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Victor Eduardo Rios Gonçalves
valor e os encaminhe aos cofres públicos, não haverá alteração na capitulação de
crime simples. Caso se trate de valores indevidos e ele os desvie, incorrerá na forma
qualificada do excesso de exação e, caso sejam valores devidos ao Estado, o desvio
constitui peculato.
11.1.13. Corrupção passiva
Art. 317, caput — Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena — reclusão, de dois a doze anos, e multa.
11.1.13.1. Objetividade jurídica
A moralidade da Administração Pública e seu normal funcionamento.
11.1.13.2. Tipo objetivo
O tipo penal elenca três condutas típicas:
1) Solicitar: significa pedir vantagem ao particular. Na solicitação, a conduta
inicial é do funcionário público. Ele é quem pede algo ao particular. Se o particular dá o que foi pedido, não comete corrupção ativa por falta de previsão
legal, conforme será estudado no art. 333.
2) Receber: entrar na posse.
3) Aceitar promessa: concordar com a proposta.
No recebimento ou aceitação de promessa, a conduta inicial é do corruptor (particular). Nesses casos, o funcionário responderá por corrupção passiva e o particular
por corrupção ativa.
Tais condutas típicas referem-se, necessariamente, a uma vantagem indevida em
razão do cargo. Assim, na corrupção passiva, a vantagem deve ser indevida porque
tem a finalidade de fazer com que o funcionário público beneficie alguém em seu
trabalho por meio de ações ou omissões. Ocorre uma espécie de troca entre a vantagem indevida visada pelo agente público e a ação ou omissão funcional que beneficiará o terceiro. Exs.: receber dinheiro para não multar alguém que cometeu infração
de trânsito, para não fechar estabelecimento que não possui alvará, para fornecer
habilitação a alguém que não passou no exame (neste exemplo, há concurso material
com o crime de falsidade ideológica) etc. Nesse sentido: “Corrupção passiva. Escre
vente de Cartório criminal que, em razão de suas funções, solicita vantagem indevi
da para influir no processo por infração do jogo do bicho, acenando com eventual
prescrição da ação penal. Crime de corrupção passiva caracterizado” (TJSP —
Rel. Humberto da Nova — RJTJSP 16/4343); “Delegado de Polícia que recebe
qualquer quantia para colocar em liberdade quem se encontra detido comete o de
lito de corrupção passiva” (TJMT — Rel. Odair da Cruz Bandeira — RT 522/438).
XI
Dos Crimes Contra a Administração Pública
725
Na concussão, a vítima entrega a vantagem em razão de uma ameaça, para não
sofrer um mal. Ela tem medo em razão da conduta do funcionário público. Na corrupção passiva, o particular visa obter benefícios em troca da vantagem prestada.
Normalmente a vantagem indevida tem a finalidade de fazer com que o funcionário público pratique ato ilegal ou deixe de praticar, de forma ilegal ou irregular,
ato que deveria praticar de ofício. É possível, todavia, que exista corrupção passiva
ainda que a vantagem indevida seja entregue para que o funcionário pratique ato não
ilegal. Tal entendimento doutrinário e jurisprudencial reside no fato de que a punição dessa conduta visa resguardar a probidade administrativa, sendo que o funcionário público já recebe seu salário para praticar os atos inerentes ao seu cargo e não
pode receber quantias extras para realizar o seu trabalho. Nesses casos, há crime,
pois o funcionário público pode acostumar-se e deixar de trabalhar sempre que não
lhe oferecerem dinheiro extra. A corrupção passiva, portanto, pode ser: a) própria:
quando se pretende que o ato que o funcionário público realize ou deixe de realizar
seja ilegal. Ex.: oficial de justiça que recebe dinheiro para não citar alguém; b) imprópria: quando se pretende que o ato que funcionário venha a realizar ou deixar de
realizar seja legal. Ex.: oficial de justiça que recebe dinheiro para citar alguém.
Essa regra, entretanto, não deve ser interpretada de forma absoluta. A jurisprudência, atenta ao bom-senso, tem entendido que gratificações usuais, de pequena
monta, por serviço extraordinário (não se tratando de ato contrário à lei) não podem
ser consideradas corrupção passiva. Pelas mesmas razões, as pequenas doações ocasionais, como as costumeiras “Boas Festas” de Natal ou Ano Novo, não configuram
o crime. Nesses casos, não há consciência por parte do funcionário público de estar
aceitando uma retribuição por algum ato ou omissão. Não há dolo, já que o funcionário está apenas recebendo um presente. A propósito: “Excluemse da incriminação
de corrupção pequenas doações ocasionais, recebidas pelo funcionário, em razão
de suas funções. Em tais casos, não há de sua parte consciência de aceitar retribui
ção por um ato funcional, que é elementar ao dolo no delito, nem haveria vontade
de corromper” (TJSP — Rel. Humberto da Nova — RT 389/93).
11.1.13.3. Sujeito ativo
Pode ser qualquer funcionário público. Trata-se de crime próprio.
Se o crime for cometido por policial militar, estará configurado o crime de corrupção passiva militar, descrito no art. 308 do Código Penal Militar.
11.1.13.4. Sujeito passivo
O Estado. Na hipótese de solicitação de vantagem, o particular também é vítima.
11.1.13.5. Consumação
Trata-se de crime formal. Consuma-se no momento em que o funcionário solicita, recebe ou aceita a vantagem. Na modalidade solicitar, pouco importa, para
fim de consumação, se o funcionário público efetivamente obtém a vantagem visada.
726 Direito Penal Esquematizado — Parte Especial
Victor Eduardo Rios Gonçalves
Nas modalidades receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, também não
importa se o funcionário pratica ou não algum ato em face desta. A ação ou omissão,
entretanto, não é mero exaurimento do crime, na medida em que o art. 317, § 1º,
prevê que a pena será aumentada em um terço se, em consequência da vantagem ou
promessa indevida, o funcionário público retarda ou deixa de praticar ato de ofício
ou o pratica infringindo dever funcional. O que em princípio seria exaurimento funciona como causa de aumento de pena por expressa previsão legal.
A corrupção pode ser classificada, nesse contexto, como: a) antecedente: quando a vantagem é entregue ao funcionário público antes da ação ou omissão funcional; b) subsequente: quando a vantagem é entregue depois.
11.1.13.6. Tentativa
Entende-se que a tentativa só é possível na modalidade solicitar (e quando feita
por escrito).
11.1.13.7. Distinção
a) O fiscal que exige ou solicita dinheiro para não cobrar tributo ou contribuição
social pratica o crime previsto no art. 3º, II, da Lei n. 8.137/90 (crime contra a
ordem tributária). Não há nesse caso concussão ou corrupção passiva, já que,
atualmente, existe crime específico para a hipótese. Esse artigo é especial e tem
uma pena mínima mais alta (3 a 8 anos de reclusão).
b) A testemunha ou perito não oficiais que recebem dinheiro para cometer falso
testemunho ou falsa perícia incorrem em crime do art. 342, § 2º, do Código Penal.
c) O art. 299 da Lei n. 4.737/65 (Código Eleitoral) prevê crimes idênticos à corrupção passiva e ativa, mas praticados com a intenção de conseguir voto, ainda
que o agente não obtenha sucesso.
11.1.13.8. Corrupção privilegiada
Nos termos do art. 317, § 2º, se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência
de outrem, incorre em pena consideravelmente menor — detenção, de três meses a
um ano, ou multa. Nesta figura, o funcionário público não visa vantagem indevida.
Ele pratica, retarda ou deixa de praticar ato com infração de dever funcional cedendo
a pedido ou influência de terceiro. A diferença, portanto, em relação à corrupção
passiva comum é que a razão de agir do funcionário público é outra.
A corrupção passiva privilegiada é crime material em face da redação do dispositivo. Assim, só se consuma quando o funcionário pratica, deixa de praticar ou
retarda o ato de ofício.
11.1.13.9. Ação penal
É pública incondicionada.
XI
727
Dos Crimes Contra a Administração Pública
11.1.13.10. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA
Simples quanto
à objetividade
jurídica
Próprio e de
concurso eventual
quanto ao sujeito
ativo
De ação livre e
comissivo quanto
aos meios de
execução
Formal e
instantâneo
quanto ao
momento
consumativo
Doloso quanto
ao elemento
subjetivo
11.1.14. Facilitação de contrabando ou descaminho
Art. 318. Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou
descaminho (art. 334):
Pena — reclusão, de três a oito anos.
11.1.14.1. Objetividade jurídica
A Administração Pública, no sentido de serem coibidos o contrabando e o
descaminho.
11.1.14.2. Tipo objetivo
Facilitar significa afastar eventuais dificuldades ou empecilhos que possam
existir e que se interponham à prática do contrabando ou descaminho. Consiste, pois,
em viabilizá-los.
A conduta pode ser ativa ou omissiva, sendo necessário que o funcionário público atue (ou deixe de atuar) com infração de dever funcional. É ativa, por exemplo,
quando o funcionário indica uma forma de o contrabandista desviar-se da fiscalização. É omissiva quando o funcionário, ciente de que há produto de descaminho em
um compartimento, não o inspeciona, liberando as mercadorias.
Trata-se, evidentemente, de crime doloso, que pressupõe a específica intenção
de facilitar o contrabando ou descaminho. Caso o agente tenha recebido dinheiro ou
outra vantagem, responderá por crime de corrupção passiva.
O dispositivo em análise consagra outra exceção à teoria unitária ou monista,
uma vez que o responsável pelo contrabando ou descaminho responde por crime
autônomo, descrito no art. 334 do Código Penal.
11.1.14.3. Sujeito ativo
Somente pode ser o funcionário público em cujas atribuições esteja inserida a
repressão ao contrabando ou descaminho. Nesse sentido: “O crime do art. 318 do
Código Penal tem como pressuposto a infração a dever funcional, somente poden
do ser praticado pelo funcionário que tem, como atribuição legal, prevenir e re
primir o contrabando ou descaminho. Assim, não pratica o delito em questão o
funcionário estadual, em cujas atribuições não se inclui a repressão ao crime do
art. 334 do Código Penal” (TRF — 1ª Região — Rel. Osmar Tognolo — DJU
10.09.1999, p. 278).
728 Direito Penal Esquematizado — Parte Especial
Victor Eduardo Rios Gonçalves
11.1.14.4. Sujeito passivo
O Estado.
11.1.14.5. Consumação
No instante em que o funcionário público presta o auxílio (omissivo ou comissivo) a fim de facilitar o contrabando ou descaminho, ainda que este não se concretize. Trata-se de crime formal. A propósito: “O crime definido no art. 318 do Código
Penal consumase com a efetiva facilitação por parte do agente, com consciência de
estar infringindo o dever funcional, pouco importando que circunstâncias diversas
impeçam a consumação do contrabando” (TFR — Rel. Min. Flaquer Scartezzini
— DJU 25.10.1984, p. 17.896).
11.1.14.6. Tentativa
É possível apenas na modalidade comissiva.
11.1.14.7. Ação penal
É pública incondicionada, de competência da Justiça Federal.
11.1.15. Prevaricação
Art. 319. Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo
contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena — detenção, de três meses a um ano, e multa.
11.1.15.1. Objetividade jurídica
A moralidade na Administração Pública.
11.1.15.2. Tipo objetivo
Nesse crime, o que faz o funcionário público agir ilicitamente no desempenho
de suas funções são razões pessoais, e não a busca por uma vantagem indevida tal
como ocorre na corrupção passiva. Na prevaricação, o funcionário, por exemplo,
beneficia alguém por ser seu amigo ou parente, ou prejudica uma pessoa por ser seu
desafeto ou concorrente etc.
De acordo com o texto legal, na prevaricação, o funcionário deve ser motivado
por interesse ou sentimento pessoal. O interesse pode ser de qualquer espécie
(promoção no cargo, fama), inclusive patrimonial. Ex.: funcionário que determina a
execução de uma obra a fim de valorizar terreno de sua propriedade. O sentimento
pessoal, por sua vez, diz respeito à afetividade do agente em relação a pessoas ou
fatos, como nos exemplos antes citados de amizade ou inimizade. O sentimento pessoal é do funcionário público, mas o beneficiado pode ser terceiro.
XI
Dos Crimes Contra a Administração Pública
729
Na prática é muito comum constatar que um funcionário agiu ou deixou de agir
de forma irregular, porém, não conseguir desvendar o que o levou a atuar de tal maneira, isto é, não conseguir apontar qual sua motivação. Em tal caso, torna-se inviável a condenação por prevaricação, podendo ser o funcionário responsabilizado apenas administrativamente pela ação ou omissão indevidas no desempenho da função.
Assim, é absolutamente necessário que o Ministério Público descreva na denúncia
por prevaricação qual o interesse ou sentimento pessoal do réu que o levou a agir
ilicitamente. Não basta dizer que ele agiu por interesse ou sentimento pessoal, devendo ser esclarecido exatamente em que este consistiu. A propósito: “No crime de
prevaricação, inepta a denúncia que não especifica o sentimento pessoal que anima
a atitude do autor” (STF — Rel. Décio Miranda — RJT 111/288); “Cuidandose de
crime de prevaricação, é inepta a denúncia que não especifica o interesse ou senti
mento pessoal que o autor buscou satisfazer, por infringência ao art. 41 do CPP”
(STJ — Rel. Costa Leite — RSTJ 7/108); “Não é suficiente que a denúncia, cuidan
do de delito de prevaricação, afirme, genericamente, que o acusado agiu para a
satisfação de interesse pessoal. É preciso que o especifique e consigne, de forma
expressa, em que consistiu tal interesse, sob pena de inépcia” (Tacrim-SP — Rel.
Camargo Sampaio — RT 578/361).
O atraso no serviço por preguiça ou desleixo não constitui, por si só, o crime de
prevaricação, podendo configurar infração administrativa. Nesse sentido: “O erro, a
simples negligência, apenas poderão determinar a responsabilidade civil ou legi
timar sanções de outra natureza. Para caracterizar o delito exigese o propósito
deliberado, a intenção direta” (STF — RE 10.351 — Rel. Orozimbo Nonato —
2ª Turma — RF 120/357). Caso, entretanto, fique demonstrado que o funcionário,
por preguiça, deixa efetivamente de realizar suas funções, comete o crime, como, por
exemplo, o Oficial de Justiça que não vai procurar as testemunhas para serem intimadas para ficar jogando cartas.
As condutas típicas são três:
a) retardar: atrasar;
b) deixar de praticar: omitir por completo;
c) praticar: realizar, levar a efeito o ato.
Nessas duas primeiras modalidades, basta que a conduta ocorra indevidamente
(elemento normativo), enquanto na última exige o tipo penal que o fato se dê contra
expresso texto de lei.
A conduta pode se referir a qualquer ato de ofício, assim entendido todo aquele
que se encontra dentro da esfera de atribuição do agente.
11.1.15.3. Sujeito ativo
Qualquer funcionário público.
11.1.15.4. Sujeito passivo
O Estado e a pessoa eventualmente prejudicada pela ação ou omissão funcional.
730 Direito Penal Esquematizado — Parte Especial
Victor Eduardo Rios Gonçalves
11.1.15.5. Consumação
No exato instante em que o funcionário omite, retarda ou pratica o ato de ofício,
independentemente de qualquer resultado.
11.1.15.6. Tentativa
Possível apenas na modalidade comissiva.
11.1.15.7. Distinção
O crime em estudo não se confunde com a corrupção passiva privilegiada, em
que o agente age ou deixa de agir cedendo a pedido ou influência de outrem. Na prevaricação não existe este pedido ou influência. O agente toma a iniciativa de agir ou
se omitir para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Assim, se um fiscal flagra
um desconhecido cometendo irregularidade e deixa de autuá-lo em razão de insistentes pedidos deste, há corrupção passiva privilegiada, mas, se o fiscal deixa de autuar
porque percebe que a pessoa é um antigo amigo, configura-se a prevaricação.
11.1.15.8. Ação penal
É pública incondicionada, de competência do Juizado Especial Criminal.
11.1.15.9. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA
Simples quanto
à objetividade
jurídica
Próprio e de
concurso eventual
quanto ao sujeito
ativo
De ação livre
e comissivo ou
omissivo quanto
aos meios de
execução
Instantâneo
quanto ao
momento
consumativo
Doloso quanto
ao elemento
subjetivo
11.1.15.10. Figura equiparada — omissão do dever de vedar acesso a telefone
móvel ou rádio a pessoa presa
A Lei n. 11.466/2007 inseriu no art. 319-A uma nova figura criminosa, com a
mesma pena da prevaricação, exceto multa, para punir o diretor de penitenciária e/ou
agente público que se omite em seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com
o ambiente externo.
A necessidade de inserção desse dispositivo no Código Penal deve-se à constatação de que enorme número de presos têm tido acesso a telefones celulares com os
quais comandam quadrilhas de dentro das cadeias, cometem crimes (extorsões, estelionatos, extorsões mediante sequestro) e organizam fugas.
O crime aqui em análise é próprio e só pode ser cometido por diretor de penitenciária ou agente penitenciário. A conduta típica é exclusivamente omissiva. Caso
o funcionário introduza o aparelho no presídio, incorre no crime do art. 349-A do
Código. Caso se omita ou introduza o aparelho no presídio em troca de vantagem
indevida, responde por corrupção passiva.
A consumação se dá com a omissão e a tentativa não é possível.