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Bárbara Santos (Foto: Arquivo Pessoal)

Bárbara Santos (Foto: Arquivo Pessoal)

Um ano atrás, em novembro de 2019, Bárbara Santos acompanhava a chegada de A Vida Invisível às salas de cinema do Brasil. O filme dirigido por Karim Aïnouz surgia ao público já escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar 2020 - o longa acabou não ficando entre os dez pré-selecionados, mas conquistou premiações em Cannes, Munique e no Brasil. Para a artista - "carioca da gema, do samba e da Lapa" radicada há dez anos em Berlim, na Alemanha - dar vida à Filomena foi sua redescoberta como atriz. Mais do que sua estreia na sétima arte, foi também um passo na ocupação de mulheres negras no cenário artístico, uma das bandeiras de seus 30 anos de carreira.

"Quando falamos de artistas negros e negras é evidente a falta de oportunidades em todas as partes, não apenas no cinema. São artistas que têm que vencer tanto a invisibilidade absoluta quanto a limitação dos estereótipos", explica ela à Marie Claire. "Para ultrapassar essas barreiras, artistas negras têm que inventar seus próprios espaços", acrescenta.

E foi o que Bárbara fez. Se apropriou, sobretudo, do teatro. "Conheci o Teatro do Oprimido em 1990 e, a partir daí, foram muitas as transformações e aprendizados", lembra. Hoje ela é diretora artística de vários coletivos teatrais, fundou uma rede internacional de teatro feminista e escreveu três livros, entre eles “Teatro das Oprimidas – estéticas feministas para poéticas políticas”. "Ao longo de minha atuação profissional, fui me dando conta que a grande maioria dos espaços de prestígio eram ocupados por homens, especialmente brancos e de classe média", conta. "Na maioria das representações, as oprimidas eram vitimizadas e culpabilizadas pelos problemas que viviam".

Por sua atuação como Filomena, personagem negra que determina a virada na trama da família de classe média branca de origem portuguesa em A Vida Invisível, ela concorreu ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria Atriz Coadjuvante, ao lado de Sônia Braga, Alli Willow, Karine Teles e Fernanda Montenegro, que levou a premiação. "Foi uma alegria profunda receber essa notícia", diz. "Ao mesmo tempo, foi um choque de realidade saber que nenhuma atriz negra foi premiada e que pouquíssimas foram indicadas antes de mim".

Em bate-papo com Marie Claire, a atriz de 56 anos relembra sua trajetória, fala sobre discriminação, assédio e também sobre o trabalho teatral da perspectiva feminista-antirracista. Veja abaixo!

Marie Claire: Conta um pouquinho sobre sua trajetória? Quais foram seus passos na vida artística? 
Bárbara Santos:
 Eu sou carioca da gema, do samba, da praia e da Lapa. Cria da zona norte, da escola pública e de vários movimentos sociais. Mulher negra, formada em sociologia, educadora da rede pública de educação, professora sindicalizada e ativista. Conheci o Teatro do Oprimido em 1990 e, a partir daí, foram muitas as transformações e aprendizados. Trabalhei com o teatrólogo Augusto Boal por duas décadas. Em 1995, iniciei uma carreira internacional que abrange mais de 40 países, aprendi outros idiomas e avancei em minhas próprias pesquisas chegando ao Teatro das Oprimidas. Já trabalhei nos cinco continentes desse mundo que nos desafia e avanço guardando as preciosas referências do querido companheiro de trabalho Augusto Boal. Sou diretora artística de vários coletivos teatrais, fundei uma rede internacional de teatro feminista, sou autora de três livros, alguns deles traduzidos para espanhol, italiano e inglês, e criei um programa internacional de qualificação que tem sede em Berlim, Alemanha. Vivo entre o Rio de Janeiro e Berlim. Em 2018, me redescobri atriz com a ajuda de Karim Ainouz e Nina Kopko com a experiência do filme A Vida Invisível.

MC: Você tem mais de 30 anos de carreira, mas só recentemente estreou no cinema. Foi por sua escolha ou acredita que faltam oportunidades?
BS:
 Quando falamos de artistas negros e negras é evidente a falta de oportunidades em todas as partes, não apenas no cinema. São artistas que têm que vencer tanto a invisibilidade absoluta quanto a limitação dos estereótipos. Por um lado, uma maioria absoluta de narrativas brancas que privilegiam personagens brancas, por outro lado, entre as personagens negras disponíveis, a predominância de abordagens estereotipadas, desumanizadas e genéricas. Para ultrapassar essas barreiras, artistas negras têm que inventar seus próprios espaços. Vide o exemplo do Teatro Negro do Rio de Janeiro, que ocupou espaços alternativos, desenvolveu processos criativos de produção artística e de reflexão, criou articulação entre diferentes coletivos de negros e negras e conquistou um lugar de destaque na cena carioca e brasileira. O Teatro Negro em diversas partes do Brasil compartilhou as mesmas estratégias, chegando a influenciar fortemente o mundo audiovisual. Digo isso para explicitar como, para artistas negros e negras, ainda é limitada a condição de poder escolher. No meu caso particular, o teatro tem sido a principal estratégia de expressão estética tanto individual quanto coletiva.

Bárbara Santos em A Vida Invisível (Foto: Divulgação)

Bárbara Santos em A Vida Invisível (Foto: Divulgação)

MC: Como você vê no momento atual a presença de mulheres negras no cinema, na TV, enfim, ocupando todo o cenário artístico?
BS: Tudo que se vê de avanço e de expansão da presença negra no teatro, no cinema, na TV, na internet, no mundo audiovisual e nas artes em geral, é fruto de uma longa trajetória, de uma incrível criatividade estratégica, associada a muita articulação e sabedoria no aproveitamento de oportunidades escassas. Evidente que as políticas públicas, resultado de lutas históricas do movimento negro, implementadas ao longo dos governos Lula e Dilma Rousseff, ajudaram a impulsionar a expansão dessa presença. Mas a força motriz desse processo é a persistência, a ousadia, a inventividade, o sentido de solidariedade e o compromisso com a coletividade. Nesse sentido, as mulheres negras são a locomotiva. Produtoras, roteiristas, jornalistas, diretoras, atrizes, técnicas nas mais diversas áreas têm multiplicado vozes e ações concretas para superar todas as limitações impostas por um sistema racista para dar volume e visibilizar suas narrativas.

MC: Você já se viu em situação de discriminação por ser mulher e por ser uma mulher negra ao longo da sua trajetória profissional?
BS: Muitas e muitas vezes. O racismo estrutural se entrecruza com o sexismo, a misoginia, o machismo para atravessar e ferir os corpos das mulheres negras, com o intuito de limitar suas existências. No caso das que, como eu, são oriundas da classe trabalhadora, o impacto é ainda maior. Eu trabalhei com Augusto Boal durante 20 anos, como chefe de gabinete do seu mandato de vereador no Rio de Janeiro e como coordenadora geral do Centro de Teatro do Oprimido, sendo seu braço direito no desenvolvimento metodológico do Teatro do Oprimido e na realização projetos e produções artísticas. Não saberia contar a quantidade de vezes fui “confundida“ com alguém que ocupava alguma posição subalterna em diferentes contextos.

MC: Já esteve em situação de assédio?
BS: Não conheço nenhuma mulher que não tenha vivido uma situação de assédio. Talvez existam mulheres que não se deem conta do que enfrentam, especialmente aquelas que atuam em contextos onde o sexismo é mais “sofisticado“. Para nós, mulheres negras, que enfrentamos além de tudo a hipersexualização de nossos corpos, essa é uma experiência constante. Em muitas situações, percebi que o assédio era uma estratégia de poder e de manutenção de privilégios, tanto para me desestabilizar quanto para me deslegitimar enquanto mulher negra em posição de destaque. Eu coordenei o projeto “Teatro do Oprimido nas Prisões“, desenvolvido em 10 estados brasileiros, ao longo de cinco anos, em parceria com o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, um ambiente predominantemente masculino. Para implementar esse projeto, me reuni com autoridades penitenciárias, com diretores de unidades, chefias setoriais, entre outros profissionais, e, muitas vezes, tive que enfrentar situações de assédio. Algumas autoridades imaginavam poder se proteger por trás de seus cargos. O que elas não imaginavam é que eu, sabendo da inevitabilidade dessas situações, tinha também muitas estratégias e nenhuma delas incluía o silêncio.

MC: Quando se percebeu uma mulher feminista e quais têm sido suas bandeiras desde então?
BS: Interessante perguntar quando se percebeu. Acho que é isso mesmo que acontece. Somos feministas – ou seja, lutamos pelos nossos direitos como mulheres – antes de nos percebermos como tal. O patriarcado consegue nos manter em condição de desigualdade utilizando-se de diversas artimanhas: nos colocando umas contra as outras, nos desencorajando a atravessar fronteiras, nos entupindo de ilusões trágicas como o amor romântico, o casamento eterno, a maternidade sublime entre outros sonhos melados que se transformam em armadilhas. Mas a principal estratégia do sistema é deslegitimar e demonizar o feminismo, que, na verdade, é uma ferramenta preciosa para analisarmos a sociedade em que vivemos. Ao longo de minha atuação profissional, fui me dando conta que a grande maioria dos espaços de prestígio eram ocupados por homens, especialmente brancos e de classe média. Quase todas as produções artísticas que problematizavam as opressões que enfrentávamos por sermos mulheres também eram dirigidas por homens. Na maioria dessas representações, as oprimidas eram vitimizadas e culpabilizadas pelos problemas que viviam. Creio que todo esse contexto foi evidenciando a necessidade do desenvolvimento de uma abordagem feminista para o teatro que eu fazia. Isso despertou o senso feminista até então intuitivo que havia em mim e em minha atuação. 

MC: Conta um pouquinho sobre seu livro Teatro das Oprimidas e também sobre a Rede Ma(g)dalena Internacional?
BS: Como consequência dessas descobertas, às quais me referia antes, a partir de 2010 começamos a desenvolver um processo estético investigativo exclusivo para mulheres. Primeiro como um laboratório teatral que foi ganhando corpo ao ser desenvolvido em contextos diversos, em diferentes países, com as participantes distintas em origem étnico-racial, idade, classe social, profissão e etc. O efeito multiplicador dessa experiência foi tão surpreendente que rapidamente formamos uma rede internacional. Desde então, me dedico à sistematização dessa metodologia teatral, registrada no livro Teatro das Oprimidas, lançado em 2019, pela editora Philos, na Flip, em Paraty e agora, em 2020, em espanhol, por Editorial El Signo, de Buenos Aires, Argentina. O livro é o suporte teórico de uma práxis revolucionária que continua a ser desenvolvida por dezenas de grupos em dezenas de países. A Rede Ma(g)dalena Internacional, fundada por mim, é formada por grupos teatrais de artistas ativistas da América Latina, África e Europa. Realizamos de 20 a 30 de setembro, por conta do coronavírus, nosso primeiro festival online Magdalenas em Movimento. Para quem se interessar em conhecer, existe um material riquíssimo no nosso canal YouTube Rede Ma-g-dalena Internacional.

Bárbara Santos em cena no espetáculo Travessia (Foto:  Muhammed Lamin Jadama)

Bárbara Santos em cena no espetáculo Travessia (Foto: Muhammed Lamin Jadama)

MC: Por seu trabalho em 'A Vida Invisível' você foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria Atriz Coadjuvante. O que representou essa indicação para você, ainda mais ao lado de atrizes já tão reconhecidas?
BS: Foi uma alegria profunda receber essa notícia. E nem posso dimensionar a honra de estar ao lado de atrizes absolutamente talentosas, cada uma com sua trajetória e todas fantásticas. Todas merecem ser premiadas e a indicação é uma certa premiação, pois é um reconhecimento formal do trabalho realizado. Ao mesmo tempo, foi um choque de realidade saber que nenhuma atriz negra foi premiada e que pouquíssimas foram indicadas antes de mim. Eu sou a única nos últimos cinco anos. Essa é uma realidade nua e crua, não é fácil premiar atuações para personagens que não existem. Eu desejo que se multipliquem as Filomenas no cinema brasileiro e que muitas atrizes negras tenham oportunidade de mostrar o quanto também são talentosas.

MC: Você está envolvida em novos projetos de cinema?
BS: Infelizmente, não. Adoraria estar.

MC: Como é seu trabalho com o teatro em Berlim?
BS: Em Berlim sou diretora artística do teatro KURINGA e do grupo de Teatro das Oprimidas Madalena Berlin. Duas vezes por ano dirijo um programa de qualificação que recebe participantes dos quatro cantos do mundo. Produzimos o Festival Internacional bianual Estéticas de Solidariedade, que recebe grupos do mundo inteiro. Para cada edição do Festival, dirijo uma produção com elenco internacional. Coordeno variados projetos de produção artística. Com performer, sigo minha pesquisa sobre o fluxo do corpo colonizado para o corpo político.

Bárbara Santos (Foto: Divulgação)

Bárbara Santos (Foto: Divulgação)