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A filha dos ossos

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A filha dos ossos

andrea stewart TRADUÇÃO |

Regiane Winarski


Copyright © 2020 Andrea Stewart Copyright desta edição © 2024 Editora Gutenberg Título original: The Bone Shard Daughter Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

capa

Flavia Lago

Lauren Panepinto

editoras assistentes

ilustração de capa

Natália Chagas Máximo Samira Vilela

Sasha Vinogradova adaptação de capa

preparação de texto

Yonghui Qio

Alberto Bittencourt diagramação

revisão

Ana Claudia Lopes Claudia Vilas Gomes

Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Stewart, Andrea A filha dos ossos / Andrea Stewart ; tradução Regiane Winarski. -1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2024 -- (Ruínas do Império, v. 1). Título original: The Bone Shard Daughter ISBN 978-85-8235-720-0 1. Ficção de fantasia 2. Ficção norte-americana I. Título. II. Série 23-176206

CDD-813 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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Para minha irmã, Kristen, que já leu quase tudo que escrevi. Eu lhe devo uma.


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Lin Ilha Imperial

M

eu pai me disse que eu estou quebrada. Ele não anunciou sua decepção verbalmente quando respondi à pergunta dele. Mas demonstrou pelos olhos apertados, pelo jeito como sugou as bochechas já fundas, pelo jeito como o lado esquerdo dos lábios tremeu um pouco para baixo, o movimento quase escondido pela barba. Meu pai me ensinou a ler os pensamentos de uma pessoa no rosto dela. Ele sabia que eu sabia ler esses sinais. Então, entre nós, era como se tivesse falado em voz alta. A pergunta: – Quem era seu amigo de infância mais próximo? Minha resposta: – Não sei. Eu conseguia correr com a mesma rapidez com que um pardal voava, era tão habilidosa com o ábaco quanto os melhores contadores do Império e era capaz de citar os nomes de todas as ilhas conhecidas no tempo que demorava para o chá ficar pronto. Mas não conseguia me lembrar do meu passado antes da doença. Às vezes, eu achava que nunca mais me lembraria; que a garota de antes estava perdida para mim. Quando ele se mexeu, a cadeira em que estava rangeu, e ele soltou o ar longamente. Nos dedos, segurava uma chave de metal, com a qual bateu na superfície da mesa. – Como posso confiar meus segredos a você? Como posso confiar que seja minha herdeira se você não sabe quem é? . 9 .


Eu sabia quem era. Era Lin. Eu era a filha do Imperador. Gritei as palavras na minha cabeça, mas não as falei. Ao contrário do meu pai, mantive o rosto neutro, os pensamentos escondidos. Às vezes, ele gostava quando eu me defendia, mas esse não era o caso. Nunca era quando o assunto se tratava do meu passado. Eu me esforcei para não ficar olhando fixamente para a chave. – Me faça outra pergunta – pedi. O vento sacudiu as janelas, trazendo o cheiro de maresia e de algas. A brisa lambeu meu pescoço e reprimi um tremor. Sustentei o olhar de meu pai na esperança de ele ver a determinação na minha alma, e não o medo. Dava para sentir o aroma de rebelião no ar com a mesma clareza com que dava para sentir o cheiro dos barris de peixe fermentado. Era óbvio assim, denso assim. Eu poderia consertar as coisas se tivesse os meios. Se ao menos ele me deixasse provar. Tum. – Muito bem – concordou meu pai. Os pilares de madeira atrás dele ladeavam seu semblante enrugado, fazendo-o parecer mais um mau agouro do que um homem. – Você tem medo de serpentes marinhas. Por quê? – Fui mordida por uma quando era criança – respondi. Ele observou meu rosto. Prendi o ar. Depois, soltei. Entrelacei os dedos e forcei-os a relaxarem. Se eu fosse uma montanha, ele estaria seguindo as raízes de zimbros nuviosos, lascando a pedra, procurando o núcleo branco e pálido. E encontrando-o. – Não minta para mim, garota – rosnou meu pai. – Não arrisque palpites. Você pode ser sangue do meu sangue, mas eu posso indicar meu filho de criação para a coroa. Não precisa ser você. Eu queria me lembrar. Houve uma época em que aquele homem acariciava meu cabelo e beijava minha testa? Ele tinha me amado antes de eu esquecer, quando ainda estava inteira e intacta? Queria que houvesse alguém a quem eu pudesse perguntar. Ou, pelo menos, alguém que pudesse me dar respostas. – Perdão. – Curvei a cabeça. Meu cabelo preto formou uma cortina sobre os olhos e eu lancei um olhar para a chave. . 10 .


A maioria das portas do palácio estava trancada. Meu pai coxeava de aposento em aposento, usando a magia do fragmento de ossos para realizar milagres. Uma magia da qual eu precisaria dominar se fosse escolhida. Eu tinha ganhado seis chaves. O filho de criação dele, Bayan, tinha sete. Às vezes, parecia que minha vida toda era um teste. – Tudo bem – respondeu meu pai, acomodando-se na cadeira. – Pode ir. Eu me ergui para sair, mas hesitei. – Quando o senhor vai me ensinar a magia do fragmento de ossos? – Não esperei por uma resposta. – O senhor diz que pode indicar Bayan, mas não fez isso. Ainda sou sua herdeira e preciso saber controlar os construtos. Tenho 23 anos e o senhor… – Parei, porque não sabia quantos anos ele tinha. Havia manchas senis nas costas das mãos dele e o cabelo estava totalmente grisalho. Não sabia por quanto tempo mais meu pai viveria. Só conseguia imaginar um futuro em que ele morreria sem me ensinar o que eu precisava saber. Sem saber como proteger o Império dos Alangas. Sem lembranças de um pai que se importava. Ele tossiu e abafou o som com a manga. Seu olhar se desviou para a chave e a voz se suavizou: – Quando você for uma pessoa inteira – respondeu. Eu não o entendi. Mas reconheci a vulnerabilidade. – Por favor – pedi –, e se eu nunca for uma pessoa inteira? Ele me olhou, e a tristeza do olhar rasgou meu coração como se fossem dentes. Eu tinha cinco anos de lembranças; antes disso, só uma névoa. Tinha perdido algo precioso; quem me dera saber o que era. – Pai, eu… Uma batida soou na porta, e ele voltou a ficar frio feito pedra. Bayan entrou sem esperar permissão, e tive vontade de xingá-lo. Ele encolheu os ombros enquanto andava, os passos silenciosos. Se fosse qualquer outra pessoa, eu acharia o andar dele hesitante. Mas Bayan tinha a postura de um gato: deliberada, predadora. Ele usava um avental de couro sobre a túnica e havia sangue em suas mãos. – Terminei a modificação – disse Bayan. – O senhor me pediu para vir vê-lo imediatamente quando eu tivesse terminado. . 11 .


Um construto veio mancando atrás dele, os cascos pequenos estalando no piso. Parecia um cervo, exceto pelas presas na boca e o rabo curvo de macaco. Duas asinhas saíam dos ombros e sangue manchava o pelo em volta. Meu pai se virou na cadeira e colocou a mão nas costas da criatura. Ela olhou para ele com olhos grandes e úmidos. – Desleixado – comentou ele. – Quantos fragmentos você usou para inserir o comando de seguir? – Dois – respondeu Bayan. – Um para fazer o construto me seguir e outro para fazê-lo parar. – Devia ser um – explicou meu pai. – Vai aonde você for, a não ser que mande não ir. A linguagem está no primeiro livro que eu lhe dei. – Ele segurou uma das asas e a puxou. Quando a soltou, ela retornou lentamente para a lateral do construto. – A construção, por outro lado, está excelente. Bayan virou-se para me encarar, e eu sustentei o olhar dele. Nenhum de nós recuou. Sempre uma competição. A íris de Bayan era até mais preta do que a minha, e, quando ele sorria, aquilo só acentuava seus lábios carnudos. Ele podia ser mais bonito do que eu viria a ser, mas eu estava convencida de que era mais inteligente, e era isso o que realmente importava. Bayan nunca tentou esconder os próprios sentimentos. Ele exibia seu desprezo por mim como se fosse a concha favorita de uma criança. – Tente outra vez com um novo construto – disse meu pai, e Bayan afastou o olhar do meu. Ah, eu tinha vencido aquela breve competição. Meu pai enfiou os dedos no animal. Eu prendi o ar. Só o tinha visto fazer isso algumas vezes. Pelo menos, só me lembrava de ter visto duas vezes. A criatura apenas piscou placidamente enquanto a mão dele sumia até o pulso. Ele a puxou de volta e o construto ficou paralisado, imóvel feito uma estátua. Nas mãos dele havia dois fragmentos pequenos de osso. Não havia sangue manchando seus dedos. Ele largou os fragmentos na mão de Bayan. – Agora, vão. Vocês dois. Cheguei mais rápido à porta do que Bayan, que eu desconfiava que não estivesse esperando palavras tão duras. Mas eu estava . 12 .


acostumada com elas e tinha coisas a fazer. Saí pela porta e a segurei para Bayan passar, para ele não precisar sujá-la de sangue. Meu pai prezava a limpeza. Bayan me encarou feio ao passar, carregando consigo uma brisa com cheiro de cobre e incenso. Ele era apenas o filho do governador de uma ilhota que teve a sorte de chamar a atenção do meu pai e ser acolhido como filho de criação. Tinha trazido a doença junto, uma doença exótica que a Ilha Imperial não conhecia. Fui informada de que caí doente pouco depois que Bayan chegou e me recuperei um pouco depois dele. Mas ele não perdeu tanta memória quanto eu e tinha recuperado uma parte. Assim que Bayan desapareceu de vista, me virei e corri para o fim do corredor. As folhas da janela ameaçaram bater nas paredes quando as abri. As telhas pareciam inclinações de montanhas. Saí e fechei a janela pelo lado de fora. O mundo se abriu à minha frente. Do alto do telhado, eu via a cidade e o porto. Via até os barcos no mar pescando lulas, os lampiões brilhando ao longe feito estrelas na terra. O vento sacudiu minha túnica, encontrou o caminho para dentro dos panos e machucou minha pele. Eu tinha que ser rápida. Àquela altura, o construto serviçal já teria removido o corpo do cervo. Corri e deslizei pela inclinação do telhado na direção da parte do palácio onde ficava o quarto do meu pai. Ele nunca levava as chaves para a sala de interrogatório. Nem levava os guardas construtos. Eu tinha lido os pequenos sinais no rosto dele. Ele podia gritar comigo e me repreender, mas quando estávamos sozinhos… tinha medo de mim. As telhas estalaram debaixo dos meus pés. Nas muralhas do palácio, sombras se esgueiravam. Mais construtos. As instruções deles eram simples: ficar de olho em intrusos e soar um alarme. Nenhum deles prestou atenção em mim, apesar de eu não estar onde devia estar. Eu não era uma intrusa. O Construto da Burocracia estaria agora entregando os relatórios. Eu o tinha visto separando tais documentos mais cedo, os lábios peludos se mexendo sobre os dentes enquanto os lia em silêncio. Eram muitos. Cargas atrasadas por causa de brigas, o Ioph Carn . 13 .


roubando e contrabandeando pedra sagaz, cidadãos fugindo do dever com o Império. Subi na sacada do meu pai. A porta do quarto dele estava entreaberta. O cômodo costumava estar vazio, mas desta vez não estava. Havia um rosnado emanando de lá. Fiquei paralisada. Um nariz preto entrou no espaço entre a porta e a parede, aumentando o vão. Olhos amarelos me espiaram e orelhas peludas tremeram para trás. Garras rasparam a madeira quando a criatura andou na minha direção. Bing Tai, um dos construtos mais antigos do meu pai. A papada estava salpicada de cinza, mas ele ainda tinha todos os dentes. Cada incisivo era do tamanho do meu polegar. Ele repuxou o lábio, e os pelos das costas ficaram de pé. Era uma criatura pavorosa, um amálgama de predadores grandes, com pelo preto e desgrenhado que se misturava com a escuridão. Ele deu outro passo para mais perto. Talvez não fosse Bayan o burro; talvez a burra fosse eu. Talvez fosse assim que meu pai iria me encontrar depois do chá: em pedacinhos ensanguentados na sacada. Estava longe demais do chão e eu era baixa demais para alcançar as calhas do telhado. O único jeito de sair daquele quarto era pelo corredor. – Bing Tai – falei, e minha voz soou mais confiante do que eu me sentia. – Sou eu, Lin. Quase dava para sentir os dois comandos do meu pai travando uma batalha na cabeça do construto. Um: proteger meus aposentos. Dois: proteger minha família. Qual comando era mais forte? Eu apostaria no segundo, mas agora não tinha tanta certeza. Eu me mantive firme e tentei não demonstrar medo. Estiquei a mão na direção do nariz de Bing Tai. Ele me via e me ouvia; talvez precisasse me cheirar. Ele poderia escolher sentir meu gosto, mas fiz o possível para não pensar nisso. O nariz molhado e frio dele tocou nos meus dedos, um rosnado ainda no fundo de sua garganta. Eu não era Bayan, que brigava com os construtos como se eles fossem seus irmãos. Não conseguia esquecer o que eram. Minha garganta fechou até eu mal conseguir respirar, meu peito ficou apertado e dolorido. . 14 .


Então Bing Tai se sentou nas patas traseiras, ergueu as orelhas e os lábios cobriram os dentes. – Bom Bing Tai – falei. Minha voz tremeu. Eu tinha que me apressar. A dor pesava no quarto, densa feito a poeira no que costumava ser o armário da minha mãe. As joias na penteadeira continuavam intocadas; as sapatilhas ainda a aguardavam ao lado da cama. O que me incomodava mais do que as perguntas que meu pai me fazia, mais do que não saber se ele me amava e se cuidara de mim quando criança, era não me lembrar da minha mãe. Eu tinha ouvido os empregados que restaram sussurrando. Ele queimou todos os retratos dela no dia em que ela morreu. Proibiu que mencionassem o nome dela. Mandou matar todas as damas de companhia com a espada. Guardava as lembranças que tinha dela com ciúmes, como se fosse o único que pudesse tê-las. Concentre-se. Não sabia onde ele deixava as cópias que tinha dado para Bayan e para mim. Ele sempre as pegava de dentro da bolsinha do cinto, e eu não ousava tentar tirá-las de lá. Mas o chaveiro original estava na cama. Tantas portas. Tantas chaves. Eu não sabia qual era qual e escolhi uma aleatoriamente, uma chave dourada com uma peça de jade no arco, e a botei no bolso. Fugi para o corredor e enfiei um pedaço fino de madeira entre a porta e a moldura, para que não travasse. Agora, o chá estaria em infusão. Meu pai estaria lendo os relatórios, fazendo perguntas. Torci para que o mantivessem ocupado. Meus pés bateram no piso enquanto eu corria. Os corredores grandiosos do palácio estavam vazios, e as luzes dos lampiões cintilavam nas vigas pintadas de vermelho acima. Na passagem, pilares de madeira subiam do chão ao teto, circundando o mural desbotado na parede do segundo andar. Desci a escada para a porta do palácio dois degraus de cada vez. Cada passo parecia uma traição em miniatura. Eu podia ter esperado, uma parte da minha mente me dizia. Podia ter sido obediente; podia ter feito o possível para responder às perguntas do meu pai, para curar minhas lembranças. Mas a outra parte estava fria e aguçada. Ultrapassava a culpa para encontrar uma verdade cruel. . 15 .


Nunca poderia ser o que ele queria se não pegasse o que eu queria. Não conseguia me lembrar, por mais que tivesse tentado. Ele não tinha me dado alternativa a não ser mostrar que eu era digna de uma forma diferente. Passei pelas portas do palácio e fui para o pátio silencioso. O portão da frente estava fechado, mas eu era pequena e forte, e, se meu pai não queria me ensinar a magia dele, bem, havia outras coisas que eu tinha aprendido sozinha nas ocasiões em que ele estava trancado em uma sala secreta com Bayan. Como escalar. O muro estava limpo, mas malcuidado. O gesso tinha quebrado em algumas partes e deixado a rocha embaixo exposta. Foi fácil subir. O construto em forma de macaco em cima do muro só me espiou de relance e voltou o olhar límpido para a cidade. Um arrepio me percorreu quando desci do outro lado. Eu já tinha ido à cidade a pé antes, devia ter ido, mas, para mim, foi como uma primeira vez. As ruas fediam a peixe, óleo quente e restos de jantares cozidos e comidos. As pedras debaixo dos meus sapatos estavam escuras e escorregadias com água e sabão. Havia panelas batendo, e uma brisa carregava o som de vozes cadenciadas e baixas. As primeiras duas lojas que vi estavam fechadas, as janelas de madeira trancadas. Tarde demais? Eu tinha visto a loja do ferreiro do muro do palácio, e foi isso que me deu a ideia. Prendi o ar e corri por uma viela estreita. Ele estava lá. Estava fechando a porta, uma bolsa pendurada no ombro. – Espere – falei. – Por favor, só mais um trabalho. – Nós fechamos – bufou ele. – Volte amanhã. Engoli o desespero que subiu pela garganta. – Eu pago o dobro do preço se você começar hoje. É só uma chave para copiar. Ele me olhou nessa hora, e seu olhar percorreu minha túnica de seda bordada. Os lábios se apertaram. Estava pensando em mentir sobre o quanto cobrava. Mas só suspirou. – Duas moedas de prata. Meu preço normal é uma. – Ele era um homem bom e justo. Fui tomada de alívio enquanto pegava moedas na bolsinha do cinto e as colocava na mão calejada dele. . 16 .


– Aqui. Preciso que seja rápido. Essa foi a coisa errada a dizer. Uma irritação surgiu no seu rosto. Mas ele abriu a porta de novo e me deixou entrar na loja. O homem parecia feito de ferro, era largo e quadrado. Os ombros pareciam ocupar metade do espaço. Havia ferramentas de metal penduradas nas paredes e no teto. Ele pegou o acendedor de fogo e reacendeu os lampiões. Depois se virou para mim. – Só vai ficar pronta amanhã de manhã, no mínimo. – Mas você precisa ficar com a chave? Ele fez que não. – Posso fazer um molde hoje. A chave vai ficar pronta amanhã. Desejei não haver tantas chances de voltar atrás, tantas chances para minha coragem hesitar. Eu me obriguei a colocar a chave do meu pai na mão do ferreiro. O homem a pegou e se virou. Ele apanhou um bloco de argila em uma gamela de pedra e apertou a chave nele. Depois parou, a respiração travando na garganta. Fui pegar a chave antes de conseguir pensar. Eu vi o que ele viu assim que me aproximei. Na base do arco, antes do cabo, havia a figura bem pequena de uma fênix entalhada no metal. Quando o ferreiro me olhou, seu rosto estava redondo e pálido feito a lua. – Quem é você? O que está fazendo com uma das chaves do Imperador? Eu devia ter pegado a chave e saído correndo. Era mais rápida do que ele. Podia pegá-la e sumir antes que voltasse a respirar. Ele só teria uma história para contar, uma em que ninguém acreditaria. Mas, se eu fizesse isso, não teria minha cópia da chave. Não teria mais respostas. Ficaria presa onde estava no começo do dia, a memória confusa, as respostas que eu dava para o meu pai sempre inadequadas. Sempre fora de alcance. Sempre quebradas. E aquele homem… era um bom homem. Meu pai me ensinou o tipo de coisa a se dizer para bons homens. Escolhi as palavras com cautela. – Você tem filhos? Um pouco de cor voltou ao rosto dele. . 17 .


– Dois – respondeu. A testa franziu enquanto se perguntava se devia ter respondido. – Eu sou Lin – falei, me expondo. – Sou a herdeira do Imperador. Meu pai não é o mesmo desde a morte da minha mãe. Ele se isola, tem poucos criados, não se encontra com os governantes das ilhas. Uma rebelião está se formando. Os Raros Desfragmentados já tomaram Khalute. Eles vão querer expandir seu domínio. E tem os Alangas. Alguns podem não acreditar que estejam voltando, mas foi minha família que os impediu de voltar. Você quer soldados marchando nas ruas? Quer a guerra na sua porta? Toquei no ombro dele delicadamente, e ele não se encolheu. – Na porta dos seus filhos? Por instinto, ele levou a mão para trás da orelha direita, para a cicatriz que todos os cidadãos tinham. O lugar de onde um fragmento de osso tinha sido retirado e levado para o cofre do Imperador. – Meu fragmento está alimentando um construto? – perguntou ele. – Não sei – respondi. Eu não sei, não sei… havia tão pouco que eu sabia. – Mas, se eu abrir o cofre do meu pai, vou procurar o seu e trazer de volta. Não posso prometer nada. Queria poder. Mas vou tentar. Ele lambeu os lábios. – E o dos meus filhos? – Vou ver o que posso fazer. – Isso era tudo que eu podia dizer. Ninguém estava isento dos Festivais do Dízimo das ilhas. O suor brilhou na testa do ferreiro. – Vou fazer a chave. Meu pai estaria deixando os relatórios de lado agora. Pegaria a xícara de chá e tomaria aos golinhos, olhando pela janela para as luzes da cidade abaixo. Senti suor entre as omoplatas. Eu precisava levar a chave de volta antes que ele me descobrisse. Observei por uma névoa o ferreiro terminar de fazer o molde. Quando me devolveu a chave, me virei para correr. – Lin – chamou ele. Eu parei. – Meu nome é Numeen. O ano do meu ritual foi 1508. Nós precisamos de um Imperador que se importe conosco. . 18 .



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