cura nas mãos de médica e bruxa. Ao meu pai, por cuidar das minhas palavras e ao meu irmão, das minhas defesas. Ao cartel Mãe, pela riqueza das indicações, leituras e discussões. Aos queridos Vera Iaconelli, Hugo Bento, Marília Moschkovich e Daniel Guedes, que me fizeram inclusive perceber o quão entremeada de pessoas pode ser uma escrita.


Dedico os acertos deste livro a vocês, e assumo feliz, sozinha, as falhas que me competem. À Jacqueline Moreira, minha orientadora, por ser essa força, presença e delicadeza. À PUC Minas, toda a sua equipe de professores e profissionais, especialmente Diego Eduardo, pela dedicação com seus alunos. À New School for Social Research e especialmente à Chiara Bottici, pela calorosa acolhida. Às agências de fomento à pesquisa, Fapemig e Capes, pela criação de possíveis. Aos professores Camila Jourdan, Andrea Guerra, Cristina Marcos pelas contribuições. Ao Vladimir Safatle, pelo papel ímpar em minha formação intelectual. À Autêntica, editora de minha cidade natal, e de tantos livros que permeiam minha estante com autores que admiro. Ao Gilson Iannini, pela aposta e curadoria que me colocou a trabalho. À Vivian Gonçalves, pelo Norte; à Clara Ratton, pela troca em terra firme. Ao Lucas Lopes, meu marido e colega de trabalho, por ser e me ensinar que a fragilidade e a flexibilidade são a frescura do ser. Ao Jorel, meu cão, de quem gosto de cuidar. À memória de meu primo Gabriel. O que mais sinto falta é de seu peso em meu colo.


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Apresentação Vera Iaconelli

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Introdução Baby steps

Capítulo 1

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“Isso é coisa de m...”: menina, mulher ou mãe?

61 66 68 75

A divisão sexual do trabalho A menina e sua boneca: o treinamento informal A mulher e a mãe: uma erótica higienista A mãe branca e a mãe preta: restos e a situação brasileira

Capítulo 2

83

“A mulher sábia edifica a sua casa”

87 95 102

Mas e a família? Servidão voluntária para quem? Masoquismo (feminino? não, moral), cuidado e angústia Sofrimento psíquico e o cuidado

111

Capítulo 3

119

A saída da feminilidade que serve aos homens

126 137 146

Freud para casados: um toque de incesto Do falo-bebê ao homem-bebê: sua majestade Mas e o sexo? Cu-i-dar


Capítulo 4

161

A saída feminista é à esquerda: derrubando não-todas as portas

165 175 191

Trabalho afetivo, trabalho de cuidado... trabalho? A Política do Feminino e a Mãe que persiste Ainda falar de democracia? Representar a Mulher que não existe

Conclusão

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Jogando o homem-bebê com a água do banho fora: nutrindo Comuns

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Referências


Apresentação

Vera Iaconelli1

Não é de hoje que psicanalistas buscam separar o joio do trigo da psicanálise, revelando a insistente reprodução de interpretações ideológicas e datadas na trama dos textos freudianos e pós-freudianos. Se seguirmos as pegadas de Freud, essa tarefa seguirá sendo realizada, uma vez que foi o inventor da psicanálise que imprimiu, desde seus primeiros textos, a revisão e a crítica como métodos. Freud nunca se furtou a revelar os andaimes de sua obra e a retificar suas posições publicamente dando o exemplo que muitos autores fazem questão de seguir. Fazer jus à obra freudiana passa por lê-la sem promover o culto à sua personalidade. Maíra Marcondes Moreira faz parte desse rol de teóricos que não se furtam a sustentar o paradoxo de usar a psicanálise contra a psicanálise a favor dela própria. O domínio elegante da metapsicologia lhe permite apresentar passo a passo os pontos nos quais feminino, Mulher e Mãe se reduzem à caricatura misógina que a sociedade lhes impõe reproduzida sob a pena de Freud e seus seguidores. A partir da questão 1

Psicóloga, psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e de Escola do Fórum do Campo Lacaniano SP. É uma das coordenadoras da coleção Parentalidade & Psicanálise, da Autêntica. 15


do cuidado, tema caríssimo ao feminismo, que denuncia o lugar histórico da mulher na partilha sexual do trabalho, Moreira puxa os fios que embaraçam a escuta clínica até hoje. Ao questionar se o destino da mulher é cuidar do homem como de um filho, a autora não perde a oportunidade de cunhar a expressão homem-bebê, revelando, com fina ironia, que sua apropriação do texto escapa da sacralização do texto freudiano. A autora nos alerta para os riscos das boas intenções que pretendem pensar o cuidado como um bem dado à humanidade, e não como fruto das relações pulsionais. Saindo do imperativo moral em direção ao dilema ético, ela está atenta, desde seus primeiros escritos, às formas como a ideologia reaparece também no pensamento feminista, quando este se recusa a considerar a economia libidinal. Além disso, denuncia preocupantes teorias feministas que ressurgem colocando num pretenso passado idílico pré-capitalista alguns valores calcados nas competências reprodutivas de mulheres. Como que a atravessar um campo minado, Maíra prova, mais uma vez, ser uma das autoras mais originais e preparadas de sua geração. Sem medo de colocar tudo em questão e demonstrando profundo conhecimento dos autores escolhidos, ela traz uma lufada de ar fresco na produção psicanalítica, provando, também, que a psicanálise no Brasil pode nos servir de farol em tempos obscurantistas enquanto houver autores a sua altura.

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Introdução

Baby steps

Há muitas tentativas de diálogo entre os estudos feministas e as psicanálises freudiana e lacaniana. Diálogos que marcam campos de disputa de saberes sobre a verdade do sexo e do feminino. E que muitas vezes encerram seu argumento por meio da depreciação de seu oponente, tornando o debate infrutífero e evidenciando o que há de imaginário em toda competição. Neste livro, intento acrescentar um ponto a mais nesta conversa que parece ter sido ignorado tanto pelas teorias feministas quanto pelas teorias psicanalíticas. A saber, a questão do cuidado nas relações afetivas monogâmicas e cisheterossexuais, que têm como sua expressão máxima o casamento. Dentro das abordagens psicanalíticas, a questão do cuidado é amplamente discutida na clínica de bebês, pelas chamadas psicologias do Ego. Estas últimas têm maior difusão em solo americano e britânico, através das produções teóricas de Anna Freud, Winnicott e Melanie Klein. Ainda que não haja um consenso entre tais autores, suas teorias privilegiam a clínica do objeto. O que, a partir de uma leitura lacaniana, aponta para a prevalência do imaginário em suas construções: o romance familiar edípico, a constituição egoica, a identificação sexuada e as escolhas objetais amorosas. O senso comum sobre o cuidado está tão impregnado de preceitos morais e deterministas que talvez não seja por 17


acaso o quão atraente essa temática tenha se tornado para as teóricas alinhadas às psicologias do Ego.1 Esta designação não é grosseira ou arbitrária, ela denota o caráter egoico no qual se centram suas análises, subestimando aspectos inconscientes para além do romance familiar. Tal abordagem incorre numa perspectiva um tanto determinista do sujeito. Na tentativa de recuperar uma história das origens do sujeito, este é concebido como o sujeito da história de vida: como consequência de uma história libidinal que, ao extremo, depende também do modo como a mãe foi maternada e assim por diante. A leitura sobre o cuidado a partir das psicanálises de Anna Freud, Winnicott e Klein gera uma reflexão que toma o cuidado e sua ética como formativos2 dos sujeitos e da diferença sexual. Algumas autoras feministas da New Left3 que importaram as psicologias do Ego em suas construções, chegaram a propor algumas soluções idílicas. Por exemplo, o cuidado compartilhado e realizado tanto pelo pai quanto pela mãe, como tentativa de supressão da divisão sexual do trabalho dentro de casa, seria suficiente e eficaz para reconfigurar as relações entre os sexos em vivências menos desiguais e inclusive desgenerificadas. Ao importar as Psicologias do Ego para o debate sobre cuidado, qualquer envolvimento com a psicanálise lacaniana foi varrido das possibilidades. Lacan foi excomungado da International Psychoanalytical Association (IPA, Associação de Psicanálise Internacional), instituição que julgava uma Igreja, dados os contornos imaginários que impunham ao setting analítico como um analista deveria se portar, a duração que a sessão deveria ter e uma série de outras regras às quais se opunha (Lacan [1964] 2008). 2 Scott ([1995] 2017). 3 Dentre as autoras que se interessam pela temática do cuidado vinculando as teorias feminista e psicanalítica dos pós-freudianos, pode-se citar Emilce Dio Bleichmar e Juliet Mitchell. 1

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Contudo, o cuidado não foi tema exclusivo de intersecção entre os campos da psicanálise e do feminismo. Afinal, existem dois tipos de inserção da psicanálise nas teorias feministas.4 A mais recente tem como expoente a filósofa Judith Butler. Seu uso das psicanálises freudiana, laplanchiana, kleiniana e lacaniana se refere aos modos como os corpos são subjetivados pela diferença sexual, a forma como incorporam normas e até que ponto a diferença sexual é imprescindível para os modelos de reconhecimento atuais. Poderia o cuidado ser tomado a partir do debate recente, encabeçado por Butler e psicanalistas de orientação lacaniana, sobre a querela da diferença sexual? O que se anseia aqui é dar continuidade a tais pesquisas mencionadas, trazendo um novo recorte e um novo instrumento de análise, investigando a questão do cuidado dentro das parcerias cisheteromonogâmicas a partir da psicanálise freudolacaniana. Há uma aposta de que esta, a psicanálise de orientação lacaniana, é capaz de depurar a pregnância imaginária das construções apoiadas na psicologia do Ego. Ainda que para tanto seja preciso mexer em outra figura que se encontra desde sempre presumida na psicanálise: o casal. Considerando toda a gama de possibilidades de relacionalidade, parcerias amorosas e sexuais, por que insistir, dentre todas as figuras, na do casal monogâmico cisheterossexual? Há, de fato, uma escolha teórica que remonta a uma normatividade presente na teoria psicanalítica, já que Freud e Lacan se ocuparam quase exclusivamente de um só modo de se fazer parceria: o casamento cisheterossexual monogâmico. Portanto, este não é um estudo comparativo, tampouco visa esgotar todo o debate sobre a questão do cuidado e sua relação com a psicanálise. Procura-se abrir novas searas de conhecimento, logo, não há a intenção de 4

Scott ([1995] 2017). 19


transpor ou generalizar as teses aqui levantadas para diferentes configurações e experiências amorosas. A proposta é iniciar uma conversa se utilizando da psicanálise e em relação com os desenvolvimentos dos feminismos de inspiração marxista e classista sobre o trabalho de cuidado. Espera-se que, com este passo inicial, mais seja discutido posteriormente. Ademais, alguns estudos da antropologia feminista irão endossar as construções aqui elaboradas, mas tão somente de modo a desestabilizar algumas categorias por vezes naturalizantes da experiência humana. Afinal, o grande mérito das contribuições antropológicas reside em heterogeneizar o universal frente ao particular. O próprio Freud era um entusiasta da antropologia – apesar de realizar nela uma torção, buscando algo além do universal e do particular. Seguindo uma pista de Freud5 em suas conferências introdutórias sobre a psicanálise, no texto “Feminilidade”, o psicanalista vai do particular ao universal quando afirma que: “O casamento mesmo não está assegurado enquanto a mulher não conseguir fazer do seu marido também seu filho e agir [agieren] como mãe em relação a ele”.6 Pois bem, numa primeira leitura, surge de imediato a seguinte questão: estaria ele sugerindo que a esposa deveria cuidar de seu parceiro de modo a garantir uma união segura e estável? Essa já é uma conferência bastante problemática, ao menos segundo as leituras feministas mais combativas da teoria. Em meu livro O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade, apontei que a feminilidade é tanto um problema para Freud e para a psicanálise que são oferecidas três saídas à feminilidade, e não ao complexo de Édipo. Fica claro que, em contraposição à frigidez 5 6

Freud ([1933] 2018, p. 340). Freud ([1933] 2018, p. 340).

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e ao complexo de masculinidade – as duas outras saídas, pelas vias da inibição e da perversidade, respectivamente –, a feminilidade normal é a que corresponde à maternidade: com ou sem bebês. Essa confusão entre a mulher e a mãe – como quem cuida – resulta em questões conflitantes dentro da própria teoria. A mãe é o primeiro objeto de amor de um bebê, com o qual ele se vê confundido, e é também aquela que, no atravessamento do complexo de Édipo realizado por um neurótico,7 ele é forçado a abandonar. Ainda assim, o Eu8 não abandona de bom grado um antigo investimento objetal.9 Afinal, o próprio Eu é a soma da incorporação desses objetos em que ele investiu libidinalmente e que, de algum modo, perdeu. Decorre que as operações efetuadas pelo bebê em relação à mãe dizem respeito a uma identificação (eu sou o seio/eu sou minha mãe), a uma escolha objetal (eu desejo minha mãe, eu desejo a experiência que supus realizar através da minha mãe, eu desejo que seja como minha mãe) e a uma incorporação (eu não tenho a minha mãe, mas tenho algo de minha mãe em mim). Estas e outras questões serão mais bem abordadas ao longo do texto, mas revelam, em um primeiro momento, as problemáticas introduzidas a partir dessa justaposição da mulher e da mãe. Mesmo que haja toda uma gramática de desejo viabilizada por essa relação, a mãe está interditada pela proibição do incesto. Portanto, caso o objeto amoroso A neurose é uma estrutura clínica que corresponde aos sujeitos que lograram atravessar o complexo de Édipo de modo a constituir um Supereu, internalizando a Lei paterna que interdita o incesto e os separa do corpo da mãe. 8 Instância imaginária que dá consistência corporal ao sujeito enquanto sexuado e dotado de Eu, Supereu e Isso. 9 Freud ([1917] 2017). 7

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aparente muito próximo à figura da mãe, há algo que compromete o ato sexual e a qualidade deste. Freud10 elege a relação entre o menino – e, mais tarde, o homem – e sua mãe como a única relação humana que não é marcada pela ambivalência: esta seria a única experiência amorosa que não carregaria nenhum traço de hostilidade em relação ao diferente. Ao mesmo tempo, localiza que, para a mãe, a chegada de um filho do sexo masculino é a que pode melhor tamponar a sua falta e os sentimentos de angústia decorrentes das consequências psíquicas da diferença anatômica para a mulher. As mulheres, por não serem dotadas do pênis,11 experimentariam no nascimento de um filho do sexo masculino sentimentos de completude, em que o bebê assumiria o lugar de um falo-bebê. É curioso que Freud se empenhe na construção de uma relação amorosa perfeita, marcada pela totalidade e ausência de quaisquer sentimentos desagradáveis ao Eu. Essa parceria mãe-menino só se interromperia pela intrusão de um terceiro que reclame a mulher (a mãe?) para si: o pai. Há uma rivalidade entre o bebê de sexo masculino e o pai que é posta como recíproca: “com muita frequência, apenas o filho recebe aquilo a que o homem almejava”.12 O que se pode dizer dos regimes de competição é que eles são necessariamente imaginários. Por vezes, há apenas um competidor e um outro que não se dá conta dessa investida. “[...] no apego ao filho o único amor sem ambivalência, [...] que, para a menina, o veredicto era mais sombrio, talvez até inapelável” (SOLER, 2005, p. 99). 11 Lacan irá declinar a questão anatômica para os efeitos imaginários desta. O falo não é exatamente o pênis, mas tem relação com ele. É tanto os efeitos imaginários e constitutivos em relação à diferença sexual quanto a função simbólica ordenadora de introjeção da Lei e da falta, que fazem do sujeito, desejante. 12 Freud ([1933] 2018, p. 340). 10

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Existe, na verdade, um movimento de consistir o outro enquanto um rival por ele se aproximar de algum ideal almejado pelo sujeito – resta saber, nessas considerações, se é o bebê ou o pai quem encarna esse ideal. Ademais, é no mínimo cômico que Freud faça esses movimentos em relação ao pai, mas pouco importa fornecer uma análise silvestre13 sobre o psicanalista. Posição, inclusive, nada original e de esforço puramente desqualificativo. Não interessa fazer uma leitura moralizante da teoria psicanalítica ou de seu autor, mas refletir sobre os desejos inconscientes e recalcados14 relacionados ao cuidado. A psicanálise é frutífera para os debates sobre o cuidado porque as teorias feministas, visando escapar da visão moralizante que toma o cuidado como um ato de amor, o reduziram ao aspecto econômico do trabalho. A psicanálise, por outra via, insere outra perspectiva em que também se faz presente o aspecto econômico, porém sexual! Há uma economia libidinal no cuidado que corresponde a algo do Erotismo. Não se trata, portanto, de generificar o trabalho, como se este fosse relativo aos papéis sociais, mas de trazer o sexual, e não a diferença, para dentro da questão. A teoria psicanalítica não está ancorada nas condições materiais para pensar determinadas questões; ela investiga outro tipo de realidade: a psíquica! Por um lado, há uma crítica a ser feita à psicanálise por ela desconsiderar questões objetivas na subjetividade de um sujeito e nas suas possibilidades de agência. Por outro, há um ponto produtivo que ela levanta, ao descrever as formas que um sujeito se submete a alguns tipos de situações e repetições, que dizem de um Refiro-me aqui a uma análise que vise psicologizar Freud e a atribuir a ele intenções ou padecimentos de forma apressada. 14 Impedidos por um mecanismo interno ao inconsciente a chegarem à consciência. Conteúdos que nunca foram conscientes. 13

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prazer e de um desprazer que este experimenta contingencialmente, fazendo-o fora da discussão moral sobre se o sujeito deveria ou não extrair algum prazer daquilo, como se houvesse um Bem supremo a obedecer. Considero que é a ambiguidade inerente à teoria psicanalítica, uma vez que ela está desde sempre presente nas formulações de Freud e nos conteúdos inconscientes e cisões que o sujeito experimenta, o que faz de sua clínica um laboratório em permanente movimento. Ler Freud nos convida a nos depararmos com um cientista humilde, que se permite atestar contra si próprio e suas formulações para fazer avançar seu trabalho analítico e sua escuta. Em sua vasta obra, ele coloca diferentes perguntas e esforços de resposta nada categóricos, porém, mantendo-se fiel ao inconsciente e disposto a perscrutá-lo em suas contradições. Tomar esse detalhe nos textos dedicados à feminilidade como ponto de partida não implica uma leitura de viés desqualificativo. Mas uma insistência em buscar essa ambiguidade até mesmo nas passagens em que supomos ler um Freud totalmente conservador ou totalmente subversivo. É preciso ler primeiro, ler de novo, colocar em questão se há mais a ser interpretado, e não entender muito depressa. Trazer esse recorte sobre o casamento nos força ao encontro com um Freud um bocado mais conservador e conciliado com as demandas de seu tempo; e, por isso mesmo, um tanto mais incômodo. Estamos na contramão dos presentes estudos que louvam leituras anacrônicas a fim de defender que Freud era um feminista avant-garde, ou que Lacan faz uma subversão post mortem das teorias de gênero que o sucederam.15 15

Refiro-me ao livro Subversion lacanienne des théories du genre (LEGUIL; FAJNWAKS, 2015) não para desmerecer os excelentes artigos apresentados, mas para dizer da comicidade do título e da empreitada.

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Portanto, não se trata nem de “cancelar” Freud, nem de salvá-lo. O próprio psicanalista se colocava diante de impasses teóricos, e nos furtarmos de produzir impasses é um modo de obstaculizar a crítica, tornar a psicanálise estagnada e palatável, produto das exigências morais de seu tempo, em vez de à altura das transformações sintomáticas epocais. Intenciono, portanto, produzir uma autocrítica no interior da psicanálise, a partir das condições e contradições fornecidas por esta, e, somando-se a isso, contrapô-la às críticas que se pretendem exteriores16 à teoria psicanalítica. Essa ambiguidade que a psicanálise apresenta divide posições dentro do feminismo. No entanto, é instigante como a tradição marxista e classista do feminismo optou por leituras diversas da clínica psicanalítica à proposta lacaniana. Talvez caiba aqui recuperar essa possível interlocução, tendo em vista os esforços contemporâneos da clínica lacaniana, na sua tentativa de estar à altura de seu tempo, de travar um diálogo com autores queer contemporâneos, como Judith Butler e Paul B. Preciado, para questionar precisamente a diferença sexual e sua primazia em certas compreensões e direções de tratamento com corporeidades trans, não binárias ou fora dessa lógica. O mesmo não poderia ser efetuado em relação ao cuidado? Propõe-se traçar uma articulação entre, de um lado, o cuidado como trabalho, a divisão sexual, a reprodução social e o patriarcado formulados pela teoria feminista e, de outro, os masoquismos feminino e moral e a devastação; e expor como estes se encontram presentes nas relações amorosas cisheterossexuais monogâmicas, a partir das indicações freudianas sobre 16

Valho-me da noção de extimidade para pensar a política em que o dentro é o fora. Portanto, não há exterioridade que não seja constitutiva, ela é desde sempre presente e em relação interna com o que se supõe como dentro. 25


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