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UM TRANSBORDO, LOOPHOLE
Fabiano Neu
MOMENTO PRIMEIRO – O tempo contraído do cotidiano. – O acontecimento ensejase nas falhas do cotidiano. – Potência da arte em produzir falhas no cotidiano e convocar
o acontecimento.
Podemos dizer que o cotidiano está relacionado a uma contração do tempo, que se
produz a partir de uma existência utilitária, uma codificação em meio ao fluxo que repete
períodos de instantes transformados em linearidade cronológica. Dividido em “tempo
obrigatório (o do trabalho profissional), tempo livre (o dos lazeres) e tempo imposto (o das
exigências diversas fora do trabalho, como transporte, idas e vindas, formalidades, etc.)”
(LEFEBVRE, 1991, p. 61), de qualquer maneira é tempo subordinado a uma formatação.
Palco de uma vida encolhida, ocupada em atender demandas e prover as necessidades mais
básicas da sobrevivência enquanto organismo.
Podemos dizer, também, que no cotidiano, o “poder tomou de assalto a vida, penetrou
todas as esferas da existência e as mobilizou e as pôs para trabalhar em proveito próprio”
(PELBART, 2015). Não se trata de um poder externo e disciplinar, mas um poder molecular
que se dilui e instala nas forças que nos constituem. Poder que se prolifera no estado, na
mídia, no capital, nas ciências, mas que advém de um modo de pensamento que é o baseado
na recognição, que elege um bem e um mal e constrói um mundo moral, binário, dividido
entre essências e aparências e seguidor de modelos. “É evidente que os atos de recognição
existem e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana (...), mas quem pode acreditar que o
destino do pensamento se joga aí e que pensamos quando reconhecemos? ” (DELEUZE,
1988, p. 117).
Essa formatação do cotidiano a partir da recognição tende a reduzir o pensamento ao
senso comum, que “encontra seu objeto nas categorias de oposição, de similitude, de analogia
e de identidade” (DELEUZE, 1988, p. 128), e onde pensar é reconhecer, de imediato,
significados dados e considerados verdadeiros. Acaba por fabricar um sujeito médio,
reprodutor de hábitos, reativo, que põe “prateleiras na vontade e na ação (...) e que amanhã
fica na mesma coisa que antes de ontem – um antes de ontem que é sempre” (PESSOA, 1990,
p. 106). Uma espécie de agenciamento burro-cenoura (pendurar uma cenoura na frente de um
burro demonstrava mais eficácia em mantê-lo sob controle e fazê-lo andar, do que usar o
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chicote) que circunscreve no horizonte do assujeitado um desejo que se origina a partir de
uma falta que jamais é suprida.
Mas é neste mesmo cotidiano que irrompe o acontecimento. “Aquilo que parecia
inteiramente submetido, subsumido, dominado, isto é, a vida, revela no processo mesmo de
sua expropriação, a sua positividade indomável” (PELBART, 2015). O grande acontecimento
que o personagem de Henry James (2011) sentia que o espreitava feito uma fera na selva e
que passou toda a vida esperando, (como o burro espera, um dia, comer a cenoura) estava o
tempo todo ao seu lado, naquilo que considerava insignificante. É na experimentação de um
intervalo da cadeia sucessiva de instantes, que se dá a partir de uma falha no sistema
(loophole1), que o acontecimento cintila e faz surgir no cotidiano contraído em tempo
obrigatório, tempo livre e tempo imposto, a lufada de um tempo outro que não se enquadra no
já significado. “A falha ou o fracasso da razão é precisamente o ponto cego que a faz ter
acesso a uma outra dimensão, a de um pensamento, que se articula com o diferente como sua
inapreensível necessidade” (CERTEAU, 1994, p. 311. Grifo nosso). É no âmbito do
acontecimento que o pensamento, livre dos grilhões da recognição, se dá, e não no campo do
senso comum. Não é por vontade própria que se pensa, o que se faz por vontade própria é
reconhecer sentidos já prontos. É “de uma violência original feita ao pensamento, de uma
estranheza, de uma inimizade, a única maneira de tirá-lo de seu estupor natural ou de sua
eterna possibilidade” (DELEUZE, 1988, p. 121). De que maneira percebemos que estamos
lidando com um acontecimento? Quando algo, de imediato, nos força a pensar e inventar um
sentido singular. Enquanto o senso comum só pode dar conta das ocorrências diárias, o
pensamento só lida com o acontecimento.
Ao fazermos uma apropriação da “Alegoria da Caverna”, de Platão (MAGALHÃES,
2000), não no sentido da metafísica, de contrapor o mundo imperfeito das cópias ao mundo
perfeito das ideias, mas colocando “dentro da caverna”, a vida impotente, rebaixada pelo
poder e cativa de um cotidiano urdido pela recognição e “fora da caverna”, esta mesma vida,
só que aberta ao acontecimento, surge uma questão: no que está empenhada a arte (e a mesma
questão pode ser estendida às ciências e à cultura)? Em servir ao poder que captura a vida ou
a potência que a afirma? Em produzir sombras mais belas, fogueiras que não se apagam, uma
diversidade maior de estátuas, em “melhorar” a existência no interior da caverna ou em
experimentar o sol do meio-dia que arde lá fora? A partir disso, podemos classificar a arte a
partir de sua maior ou menor potência em suscitar acontecimento, sendo mais potente o tipo
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Por uma questão de estilo, optamos por não colocar a expressão estrangeira em itálico, que a partir de uma
apropriação, ganha status de prática, e não somente uma designação.
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de arte que força a pensar e a menos potente o tipo de arte que cai no senso comum. Cabe
dizer que a intensão de ser potente não basta. É preciso que funcione. O acontecimento é
sempre segundo, um efeito. Cria-se condições para tal, a partir da produção de falhas no
sistema de recognição por força de um arrombamento das faculdades, que coage o
pensamento e convoca o acontecimento, “momento singular e contingente a partir do qual se
abrem possíveis” (QUERÉ, 2005, p. 69). Mas qual tipo de arte é mais potente em produzir
loopholes e criar condições de acontecimento? A que está canonizada e cooptada pelo sistema
da arte, pelos museus, pelo mercado e pela expectativa de um público consumidor? Ou a que
“teima em não se adaptar, preferindo colocar-se à margem das correntes dominantes, não
acomodada, resistente, sem se deixar cooptar” (SAID, 2005, p.60) e que cria um público que
ainda não existe?
MOMENTO SEGUNDO – Loophole: intervenção artística = máquina de guerra.
A partir da “Invenção do Cotidiano”, de Michel de Certeau, e das “falhas que as
conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder” (1994, p. 101), foi denominada
“Loophole2” (falha no sistema), uma intervenção artística projetada para estar mais próximo
de funcionar como uma máquina de guerra, que “faz valer um furor contra a medida, uma
celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania,
uma máquina contra o aparelho” (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 12), do que de um
espetáculo ou entretenimento próprio do tempo dos lazeres. Uma performance que se
pergunta, de que maneira atuar com a potência do acontecimento que força a produção de
sentidos outros, tendo como campo o cotidiano central de São Borja? Uma cidade do interior
do Rio Grande do Sul, palco de disputas identitárias, onde memórias de presidentes da
república, índios evangelizados e caudilhos fronteiriços convivem, e que se torna palco de
uma performance cujo funcionamento é descrito nas linhas que se seguem.
A performance: Loophole inicia aproximadamente as 9:50h da manhã de uma sextafeira, em uma esquina da praça principal da cidade. Seis personagens, vestindo roupas de festa
(ternos, cartolas, vestidos longos e chapéus) e usando máscaras encetam o seguinte
movimento: Personagem1 entrega uma folha de papel em branco para Personagem2, que o
amassa e joga no chão. Personagem1 recolhe o papel do chão, desamassa e novamente
entrega para Personagem2, que o amassa e joga no chão e assim se repete durante o percurso
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Trabalho proposto pelo eixo introdutório da Especialização em Atividade Criativas e Culturais da Universidade
Federal do Pampa (UNIPAMPA).
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ao redor da praça. Logo atrás, Personagem3, Personagem4 e Personagem5 acompanham
tocando instrumentos musicais. Personagem6 segue junto registrando imagens da intervenção,
que finda na terceira esquina da praça.
Pina Bausch e a Tanzteather (dança-teatro): Loophole se apropria de características
da obra da coreógrafa (que usa a técnica do ballet de uma forma crítica, aliando-a a
dramaturgia) para se compor. A repetição de movimentos (um movimento, ao ser executado
uma única vez, pode carregar um sentido já codificado. O mesmo movimento ao ser repetido
obsessivamente, ad infinitum, pode fazer esse sentido delirar e transbordar em sentidos
outros.); movimentos do cotidiano (partir de um movimento facilmente reconhecível pelo
senso comum e então deformá-lo); figurinos (roupas de festa no ambiente das rotinas diárias.
Tirar um elemento de um contexto e colocar em outro); uso do exagero e do absurdo
(superalimentar o que é clichê. Produzir falhas a partir de um excesso que ocasiona uma falta
de sentido); improvisação (o fato de não estar em um local mapeado, como um palco, requer
estar preparado para qualquer imprevisto sem deixar que uma contingência interfira no
funcionamento da intervenção).
Engordar o costume: Loophole faz o recorte de um costume local: descartar o que é
considerado lixo (embalagens de chicletes, balas, cigarros, etc.) na rua, e alia-se a Pina Baush
para dramatizá-lo a partir da repetição, do exagero e do absurdo. Não há nesta escolha uma
função conscientizadora e moral, de “ensinar o que é certo”, o que cairia na lógica da
recognição, mas sim fazer desse recorte o disparador da performance.
Médico da Peste: Loophole utiliza máscaras para evitar associações que poderiam
surgir do reconhecimento das pessoas envolvidas na intervenção, o que acarretaria, de
imediato, uma explicação sensata. Foram confeccionadas a partir da figura dos médicos da
peste, que na Europa dos séculos XVII e XVIII usavam máscaras que se assemelhavam a
bicos de aves cheios de ervas aromáticas, para protegê-los do ar fétido ao lidarem com as
vítimas da peste negra.
Fanfarra: Loophole é instrumentada por um tambor, que marca o tempo, um clarinete
que acompanha o movimento com um tom desafinado e uma campainha que toca no
momento que o papel é jogado ao chão. Além de ditar o ritmo da intervenção, serve como um
estímulo sonoro com a função de atrair a atenção.
Registro audiovisual3: Loophole é registrada pelo Personagem6, através de duas
câmeras, na perspectiva do meio da intervenção. Mais três câmeras foram estrategicamente
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HfYwGMPhxpg (para melhorar a resolução do vídeo,
mudar a quality para 1080p HD, em settings, no canto direito inferior).
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localizadas para captar a reação das pessoas presentes no local. A partir dessas imagens é
produzido um audiovisual que, além de registro, funciona como disparador para produção de
escrita. Algumas falas foram gravadas com o intuito de servir de aporte para algumas
apropriações relacionadas a recepção da intervenção por parte do público, mas se constituem
em um adicional e sua subtração não afeta o resultado final.
MOMENTO TERCEIRO – Por que Loophole é uma intervenção artística que
lida com a potência do acontecimento.
“O Além dos Além é um transbordo4. Você sabe o que é um transbordo? Bem... Toda
coisa que enche, transborda” diz Estamira, pensadora-delirante, criadora da própria existência
a partir do cotidiano no aterro sanitário Jardim Gramacho, personagem do documentário
homônimo, de Marcos Prado (2015). Podemos dizer que Loophole produziu um pequeno
transbordo na cadeia de significados do cotidiano são-borjense. O acontecimento é da ordem
do excesso, que produz uma falta, que força a inventar um sentido outro ali onde nenhuma
referência cabe mais. A mudança no ritmo dos passos, o olhar para trás, o dar de ombros, a
expressão involuntária nos rostos, os funcionários do comércio que largam seus postos, a
indiferença forçada da polícia, a gagueira de um “tipo de uns... aqueles... desses...”, denotam
que algo se passou. “Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo que
de superfície ou volumes reduzidos” (DELEUZE, 2004, p. 218).
Há nas intervenções artísticas urbanas uma certa “marginalidade, falta de
institucionalização, rejeição por parte do establishment” (ZOLBERG, 2006, 103), mas
devemos levar em conta que a marginalidade não pode se tornar uma categoria ou cairá na
mesma lógica dos modelos, passiva de recognição. Estar à margem não é um estado de ser,
não é uma identidade, mas é uma prática constante de colocar-se em devir. Com isso
queremos dizer que é preciso pôr-se à margem da própria marginalidade enquanto categoria.
Ou o “bizarro”, que incomoda o senso comum, acaba sendo explicado, integrado, mensurado,
monetizado e tornado um “fulcro de novas instituições de cultura” (ZOLBERG, 2006, 107). A
potência de Loophole está em sua efemeridade, “em ser receptiva ao viajante e não ao
potentado, ao provisório e arriscado e não ao habitual, à inovação e à experiência e não ao
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O termo transbordo dá nome a produtora fictícia responsável pela intervenção Loophole.
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status quo (SAID, 2005, p.70). Em ser cometa e não estrela, e se algo ficar, que seja a duração
de um rastro e não uma presença.
Mas se, por acaso, aliar-se aos “que sempre dizem sim" (SAID, 2005, p.60, grifo do
autor), ou a despeito de querer dizer não, calar-se com a boca de feijão, como canta Chico
Buarque (2015) em “Cotidiano”, ante ao poder que captura a arte para torná-la recurso, para
que a vida na caverna seja mais segura e agradável, não há problema algum. Apenas deixará
de lidar com o campo da experimentação, com a possibilidade de acontecimento, para cair nas
graças do senso comum. Em alguma outra ponta, algum outro campo, em alguma falha no
sistema, a potência da vida insurge-se.
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REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. [Tradução: Ephraim
Ferreira Alves]. Petrópolis: Vozes, 1994.
DELEUZE, Gilles.Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 2004.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Ed. 34, 1997.
HOLLANDA, Francisco B. de. Cotidiano. <https://www.youtube.com/watch?v=8LeIg-TtHQw>.
Acesso em: 12 mai. 2015.
LEFEBVRE, Henry. A vida cotidiana no mundo moderno. Tradução de Alcides João de
Barros. São Paulo: Editora Ática, 1991.
MAGALHÃES, Lucy. (trad.). A Alegoria da caverna: A República, 514a-517c. In:
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
PELBART, Peter Pál. Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada. Disponível em
(DELEUZE, 2004, p. 218).
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1990.
PRADO, Marcos. Estamira. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KFyYE9Cssuo
>. Acesso em: 12 mai. 2015.
QUÉRÉ, Louis. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. p. 59-76. Lisboa:
Trajectos, 2005.
SAID, Edward. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. Tradução
Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
ZOLBERG, Vera L. Para uma sociologia das artes. Senac, 2006.