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Tecendo redes antirracistas III - Entre resistências e emancipações

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TECENDO REDES ANTIRRACISTAS III Entre resistências e emancipações

Renísia Cristina Garcia Filice Leandro Santos Bulhões de Jesus Redy Wilson Lima Miguel de Barros Organizadores



TECENDO REDES ANTIRRACISTAS III Entre resistências e emancipações

Renísia Cristina Garcia Filice Leandro Santos Bulhões de Jesus Redy Wilson Lima Miguel de Barros Organizadores


Copyright © 2024 Os organizadores Copyright desta edição © 2024 Autêntica Editora Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. coordenadora da coleção

revisão

Nilma Lino Gomes

André Figueiredo Freitas Anna Izabella Miranda Deborah Dietrich Lorrany Silva

conselho editorial

Marta Araújo (Universidade de Coimbra); Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (UFSCAR); Renato Emerson dos Santos (UERJ); Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC Minas); Kabengele Munanga (USP) editoras responsáveis

capa

Alberto Bittencourt (Sobre imagem de Adobe Stock / TALVA) diagramação

Rejane Dias Cecília Martins

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tecendo redes antirracistas III : entre resistências e emancipações / organização Renísia Cristina Garcia Filice...[et al.]. -- Belo Horizonte: Autêntica, 2024. -- (Cultura Negra e Identidades) Vários autores. Outros organizadores: Leandro Santos Bulhões de Jesus, Redy Wilson Lima, Miguel de Barros. Bibliografia ISBN 978-65-5928-237-1 1. Antirracismo 2. Decolonialidade 3. Luta de classes 4. Racismo Aspectos sociais 5. Resistência 6. Xenofobia I. Filice, Renísia Cristina Garcia. II. Jesus, Leandro Santos Bulhões de. III. Lima, Redy Wilson. IV. Barros, Miguel de. V. Série. 22-134153

CDD-305.8

Índice para catálogo sistemático: 1. Antirracismo : Resistência : Sociologia 305.8 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500

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www.grupoautentica.com.br SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br


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Prefácio Encampar a luta, enraizar o pensamento: tecer redes coletivas em busca de mundo comum wanderson flor do nascimento

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Apresentação “Caminhar com seus próprios pés” e “pensar com sua própria cabeça”: trilhas da história, resistência(s) e emancipações Renísia Cristina Garcia Filice, Leandro Santos Bulhões de Jesus, Redy Wilson Lima & Miguel de Barros

parte i. “caminhar com seus próprios pés”: resistências 31

A reafricanização dos espíritos por meio da vivência de códigos culturais da resistência Kwame Gamal Mascarenhas

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Senet: jogo ancestral e patrimônio milenar africano Fábio Florenço Gomes (Kwesi Ta Fari)

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Presença indígena: partilha sobre nós na Universidade de Brasília Suliete Baré

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Diálogos para insurgir: vivências do racismo em contextos africanos. Miguel de Barros entrevista Eufémia Rocha

parte ii. “pensar com sua própria cabeça”: histórias e emancipações 89

Amílcar Cabral, Frantz Fanon e Paulo Freire: descolonização das mentes e consciência histórica em Cabo Verde Andy Monroy Osório, Elisângela Oliveira de Santana e Leandro Santos Bulhões de Jesus


117 Os reflexos das ambivalências político-identitárias na política externa cabo-verdiana: entre a retórica de Djam Branku Dja e o pragmatismo de Undi Da Ki Panha Odair Barros-Varela 151 Mercado informal em Cabo Verde: as vendedeiras de “YA” Débora de Jesus Borges Vieira, Euclides Pereira Cabral e Renísia Cristina Garcia Filice 173 O corpo sexualizado feminino, expropriação e reparação: uma conversa entre (sobre) mulheres negras Loyde Cardoso e Renísia Cristina Garcia Filice 189 Espaços de poder na trama do virtual e a visibilidade de mulheres negras Angélica Ferrarez de Almeida 203 Interseccionalidade de raça e gênero na literatura para crianças: potências éticas, políticas e estéticas para uma educação antirracista Débora Cristina Sales da Cruz Vieira e Renísia Cristina Garcia Filice 215 Imigrantes africanos negros no Noroeste de Portugal: estratégias e registos semiocultos de adaptação e resistência nas relações interétnicas Manuel Carlos Silva 247 Sobre as autoras e os autores


Prefácio Encampar a luta, enraizar o pensamento: tecer redes coletivas em busca de um mundo comum wanderson flor do nascimento

A história das lutas de independência dos países africanos, assim como a luta antirracista dos povos da diáspora negra e dos indígenas, foi, e tem sido, atravessada pelo esforço de enfrentar o desmantelamento de laços comunitários, que é uma das tônicas da estruturação política da colonial Modernidade. Essa desarticulação do coletivo se dá por estratégias tanto políticas como epistêmicas, seja centrando o conhecimento na instância do individual – e recusando ou reduzindo a importância da produção coletiva do conhecimento –, seja criando a sensação política de que não há muito a fazer além de uma adequação ao mundo tal como ele se apresenta hoje, numa sensação de sem saída. Neste terceiro volume da série vinculada ao projeto Tecendo Redes, encontramos a motivação trazida por Amílcar Cabral como mote, mas não apenas. A ideia de caminhar com seus próprios pés e pensar com a própria cabeça é um projeto político revolucionário. Há uma revolução política nítida: é um comando para abandonar as orientações políticas coloniais que vieram conduzindo hegemonicamente os processos históricos e políticos desde os começos da Modernidade, como também para deslocar o sujeito tributário da revolução da pessoa individual para o sujeito coletivo. Uma das mais intensas estratégias modernas de ressignificação do mundo e de criação de forças de controle foi a individualização das instâncias da ação e do pensamento, o que, efetivamente, resulta no enfraquecimento do tecido comunitário vivido. E é nesse cenário que a dependência nociva acontece. Nem mesmo no individualismo é possível agir e pensar sozinho. Mas, nesse cenário, o contato com quem nos cerca ou é de servilismo ou de expropriação. Na proposta de Cabral, o caminho é outro. Os laços que nos une rumo à revolução, à emancipação, é exatamente a necessidade de reestabelecermos 7


vínculos comunitários que sejam enfrentadores dessa faceta destrutiva do individualismo, que deixa as pessoas mais suscetíveis de serem controladas, violadas, que as isola, desenraiza e dificulta o compromisso com o que historicamente nos violou. Assim, seguindo a esteira de Cabral, teríamos uma missão dupla: de um lado, de retomarmos, no coletivo, as rédeas da produção de nossa força política, recusando-nos a sermos apenas meros reprodutores de ideais que não são de nossas coletividades, de nossos povos historicamente marcados pela ferida colonial, ou a nos conduzirmos pelas agendas de outras coletividades ou individualidade; e, do outro, a necessidade de produzirmos de maneira insurgente – e também comunitária – os conhecimentos necessários para essa nova configuração de sociedades que surjam com a recusa das malhas coloniais. Essa não é uma tarefa fácil nem imediata. Perceber os riscos de caminhar com os pés dos outros e de pensar com outras cabeças (ou seguir ideias forâneas) não é algo que aconteça sem esgarçamentos de lógicas que nos constituíram como sujeitos (ou objetos) históricos. Fomos formados por um pensamento educacional e um pensamento político que nos contaram que os valores civilizatórios construídos e difundidos pelo Ocidente eram o caminho seguro e legítimo para uma sociedade que se aproxima do progresso. E, com isso, aprendemos que essas lógicas estranhas que nos cercam, que esses pés dos outros, que outras cabeças podem estar sempre contra nós e nossos processos emancipatórios. Exatamente por isso que um imperativo como o apontado por Amílcar Cabral nos convoca a nos alinhar coletivamente no enfrentamento dessa lógica colonial que tem no racismo sua coluna vertebral. É isso que pode construir alianças entre os países africanos, a diáspora negra, os povos indígenas e as pessoas antirracistas do velho mundo colonizador. Essas alianças passam por reconhecermos as diferenças sem hierarquizá-las, por estarmos mais dispostos a aprender do que ensinar e, ainda assim, quando necessário e possível, partilharmos saberes que sejam emancipatórios. Passam por contarmos a história das lutas como parte constitutiva daquilo que a Modernidade quis que fosse apenas opressão. O famoso hoax em torno da suposta carta de William Lynch1 que ensinaria a colonos de todo o novo mundo a ideia de separar para conquistar e evitar 1

Na década de 1970 começou a circular a narrativa de que o escravagista do século XVIII William Lynch teria encontrado uma maneira eficaz de controlar pessoas escravizadas dentro de suas propriedades, colocando-os uns contra os outros. A carta em que essa 8


a luta pode até apontar para algo que não aconteceu, mas que se materializou na narrativa ficcional de forma a apontar uma lógica que, se não fora proposta por um colono irlandês, o foi por todo o sistema colonial moderno. Acontece que a história nos legou outras possibilidades, vinculadas com a resistência, com a criação, com a criação resistente, com a resistência criativa. E é fundamental conhecer essas possibilidades para que não fiquemos aprisionados por um derrotismo histórico que pense que a história termina com um certo triunfo colonial do Ocidente sobre seus outros: o resto. É nesse cenário que as experiências e as reflexões provocativas que este terceiro volume da série Tecendo Redes Antirracistas colaboram para essas alianças, que, em meio às múltiplas diferenças, mobilizam intenções de um mundo desligado das estratégias que separam, que violam, que ultraindividualizam, que nos deixam isolados e com a percepção de que nada há para fazer diante deste mundo e das relações violentas que nos cercam. Ter mobilizado, para seguir a convocatória cabralina, a ideia de resistências e emancipações, trouxe para este livro um cenário bastante interessante: o da luta por um mundo outro. Como será esse mundo? Não sabemos. Estamos buscando por ele, criando as condições para construí-lo. E, por isso, multiplicar olhares, observar as experiências desde as quais possamos repensar o que é possível fazer juntos é importante. Nas lúcidas transformações do modo como nos vemos em meios às coletivas mobilizações culturais que assumem posições de resistência; nos jogos que coletivamente nos ensinam que há algo mais importante do que vencer; nas partilhas de olhares que problematizam, desde os esforços para repensar, com outras e atuais categorias, os impactos do racismo e da xenofobia na experiência das sociedades africanas, das comunidades indígenas em busca do conhecimento universitário; nas relações políticas, pedagógicas, existenciais entre Cabral, Freire e Fanon; nas avaliações das dimensões identitárias na política externa de Cabo Verde; na discussão sobre a presença de produtos estadunidenses “descartados” no mercado informal cabo-verdiano; nas discussões sobre gênero em Cabo-Verde e também no Brasil, desde a perspectiva ideia apareceria também teria sido a fonte da lógica do linchamento, como punição para as pessoas escravizadas. E o nome desta prática violenta teria sido utilizado em homenagem a Lynch, embora a suposta carta afirme que tais métodos violentos não fossem eficazes. Hoje sabemos que essa narrativa não corresponde ao que efetivamente teria acontecido nos pronunciamentos desse irlandês proprietário de escravizados que vivia nos Estados Unidos. 9


de autoras do continente e da diáspora, trazendo para o centro do debate, seja político, seja educacional, seja migratório, a categoria da interseccionalidade – em todas essas abordagens encontramos a oportunidade da partilha de saberes e práticas que criam resistindo, que resistem criando e que podem nos legar outros mundos, diversos desse denunciado. Partilhar saberes hoje não é apenas uma tarefa epistemológica das universidades, mas também um engajamento político-social que nos permita rearticular o tecido coletivo na busca de construção de novos projetos de futuro. Em sua leitura de algumas das consequências atuais da adoção de políticas que reverberam e reproduzem as forças coloniais, o politólogo camaronês Achille Mbembe, em sua obra Políticas da inimizade, nos conta sobre o estabelecimento de estratégias modernas de controle e violência que chamou de “sociedades da inimizade”, como o eixo fundamental de afastamento, de estabelecimento de fronteiras, de separação entre os viventes. Com isso, ele busca mapear o conjunto de forças que estabelecem relações sem desejo, capazes de fazer com que não vejamos como aliadas as outras pessoas. A figura do inimigo vai tomando a cena relacional e construindo relações corroídas em que as vidas se tornam descartáveis e indignas de luto. A ideia do exército de excedentes que Mbembe mobiliza para pensar que tipo de contatos estabelecemos e quais vidas entendemos como dignas de que experimentemos o luto, mostra o quanto essa estrutura da inimizade torna-se a gramática fundamental das possibilidades políticas herdeiras da colonização racista da modernidade. Trazendo Frantz Fanon para o debate, Mbembe pensa em uma utopia realizável da busca por um espaço relacional em que se possa lidar com as diferenças, com as histórias diversas, de maneira não destrutiva. É aí que ele nos apresenta sua proposta de uma revalorização da humanidade que assuma a forma da busca por um mundo comum. Tal mundo está por ser construído pelas forças políticas que percebam a bancarrota que o processo colonial nos legou. Um mundo comum não é aquele em que todos pensam, sabem, experimentam as lutas da mesma maneira. Não é uma experiência que julgue uma hierarquia de dores, mas que perceba o entrelaçamento pernicioso entre economia e política que a Modernidade fomenta, de modo a consumir o mundo e as pessoas que nele vivem. Esse mundo comum é antes a aposta de que os muitos encontros promovidos pela polifonia de vozes, multiplicidade de projetos de futuro e diversidade de desejos, poderes e interesses possam fortalecer as possibilidades de construir, criar, resistir em conjunto, em meio 10


a essa cena apocalíptica que o mundo moderno nos apresenta como o único mundo que temos para viver. A humanidade e o próprio mundo estão, mais que nunca, em disputa. Fortalecer os laços entre as comunidades de viventes que habitam – ou estão na iminência de habitar – aquilo que Fanon chamou de “Zona de Não-Ser” é a aposta que parece fazer convergir Fanon, Paulo Freire, Amílcar Cabral e Mbembe. E também faz convergir as lutas de resistência e emancipação de povos indígenas, africanos, de terreiro e toda uma miríade de experiências de gentes que contam suas histórias de maneira diversa daquela que a Modernidade nos ensinou a conhecer. Se outro camaronês, Jean-Godefroy Bidima, tiver razão, não podemos entrar na vida – e, eu diria, também na luta – senão em meio às histórias que nos cercam. Essas histórias nem sempre são contadas por nós. Agora, nessa tentativa de experimentar um mundo comum, em que a sociedade da inimizade seja apenas uma pálida lembrança, faz-se necessário que possamos contar outras histórias, que nós nos contemos outras histórias, mobilizando as resistências e emancipações. E que essa narrativa possa atuar como dínamo para o reestabelecimento dessa humanidade e desse mundo que as tramas coloniais tentaram solapar. Este livro é uma contribuição para a pluralização dessas histórias, dessas narrativas que, ao mesmo tempo em que denunciam o legado colonial, mobilizam também alternativas de emancipação, nos mostrando que o mundo comum, embora atacado, é ainda um horizonte a ser (per)seguido. Tecer redes seria, assim, um dos modos possíveis de pavimentar caminhos – de conhecimento e luta – rumo a outras histórias, histórias plurais vividas nesse mundo comum, que partilham a aposta de um refazimento, de uma criação coletiva, comunitária, revolucionária, insurgente. Brasília, setembro de 2022.

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Apresentação “Caminhar com seus próprios pés” e “pensar com sua própria cabeça”: trilhas da história, resistência(s) e emancipações Renísia Cristina Garcia Filice Leandro Santos Bulhões de Jesus Redy Wilson Lima Miguel de Barros

Esta coletânea compõe um projeto que existe desde 2016, coordenado pelo Geppherg/FE-UnB.1 Trata-se da terceira publicação, sequencial ao Tecendo Redes Antirracistas: Áfricas, Brasis e Portugal (Oliva et al., 2019) e ao Tecendo Redes Antirracistas: contracolonização e soberania intelectual (Jesus; Filice; Barros, 2020); este, o Tecendo Redes Antirracistas III: entre resistências e emancipações, além de textos que foram apresentados durante o Segundo Seminário Internacional Tecendo Redes Antirracistas: Áfricas, Brasis e Portugal, ocorrido em julho de 2019 na cidade da Praia, em Cabo Verde, África,2

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Projeto idealizado pela pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas, História, Educação das Relações Raciais e Gênero, sediado na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (Geppherg/FE-UnB), profª Renísia C. Garcia Filice. O grupo segue com a parceria na vice-coordenação do prof. Leandro Santos Bulhões de Jesus, da Universidade do Ceará, e com o apoio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB (Neab – Ceam-UnB). Esta terceira coletânea conta com a participação do Centro de Estudos Amílcar Cabral (Cesac) da Guiné-Bissau, na pessoa do investigador Miguel de Barros, fruto do Acordo de Cooperação assinado entre a UnB e o Cesac em 2019; do sociólogo Redy Wilson Lima, de Cabo Verde; e do prof. Odair Barros-Varella, da Universidade de Cabo Verde.

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O II Seminário Internacional Tecendo Redes Antirracistas: Áfricas, Brasis e Portugal foi uma realização do Coletivo Nhanha Bongolon, com a participação do Geppherg/FE-UnB e apoio da Universidade de Cabo Verde e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em razão da pandemia da covid-19, a publicação que ocorreria em 2020 foi prorrogada e, nesse intervalo, houve um Edital da UFC no qual fomos selecionados, resultando na publicação do Tecendo Redes Antirracistas II: contracolonização e soberania intelectual (JESUS; FILICE; BARROS, 2020). As três publicações só foram possíveis em função da participação em editais da Fundação de Apoio a Pesquisa (FAP-DF) em 2017 e da 13


incorpora artigos e relatos de experiências produzidos por pessoas de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal e Brasil. Em 2022, dada a participação no edital n. 05/2018, Seleção Pública de Propostas Institucionais: Bolsas de Pós-Doutorado no Exterior, da Universidade de Brasília, recursos financiados pela Fundação de Apoio a Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), foi possível dar continuidade ao projeto iniciado em 2019. Na continuidade do compromisso estabelecido no projeto Tecendo Redes, neste material, as abordagens contracoloniais seguem sendo a tônica, todavia, diferentemente de edições passadas, a maior aproximação com o continente africano, pela porta de Cabo Verde, em diferentes situações3 nos trouxe a possibilidade de termos contato com variados temas do cotidiano do país que se apresentaram como possibilidades discursivas, permeadas por memórias individuais e coletivas. Muitas dessas histórias e memórias revelaram elos de ligação e familiaridade com os escritos de um dos maiores intelectuais do século XX, considerado por muitos o maior líder da Revolução Africana, Amílcar Cabral. Esse contato se deu de diferentes formas: desde o cotidiano na cidade da Praia, revelador de imagens e registros pós-memória por todos os cantos (Khan; Cruz; Garcia, 2016), até os escritos e homenagens que já tomam o país com a aproximação, em 2023, dos cem anos de nascimento de Cabral. Em “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena”: A Pós-memória como coragem cívica, as autoras e o autor, ao analisarem a contribuição das mensagens deixadas pelo grande líder à sua primeira esposa, tecem considerações de grande importância acerca da relação entre o estudo do passado africano e seus feixes de possibilidades, a fim de pensar aspectos atuais da colonização das mentes. Chama-se a atenção na obra citada para o fato que o direito ao ofício de historiadoras/es não se restringe a uma categoria; é um direito de “toda gente”. O “estudo da história engrandece a vida porque promove a apreciação e compreensão de encontros com pessoas e artefactos, ruas e textos, paisagens e ruínas” (Fernández-Armesto apud Khan; Cruz; Garcia, 2016, p. 93). Universidade Federal do Ceará, em 2020, aos quais registramos nossos agradecimentos. Este volume III foi pago antecipadamente, com recursos do Edital Fap-DF/2017. 3

Participação da professora Renísia C. Garcia Filice, junto ao programa de Mestrado em Relações Internacionais e Diplomacia Econômica da Universidade de Cabo Verde, no curso “Diálogos Transnacionais” durante o seu pós-doutoramento, sob a supervisão do professor Odair de Barros-Varella, de janeiro a junho de 2022 (2019, participação em Seminário Internacional) . 14


Nessa tessitura entre memórias, artefatos, fontes e vestígios do passado e atravessamentos do presente, delineia-se sedutoramente uma escrita da História mais fluida e respeitosa, que nos permite problematizar esse presente e quiçá (re)escrever a História do passado. Nesse formato, a História, enquanto registo, integra, e ao mesmo tempo é composta por, uma memória coletiva (Halbwachs, 2004), embora não se confunda com esta (Khan; Cruz; Garcia, 2016, p. 94). Nesses encontros e desencontros presente-passado, Cabo Verde, Brasil e Portugal, fosse no Seminário, no curso “Diálogos Transnacionais” realizado na Universidade de Cabo Verde, na visita à Cidade Velha, ao Campo de Concentração do Tarrafal, na ida ao mercado da Sucupira, fosse na viagem para dentro de muitos e muitas autoras e autores, percebemos uma dinâmica que, contraditoriamente, nos aproxima, e, por vezes, nos distancia da perspectiva de “reafricanização dos espíritos”, que o texto de Kwame Gamal Mascarenhas nos apresenta na sua vivência das releituras de Cabral. Seja uma leitura para fora – sobre as realidades cabo-verdianas –, e ato contínuo, também uma leitura para dentro de nós, lidarmos com as Áfricas que existem em nós, e fora de nós, tornou-se uma urgência de sobrevivência. Os textos dados a conhecer nesta coletânea assumem vida própria, não como a organizadora e os organizadores acham que deva ser, mas como nos foi possível conhecer. Reflexões e sentimentos desencadeados por atravessamentos cabralinos sulearam nossa “organização” da variedade de temas que nos foram apresentados por cabo-verdianos e cabo-verdianas, majoritariamente, mas também por textos de autoras brasileiras, incluindo uma indígena do povo Baré, e um investigador português. A afirmação de Cabral da necessidade de “pensar com as suas próprias cabeças, caminhar com seus próprios pés” serviu como linha motivadora e condutora para as trilhas deste livro. Os textos aqui apresentados ampliam o universo de reflexões, mas não exatamente da compreensão da forma como se deu a libertação de GuinéBissau e Cabo Verde no passado, sob a liderança de Cabral – por mais genial e urgente que seja a compreensão destes percursos, em marcha há décadas por pessoas de múltiplas filiações ideológicas e disciplinares –; interessa-nos, nesta obra, observar e problematizar temas que nos desafiam, que possibilitam o entrecruzamento de temporalidades, formas e percepções variadas que lançam luz sobre o presente. Interessa-nos também, mas não só, compreender o racismo, o sexismo, a resistência da mulher em Cabo Verde. Assim como 15


as incômodas permanências que, certamente, têm muito pouco a ver com os ensinamentos do visionário Amílcar Cabral. Para além, mas nem tão distante assim , da História da libertação oficial de África da colonização portuguesa – historicamente, o que são 47 anos? –, está presente nesta coletânea uma variedade de registros sobre as permanências, rupturas e, principalmente, a dinâmica das relações étnico-raciais e de gênero, tanto no âmbito da sobrevivência, como, por exemplo, no registro que veremos sobre as vendedeiras de “Ya” – produtos de segunda mão vindos dos EUA e vendidos no país –, e diferentes debates sobre e das mulheres cabo-verdianas, mas não só, numa perspectiva interseccional, na ocupação de diferentes espaços políticos; referência às relações internacionais tão presentes em Cabo Verde e que também nos foi apresentada, como verão, por se tratar, como dizem, de uma ilha que se vê ainda muito “dependente do capital externo”. O Brasil também contribui com textos que atravessam o além-mar, se aproximam e distanciam de África. O registro sobre as “relações interétnicas” em Portugal continua sendo, no contexto destas reflexões cabralinas, um ponto fora da curva. O que o torna mais instigante e impõe a sua presença nesta coletânea. Como toda sociedade, Cabo Verde tem muito a nos revelar. Ao assumirmos uma perspectiva de diálogo com o local, provocada por Cabral com sua orientação sobre a necessidade de se “pensar com sua própria cabeça” e “caminhar com seus próprios pés”, nos abstemos de estabelecer a priori e/ou de forma rígida os temas dos artigos desta coletânea. Daí compartilharmos com a/o leitora/or o prazer de nos depararmos com registros importantes da resistência interna e externa presentes nos relatos de experiência de pessoas que buscam “caminhar com seus próprios pés” e o esforço teórico de outras que seguem, seriamente, a perspectiva de tentar se descolonizar e “pensar com sua própria cabeça”, emancipar-se pela narrativa, mesmo que, numa leitura criteriosa, vejamos que isso ainda está longe de se materializar. As “cabeças”, por vezes, parecem ainda não terem se libertado das teias coloniais (e também as nossas). E não há muito o que nós da organização deste título possamos fazer – de imediato – a respeito. Temos sim a prova cabal de que, para mudar-se mentes, leva-se tempo. Enfim, provocada/os pela dinâmica cabralina e pelas experiências dos textos dados a conhecer, evidenciou-se com bastante ênfase a resistência de hoje em Cabo Verde, ao se reconhecer a participação das mulheres nas lutas pela libertação de África, em que homens e mulheres eram convocados. 16


Notam-se, na história do presente, continuidades desconfortáveis de uma história escrita por homens para o engrandecimento dos homens. A participação da esmagadora maioria das mulheres cabo-verdianas no movimento independentista passou largamente despercebida, sendo normalmente referidos poucos nomes. Por conseguinte, no pós-independência, esta participação tornou-se pouco perceptível e até invisível para a maioria da população a residir em Cabo Verde (Coutinho, 2020, p. 1). Com tantos textos e contextos, esta coletânea foi pensada em diferentes momentos interligados (seminários, cursos, visitas e outros); assim, mais do que o binarismo passado/presente, que é marcador da cosmovisão ocidental, herança do cristianismo/judaísmo, temporalidades plurais se entrecruzam de múltiplas formas e performances, no reconhecimento, por exemplo, de que opera uma perspectiva de espaço privado para as mulheres cabo-verdianas, mas que, concomitantemente, estas mesmas mulheres se organizam e, com ações políticas diferenciadas, se “intrometem” (alguns diriam) na política, elaboram manifestos, cobram políticas públicas, ocupam a feira da Sucupira e as esquinas da cidade da Praia, como pudemos ver diariamente. Por assim ser, esta coletânea foi levada a percepções cruzadas de temporalidades que extrapolam lógicas binárias passado/presente. A organizadora e os organizadores compreendem que os temas aqui abordados, quando acionam eventos de outras épocas, o fazem exatamente porque há apropriações muito particulares, e também coletivas, das formas de (r)existir e de ser africano em África, por exemplo, no caso de Cabo Verde, de ser negro e negra no Brasil, ou de ser reduzido a imigrante em Portugal, mesmo tendo nascido lá. O conhecimento dos escritos sobre a luta de libertação e os insistentes chamados de Amílcar Cabral para a construção da própria autonomia pelos militantes, camaradas, pelo povo guineense e cabo-verdiano fez com que nós, envolvida/os pelo pensamento cabralino – embora, como dito, não seja ele o autor homenageado –, também percebêssemos a necessidade de mudar a nossa postura e respeitar a dinâmica que foi estabelecida pelas pessoas que nos brindaram com seus textos e que quiseram apresentar a si ou aos seus temas. Trata-se de uma forma de sermos respeitosa/os e de tentarmos materializar uma solidariedade acadêmica entre nós. Afinal, Cabral “sempre encarnou o espirito de ideais nacionalistas e libertárias, demonstrando a necessidade de solidariedade para com os povos oprimidos e explorados do mundo inteiro” (Galvão; Neves; Lopes, 2020). Nesse quesito, “estamos juntas/os e misturadas/ os”, como usamos dizer no Brasil. 17


Tal como o pensador quilombola Mestre Antônio Bispo dos Santos (2019), compreendemos a colonização mais como um processo do que como um fato histórico datado e devidamente superado por outros regimes políticos, como as repúblicas modernas. Temos aqui, portanto, várias histórias, memórias, reflexões sobre os atravessamentos coloniais como a raça, a etnia, o gênero, a classe, o território, o meio ambiente, entre outros, que irão, certamente, registrar marcadores de opressão, de silenciamentos e mortes, e também a identificação das autonomias, autogestões e soberanias de toda ordem, em trânsitos de negociações e daquilo que é inegociável. É nesse movimento que é possível reconhecer outras epistemologias e formas de (vi)ver tanto de cabo-verdianas/os, como de brasileiras/os, guineenses, portuguesas/es e de quem mais se interessar. Há um esforço intencional por parte desse grupo de sistematização voltado para o campo da formação de professoras/es, provocados pela necessidade de contribuir com a implementação do Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), que determina o ensino de História da África, Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todo o sistema de ensino brasileiro. Espera-se que tais contributos se desdobrem no reforço da autoestima das nossas crianças, e também adultos, negras/os, indígenas, africanas/os, brasileiras/os e portuguesas/es; com seus tempos muito próprios, que fazem parte do processo de SE AUTOCONHECER individual e coletivamente, como dizia Cabral aos militantes e camaradas, e que agora aprendemos: Assim sendo, com essa tentativa de mergulho no diverso, o livro se apresenta em duas frentes, a saber: I) “Caminhar com seus próprios pés” – resistências. Relatos de experiências e entrevista , que não por acaso antecede a segunda frente; II) “Pensar com sua própria cabeça” – histórias e emancipações, invertendo a sequência da frase original. Como parte das reflexões que vimos realizando para além de 2016, como o dissemos, somos um grupo diverso com percursos e percalços diferenciados, mas há algo que nos move: a certeza de que temos que desaprender muitas coisas que estão nas “nossas cabeças” e, ao aprender novas coisas, de que teremos também que compartilhar com os/as nossos/as, e os/as não nossos/as, caminhos novos a trilhar, dentro dos nossos limites, possibilidades e experiências. Baseados na certeza de que o planeta precisa, urgentemente, de outros olhares, tatos e contatos, invertemos a lógica da academia que se nos apresenta, primeiro a revisão da literatura – “opte por uma teoria”; a seguir, depois de leituras exaustivas, nos autoriza a irmos “a campo”, a mergulharmos na 18


realidade com a “lente teórica”, o recurso teórico-metodológico que – os de sempre, europeus e estadunidenses – tão “generosamente” nos dão a conhecer. Com isso, são séculos e séculos de repetição sobre uma dada perspectiva civilizatória supremacista, de modernidade, que dita quem são os desenvolvidos e os subdesenvolvidos, o norte e o sul, o velho maniqueísmo do bem e do mal, do branco e do preto; nessa História Única/Única História, não precisamos de muito esforço para compreender “por onde nossos pés” andarão e andaram se não nos comprometermos com o mergulho em nós mesmos, juntos/as, e também separados/as. Caso contrário, seguiremos sempre pelos mesmos caminhos, olhos, sentimentos e coração, adestrados/as para o não-contato com o tal Outro, que, nesse caso, somos nós, africanas/os, brasileiras/os, latino-americanas/os, indígenas, quilombolas, não-brancas/os, que povoam maioritariamente o universo. Mesmo inebriada e inebriados de Cabral, ainda somos incapazes de compreender sua profundidade tanto quanto os camaradas do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde (PAIGC), já que guineenses e cabo-verdianas/os, também tiveram seus limites; do ponto de vista dos obstáculos marcados pela diversidade étnico-cultural, linguística e potencializados pela presença do colonialista, nos idos das décadas de 1940 até o início da década de 1970. Dada a amplitude dos ensinamentos do pensador, respeitosamente, apresentamos os textos da forma como se nos deram a conhecer, com temas variados, prenhes de vivências cabo-verdianas, mas não só. Por uma escolha, não haverá adaptação do português de Portugal para o português do Brasil, nem do português de Cabo Verde; no máximo, solicitamos às/aos autoras/es que traduzissem as frases escritas em crioulo para que “toda gente” compreenda a mensagem.

Parte I - “Caminhar com seus próprios pés”: Resistências No capítulo 1, “A reafricanização dos espíritos por meio da vivência de códigos culturais da resistência”, Kwame Gamal Mascarenhas apresenta-nos algumas possibilidades de enfrentamento às tentativas dos colonizadores em destruir os referenciais civilizatórios africanos, tanto em África quanto em sua diáspora. A partir da sua própria trajetória, acessamos os caminhos pelos quais o autor se reencontra com um patrimônio cultural de base africana nos povos negros brasileiros. Trata-se de um texto inspirador nas estratégias de reorganização de projetos de sociedades libertas, nas quais a história, a memória, as narrativas, as danças, as sonoridades, entre outros gestos e dimensões políticas, 19


imprimam com dignidade a autonomia e o devir dos povos africanos, como desejou Amílcar Cabral entre outras e outras de sua geração, nos tempos de luta pela independência em Cabo Verde. No capítulo 2 – “Senet: jogo ancestral e patrimônio milenar africano” –, Fábio F. Gomes (Kwesi Ta Fari) resume seu livro, em que mostra as contribuições do jogo do Senet, criado por ele Kwesi nos mostra como o jogo integra o patrimônio cultural africano e da diáspora africana, possuindo bases históricas nas civilizações do Vale do Nilo (Hapi), como o Egito Antigo (Kemet), edificado mais de 4 mil anos Antes da Era Comum. Entre os patrimônios culturais materiais do Vale do Nilo, figuram jogos de tabuleiro e artefatos que abrangem conhecimentos diversos de matemática, filosofia e astronomia. O Senet foi um dos jogos de tabuleiro mais populares do Egito Antigo, tendo sido utilizado em funções educacionais, ritualísticas e astronômicas. Esse artigo tem por finalidade apresentar o jogo como recurso possível para o ensino de temáticas inerentes a história, filosofia, cultura africana e educação. A autora indígena Suliete Baré, no capítulo 3 – “Presença indígena: partilha sobre nós na Universidade de Brasília” –, compartilha conosco como é ser uma indígena Baré e estudante do doutorado na UnB. Ela escreve sobre a importância da política de cotas para a apropriação de códigos e signos que permitam aos indígenas lutar por seus direitos, em especial seus territórios, e registra também o quanto ela e os parentes são atravessados pelo racismo institucional e estrutural. Para ela, falar de povos indígenas hoje no Brasil significa falar de uma diversidade de povos e culturas, habitantes originários das terras conhecidas atualmente como continente americano e/ou Améfrica Ladina (Gonzalez, 1988). Esses povos aqui já habitavam há milhares de anos, muito antes da invasão europeia (Luciano, 2006) e mesmo assim seguem invisibilizados. A autora desfila várias leituras e formas de resistência em curso pelo coletivo de estudantes indígenas e finaliza o texto dando um recado: não haverá retrocesso. Os povos indígenas assumem que querem estar onde quiserem e acharem necessário. Infere-se, à luz da proposta desta coletânea, que a sociedade brasileira terá que se esforçar para compreender que indígenas “caminham com seus próprios pés” e “pensam com sua própria cabeça”, não importa o que se diga. Entre um relato e outro, no capítulo 4 – “Diálogos Para Insurgir: vivências do racismo em contextos africanos” –, temos uma entrevista. O investigador guineense Miguel de Barros, em diálogo com a investigadora cabo-verdiana Eufémia Rocha, mergulha na proposta de expor não só o racismo, mas também 20


como outros marcadores sociais de diferença operam, permitindo reconhecer a importância da abordagem interseccional, isto é, dos cruzamentos que acontecem entre género, raça, classe, etc. Outrossim, destaca-se a necessidade de se escancarar ou trabalhar a simultaneidade de distintas categorias nativas e/ou analíticas para uma melhor compreensão das realidades em revista. Este texto resulta de uma conversa entre ambos, posto ser Eufémia Rocha, historiadora e professora auxiliar da Universidade de Cabo Verde, pesquisadora vinculada ao Centro de Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF/UniCV), com uma vasta gama de produção que gira em torno de mobilidades e migrações internacionais, na África Ocidental. Temas como relações étnico-raciais, racismo e xenofobia, gênero e religiões tradicionais foram explorados por Barros e Rocha em dois momentos: a primeira conversa ocorreu em maio de 2019, quando da realização do Segundo Seminário Internacional “Tecendo Redes Antirracistas” em Cabo Verde, e a segunda foi realizada três anos depois, em julho-agosto de 2022, na qual abordaram os desafios de serem identificados quadros de referência cultural e cognitivo para projeção de ideias e práticas emancipatórias sobre as questões das identidades e da raça no contexto africano.

II – “Pensar com sua própria cabeça”: Histórias e emancipações Andy Monroy Osório, Elisângela Oliveira de Santana e Leandro Bulhões transitam na história de Cabo Verde atenta e atentos para as questões que envolvem as tensões entre educação e escolarização no período colonial e pós-independência do país no capítulo 5 – “Amílcar Cabral, Frantz Fanon e Paulo Freire: descolonização das mentes e consciência histórica em Cabo Verde”. Em diálogo com um manual didático publicado pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) em 1974, a autora e os autores dialogam com Cabral, Fanon e Freire, entendendo que converge entre esses pensadores a concepção de que, para além das dimensões políticas e econômicas, a colonização mental é um complexo dispositivo cultural que impõe limites à ideia de autonomia e liberdade aos sujeitos que viveram a experiência da colonização. É por isso que problematizam a trajetória das implementações de sistemas educativos nas ilhas sob agenciamento dos portugueses, ao mesmo tempo que também identificam e apresentam algumas estratégias de resistência do povo cabo-verdiano na defesa dos seus sistemas 21


próprios de educação – que, no texto, são entendidos para além da lógica da escolarização formal. Articulando uma bibliografia pertinente aos temas elencados, trazem à tona um debate sobre a indissociabilidade entre luta, cultura, identidade, narrativa, consciência histórica e produção de conhecimentos, tanto no contexto das lutas anticoloniais quanto na contemporaneidade, dentro e fora dos espaços acadêmicos. No capítulo 6 – “Os reflexos das ambivalências político-identitárias na política externa cabo-verdiana: entre a retórica de Djam Branku Dja e o pragmatismo de Undi Da Ki Panha –, o investigador cabo-verdiano Odair Barros-Varela pretende atestar a hipótese de que a política externa cabo-verdiana, desde a independência do país em 1975 até os dias atuais, tem sido marcada por ambivalências político-identitárias derivadas, em grande medida, da sua condição de ex-colônia portuguesa e europeia, e que as consequências nocivas dessas ambivalências não têm sido suficientemente enfrentadas por políticas públicas do Estado, mediante subsídios da comunidade científica local. Os paradoxos na política externa do país-arquipélago que são alvo de análise desse ensaio centram-se na persistência de uma retórica identitária de pendor eurocêntrico apelidado de Djam Branku Dja (“já virei branco”) e, simultaneamente, de um pragmatismo político circunstancial que é chamado de Undi Da Ki Panha (“onde der é para apanhar”). Em seguida, o autor apresenta as razões para a utilização dessas expressões populares da língua cabo-verdiana, como imagens ou metáforas, para caracterizar a postura ondulante da política externa do país; em simultâneo, busca apontar alguns trilhos que podem conduzir à de(s)colonialidade dessa política. Na esteira dessa tentativa de pensar as relações internacionais em Cabo Verde, com o olhar voltado para a atuação das mulheres que atuam no mercado informal, no capítulo 7 – “Mercado informal em Cabo Verde: as vendedeiras de ‘YA’” –, Débora de Jesus Borges Vieira, Euclides Pereira Cabral e Renísia Cristina Garcia Filice apostam no estudo da relação entre os Estados Unidos e Cabo Verde que remonta aos anos 1740, quando embarcações americanas faziam paragem nos portos de Cabo Verde para comprar sal ou escravizados, e quando baleeiros americanos começaram a recrutar tripulação da Brava e do Fogo para a pesca da baleia, que era abundante nas redondezas de Cabo Verde. Hoje, em 2022, registra-se uma relação forte de aquisição, por parte de nacionais cabo-verdianos residentes nos EUA, de produtos do mercado americano – conhecidos como “YA” –, transportados por via marítima nos chamados bidões para as ilhas. Essa aquisição se dá não só como forma de 22


ajudar as famílias, mas também como investimento na área de comércio. O capítulo 7, então, discorre sobre os impactos da venda de produtos YA na vida de seis mulheres cabo-verdianas na cidade da Praia, especificamente quando se encontravam na feira conhecida como Sucupira. Constatou-se a intensidade desse comércio e sua contribuição para a economia local e para a subsistência das vendedeiras YA. Nota-se que essa atividade e as relações que ela mobiliza podem vir a se configurar como um movimento social e político, posto agregador de mulheres que se encontram e se fortalecem econômica e socialmente, servindo de fator estruturante de famílias cabo-verdianas. E, mais, desencadeia a intervenção do Estado no sentido de propor políticas sociais voltadas para esse mercado. No capítulo 8 – “O corpo sexualizado feminino, expropriação e reparação: uma conversa entre (sobre) mulheres negras, escrito por duas autoras negras brasileiras” –, Loyde Cardoso e Renísia Cristina Garcia Filice, ao abordarem o tema das categorias sociais ocidentais, como gênero e raça, que passam a ser tencionadas. Informam que subjaz a essas categorias uma ideologia determinista biológica que fornece a base para a organização social do mundo, ou seja, o corpo passa a ser o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada. Nessa conversa entre mulheres negras que ajudam a compor o pensamento decolonial em África e na diáspora, procuram compreender a implicação do gênero não como um dado universal, mas como um construto colonial utilizado como mecanismo de expropriações simbólicas e materiais pelas quais as mulheres negras são submetidas. Por meio do pensamento de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021) e Denise Ferreira da Silva (2019), analisam a perspectiva da colonialidade do poder (Quijano, 2005), reconhecendo a posicionalidade do corpo da mulher, nativa, negra, em lugar do que – como é denunciado por ambas as autoras – se faz normalmente, que é analisá-la a partir do homem negro. Por meio das análises propostas podemos identificar também como a somatocentralidade (Oyěwùmí, 2021) é acionada desde sempre e faz da racialidade e do gênero limites para a justiça e para os direitos daqueles determinados como Outros, que não são incorporados pelo sistema jurídico e pela ética. A crítica radical que se faz a partir do corpo sexualizado da mulher negra revela não só um histórico de expropriações, mas um potencial subversivo capaz de confrontar os pilares da moderna colonialidade, capaz de recuperar/anunciar uma variedade de possibilidades para o conhecer, o fazer e o existir. Isso é demonstrado com base no pensamento da autora Lélia Gonzalez (2020), que em sua obra evidencia que o sistema de dominação ideológica 23


operante na sociedade brasileira é também baseado em diferenças biológicas que incidem diretamente sobre a mulher negra. Demonstra-se também que a categoria de Amefricanidade, da qual um dos pilares para exemplificar o assunto é Nanny, uma mulher quilombola, se substancializa na luta cotidiana de mulheres negras contra a violência e pelo acesso à justiça, como uma práxis radical e subversiva. No capítulo 9 – “Espaços de poder na trama do virtual e a visibilidade de mulheres negras”–, Angélica Ferrarez de Almeida analisa o território discursivo em que as mulheres negras têm mobilizado possibilidades de produção de narrativas para intervenções antirracistas e antissexistas e contribuído para a formação de novos campos de debates onde o trabalho e sua trajetória têm operado a partilha do sensível, mas com visibilidade e autonomia. Esse processo ocorre através da transição das ruas para o uso das ferramentas virtuais enquanto estratégia, na medida em que criam ressonância para um grupo que resiste às margens. Como horizonte epistêmico, o espaço virtual tem sido ferramenta de luta que, embora se considera que falam a partir das margens, tem conseguido criar condições para a insurgência de suas vozes. Desse ponto de vista, a autora identifica elementos de referência que passam pela edificação de processos de educação popular emancipadora, através da apropriação da tecnologia enquanto base para a superação da opressão e confronto com estruturas institucionalizadas de manutenção de dominação e de privilégios, produção do novo sentido da democracia, as possibilidades da descolonização do pensamento e da ação educativa através da cidadania ativa e comunicação para ação pública. É aqui que experiências performativas protagonizadas por mulheres negras, particularmente no samba, geram dispositivos de poder, a fim de projetar com rapidez e maior alcance ideias, atitudes, comportamentos e estratégias de luta. No capítulo 10 – “Interseccionalidade de raça e gênero na literatura para crianças: potências éticas, políticas e estéticas para uma educação antirracista” –, Débora Cristina Sales da Cruz Vieira e Renísia Cristina Garcia Filice, a partir da análise interdisciplinar dos livros infantis O cabelo de Lelê, de Valéria Belém, O mundo no black power de Tayó, de Kiusam de Oliveira, e Betina, de Nilma Lino Gomes, discutem as dimensões éticas, políticas e estéticas da representatividade de meninas negras nessas três obras que provocam a desnaturalização de narrativas e relações colonizadoras. Considera-se que um trabalho pedagógico interdisciplinar que compreende a literatura como 24


direito possibilita múltiplas vozes e narrativas, ampliando a compreensão de si e do mundo. A presença de livros para crianças com personagens negras e a organização de um trabalho pedagógico sistemático envolvendo diversas linguagens artísticas em espaços educativos são parte de uma educação antirracista, produtora de novos conhecimentos e pedagogias, responsável por favorecer processos identitários de meninas negras e de crianças não negras. Ela possibilita reflexões sobre elementos da realidade, que envolvem a interseccionalidade de raça e gênero a partir da arte, em consonância com a orientação do Artigo 26-A da LDB 9394/96, que tornou obrigatório o ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas de educação básica do país. No capítulo 11 – “Imigrantes africanos negros no Noroeste de Portugal: estratégias e registos semiocultos de adaptação e resistência nas relações interétnicas” –, o autor português Manuel Carlos Silva, com base em dados extraídos de uma pesquisa entre imigrantes africanos dos PALOP no Noroeste de Portugal, nomeadamente no distrito de Braga, avalia as relações entre “maiorias autóctones” e “minorias étnicas-imigrantes”. Com base em seus achados, lança importantes desafios para se pensar a democracia e uma nova gestão política, uma vez que, segundo ele, determinadas situações históricas e atuais têm demonstrado que a identidade étnico-racial não traduz uma realidade imutável, mas é relacional e tem constituído, na esteira da tese weberiana, uma fonte de clivagem social tão ou mais importante que a identidade de classe. Segundo Silva “as posições de relativa desvantagem social e económica em que se encontra(va)m membros de minorias étnicas-raciais e imigrantes, agravadas pelas definições e categorizações externas por parte dos membros da alegada maioria, comportam tensões e encerram contradições que reflectem as da própria comunidade ou sociedade autóctone”. E é nesse universo que ele mergulha, apresentando importantes reflexões teóricas acerca de processos de aculturação, a assimilação, a separação e a marginalização, bem como as modalidades estratégicas dos actores sociais na gestão das suas trajetórias entre a cultura de origem e a cultura da sociedade de acolhimento.

À guisa de conclusão: … o caminho se faz no caminhar Se Cabral é o pedagogo da revolução, Paulo Freire foi o pedagogo da esperança. Freire dizia que “Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem 25


aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar” (Freire, 1997, p. 79). A maneira como os textos são distribuídos revela algumas das incorporações que ousamos realizar das ideias de Cabral: exercer a esperança de que outros escritos são possíveis, experiências e artigos acadêmicos também, desde que se envolvam diretamente na construção de outros mundos possíveis. Assim, caminhamos para o final da apresentação. Como nos dizem Barros e Jaló, “ainda que frequentemente denunciando a opressão e a miséria em que se vive em Cabo Verde e na África colonizada, a poesia de Amílcar Cabral quase sempre lança um olhar de esperança para o futuro” (2021, p. 80). E é com a esperança de que em algum tempo distante “nossos pés” caminhem em sintonia com a cabeça e o coração que finalizamos esta apresentação com a poesia de Amílcar Cabral: “o poeta [que] abandona o ‘ego’ do ser poeta para abraçar a causa, a razão de ser poeta, o Poema/a vida do seu povo, a causa da Humanidade” (Neves, 2021, p. 65). Afinal, temos muito a apreender com Cabral, temos a aprender com África, temos muito a aprender Uns/Umas com os/as Outros/as. …Não, Poesia: Não te escondas nas grutas do meu ser, Não fujas à Vida. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, abre de par a par as portas do meu ser – saí… Sai para a luta (a vida é luta) Os homens lá fora chamam por ti, E tu, Poesia és também um Homem. Ama as Poesias de todo o Mundo, – ama os Homens Solta teus poemas para todas as raças, para todas as coisas. Confunde-se comigo ... Vai, Poesia: Toma os meus braços para abraçares o Mundo, dá-me os teus braços para que abrace a Vida. A minha Poesia sou eu. (Amílcar Cabral, 2021, p. 80-81)

Desejamos uma excelente leitura a todos, todas e todes.

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