Getúlio
Dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930)
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Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
João Baptista da Costa Aguiar
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Fundação Getúlio Vargas — CPDOC
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Sioma Breitman/ Cortesia de Samuel Breitman. Reprodução de Eneida Serrano
Preparação
Leny Cordeiro
Índice remissivo
Luciano Marchiori
Revisão
Márcia Moura
Adriana Cristina Bairrada
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Neto, Lira
Getúlio : dos anos de formação à conquista do poder (-)
/ Lira Neto. — 1. ed — São Paulo : Companhia das Letras, .
ISBN
----
. Brasil - História -República Velha, 1889-1930 2. Brasil - História - 1930 3. Vargas Getúlio, 1883-1954 I. Título.
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Índice para catálogo sistemático:
. Brasil : Políticos : Biografia .
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Sumário
Prólogo
Onze aviões sobrevoam o Rio de Janeiro.
Na fuselagem, ostentam o emblema fascista (1931). ........................... 13
. A terra ali é vermelha feito brasa.
Dizem que é por tanto sangue derramado nela (1865-96)......................... 28
2. No tiroteio, um jovem tomba morto.
Seria Getúlio, aos quinze anos, o assassino? (1896-8)........................... 45
3. Getúlio levanta o braço e adere ao motim.
O gesto vai mudar sua vida (1898-1903). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4. Após suspirar por uma Dama de Vermelho,
Getúlio cai de amores pela militância estudantil (1903-7). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5. Simpático, republicano e deputado:
Getúlio é um bom partido para a filha do figurão local (1908-12). ............ 103
6. Desafeto dos Vargas recebe um tiro no ouvido.
Ele sabia — e falava — demais (1913-6). . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
7. Índia é estuprada e cacique, morto a tiro.
O culpado é Getúlio Dornelles Vargas (1917-21). .............................. 150
8. Nova guerra civil derrama sangue no Rio Grande.
O parecer de Getúlio é o estopim do conflito (1922-3)......................... 174
9. “Só é possível reprimir violência com violência”,
lê Getúlio em seu primeiro discurso no Rio (1923)............................. 194
10. A Coluna Prestes começa a inflamar o Brasil.
Getúlio a compara a uma “correria de cangaceiros” (1924-6). ................. 214
11. O ministro da Fazenda não entende de finanças.
Mas sabe tudo de política (1926-7). . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242
12. E se a República do café com leite se transformasse
na República do café com pão? (1928). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
13. Getúlio inaugura a arte de tirar as meias sem
descalçar os sapatos (1929)........................................................ 299
14. A “renovação criadora do fascismo” é citada
como exemplo pelo candidato Getúlio Vargas (1929). ......................... 327
15. Guerra à vista: Rio Grande encomenda ao Canadá
5 milhões de “cartuchos pontiagudos” (1929)................................... 362
16. O clima no Rio de Janeiro é de “orgia cívica”;
mas dessa vez Getúlio é o único a não sorrir (1930). ........................... 392
17. Um jornalista entrevista o obelisco:
“Os cavalos gaúchos não vêm mais” (1930). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
18. Tropas federais chegam a Porto Alegre.
Getúlio, tranquilo, passeia a pé pela cidade (1930).............................. 447
19. A revolução explode nas ruas.
Os dois lados começam a contar seus mortos (1930)........................... 467
20. A massa não grita mais “Queremos!”.
O brado agora é outro: “Já temos Getúlio!” (1930)............................. 493
Este livro..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525
Fontes........ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 533
Notas......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548
Créditos das imagens.............................................................. 611
Índice remissivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 615
Prólogo
Onze aviões sobrevoam o Rio de Janeiro.
Na fuselagem, ostentam o emblema fascista (1931)
Na tarde daquele 15 de janeiro de 1931, uma quinta-feira escaldante de verão carioca, as 10 mil pessoas aglomeradas ao longo da amurada da praia do
Flamengo voltavam os olhos para o horizonte. Os relógios marcavam quatro e
meia em ponto quando onze gigantescos hidroaviões Savoia Marchetti S-55 A,
de fabricação italiana, surgiram em voo baixo, por trás do Pão de Açúcar. As
aeronaves vinham dispostas em impecável formação, tomando o aspecto de uma
pirâmide no ar. As fuselagens prateadas brilhavam sob o sol, destacadas no fundo azul de um céu sem nuvens. No mesmo minuto, obedecendo a um movimento rigorosamente cronometrado, a proa de um destróier cinzento de 107 metros
de comprimento apareceu por trás da silhueta do morro Cara de Cão, à entrada
da baía da Guanabara. O navio, com a bandeira da Itália e o pavilhão negro do
regime fascista de Benito Mussolini tremulando no mastro, singrou rápido pelas
águas, acompanhado por outras sete embarcações de guerra, dispostas em fila.1
Não se tratava de um ataque militar. Era uma manobra festiva. No alto, os
onze aviões avançaram na direção da praia e, ainda em formação, deram um rasante sobre o público. Observados de perto, eram ainda mais impressionantes.
Com 24 metros de envergadura, 16 de comprimento e 5 mil quilos cada um, arrancaram aplausos e gritos de entusiasmo. No leme, avistavam-se as três cores
oficiais da nação italiana — verde, branco e vermelho. Em cada um dos flutuado
res de pouso, estava pintado o fascio, o feixe de varas dourado acompanhado da
machadinha, símbolo da justiça na Roma Antiga, reincorporado como insígnia
pelos fascistas.
“Viva o Brasil! Viva a Itália! Viva Getúlio Vargas! Viva Mussolini!”, bradava
a multidão.2
Na avenida Rio Branco, na fachada do edifício Hasenclever — onde funcionava a sede dos Diários Associados e a sucursal brasileira da Hearst Corporation,
o conglomerado de comunicação do magnata norte-americano William Randolph
Hearst, um entusiasta do fascismo —, alto-falantes apontados para a rua multiplicavam o ruído dos motores Fiat de 1120 cavalos que equipavam os aviões. O
radiotransmissor principal estava instalado na cabine de comando da aeronave
que seguia imediatamente à frente das demais. Com o manche nas mãos protegidas por um par de luvas brancas, quem a pilotava era o próprio comandante
da Aviação italiana, Italo Balbo, 33 anos, o mais jovem ministro de toda a Europa.
Vestido com o uniforme escuro, Balbo era o comandante da expedição aérea que
saíra de Orbetello no dia 17 de dezembro e, depois de escalas em Cartagena e no
norte da África, cruzara o oceano Atlântico pelos ares até chegar ao Brasil, fazendo paradas prévias em Natal e Salvador, percorrendo um total de 10 400 quilômetros desde o ponto de partida, estabelecendo um novo marco na aviação
mundial.3
“Asas gloriosas da Itália nova”, lia-se na manchete do fluminense Correio da
Manhã. “Os heróis italianos, identificados por um distintivo negro com o emblema do fascio, concluíram a sua última etapa, no maior empreendimento de aviação de todos os tempos”, dizia a matéria. “Nunca será demais exaltar tão épico
feito, em que o valor de um povo forte reponta como a própria esperança de mais
brilhantes dias para a história da civilização.”4
A travessia aérea sobre o Atlântico não era mais uma novidade desde 1922,
quando os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral a efetuaram
pela primeira vez. O ineditismo e a façanha de Balbo residiam no fato de fazê-la
em formação de esquadrilha, o que acrescentava dificuldades consideráveis à missão, dada a necessidade de manter velocidade e posição constantes durante todo
o trajeto, para que os aviões não se desgarrassem ou, mais grave ainda, se entrechocassem nos céus. Balbo e toda a Itália estavam orgulhosos da proeza, considerada uma verdadeira ode ao poder da máquina — e particularmente dos homens
que as controlavam, forjados na disciplina férrea do regime fascista.5
“Ave, Roma! É mais uma vez o prestígio incontrolável da alma latina que se
afirma no Universo, através do valor secular do povo italiano”, saudou ainda o
Correio da Manhã. A travessia, sustentava o periódico, era “um testemunho eloquentíssimo do valor civilizador da Itália moderna”.6
Italo Balbo não chegara por acaso ao comando da força aérea de seu país.
Na fase anterior à tomada do poder na Itália pelos fascistas, ele se notabilizara por
ser um dos mais truculentos seguidores do Duce — o termo pelo qual os italianos
se referiam a Mussolini, derivado do latim, dux, vocábulo que em português equivale a “líder”. Balbo se vangloriava de ter ateado fogo e destruído à época inúmeros escritórios, gráficas, bibliotecas, cooperativas e círculos culturais ligados a
grupos socialistas e comunistas de Ferrara, onde nascera e tivera sua iniciação
política.7 Em julho de 1922, comandara um ataque de 24 horas ininterruptas a
prédios pertencentes a movimentos de esquerda na cidade. “Nossa passagem foi
marcada por altas colunas de fogo e fumaça”, descreveu, com orgulho, no diário
que publicaria decorridos exatos dez anos do episódio. “Nosso objetivo era desmoralizar o Estado, destruir o regime e todas as suas veneráveis instituições.
Quanto mais nossas ações fossem consideradas escandalosas, melhor.”8
Além dos incêndios criminosos de Ferrara, também pesavam contra Balbo
as acusações de ter sido conivente, em 1923, com o assassinato de um sacerdote
antifascista, o padre Giuseppe Minzoni, pároco de Argenta. Mas o maior feito de
seu currículo em prol do regime de extrema direita que então controlava a Itália
ocorrera cerca de um ano antes da morte de Minzoni, quando Balbo foi o mais
jovem dos quatro idealizadores da famosa Marcha sobre Roma, a manifestação
que em outubro de 1922 reuniu cerca de 26 mil “camisas-negras” — grupo paramilitar encarregado de promover ações políticas por meio da violência — para
“invadir a Cidade Eterna” e exigir a tomada do poder no país. A marcha marcou
a ascensão de Mussolini à chefia do governo italiano e a posterior nomeação de
Balbo para o ministério. Com experiência quase nula em aviação, fez um curso
de pilotagem após assumir o cargo e logo em seguida criou a mística do “voo em
massa”, as travessias oceânicas com esquadrilhas aéreas que se transformaram
em um dos símbolos máximos da propaganda fascista no exterior.9
A chegada de Balbo ao Rio de Janeiro fora antecedida por uma tragédia na
equipe. Numa decolagem noturna na cidade de Bolama, então capital da Guiné-Bissau, última das escalas africanas antes de o grupo rumar para o Brasil, dois
aviões apresentaram problemas logo nos primeiros minutos de voo. Um deles
conseguiu descer no meio do oceano e ficou para trás. O outro teve menos sorte. Após um curto-circuito, explodiu no ar, matando os cinco tripulantes a bordo.
Os corpos, carbonizados, jamais seriam resgatados das águas do Atlântico. Na
Itália, Mussolini decretou luto oficial em toda a península. Por isso, em vez dos
treze aviões que partiram de Orbetello, apenas onze amerissaram na enseada de
Botafogo.10
Recepcionados por autoridades brasileiras no Hotel Glória, onde ficariam
hospedados, Italo Balbo e seus 51 companheiros de viagem — entre aviadores,
técnicos e oficiais militares, inclusive o chefe do Estado-Maior da aviação italiana,
o general Giuseppe Valle, piloto de dirigíveis durante a Primeira Guerra Mundial
— receberam as honras de representantes oficiais de Mussolini no Brasil. Ao se
postar diante do microfone para pronunciar seu discurso de agradecimento pelas
boas-vindas do povo brasileiro, Balbo sublinhou cada frase com gestos largos, que
lembravam os trejeitos histriônicos do próprio Duce em suas aparições públicas.
A diferença é que, ao invés da careca luzidia do chefe, o ministro italiano ostentava uma vasta cabeleira negra, da mesma cor do cavanhaque pontudo que cultivava desde os tempos de incendiário em Ferrara.11
“Trago a saudação da Itália fascista ao Brasil novo”, declarou Balbo, em
alusão ao fato de o país onde acabara de desembarcar estar sendo dirigido por um
regime recém-surgido dos rescaldos de uma luta armada. Apenas dois meses e
meio antes, o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas, aos 48 anos de idade, assumira o
comando da nação, após uma junta militar destituir o então presidente da República, Washington Luís.12 Na agenda brasileira de Balbo, o principal compromisso
era justamente uma audiência solene, no dia seguinte, com o chefe do Governo
Provisório instaurado após a vitória da chamada “Revolução de 30”. No bolso do
uniforme, o italiano levaria um telegrama de Mussolini que daria o tom da conversa com o brasileiro Getúlio Vargas.
“Os corações de nossos povos irmãos batem juntos pela primeira vez. Certamente, não será a última”, dizia a mensagem.13
O protocolo do Palácio do Catete — então sede do governo federal, no Rio
de Janeiro, capital da República — exigiu dos convidados o uso de casaca, colete
preto e gravata branca. Os militares deveriam trajar farda de gala.14 Italo Balbo,
em um elegante uniforme branco, chegou com sua comitiva rigorosamente às
15 horas, como indicado no convite. O ministro italiano tinha obsessão pelas
“coisas excelentemente organizadas, matematicamente certas”.15 Depois de passar pela sequência de seis colunas neoclássicas do hall de entrada e subir a escadaria de ferro fundido para chegar ao piso nobre do prédio — onde estava localizado o salão de honra —, Balbo deparou-se com imagens que por certo lhe eram
familiares. As esculturas, afrescos e vitrais com motivos da mitologia greco-romana não escapariam ao olhar de um observador habituado a celebrar os monumentos e a iconografia da Roma imperial, reapropriados pelo fascismo como
símbolos da superioridade cultural latina e, mais especificamente, italiana.
No alto, em um nicho vermelho, a Afrodite de Cápua do Palácio do Catete
era uma cópia em metal da obra verdadeira, de mármore, custodiada pelo Museu
Arqueológico Nacional de Nápoles. As pinturas nas paredes exibiam reproduções
de obras do pintor renascentista italiano Rafael Sanzio e remetiam à Vila Farnesina, em Roma. Conduzido ao Salão Amarelo, Balbo pôde observar a ornamentação suntuosa e o mobiliário pesado, de inspiração veneziana. Era como se um
pedaço da Itália houvesse sido transplantado para os trópicos, provocando em um
olho mais treinado uma certa (e inevitável) sensação de artificialismo. Conduzido
enfim ao salão de honra — decorado com réplicas de pinturas que igualmente
aludiam a temas da mitologia greco-romana —, o ministro de Mussolini foi anunciado e levado à presença de Getúlio Vargas.16
Conforme o testemunho do correspondente do jornal paulistano Folha da
Manhã presente à solenidade, Balbo, com o peito estufado e apinhado de medalhas militares, perfilou-se diante do governante brasileiro. Rígido, de joelhos unidos, levantou subitamente o braço direito, deixando a palma da mão voltada
para baixo, em posição estendida. Era a célebre saudação fascista. Getúlio olhou
o visitante e, após alguns poucos segundos de hesitação, estendeu-lhe a mão, em
um cumprimento convencional. Em fila indiana, todos os membros da comitiva
italiana repetiram o gesto de Balbo. Como retribuição, tiveram as mãos apertadas
por Getúlio.17 “Tudo entre sorrisos”, notou o repórter da Folha, destacando a informalidade do chefe de governo brasileiro, em contraposição ao cenário e à
postura marcial dos convidados.18
“Conversei com Italo Balbo, espírito ágil, inteligente, e muito simpático”,
anotaria Getúlio mais tarde, em um caderninho de bolso, a capa revestida de tecido preto.19 Desde o dia 3 de outubro do ano anterior, data do início do movimento que o conduzira ao comando da nação, ele começara a redigir um diário
pessoal, no qual deixava preciosas anotações acerca do cotidiano e do exercício
do poder. Já enchera um volume inteiro com elas e começara um segundo. Sobre
a chegada da expedição aérea italiana ao Rio, a que assistira do mirante localizado
no alto do morro Mundo Novo, nos fundos do Palácio Guanabara — residência
oficial da Presidência da República —, registrara o seguinte comentário:
“Foi um espetáculo admirável.”20
A audiência solene no Catete não demorou mais do que alguns minutos. Ao
final, Getúlio recebeu das mãos de Balbo uma comprida caixa metálica, no interior da qual havia uma raridade cartográfica: um mapa do continente americano
datado de 1751. Era um presente da Itália ao povo brasileiro, sublinhou o representante de Mussolini.21
A conversa entre Getúlio e Balbo teria continuidade e desdobramentos decisivos poucas horas depois, à noite, em um banquete oferecido aos militares
estrangeiros no Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores.
À mesa, Getúlio sentou-se em frente a Balbo e ao lado do embaixador italiano no
Brasil, Vittorio Cerrutti, e do núncio apostólico, representante da Santa Sé no
país, o monsenhor italiano Benedetto Aloisi Masella — religioso que em 1943
prefaciaria a obra Em defesa da Ação Católica, de autoria de Plínio Correia de Oliveira, o fundador da organização Tradição, Família e Propriedade (TFP).22
Para apresentar ao ministro fascista os sabores exóticos da culinária brasileira, o jantar teve como atrações principais um caldo de tartaruga, filés de robalo,
carneiro ao forno e macuco assado. À hora da sobremesa — compotas de frutas
tropicais e sorvete de bacuri —, Italo Balbo levantou a taça de champanhe e fez
um brinde ao Brasil. Disse que Mussolini desejava cultivar “com o máximo empenho” as relações de amizade entre os dois povos e governos. Depois de ouvirem
o Hino Nacional Brasileiro, a Marcha Real Italiana e a “Giovinezza” (hino oficial
do fascismo), os convidados seguiram para a biblioteca, onde lhes foram oferecidos cigarros, charutos, licor e café. O jornalista do Correio da Manhã aproximou-se
da roda em que Getúlio e Balbo conversavam, e assim pôde ouvir e descrever
parte da conversa. Para surpresa do repórter, Getúlio falava um italiano fluente.23
“O povo italiano adora café”, comentou Balbo, após levar a xícara quente
aos lábios. “Em todas as nossas cidades, sejam elas grandes ou pequenas, há um
café em cada esquina. E estão sempre cheios. Estou certo de que em nenhum país
da Europa se bebe mais café do que na Itália.”24
Getúlio sorriu, rolando um grosso charuto entre os dedos. A palestra che
gara aonde ele queria. A missão Balbo, espetaculoso golpe de publicidade fascista,
tinha motivações evidentemente políticas, mas também financeiras. O governo
italiano pretendia negociar com o Brasil a venda dos aviões militares que fizeram
a travessia aérea do Atlântico. A recomendação do Duce era a de que Balbo e seus
homens voltassem para casa de navio. Getúlio propôs então ao ministro italiano
da Aviação uma espécie de escambo. O Exército brasileiro ficaria com as aeronaves. Em troca, em vez de dinheiro vivo, o país remeteria para Roma toneladas de
café em grão. O negócio, costurado depois pelos representantes comerciais dos
respectivos governos, acabou aprovado. O Brasil pagaria 8 mil contos de réis
(8.000:000$000, na grafia da época, o equivalente então a cerca de 88 milhões de
dólares), em sacas de café, para ficar com os modernos Savoia Marchetti.25
Foi um negócio e tanto. Mais de 20 milhões de sacas do produto estavam
apodrecendo nos armazéns reguladores nacionais. Nas administrações anteriores,
a política oficial de proteção ao café, principal item da pauta de exportações brasileiras, consistira na compra pelo governo dos excedentes de produção. Por algum tempo, o artifício interferira na lei da oferta e procura, mantendo os preços
em alta no mercado internacional. Mas desde outubro de 1929, com o crash histórico da Bolsa de Nova York e a crise econômica mundial dela decorrente, os
compradores mundo afora sumiram. Os preços, por conseguinte, despencaram.
A saca de café, que chegara a custar 200 mil-réis em agosto de 1929, caíra para
míseros 12 mil-réis naquele início de 1931, o que a rigor deixava o país à beira da
bancarrota.26
A missão Balbo e a consequente negociação das aeronaves militares italianas
ajudaram a minorar apenas uma pequena parte do problema, é bem verdade.
Dali a menos de um mês, para socorrer os cafeicultores e aplacar o pânico instalado no setor, o governo federal recorreria ao velho expediente e decretaria a
compra pelo Ministério da Fazenda de 17,5 milhões de novas sacas, mais da metade da safra anual que seria registrada no fim daquele ano.27 Dali a mais alguns
meses, Getúlio apelaria para uma medida ainda mais extrema: a incineração pura
e simples dos estoques, numa tentativa desesperada de manter os preços estáveis.
As despedidas de Balbo ficariam marcadas por um escândalo diplomático.
No Rio de Janeiro, o aviador e sua equipe foram alvos de seguidas recepções.
Homenageados em um baile de gala no luxuoso Copacabana Palace e com uma
corrida especial no Jockey Club, figuraram ainda como convidados de honra de
um espetáculo musical no Theatro Lírico, cujo ponto alto seria a apresentação
dos tenores Machado Del Negri e Francisco Pezzi, que entoaram canções do mais
assumido repertório fascista. Entusiasmado com as atenções dispensadas, Balbo
decidiu conhecer também São Paulo, ao ser informado de que na cidade existia a
maior colônia de italianos no país. Na capital paulista, as homenagens prosseguiram, ainda mais acaloradas. Contudo, terminariam em tumulto.28
Com os aviões já praticamente negociados, a comitiva viajou para São Paulo por via férrea e, no mesmo dia da chegada, participou da inauguração da nova
sede do consulado italiano na cidade, em um prédio localizado na praça da República. Numa concorrida solenidade, nas dependências do Instituto Médio Dante
Alighieri (o futuro Colégio Dante), na alameda Jaú, as centenas de alunos da
instituição e de outros estabelecimentos de ensino ítalo-brasileiros foram orientados pela direção e pelos professores a receber Italo Balbo com a saudação fascista, o que valeu uma nota de protesto na Folha da Noite. A admoestação do
jornal provocou algum constrangimento aos anfitriões, mas algo muito mais
grave ainda estava por vir.29
Antes de embarcarem de volta ao Rio, de onde deveriam tomar o vapor
para a Europa, os aviadores foram surpreendidos por um burburinho na Estação
da Luz. O que começou com um simples empurra-empurra derivou para cenas
explícitas de pugilato. Imigrantes italianos adeptos do movimento anarquista entraram em confronto com os compatriotas simpatizantes do fascismo em São
Paulo. No meio da confusão, manifestantes das duas facções rivais acabaram
cercando o automóvel no qual se encontravam o embaixador italiano Vittorio
Cerrutti e o comandante da esquadra de guerra que escoltara os aviões durante
a travessia transatlântica, o almirante Umberto Bucci.30
Para escapar do conflito, Cerrutti saltou do carro e abriu caminho a esmo,
distribuindo palavrões e cotoveladas em meio à multidão, tendo ofendido e atingido indistintamente anarquistas e fascistas ao longo do caminho. Bucci conseguiu
acompanhá-lo de perto, mas ambos foram barrados pelo inspetor de polícia encarregado de impedir o acesso dos manifestantes à plataforma. O embaixador
ainda tentou forçar a passagem. Mas o policial, por não conseguir distingui-los
dos demais, e sem conseguir entender uma única palavra do que gritavam, conteve-os com um enérgico empurrão.31
“Não sabia o que eles diziam, mas pelo tom e pelas maneiras, compreendi
que pronunciavam irreverências”, depôs o rapaz mais tarde à imprensa.32
Revoltado com o bloqueio, o almirante desferiu uma sonora bofetada no
rosto do inspetor. Cerrutti aproveitou para também atacá-lo, desfechando-lhe um
soco de cima para baixo. O golpe passou de raspão, conseguindo apenas fazer
com que o quepe do policial se deslocasse para a frente de seus olhos. O inspetor,
sem enxergar nada por alguns instantes, disparou um murro cego, mas vigoroso,
em direção aos oponentes. A pancada atingiu em cheio o rosto do embaixador,
que ficou grogue. Recuperado da condição de inferioridade e antes que Bucci
pudesse correr em auxílio do companheiro, o rapaz pegou o embaixador pelas
lapelas do paletó e continuou lhe aplicando uma série de safanões.33
O quiproquó só terminou quando os demais membros da comitiva conseguiram se aproximar e, com a ajuda de um intérprete, explicaram que aqueles
dois senhores desgrenhados eram altos representantes do governo italiano. O
policial, lívido, percebendo o tamanho da complicação na qual se metera, pediu
desculpas a ambos. O almirante retribuiu o gesto, mas o embaixador se negou a
fazer o mesmo. O episódio resultou em um protesto dos estudantes da Faculdade
de Direito de São Paulo, que exigiram o afastamento do embaixador do país e um
pedido formal de desculpas do governo italiano pelo desacato a um representante da polícia brasileira.34
Getúlio precisou entrar em ação. Por causa do revide do inspetor contra
Cerrutti, considerou que o mais recomendável era dar o assunto por encerrado,
após uma rápida reunião de conciliação entre as partes e uma “indicação” à imprensa para que não se escrevesse mais nenhuma linha sobre o caso. O “pedido”
do chefe do Governo Provisório foi prontamente atendido.35
De todo modo, Vittorio Cerrutti não demoraria muito mais tempo no Brasil. Dali a pouco mais de um ano, Mussolini o transferiria para a embaixada italiana na Alemanha, onde o líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães, mais conhecido como Partido Nazista, Adolf Hitler, preparava o terreno para sua ascensão ao poder.36
Embora o Palácio do Catete tenha estendido seus tapetes vermelhos ao fascista Italo Balbo, Getúlio Vargas ainda não deixara claro à opinião pública qual
rumo ideológico pretendia imprimir ao governo após a tomada do poder. Particularmente em um momento histórico no qual o mundo assistia ao surgimento
de governos totalitários à esquerda e à direita, a questão fazia todo sentido. Havia até mesmo quem desconfiasse de que estivesse em andamento um processo
de aproximação com a União Soviética, a poderosa nação surgida cerca de oito
anos antes, em 1922, após o triunfo da Revolução Russa de 1917 e da vitória do
Exército Vermelho sobre o Exército Branco, na guerra civil que consolidou o
domínio dos bolcheviques comandados por Vladímir Lênin. O jornalista e advogado paulista Plínio Barreto, redator-chefe do O Estado de S. Paulo, publicação
que apoiou abertamente a Revolução de 30, apontava uma suposta inclinação
esquerdista do novo governo brasileiro: “Recebidos com entusiasmo, os revolucionários começam, agora, a causar inquietação ao povo”, denunciou Barreto.
“O motivo desta reviravolta, manifesto a todos os olhos, se encontra na crença
que justa ou injustamente se arraigou no espírito público de que estamos condenados a uma ditadura militar de caráter comunista.”37
Entretanto, de Montevidéu, o engenheiro militar Luís Carlos Prestes, no
exílio desde 1927 e às vésperas de ir morar na União Soviética a convite do governo daquele país, tratava de negar qualquer vínculo da Revolução de 30 — e do
governo de Getúlio — com a causa marxista: “No Brasil, como em toda a América Latina, os mistificadores servem-se da palavra revolução para enganar grosseiramente as massas”, acusava Prestes.38
Os que temiam a bolchevização do regime baseavam suas suspeitas no fato
de estarem sendo organizadas por todo o país, com o apoio de membros influentes do governo federal e de pessoas bem próximas a Getúlio, as chamadas Legiões
Revolucionárias, organizações que buscavam atrair o operariado com mensagens
de forte conteúdo social. Os integrantes dessas agremiações utilizavam como
distintivo uma sugestiva braçadeira vermelha. Em São Paulo, o primeiro manifesto dos legionários foi distribuído à população com a ajuda de um aeroplano
que inundou a cidade com panfletos de linguagem ardente. Diziam os folhetos:
Da vitória nas armas, não se conclua que a ação revolucionária tenha chegado ao
seu termo e que os combatentes possam dar por findo o seu trabalho, e que a Nação, milagrosamente, esteja reintegrada no uso e gozo das suas prerrogativas inalienáveis. Povo de São Paulo! Ide hoje para o vosso trabalho, cada um de vós, com
uma faixa vermelha no braço, expressão da certeza de que está disposto a cumprir
sua missão.39
Em simultâneo, seria formada em Belo Horizonte a Legião Mineira, de assumida extração direitista. Em contraste com a braçadeira vermelha, seus afilia
dos adotaram como símbolo a camisa cáqui. Apesar de antagônicos nos aspectos
externos, os métodos dos dois grupos eram de tal modo semelhantes que muitas
vezes chegaram a se confundir. Como traço adicional de afinidade, existia a defesa intransigente que faziam do Governo Provisório. Afinal, ambas as correntes
haviam nascido das fileiras revolucionárias que içaram Getúlio ao Catete.
A Revolução de 30 contara com o apoio e a coalizão dos mais diferentes
matizes ideológicos, que então se sentiam no direito de cobrar sua parte correspondente no governo, impondo à nação os respectivos interesses. Posto no meio
de um fogo cruzado, Getúlio até ali procurava contemporizar, ora afagando uns,
ora agradando outros. A indefinição e a dualidade ajudariam a plasmar a imagem
de um político de poucas palavras e muitos sorrisos, apto a atrair sobre si uma
cordilheira de adjetivos recorrentes, que logo se encravariam em sua biografia
como inevitáveis clichês. Passaria a ser, desde então, a “eterna esfinge”, o “impenetrável”, o “enigmático” Getúlio Vargas.
“O Rio Grande do Sul até aqui era uma floresta africana, que só produzia
leões. O sr. Getúlio é a primeira raposa dos pampas”, definia o jornalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello — o Chatô, dono dos Diários Associados e uma das línguas mais venenosas da imprensa brasileira.40 A imagem
do “leão” era uma referência ao passado belicoso do povo gaúcho, historicamente envolvido com guerras de fronteiras e conflitos internos. A metáfora política
da “raposa”, bicho manhoso e astuto, ficaria para sempre associada à imagem de
Getúlio.
“Maquiavel é pinto para o sr. Getúlio Vargas”, reforçava Chatô.41
Só havia uma única certeza àquela altura dos acontecimentos. A despeito do
viés ideológico que seu governo viesse a tomar, entregando-se aos braços do
fascismo ou às mãos dos comunistas, Getúlio estava disposto a fazer um governo
forte, sem nenhuma consideração aos princípios da representatividade parlamentar e do liberalismo econômico — valores que estavam em xeque desde que a
crise da bolsa de Wall Street empurrara os Estados Unidos para o abismo da
Grande Depressão. O desemprego em massa, o fechamento de bancos, as falências e os suicídios em série abalavam naquele instante a crença na democracia
liberal e no Estado mínimo em todo o Ocidente. Em seu lugar, surgiram as propostas “regeneradoras” de regimes centralizadores, com forte ingerência do Estado sobre a economia e a tutela vigilante sobre a vida privada dos indivíduos.
Desse desencanto político radical, por diferentes caminhos e em diferentes con
junturas, brotaria o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o franquismo na
Espanha, o salazarismo em Portugal e, em certa medida, com suas especificidades, o getulismo no Brasil.42
“Deem-me a ordem que eu lhes darei boa administração”, dizia Getúlio.43
Porém, nem propriamente fascista, muito menos comunista, ele inauguraria
um autoritarismo todo particular, temperado por uma imagem pública bonachona, de um chefe de Estado capaz de sair do palácio sem nenhum guarda-costas e,
como um cidadão comum, ir ao dentista de táxi, abdicando da prerrogativa do
carro oficial. Foi exatamente o que Getúlio fez na manhã de 14 de novembro de
1930, apenas onze dias depois de tomar posse como chefe do Governo Provisório,
ao visitar o odontólogo Bello R. Brandão, cujo escritório ficava à rua São José,
nos altos do Café Rio Branco, ponto de encontro boêmio, frequentado por artistas e gente ligada ao futebol. Os habitués do estabelecimento ficaram surpresos
com aquele novo dirigente da nação que caminhava de terno de linho branco e
sapatos bicolores entre os comuns dos mortais, deixando atrás de si, como um
rastro característico, as baforadas do inseparável charuto.44
A respeito da sem-cerimônia de Getúlio, uma saborosa marchinha popular,
de autoria do irreverente Lamartine Babo e lançada naquele janeiro de 1931,
sintetizava com perspicácia a imagem popular construída e desfrutada pelo novo
governante brasileiro:
Só mesmo com a revolução,
Graças ao rádio e o “parabelo”,
Nós vamos ter transformação
Neste Brasil verde e amarelo.
G-e — Ge
T-u — tu
L-i-o — lio.
Getúlio!
Certa menina do Encantado
Cujo papai foi senador
Ao ver o povo de encarnado
Sem se pintar, mudou de cor.45
Estava tudo lá, na letra da marchinha que Almirante gravou acompanhado
pela Orquestra Guanabara e o Bando dos Tangarás: a luta armada, a habilidade
de Getúlio para lidar com os novos meios de comunicação, o apelo nacionalista
às cores da bandeira brasileira, a capacidade de atrair e aceitar adesistas de undécima hora. O refrão irresistivelmente pegajoso, ao soletrar as letras de seu nome
à maneira infantil, conferia uma intimidade lúdica e uma identificação afetuosa
entre o líder carismático e o povo. O título da música, “Gê-Gê”, também referida
no selo do disco como “Seu Getúlio”, quebrava a solenidade do cargo, cunhava
um apelido e o aproximava ainda mais dos milhares de brasileiros que ouviam a
canção pelas ondas do rádio.
Por outro lado, Getúlio governava com a Constituição suspensa, um tribunal revolucionário arrolando dezenas de “inimigos do novo regime”, o Judiciário
cerceado e o Congresso arbitrariamente fechado. A demonização da política e
dos políticos profissionais seria uma das marcas mais fortes do Governo Provisório — que logo se revelaria não tão provisório assim. A tese da “morte da política” seria explorada à exaustão não só pelos discursos oficiais de Getúlio, mas
também na própria imprensa, por meio de charges que faziam um “humor a
favor”, ao retratar essa mesma política sempre como uma velha coroca, com
traços de megera.
Na revista satírica Careta, a imagem de uma bruxa dependurada na forca e
em cujos trajes se lia a expressão “política profissional” falava por si.46 Na edição
seguinte, a mesma publicação traria na capa, em cores, a ilustração da fachada do
Congresso Nacional, onde se via afixada uma enorme placa de “aluga-se”. Pelas
escadarias, o estereótipo do político, de fraque e cartola, mas com a roupa em
frangalhos e o olhar macambúzio, indicava o propalado declínio da classe. O
“Jeca”, representação tradicional que a revista fazia do povo, aparecia em trajes
revolucionários e exclamava, apontando para a cena: “Eis a República dos meus
sonhos!”.47
Por trás da animosidade pública ao parlamento, inconsciente ou não, a tentação totalitária está sempre à espreita. Getúlio soube explorar a atávica indignação popular contra os congressistas e direcioná-la em seu proveito pessoal. Ele
próprio sendo um político de carreira — ex-deputado estadual, ex-deputado federal, ex-ministro da Justiça, ex-governante do Rio Grande do Sul —, apresentava-se como alguém que extirpara definitivamente a política da vida nacional, como
se faz a um câncer, em nome da moralização dos costumes e em prol da eficiência administrativa.
Ao mesmo tempo, já nos primeiros decretos assinados como novo dirigente
da nação, Getúlio estabeleceu a anistia aos exilados e presos políticos perseguidos
pelos governos anteriores, além de criar o Ministério do Trabalho e o da Educação
e Saúde. Pela primeira vez no Brasil, um presidente reconhecia a questão social,
em vez de tratá-la como mero caso de polícia. Ao implementar uma inédita política trabalhista, Getúlio estabelecia novas perspectivas em um país que, apenas
quatro décadas antes — período relativamente curto quando encarado em uma
perspectiva histórica —, vivia sob o escândalo repugnante da escravidão. Se o
trabalhismo inaugurado por ele tinha como objetivo reprimir os esforços de organização independente do operariado urbano e submetê-lo ao controle do estado, só os próximos anos diriam.
Mais instantânea foi sua conivência com a repressão da polícia do Distrito
Federal à “Marcha da Fome”, programada para 19 de janeiro de 1931, quando
Italo Balbo ainda se encontrava em terras cariocas. A manifestação, anunciada em
cartazes pregados pelos muros e postes do Rio, foi precedida de uma ação policial
preventiva, que apreendeu boletins de propaganda e arrancou da cama, em plena
madrugada, operários e organizadores, para depois levá-los à cadeia, onde foram
postos em incomunicabilidade e ameaçados de degredo na ilha de Fernando de
Noronha.
“A intenção única e pré-estudada da manifestação consistia em perturbar a
ordem, tanto assim que os cartazes eram impressos em letras vermelhas”, justificou a nota oficial da polícia distribuída à imprensa.48
Entre uma contradição e outra, Getúlio iniciava ali a mais longa trajetória
de um único indivíduo no comando da república brasileira. Ao todo, contados os
dois períodos à frente do poder, passaria dezoito anos e meio no Catete. Só morto o abandonaria, apontando contra o próprio peito o cano frio de um Colt calibre 32 com cabo de madrepérola. Tempo e gestos suficientes para fazer dele o
personagem mais importante, mais dramático e mais controvertido da história
política nacional.
Ninguém como Getúlio despertou tanta paixão e tanto ódio. Quase sessenta anos após sua morte, seu fantasma e as representações coletivas em torno de
sua figura ainda nos rondam, provocando contestações, desafiando exegetas, contrapondo analistas. Para muitos, ele deixou uma herança de inestimáveis realizações a serviço da soberania do país e em nome do engrandecimento de seu povo.
Para outros, transmitiu um legado maldito, que “atravanca o presente e retarda
o avanço da sociedade brasileira”, conforme afirmou o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, ao tomar posse da cadeira presidencial, em 1o de janeiro de
1995. O sucessor de FHC, Luiz Inácio Lula da Silva, pensaria de modo exatamente
oposto. Lula, que jamais escondeu sua admiração por Getúlio, chegou a copiar-lhe uma imagem clássica, quando exibiu para os fotógrafos a mão tisnada de
petróleo, do mesmo modo que o gaúcho fizera em 1952, quando da campanha
pela criação da Petrobras. Em setembro de 2010, o mesmo Lula assinou a lei
12 326, que oficialmente inscreveu o nome de Getúlio Dornelles Vargas no Livro
dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia,
em Brasília.
Bem antes de tudo isso, no longínquo 3 de dezembro de 1930, exatamente
um mês após Getúlio ter assumido no Rio de Janeiro a chefia do Governo Provisório, um senhor de bigodes muito brancos escreveu-lhe uma carta, diretamente
de São Borja, interior do Rio Grande do Sul. Pela dificuldade de comunicação à
época, a mensagem só encontrou o destinatário em meados de janeiro, quando
ele já estava envolto na intrincada tarefa de escolher, entre os muitos áulicos que
o rodeavam, os homens que o acompanhariam ou não no governo. Havia, no
meio destes, esquerdistas, direitistas, liberais, civis, militares, revolucionários sinceros, descarados oportunistas.
“Presumo que sairás daí velho, devido ao excessivo trabalho intelectual dia
e noite. Olha, faz como o Marechal de Ferro [Floriano Peixoto]: confia em todos,
desconfiando igualmente”, dizia a tal carta.49
A assinatura era de um general quase nonagenário, de nome Manuel do
Nascimento Vargas — o pai de Getúlio, eterno florianista, veterano da Guerra do
Paraguai e de muitas outras batalhas travadas nas coxilhas gaúchas.
Getúlio, ao longo de toda a vida, jamais ousara desobedecer a uma ordem
paterna. Não seria daquela vez que iria contrariar o velho general Vargas.