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Ilusões em progresso Publicado na revista Peixe Elétrico (Ed. Especial: Plataforma da nova geração), 2022, pp. 112-117. Felipe Catalani “Pompeia sucumbe apenas agora, depois que foi descoberta.” S. Freud, Observações sobre um caso de neurose obsessiva Vou partir da sua primeira pergunta, sobre “o lugar do Brasil no mundo hoje”. Independentemente de qual é, objetivamente, esse lugar, podemos tranquilamente notar que, considerando como tal lugar é percebido, passamos de ex-futura potência a pária internacional, algo que provoca extrema vergonha em nossas elites esclarecidas diante de tal imagem minguada da nação, refletida por exemplo nas capas da The Economist – em uma, o cristo redentor decolando, em outra, o mesmo “foguete” desabando. É como se tivesse escangalhado de vez a escada rolante que estaria nos alçando, enfim, à condição de país desenvolvido; como se o árduo caminho da Reconstrução Democrática (com seu esforço modernizador do período 1994-2016) tivesse sido mais uma vez interrompido, relegando-nos à “grande regressão” (como dizem europeus e norte-americanos sobre seus respectivos “populismos de direita”) e ao horror do “atraso” e da situação de dependência. Encerrou-se assim o “sonho rooseveltiano” (para usar uma expressão do André Singer), que teria sido boicotado pela má vontade de nossa “elite do atraso”. Por mais frouxas que sejam as narrativas que sustentam essa visão, que ignoram aspectos estruturais do desenvolvimento capitalista global em fim de linha, é como se não fosse possível viver sem elas; como se, mesmo que se flertasse teoricamente com uma compreensão dos fatos, fôssemos dependentes, do ponto de vista prático, de tal visão falsificadora que compreende a história como um caminho progressivo marcado por intervalos regressivos, no fundo causados pelo atraso social ainda não completamente vencido pelo processo modernizador. Ocorre que essas narrativas são, ao mesmo tempo, melancólicas e consoladoras. Elas entristecem, mas não o suficiente para produzir o desespero ativo de quem não tem nada a perder, pois segundo elas estamos sempre a um passo de uma nova Restauração Progressista (se for permitido o oxímoro): basta aguardar as próximas eleições. E é claro, é muito difícil viver sem essa esperança (meio fajuta, mas é uma esperança) de que as coisas “vão passar”, meio que por si mesmas, pelo simples motivo de que não é possível que tudo termine assim. Temos uma enorme dificuldade em reconhecer e crer em processos irreversíveis, não por acaso lidar com a morte (a nossa própria ou a de pessoas próximas) é sempre uma das coisas mais difíceis na vida de uma pessoa. Ora, com processos sociais ocorre algo semelhante. Por uma espécie de inércia mental, própria de nossa predisposição do espírito, acreditamos na imortalidade do planeta, da espécie humana, da civilização, como se fôssemos carentes não só de pão, mas de metafísica. E dessa carência de metafísica surgiram grandes sistemas de pensamento, religiões complexas, etc. Só que a nossa religião é um pouco mais miserável, pois o nome dela é: capitalismo. E todo aquele progressismo, que constitui a nossa estrutura mental, está no cerne dessa forma social calcada em uma eterna e tautológica acumulação em direção ao infinito. Pois então: por incrível que pareça, no atual estado de coisas do mundo, a esquerda (junto com o pouco que sobrou da direita liberal) se tornou a última defensora da ideia de que o capital ainda tem algo a nos oferecer, que ele ainda teria uma função civilizatória. O jogo da nova direita é outro: mais cínico, bruto, sobrevivencialista, anti-humanista. Como se ela estivesse se preparando para um pós-capitalismo, para uma forma social ainda mais bárbara que prescinde daquelas abstrações que outrora tinham, a princípio, função pacificadora, como o direito, a troca de equivalentes, etc. Já do nosso lado, a mais entranhada crença de esquerda é a de que o capitalismo é infinito. E não só crença: eu diria até mesmo desejo. Tomemos como exemplo David Harvey, que é um excelente teórico, mas que, em um de seus piores momentos, diz em uma entrevista recente que “o problema não é o capitalismo, mas a forma neoliberal do capitalismo” – sendo que a verdade é o oposto disso (apesar da eterna e imorrível utopia planejadora e reguladora de domesticar sem matar esse monstrengo indomável que é o capital). Dificilmente pode-se dizer que Harvey não tenha lido ou compreendido Marx, mas é como se hoje, visto que a crise não mais produz o momento decisivo da revolução (crise sempre significou uma decisão pendente), não se pudesse mais extrair consequências práticas daquele diagnóstico, de forma que, retroativamente, a aporia política produz cegueira teórica. Daí ele recair em afirmações francamente “negacionistas”, como se diz tanto hoje, de que “o problema não é o capitalismo”, de que “devemos manter o fluxo de capital em movimento” e de que “não podemos sustentar um ataque à acumulação capitalista”. Seu recado é uma chantagem do tipo: “capitalismo ou morte!” – embora tal chantagem, falsamente profilática, seja uma alternativa que, na realidade, não existe; quer dizer, não há aquele “ou”. Mas mesmo assim esse tipo de chantagem tem um certo apelo, pois quando Harvey diz que “o capitalismo é grande demais para falir”, emula-se uma espécie de “realismo político”, embora esse realismo assuma por vezes certos ares lunáticos, como por exemplo na declaração (feita em outra conferência) de que ele aguarda que a China faça sua transição para o comunismo nas próximas décadas. Valeria a pena comentar um pouco a relação entre essa pretensão de “realismo político” e o lugar que a China vem ocupando no imaginário de alguns setores da esquerda, que ganhou força no Brasil depois do colapso do lulismo. Quer dizer, de uma hora para outra a China aparece como uma utopia, ou uma última esperança, a saber, a última esperança desenvolvimentista de um capitalismo turbinado, potencialmente infinito, capaz de uma integração econômica crescente do proletariado; um país que estaria indo na contramão da tendência do mundo, apesar de seus mais de 70 milhões de desempregados (um número que pode ser bem maior, pois eles levam em conta somente a população urbana – de todo modo, um número que irá crescer exponencialmente com o gigantesco processo de automação em curso na China). Isso sem falar que o enorme crescimento chinês (cuja taxa vem caindo ininterruptamente nos últimos dez anos) não se explica sem a bolha de capital fictício no resto do mundo (que, por exemplo, financia o consumo norte-americano de mercadorias chinesas) e sem a monstruosa injeção interna de crédito – no fim de 2020, a dívida chinesa atingiu o equivalente a 270% de seu PIB, o que não é nenhuma exceção, já há um tempo o endividamento dos Estados se tornou estrutural, o que não significa, entretanto, que isso possa ser considerado parte de uma situação “normal” ou “estável”, muito pelo contrário: opera-se uma lógica temporal do prazo na qual compra-se tempo para, a cada rodada, tentar adiar esse prazo. “Esquece-se” que, rigorosamente, não existe capitalismo nacional, que o capital é uma coisa só, completamente intrincada, uma forma social que faz sistema, ou seja, que constitui totalidade. E essa totalidade arrasta tudo em seu movimento, sincronizando o mundo inteiro em seu próprio relógio histórico. Portanto é completamente errada a noção de que o Brasil “voltou” para a era “colonial”, para a Idade Média, da pedra ou seja lá o que for, e que a China, cujas tranqueiras tecnológicas continuam embasbacando, estaria avançando para o mundo dos Jetsons. Mesmo a noção de “capitalismo de Estado”, para caracterizar a China contemporânea, é traiçoeira. Para além do fato de que não há capitalismo sem Estado e de que a oposição mercado x Estado é ilusória, quando esse conceito (o de capitalismo de Estado) começou a circular mais, ali pela década de 1930, ele significava que a esfera política, da administração e do mando, havia definitivamente anulado a esfera econômica, abolindo a lei impessoal e autonomizada do valor que opera “às costas dos sujeitos”, como dizia Marx. Ocorre que tal anulação nunca ocorreu na economia hitlerista, nem mesmo na União Soviética, onde também apareciam os sintomas da irracionalidade da acumulação pautada pelo quantum de trabalho abstrato. Dizer que isso ocorre na China seria uma alucinação, portanto esqueçamos “capitalismo de Estado”. Já do lado da apologia, respondendo àquele termo, fala-se então de “socialismo de mercado”, como um conceito espelho – um truque terminológico simplório, como se vê, e o que causa ainda mais confusão, pois “socialismo de mercado” remete na verdade à social-democracia austríaca do começo do século passado. Tudo isso para dizer (a partir de um exemplo) que a imaginação política de nossa geração não vai tão bem assim. É claro que a realidade não ajuda, mas até aí ela nunca esteve a nosso favor. Mas parece continuamente aumentar a desproporção entre aquilo que devemos enfrentar e as nossas capacidades (mentais, imaginativas, políticas). Poderíamos imaginar que uma catástrofe como a ascensão do bolsonarismo produziria alguma coisa em nós, um choque, uma decepção histórica a ser convertida em motor para algo novo, uma mudança de perspectiva. Mas a verdade é que não aconteceu absolutamente nada, estamos na mesma situação de quatro, cinco anos atrás: fomos incapazes de produzir uma reação política, intelectual, cultural à altura do que está ocorrendo. O que “aprendemos” com a ascensão de Bolsonaro? Nada, muito pouco. O que demonstra que já se foi o tempo em que as ilusões perdidas se convertiam em ganho. A rigor, historicamente, a ideia de crise tinha também um caráter de “revelação”, a crise é também um momento dramático no qual a verdade aparece. A partir de certo momento, é como se a verdade do processo histórico tivesse se tornado algo com o qual não se pode fazer nada, algo “inútil” praticamente, visto o tamanho do buraco em que nós, enquanto sociedade, entramos.