O Sete Orelhas ou a história das perseguições aos descendentes dos colonos
de origem flamenga no Brasil
As perseguições de que foram vítimas muitas famílias brasileiras entre os séculos
XIX e XX são evidenciadas neste livro a partir da releitura de mais de quarenta obras
publicadas no Brasil e na Europa entre os anos de 1836 e 2006. Amparando-se na
transcrição de livros e jornais, esta obra acaba por resgatar a história dos colonos do
Brasil século XVIII ao mostrar que a partir do século XIX as famílias descendentes
desses colonos acabaram sendo vítimas das perseguições levadas a efeito através do
personagem 'Sete Orelhas'.
Da seguinte maneira tiveram curso essas perseguições. É sabido que o Brasil foi
colonizado pelos portugueses a partir do ano de 1500. Passados pouco mais de trezentos
anos, em 1822, a Colônia foi transformada em nação independente com o nome de
Império do Brasil. Pelo que se observa do livro “O Sete Orelhas ou a história das
perseguições aos descendentes dos colonos de origem flamenga no Brasil”, o processo
político que levou à criação do Brasil independente fez surgir entre os políticos da
nascente nação uma pequena elite constituída basicamente por pessoas cujo objetivo
seria apenas a permanência no poder. Para levar adiante seu projeto de poder, em
meados do século XIX esse pequeno grupo de políticos deu início às perseguições ao
maior grupo social então existente no Brasil, as perseguições às famílias descendentes
de colonos originários do arquipélago dos Açores.
Formado por nove ilhas esparramadas num raio de 600 quilômetros, o arquipélago
dos Açores foi descoberto pelos portugueses em meados do século XV. Para levar a
efeito a colonização das ilhas situadas no centro do arquipélago, que se encontram
dispersas num raio de 150 quilômetros, os portugueses se valeram dos ancestrais desses
colonos do Brasil do século XVIII. A colonização flamenga dos Açores ocorreu por
interferência de D. Isabel, a condessa de Flandres e irmã do Rei D. Manoel, a qual
conseguiu que flamengos da região de Bruges partissem em longa viagem para
ocuparem as terras das ilhas do Faial, da Graciosa, do Pico, de São Jorge e Terceira.
Passados cerca de 200 anos, descendentes desses colonos dos Açores iniciaram nova
colonização, deixando para traz a ilha do Faial e as demais ilhas açorianas,
empreendendo grande viagem marítima para serem colonos nas terras dos caminhos do
ouro do Brasil colônia.
Foi assim que a maioria desses colonos acabaram por se estabelecer na região das
nascentes do rio Grande, hoje sul de Minas Gerais, região por onde passavam vários
caminhos antigos do Brasil Colônia. Situada na divisa com a montanhosa região onde
havia intensa exploração de ouro, a região das nascentes do rio Grande, com seus
morros suaves cobertos de capim, rapidamente tornou-se uma próspera região
fornecedora de alimentos para as regiões auríferas. No início do século XIX, em
decorrência de repetidas levas de colonos que haviam descido pelo curso do rio Grande,
os descendentes das famílias de origem flamenga habitavam a região que mais se
desenvolvia no Brasil, a região das terras desbravadas no curso do rio Grande, as terras
que levavam ao interior de São Paulo e Minas Gerais.
A origem flamenga deste grupo social vem esclarecer a intensa participação de D.
Pedro II nas perseguições, o que se observa diversas vezes no livro “O Sete Orelhas ou
a história das perseguições aos descendentes dos colonos de origem flamenga no
Brasil”. Ao que parece, uma antiga animosidade entre franceses e flamengos, que foi
alimentada pela nobreza francesa desde o dia 11 de julho de 1302, quando houve a
derrota francesa na Batalha das Esporas Douradas, com a morte de cerca de 800 nobres
franceses, teria levado o imperador D. Pedro II - um nobre simpático aos sentimentos da
nobreza francesa - a se tornar antipático ao sentimento que unia aquele grupo social de
origem flamenga. Esta afinidade teria levado D. Pedro II a se unir àquele pequeno grupo
de políticos e ajudá-los a levar adiante as perseguições aos descendentes dos colonos de
origem flamenga no Brasil.
As publicações que deixaram pistas de que estava em curso as perseguições ao
maior grupo social do Brasil, em um primeiro momento trouxeram o personagem 'Sete
Orelhas'. Em um segundo momento, as perseguições trouxeram a público obra contendo
o nome Januário Garcia. E, terminando seu processo inicial, em um terceiro momento as
perseguições trouxeram o nome Januário Garcia Leal
De fato, a primeira publicação sobre o personagem 'Sete Orelhas' surgiu em uma
obra escrita em inglês, publicada em Londres em 1836, o livro "The History of Brazil",
de John Armitage. Segundo essa versão para o caso das sete orelhas, um moço de
Sorocaba teria seduzido uma sua patrícia de Itu, sendo por isso morto por sete primos da
moça. Por vingança, o irmão do falecido teria levado à morte os sete assassinos, dos
quais extirpou sete orelhas, fazendo com elas um colar, daí resultando o apelido com
que ficou conhecido, ‘o Sete Orelhas’.
Transcorridos sete anos, em 1843 pela primeira vez houve a publicação da estória
do personagem Sete Orelhas em português. Naquele ano o escritor carioca Joaquim
Norberto de Sousa Silva publicou no Rio de Janeiro a obra “Januário Garcia ou As Sete
Orelhas”. Portanto, foi por obra deste autor que o nome de família Garcia acabou
associado ao personagem Sete Orelhas. Na versão de Joaquim Norberto de Sousa Silva
é a morte de um filho de Januário Garcia, esfolado vivo por sete capangas, que provoca
a cruel vingança perpetrada por 'Sete Orelhas'.
Passados dois anos, em 1845, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, um
estudante da Academia de Direito de São Paulo, publicou a peça de teatro “Januário
Garcia, o Sete Orelhas”. Este autor inovou no caso das sete orelhas ao chamar o cruel
assassino pelo nome de Januário Garcia Leal. Além disso, Martim Francisco Ribeiro de
Andrada inseriu no caso das sete orelhas o nome de família ‘da Silva’, o nome de
família atribuído aos sete assassinos que acabaram mortos na cruel vingança de 'Sete
Orelhas'. Em outra inovação, a causa das desavenças passa a ser uma disputa de terras
envolvendo as famílias 'Garcia Leal' e 'da Silva'. A primeira encenação da peça foi no
teatro da Casa da Ópera, em São Paulo, em 1846, em meio ao já tradicional concurso de
alunos da Academia de Direito, quando da primeira visita a cidade de São Paulo de SM
Imperial D. Pedro II.
Sobre o nome atribuído ao personagem Sete Orelhas por Martim Francisco
Ribeiro de Andrada, o nome Januário Garcia Leal, sabe-se que este foi o nome de um
habitante do Brasil Colônia. O colono Januário Garcia Leal nasceu na povoação do
Jacuí, em Minas Gerais, no ano de 1761. Ele viveu entre Minas Gerais e São Paulo do
final do século XVIII ao começo do século XIX. Januário Garcia Leal foi um dos filhos
do colono Pedro Garcia Leal, e neto do colono João Garcia Luís, nascido na ilha do
Faial em 1679.
Mas, foi o nome de família atribuído ao personagem 'Sete Orelhas' por Joaquim
Norberto de Sousa Silva, em 1843, o nome de família 'Garcia', que foi o maior objetivo
das perseguições. Por conta disso, neste livro foi desenvolvida uma extensa genealogia
tendo como tronco o nome de família Garcia. A genealogia se inicia com sete pessoas,
cinco delas transformadas em colonos no Brasil, todas nascidas na ilha do Faial entre os
anos de 1679 e 1706. São nomes dessa genealogia os colonos João Garcia Luis (1679 1736), Diogo Garcia (1690 - 1762), Antônio Garcia (1692 - 1768), João Garcia Duarte
(1700 - 1771) e José Garcia da Costa (1706 - (?)). A árvore genealógica formada
demonstra que foi nas nascentes do rio Grande que a partir de meados do século XVIII
surgiram várias famílias no Brasil colônia. Com o passar do tempo, muitos membros
dessas famílias unidas por laços sócio-culturais acabaram por descer o curso do rio
Grande, espalhando-se pelas terras que margeiam este rio, chegando ainda no início do
século XIX a Mato Grosso e Goiás.
Sobre o nome de família atribuído em 1845 aos sete assassinos que teriam sido
mortos na vingança de Januário Garcia, o 'Sete Orelhas', o nome de família ‘da Silva’,
observa-se na genealogia que este é o nome que identifica uma das famílias formadas a
partir dos colonos Garcia. Trata-se de uma descendência que surgiu a partir de 1760 no
antigo Turvo, hoje Andrelândia, Minas Gerais, do casamento de três colonos que
assinavam o nome de família 'da Silva', parentes entre si, uma mulher e dois homens,
com duas filhas e um filho do colono José Garcia da Costa, um dos nomes troncos da
genealogia Garcia.
A presença desta identidade sociocultural esparramada por muitas famílias em
uma vasta região do interior do Brasil Colônia, vem esclarecer porque em meados do
século XIX os perseguidores deram ao personagem 'Sete Orelhas' o nome de família
Garcia. Buscavam os perseguidores a desagregação daquele grupo social mediante a
introdução de um sentimento de repulsa ao nome que os unia, o nome de família
‘Garcia’.
Na compilação feita no livro trechos de muitas obras escritas em um longo
período de tempo são transcritas, o que torna possível fazer um contraste das obras.
Assim, é possível identificar as obras que começaram as perseguições, com seu inicio
em 1836, é possível também identificar obras que reagiram a essas perseguições. Muitas
das obras que reagiram às perseguições desdenhavam de autores de publicações que
sustentavam a existência do personagem ‘Sete Orelhas’. Este é o caso do folhetim
publicado na edição de 26 de maio de 1867 do jornal Correio Mercantil, do Rio de
Janeiro. Então, sob o pseudônimo de ‘Osiris’, no folhetim o jornalista Joaquim José de
França Júnior contesta o escritor da peça de teatro “Januário Garcia, o ‘Sete Orelhas’”, o
então Ministro da Justiça Martim Francisco Ribeiro de Andrada. 'Osiris' alude que
Martim Francisco teria sido o criador do personagem ‘Sete Orelhas’. Entre ataques com
frases como ‘folhinha de ano findo’, ‘sapucaia sem cocos’, Joaquim José de França
Junior sugere que Martim Francisco Ribeiro de Andrada teria tido a seguinte inspiração
ao compor sua peça de teatro: ‘resolvi esboçar, não o quadro da miséria de uma
família, mas o croquis da desgraça de um povo’.
Na sequencia das obras que sustentaram a existência do personagem ‘Sete
Orelhas’ tem-se como exemplo o livro "A Província de São Paulo", de Manoel Eufrásio
de Azevedo Marques, de 1876. Esta foi a primeira obra publicada após o surgimento do
folhetim de França Júnior, em 1867. Com ME de Azevedo Marques pela primeira vez
surgiu a 'notícia' da descoberta de uma fonte primária contendo o nome de Januário
Garcia Leal, uma ordem régia datada de 1803, que tratava de crimes envolvendo o nome
Januário Garcia Leal ‘na paragem de Santo Antônio do Amparo’, em Minas Gerais.
Outras fonte primárias para o caso das sete orelhas surgiram no livro "Jurisdição dos
Capitães, a história de Januário Garcia Leal e seu bando", de 2003, e no artigo "Januário
Garcia Leal em Santa Catarina - O Temido 'Sete Orelhas' - Reviravolta na história", de
2006, ambas obras do escritor mineiro Marcos Paulo de Souza Miranda. Nesta última
obra o autor informou a localização do suposto inventário de Januário Garcia Leal em
Lages, Santa Catarina.
A falsificação de documentos manuscritos no caso das sete orelhas é evidenciada
contrapondo-se as supostas fontes primárias com as obras compiladas. Por exemplo, na
peça de teatro escrita em 1845 e encenada em 1846, Martim Francisco Ribeiro de
Andrada inseriu no caso das sete orelhas os nomes de família ‘Garcia Leal’ e ‘da Silva’,
dois nomes de família que fazem parte da genealogia desenvolvida a partir dos colonos
Garcia originários da ilha do Faial. Passados vinte e um anos da estreia da peça de
teatro, no ano de 1867, o jornalista Joaquim José de França Júnior publicou um folhetim
denunciando a inspiração de Martim Francisco Ribeiro de Andrada ao compor sua peça
de teatro: ’...resolvi esboçar, não o quadro da miséria de uma família, mas o croquis da
desgraça de um povo’. Por fim, quando se comemorou trinta anos da retumbante estreia
da peça no teatro “Januário Garcia, o Sete Orelhas”, encenada em 1846 no teatro da
Casa da Ópera, no ano de 1876 o escritor M. E. de Azevedo Marques publicou a notícia
da 'localização' de uma ordem régia de 1803 envolvendo o nome Januário Garcia Leal
em crimes que teriam ocorrido em Minas Gerais.
E neste pêndulo que se observa na compilação de obras sobre o caso das sete
orelhas tem-se também uma gravura do político José Bonifácio de Andrada e Silva,
ainda jovem, que apareceu em 1836 no livro "The History of Brazil", de John Armitage,
a obra escrita em inglês que trouxe a primeira notícia do cruel assassino 'Sete Orelhas’.
De outro lado, tem-se o livro "Os Andradas na história do Brasil", de autoria do
historiador mineiro João Dornas Filho, obra publicada em 1936, ou seja, exatamente ao
se completarem cem anos da publicação do livro “The History of Brazil”. Quando se
comemorou o centenário da publicação do livro de John Armitage, em seu livro “Os
Andradas na história do Brasil” o escritor mineiro João Dornas Filho trouxe uma
abordagem extremamente desairosa dos políticos da família Andrada, dentre os quais
José Bonifácio de Andrada e Silva.
Nestes embates que se observa nas obras compiladas no livro “O Sete Orelhas ou
a história das perseguições aos descendentes dos colonos de origem flamenga no
Brasil” se constata que foi a ambição pela perpetuação no poder que fez surgir
condições para que por cerca de 170 anos ocorresse a publicação de obras envolvendo o
personagem ‘Sete Orelhas’. Em busca da supremacia política, um pequeno grupo que se
instalou na política brasileira deu início a uma estratégia para perpetuar-se no poder. E
assim esse pequeno grupo serviu-se do personagem 'Sete Orelhas' para fomentar o fim
da identidade daquele povo espalhado pelo interior do Brasil.
As perseguições a um grupo de famílias feita por uma minoria articulada, por uma
elite formada nos subterrâneos da sociedade brasileira, levaram ao fim da coesão social
de um povo, enfraquecendo assim o sentimento de pátria que surgia no Brasil em
meados do século XIX. Conforme se observa na genealogia dos colonos Garcia, são as
seguintes as famílias que surgiram pelo interior do Brasil Colônia a partir do século
XVIII: de Almeida, Andrade, de Arantes, de Azevedo, de Carvalho, da Costa,
Fagundes, Fernandes, de Figueiredo, Fonseca, Garcia, Garcia Leal, Guimarães,
Junqueira, Landin, Martins, Matos, Mendonça, Nogueira, Pereira, Salgado, da Silva, de
Souza, Ribeiro, Teixeira, Vargas e Xavier.
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