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Conheça "Chumbo", de Matthias Lehmann

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MATTHIAS LEHMANN

1964 2024 06 A N OS DOGOLPE MILITAR NO B R LISA •LANÇAMENTO•

“Uma boa ficção não precisa se assemelhar à vida real; é a vida que tenta com todas as suas forças se assemelhar a uma boa ficção.”

Isaac Babel, “A história do meu pombal”

Um pai capaz de repelir as almas mais repulsivas, uma mãe tolhida por esse mesmo pai, e seus filhos, Severino, Ramires, Adélia, Úrsula e Berenice, que tentarão, de uma forma ou de outra, encontrar uma saída, com mais ou menos sucesso. Este é o retrato terno e cruel dessa família pauperizada de Belo Horizonte que Matthias Lehmann, autor franco-brasileiro, nos oferece, com o pano de fundo da grande história do Brasil, um país continental, cheio de avanços e eternos retrocessos. Lehmann trabalhou três anos e meio para contemplar mais de meio século de história coletiva e familiar. Iniciando-se em 1937, Chumbo mapeia, num só ímpeto, a alma de seus personagens e o estado de Minas Gerais, misturando o íntimo e os excessos em composições repletas de descobertas gráficas.

Enquanto La Favorite, sua obra anterior, observa o cotidiano limitado de uma criança aprisionada por uma família tóxica, Chumbo amplia os horizontes para aprofundar o estudo do núcleo familiar e revelar seus determinismos. A família, o amor e a cidade são prisões que confinam os corpos dos personagens. Matthias Lehmann cria um ambiente claustrofóbico em um espaço imenso, onde as perspectivas diminuem de acordo com gênero, condição social, religião ou senso de responsabilidade. À imagem da inspiradora personagem Iara, a emancipação se revela como uma luta intensa que requer armas concretas ou simbólicas, seja para apoiar ou derrubar a ditadura militar, seja para sustentar a família ou se libertar dela.

Através da literatura, da imprensa, da arquitetura, das paisagens, da música e até mesmo do futebol, Matthias Lehmann nos oferece uma experiência sensível da cidade de Belo Horizonte no século XX, o palco de todas as aventuras de Severino, testemunhando desde sua juventude até sua consagração como escritor. Pontuado por ilustrações satíricas e recortes de jornal, o relato não deixa de abordar os eventos políticos que perturbam o curso da vida dos personagens. O golpe de Estado de 1964 e os 21 anos de ditadura militar causaram uma polarização na sociedade brasileira, que se reflete, como um sintoma, na família Wallace. Ao revelar o processo histórico por trás da formação de uma ideologia de extrema direita, que se concretizou em 2019 com a ascensão ao poder de Jair Bolsonaro, a posição do autor é palpável. Em um país que adotou “ordem e progresso” como lema, fica claro, durante uma sessão fictícia de treinamento de tortura, que a manutenção da ordem pode ocorrer à custa do progresso, e o progresso pode ser conquistado à custa do caos. Ao fechar as páginas de Chumbo, fica a rara sensação de se ter descoberto uma família, uma cidade, um país e, se já não fosse evidente, um grande desenhista.

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4 de outubro de 1930

Golpe de Estado, Getúlio Vargas torna-se presidente em 1934, antes de estabelecer seu regime autoritário (1937-1945 e depois 1951-1954).

1932

As mulheres conquistam o direito ao voto, que passa a ser secreto.

10 de novembro de 1937

Getúlio Vargas estabelece uma nova ditadura, o Estado Novo, e promulga uma nova Constituição.

1956-1961

Juscelino Kubitschek é eleito presidente. Prometendo 50 anos de progresso em 5 anos, ele inicia uma política de modernização (incluindo a construção de Brasília) que endivida o país.

24 de agosto de 1954 Ameaçado pela oposição, Getúlio Vargas comete suicídio com um tiro no coração.

1964

O golpe militar derruba o governo de João Goulart e instaura brutalmente a ditadura militar.

1961-1964

João Goulart é eleito presidente e inicia uma política de reforma social. A oligarquia conservadora e a CIA conspiram para provocar sua queda.

1968

Promulgação do AI-5, um decreto que concede amplos poderes à ditadura militar e ao generalpresidente Costa e Silva, marcando o início dos “anos de chumbo”, período de intensa repressão no Brasil.

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1974

A inflação resultante da crise do petróleo desacredita os generais.

10 de abril de 1984

Um milhão e meio de pessoas manifestam-se no Rio de Janeiro para restaurar a democracia.

1988

Uma nova Constituição é promulgada, prevendo a eleição direta do presidente e reconhecendo os direitos coletivos dos povos indígenas sobre as terras que historicamente ocupam.

1995-2002

Fernando Henrique Cardoso, ex-ministro da Economia, preside o Brasil, onde as desigualdades sociais persistem.

2002

Eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.

1979

O general João Figueiredo assume o poder e anuncia uma democratização gradual e relativa do Brasil.

1985

Eleição de Tancredo Neves, que morre antes de ser empossado. José Sarney assume a presidência de 1985 a 1990.

Dezembro de 1989

Em meio à crise econômica, Fernando Collor é eleito presidente, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva, mas é destituído por corrupção em 1992. O vice-presidente, Itamar Franco, assume de outubro de 1992 a dezembro de 1994.

17 de abril de 1997

Milhares de semterra marcham até Brasília após uma longa caminhada, dando origem ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), o principal movimento social do Brasil.

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Chumbo visto por Matthias Lehmann

Chumbo, preservando laços com o Brasil

Minha mãe é brasileira e conheceu meu pai por acaso, quando ele estava viajando pela América Latina. Eles se casaram e se estabeleceram na França, na região de Seine-et-Marne. Lembro-me que minha mãe sentia muita falta do Brasil quando eu era criança. Por isso, ela tinha o desejo de nos transmitir, a mim e minhas irmãs, seu amor pelo país e sua cultura. Íamos regularmente visitar nossa família no Brasil e falávamos português em casa. Quando, por hábito, falei português no meu primeiro dia de escola, a professora ficou surpresa. Da grande família brasileira, só minha mãe e uma de suas irmãs que vive nos Estados Unidos ainda estão vivas, e eu me perguntava qual seria, no futuro, minha conexão com esse país. Me envolvi em Chumbo também para manter uma relação pessoal com o Brasil.

Uma ficção documentada

Minha narrativa começa no núcleo familiar e se expande, primeiro para a cidade de Belo Horizonte, depois o estado de Minas Gerais e, finalmente, a história do Brasil. Além da família, era necessário contar mais de sessenta anos de história. Pesquisei muito, especialmente sobre o período da ditadura militar. Havia tantas fontes que precisei fazer pesquisas direcionadas. Para cada tópico, identifiquei o livro mais preciso. Após três anos e meio de trabalho, finalmente sinto que conheço verdadeiramente esse país que sempre reivindiquei como meu.

A saudade de Belo Horizonte e de Minas Gerais

Eu frequentemente ouvia minha mãe dizendo que sentia “saudade”. A saudade não é algo tão patológico quanto a melancolia, nem tão reacionário quanto a nostalgia, não é o spleen nem o blues. É mais um sentimento de falta, geralmente ligado à terra e às pessoas que lá vivem. Isso está profundamente enraizado na alma dos brasileiros e é muito regionalizado. Acredito que esse sentimento tão peculiar de saudade esteja muito ligado aos afro-brasileiros, cujo deslocamento foi forçado, e também aos marinheiros portugueses. Todos eles contribuíram muito para moldar a música do país e infundiram nela o forte sentimento da falta de sua terra. Para contar a história do Brasil, a música tinha que estar presente. O futebol também está no coração da cultura do país e de Minas Gerais. Em Chumbo, ele é representado pelas camisas dos times de Belo Horizonte. Severino é um torcedor fanático do Atlético Mineiro, o Galo, e veste a famosa camisa listrada em preto e branco do clube. O amor pelo time é tão importante que há uma rivalidade com os torcedores do Cruzeiro, outro clube da cidade, que faz com que os torcedores do Galo nunca usem azul, pois é a cor da camisa do time adversário.

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Um retrato familiar...

A família é o microcosmo perfeito para retratar uma sociedade. Ela cria espaços que permitem acompanhar o cotidiano dos personagens. Ao mostrá-los comendo, saindo, bebendo, encontrando-se com amigos ou em sua intimidade, podemos obter um conhecimento agudo de suas vidas. Esses momentos fazem parte de nossas existências e, portanto, por uma questão de realismo, parece natural colocá-los em cena. O que me interessa, e que já estava presente em La Favorite, é o determinismo social, mostrar como os personagens são levados, apesar de si mesmos, a seguir certos caminhos devido às linhas traçadas pela sociedade, pela tradição e pelas relações de classe. Por exemplo, em Chumbo, Severino não consegue se emancipar completamente de sua família. Eles ficam pobres, e a precariedade os mantém juntos: sempre há alguém com um problema e que precisa de ajuda. Há, como em La Favorite, essa culpa do legado que não se soube preservar. Em Chumbo, o declínio cria uma situação em que, como adultos, os personagens se veem obrigados a viver juntos. Ninguém está feliz, todos gostariam de se libertar da família, mas ninguém consegue, mesmo que tenham aspirações. A personagem de Adélia havia construído uma vida ideal em uma pequena fazenda, mas as dificuldades de sua ir mã a fazem abandonar tudo para cuidar dela. Há essa obrigação de cumprir o dever, mesmo com amargura. Esse sentimento de responsabilidade está certamente ligado a uma concepção muito tradicional de família no Brasil.

...e histórico

Um trabalho de pesquisa profundo sobre a história brasileira era essencial. Na América Latina, existe essa tradição literária do realismo fantástico. Por exemplo, os contos de Julio Cortázar ou mesmo de Mário de Andrade são frequentemente ancorados na realidade com uma preocupação de dar um contexto muito crível para então propor um contraste. Para mim, sempre foi um desafio oferecer uma narrativa com bases sócio-históricas. Era necessário, ao mesmo tempo, destacar a influência do pensamento comunista, representando militantes, figuras históricas e iconografia, mas também mostrar como a direita conservadora soube se aproveitar da extrema direita para alcançar seus objetivos. Em Chumbo, meus personagens evoluem em um período muito denso de acontecimentos. Desde o fim do império português, houve tantos golpes de Estado e reviravoltas, em um tempo relativamente curto, que isso criou um sentimento de fatalismo, como um eterno recomeço. Apesar dessa possível desilusão, eu queria apresentar personagens como Severino e Iara, que se engajam mesmo quando o direito de se manifestar é contestado durante a ditadura militar e o protesto chega até a luta armada. O que é certo é que as conquistas nunca são definitivas. Basta olhar para a presidência de Bolsonaro, que, apesar dos anos de ditadura, talvez seja o período mais odioso da história do país.

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Personagens femininas tolhidas

Observamos no Brasil, assim como em outros lugares, que, mesmo em igualdade de condições sociais, as mulheres não têm destinos tão simples quanto os homens. Ser mulher é um determinismo particularmente discriminatório em nossa sociedade, assim como na sociedade brasileira do século XX, e quero que essa reflexão esteja presente nos meus quadrinhos. Por exemplo, Maria Augusta, a mãe da família em Chumbo, cresceu em um círculo da alta burguesia. Suas aspirações literárias são atravessadas por seus deveres para com seus filhos e seu marido. Ela só pode, talvez, transmitir o sonho de ser romancista a seu filho Severino, que se tornará escritor. Adélia, a filha de Maria Augusta, é uma personagem que enfrenta todas as tempestades e, como sua mãe, prioriza os deveres familiares em detrimento de suas aspirações profundas. Meus personagens são, de certa forma, arquétipos, eles dizem algo sobre a sociedade à qual pertencem, mas trabalho para que sejam mais do que isso. Para que possam se tornar reais, eu sempre os baseio em experiências empíricas, em coisas que vi.

Referências americanas...

Quando criança, como muitos, eu lia histórias em quadrinhos franco-belgas, especialmente as dos autores que chamo de meus “três F”. Franquin, F’murr e Fred. Mais tarde, na adolescência, fui profundamente influenciado por Maus, de Art Spiegelman, que me fez perceber que era possível abordar temas sérios em quadrinhos. Naturalmente, comecei a me interessar pela cena americana de quadrinhos independentes.

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Julie Doucet foi uma grande inspiração, como Chris Ware, Daniel Clowes ou Robert Crumb, que, graficamente, é uma das minhas principais influências. Mas, para esta história em particular, pensei muito em Flavio Colin, um dos desenhistas brasileiros mais conhecidos. No meu trabalho, desenvolvi uma técnica de hachura que está presente desde minhas primeiras criações e que se sintetizou ao longo dos anos. Sempre foi um prazer desenhar, mas quis tornar meu traço cada vez mais legível e dinâmico.

A imprensa, uma especificidade brasileira e uma ferramenta de contrapoder

Antes da internet, recortes de jornais e a televisão eram os meios de se informar sobre o que acontecia no exterior. Em Chumbo, isso permite que a narrativa faça idas e vindas entre o microcosmo e o macrocosmo, especialmente porque a imprensa é muito importante no espaço público brasileiro. As bancas de jornais são um pilar da sociabilidade nas cidades, especialmente em Belo Horizonte. No Brasil, a arte do cartum está intimamente ligada à imprensa. Os quadrinhos em forma de álbuns nunca tiveram grande sucesso no país, mas a série de revistas da Turma da Mônica faz sucesso nas bancas de revistas há cerca de cinquenta anos! Também penso em O Pasquim, um jornal satírico comparável ao Hara-Kiri, que continuou a desempenhar seu papel de contrapoder durante a ditadura militar. Eu mesmo fui ilustrador para a imprensa. Há em Chumbo personagens cartunistas, como Jacaré ou Zé Requeijão, que me dão a oportunidade de imaginar caricaturas e ilustrações da época, utilizando tipografias e códigos gráficos que eram comuns na imprensa subversiva. Para enfatizar a importância da imprensa, introduzi um código gráfico em Chumbo. A história é pontuada por reproduções de recortes da imprensa, que eu faço colando os quadros na minha folha, o que me permite inserir eventos externos na história.

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MATTHIAS LEHMANN, desenhista franco-brasileiro, vive e trabalha na região de Paris, onde nasceu em 1978. Fazendo gravuras, bem como desenhos com nanquim ou caneta, ele se inscreveu inicialmente na cena abundante de fanzines e graphzines nos anos 1990, na França e no exterior.

Também participou de antologias de destaque, como a famosa Comix 2000, Lapin, Hopital Brut e Dirty Stories nos Estados Unidos, colaborou com Nicolas Moog na revista Fluide Glacial e, mais recentemente, com Pandora. Esporadicamente, ilustra para jornais como Libération, Le Monde, Siné Mensuel, Le 1, Zadig, entre outros.

Lehmann publicou cerca de dez álbuns, incluindo La Favorite, lançado em 2015, que obteve grande sucesso público e midiático, recebendo vários prêmios.

Em 2020 e 2021, realizou várias residências, nas quais trabalhou em Chumbo: na Maison des Auteurs, em Angoulême, na Villa Medici, em Roma, e na Drawing Factory, em Paris.

Em 2022, foi selecionado ao lado de trinta artistas como parte do projeto “Illustrer le Grand Paris”.

© Isabelle Franciosa 2023 368 páginas - 19 x 26 cm Brochura
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