Pedro Afonso
SERGIO ALBERTO FELDMAN1
Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO: Pedro Afonso é um rabino judeu de Huesca (Aragão) que viveu entre meados do século XI (c.
1062) e a primeira metade do século XII (c. 1140). Optou por se converter ao Cristianismo e ao que tudo
indica foi batizado pelo rei de Aragão, Afonso o Batalhador, de quem recebeu o nome, além do prenome
de Pedro, o santo do dia. Autor de ampla obra e polemista que alterou radicalmente os termos do debate
entre o Judaísmo e o Cristianismo, no século XII. Em primeiro lugar revelou o papel da lei oral judaica,
o assim denominado Talmude, que a seu ver distanciava os judeus da revelação comum ás duas religiões,
que seria a autoridade (auctoritas) e que era a base da polêmica até então; em segundo lugar, à sua maneira,
trouxe aportes pretensamente científicos e racionalistas embasados na filosofia e nas ciências da época
(ratio) para a polêmica; e num terceiro aporte refletia sobre a efetiva legalidade da presença judaica nos
domínios da Cristandade, que se baseava nos termos da tolerância apregoada por Agostinho de Hipona que
vislumbrava num futuro próximo uma função dos judeus na escatologia cristã, pois estes se converteriam
no final dos tempos, no Milênio. Assim colocava os judeus contemporâneos como uma espécie de hereges,
que se distanciaram da revelação. Pedro Afonso é um marco na agudização da condição judaica no ocidente
medieval.
Palavras-chave: Pedro Afonso. Polêmica judaico cristã. Talmude. Auctoritas X Ratio.
ABSTRACT: Pedro Afonso is a Jewish rabbi from Huesca (Aragon) who lived between the middle of the
11th century (c. 1062) and the first half of the 12th century (c. 1140). He choose to convert to Christianity
and it seems that he was baptized by the king of Aragon, Afonso the Batalhador, from whom he received
the name, in addition to the first name of Peter, the saint of the day. Author of a wide-ranging work and
polemicist who radically changed the terms of the debate between Judaism and Christianity in the 12th
century. Firstly, it revealed the role of Jewish oral law, the so-called Talmud, which in its view distanced
the Jews from the revelation common to both religions, which would be the authority (auctoritas) and
which was the basis of the controversy until then; secondly, in his own way, he brought allegedly scientific
and rationalist contributions based on philosophy and the sciences of the time (ratio) to the controversy;
and in a third contribution he reflected on the effective legality of the Jewish presence in the domains of
Christianity, which was based on the terms of tolerance proclaimed by Augustine of Hippo who envisioned
in the near future a role of the Jews in Christian eschatology, as they would be converted at the end of time ,
in the Millennium. Thus he placed contemporary Jews as a kind of heretics, who distanced themselves from
revelation. Pedro Afonso is a milestone in the worsening of the Jewish condition in the medieval West.
Keywords: Pedro Alfonso. Christian Jewish controversy. Talmud. Auctoritas X Ratio.
1 Possui graduação em História pela Tel Aviv University. Professor associado 4 da UFES. Pesquisa História
Ibérica Medieval e História Judaica, atuando principalmente nos seguintes temas: antiguidade tardia, cristianismo e judaísmo, visigodos, antissemitismo e Isidoro de Sevilha. E-mail: serfeldpr@yahoo.com.br
Contexto e interações do momento
Pedro Afonso2 nasceu em Huesca (Aragão/Espanha atual) 3 supostamente em 1062 (?)
e acredita-se que veio a morrer em 1140. Há muitas dúvidas sobre datas e locais, o que não
invalida a importância dele nas interações entre as três religiões monoteístas na Hispânia
medieval. Nasceu e atingiu a idade adulta como um judeu obtendo a estatura de autoridade
rabínica, sábio, astrólogo e estudioso das ciências da época. Foi inicialmente o rabino Moisés
Sefaradi. 4 As dúvidas foram analisadas por diversos autores e nos eximiremos desta discussão.
A região em que o encontramos ao se converter, ou seja, Aragão, estava sob o governo
muçulmano, da dinastia ibn Zayd. A cidade de Zaragoza (Saragoça) a mais importante de
Aragão e que era a capital da taifa muçulmana foi conquistada pelo rei Afonso o Batalhador5
em 1118. Aragão e a Catalunha eram um centro de intensas trocas culturais entre as três
religiões. Esta interação foi amplamente analisada pela historiografia que alternou percepções
e descrições destas relações: termos como “convivência” fazem oposição ao termo “reconquista”.
Acreditamos que tenha havido, conflitos e tensões e simultaneamente trocas culturais.
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Esta interação sem dúvida, exerceu influência na aparição ou no estabelecimento
temporário na região, de sábios judeus do porte dos tudelanos Abraham ibn Ezra (10891164), Iehudá ha-Leví (c. 1070-c. 1161), o barcelonês Abraham bar Hiyya (1065-1138),
Iehudá ibn Tibbón (1120-1190) que, nascido em Granada, transita pela região e ao final se
estabelece na Provença (sul da França atual) estabelecendo ai um centro de tradução de obras
judaicas do árabe para o hebraico. O trânsito de ideias e saberes é intenso, e sem dúvida há
um fluxo de sul a norte. Este fluxo terá também como referência a denominada escola de
tradutores de Toledo, que é um tema analisado por diversos autores, desde os anos noventa
do século passado ( JACQUART, 1992).
Percebemos nos estudos recentes que a riqueza cultural de Al Andaluz ou Sefarad se
localiza, seja no diálogo, seja no antagonismo das três culturas. Uma espécie de circularidade
2 A guisa de esclarecimento. O autor analisado mereceria um estudo, mais amplo e detalhado, mas tendo
em vista a inexistência de estudos no Brasil sobre seu aporte na polêmica, optamos por delinear um modesto
marco inicial de estudos de seu papel na polemica cristã judaica.
3 Sobre seu nascimento e sobre sua conversão, não há consenso. Alguns autores consideram, sem conseguir
provar de forma alguma que ele era originário da parte sul da península Ibérica, que se considera como Al
Andaluz, ou seja, da parte muçulmana da península.
4 Sefarad se refere a região da península ibérica ou Espanha. Sefaradi seria um judeu originário da Hispânia.
O termo Sefarad é encontrado no livro profético de Obadias
5 Alfonso el Batallador ou Afonso I de Aragão
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de ideias, em que um grupo influencia o outro. Considero insuficiente a noção dos anos
noventa de que havia convivência inter-religiosa ou intercultural. A tensão e o desafio são
estimulantes à reflexão e geram ação e reação. As críticas demandam resposta, defesa e contra
ataque. A polêmica é um contínuo vai e vem. Identidades demandam, fortalecimento interno
e confronto com a alteridade (LOWNEY, 2006).
Os espaços de tangenciamento entre as três religiões são espaços de intensa e aguda
polêmica. Como nos aponta Lasker (1996) há lado a lado trocas e conflitos que são
agudizados por que nos espaços dominados pelo Islã, há críticas ao Cristianismo que nunca
seriam enunciadas no ocidente medieval dominado pela Igreja. Al Andaluz traz novas
percepções religiosas e filosóficas entre as quais questionamentos sobre temas cristãos, como
a messianidade ou a essência divina de Jesus, a Trindade e a concepção virginal de Maria
entre outras. E no século XII, em que
heresias dualistas como o catarismo albigense e
evangélicas como os valdenses ameaçam a unidade cristã, as críticas judaicas e muçulmanas
terão de ser enfrentadas e um contra-ataque clerical se faz necessário.
O Califado de Córdoba já havia sido extinguido (1031) e os espaços da península eram
partilhados por diversos reinos cristãos (ex. Aragão, Catalunha, Leão e Castela) e diversas 139
taifas com governantes islâmicos, a exemplo da taifa de Zaragoza tomada por Afonso o
Batalhador em 1118, apesar da resistência dos almorávidas.6 Há muitas interações entre
elementos cultos e refinados das três religiões. Traduções de obras são feitas sob patrocínio de
governantes. Pedro Afonso é apenas mais um destes sábios, que conhecem diversas línguas,
leem e traduzem obras, redigem tratados de astronomia, medicina, filosofia e religião.
O que o diferencia? Trata-se de um rabino de amplos conhecimentos judaicos e filosóficos
que rompe com a sua tradição e transita para o outro lado da polêmica se convertendo e se
tornando uma autoridade no sentido amplo geral e irrestrito: uma referência nas polêmicas
cristãs-judaicas que terá seus conceitos e reflexões servindo de apoio até pelo menos o
século XV. Este modelo de apostasia judaica voluntária,7 na direção do Cristianismo, não
era comum, ainda que nos séculos seguintes teremos muitos casos, como exemplifica Jeremy
Cohen (1987).
6 As taifas sentindo-se ameaçadas pelos reinos cristãos pedirão ajuda aos reinos marroquinos (ou maghrebinos) ocorrendo intervenção inicialmente dos almorávidas e no final do século XII, dos almôades.
7 Há muito trânsito de judeus para o Cristianismo sob o manto das Cruzadas, mas a maioria dos casos é sob
o signo da conversão forçada e do medo. Isto nos espaços denominados Ashkenaz , que seriam o império
germânico e o norte da França
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Alguns autores nos mostram que o pensamento de Pedro Afonso e sua forma de
relacionar o Judaísmo de seu tempo, não mais com a Bíblia, mas sim com o rabinismo expresso
no Talmude (lei oral), e em específico o foco nos trechos da Agadá, repletos de lendas e de
alegorias que facilmente podem ser refutadas como pouco ou nada racionais é uma guinada
aguda na polêmica. Essa denúncia gera uma radical reviravolta nas relações da Igreja e seus
pensadores, com a minoria tolerada. Os judeus tendem agora a ser percebidos como uma
espécie de heresia, saindo da posição de religião legal (religio licita) que fora herdada da
legislação imperial romana, e reelaborada por Agostinho, para a condição de uma perigosa
contaminação que ameaçava a unidade cristã. Vejamos alguns autores e suas análises.
Jeremy Cohen (1987, p. 25) relata que Pedro Afonso fundamenta suas críticas com
exemplo de homilias talmúdicas ou agadot8 nas quais Deus porta filactérios (tefilin), se
lamenta e literalmente ‘chora’ por seu povo disperso e sofredor. Cohen parafraseia Afonso
e cita trecho em que este conclui que: “[...] vocês (judeus) estabelecem não pela razão
(ratione), nem pela evidencia escritural (auctoritate legis), mas apenas através de vossa própria
disposição” (tradução nossa9). E assim definindo, seja a irracionalidade da fé judaica, seja
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o seu embasamento no rabinismo que não se baseia na autoridade da lei, leia-se revelação
divina. Os termos usados são de certa forma novos, mesmo se usados há séculos, pois a forma
de utilizá-los é renovada.
Tolan (2008, p. 194) nos faz algumas referências a nova percepção do Judaísmo (e do
Islã também). Numa diz que: “[...] Afonso foca no Talmude e no Alcorão como pseudo
revelações ilícitas que formam as bases de duas doutrinas heréticas”. Noutra diz que “[...] em
particular seu ataque a irracionalidade do Talmude se tornou o esteio da antipatia antijudaica”
(leia-se: nos autores cristãos posteriores).
Resnick (introdução da sua tradução, 2006, p. 8) considera que a partir de Pedro Afonso
seguem presentes na polêmica antijudaica, tanto o modelo da autoridade embasado nos textos
da revelação bíblica, quanto aparecem críticas inspiradas na pretensa irracionalidade das
posições judaicas, mas enfatiza que cresce muito a associação do Judaísmo com o Talmude, e
as criticas seja a sua falta de autoridade, seja a racionalidade. Ele afirma: “Ao mesmo tempo,
ainda que não sempre nos mesmos textos, nós começamos a ver acusações dirigidas ao
8 Plural de Agadá, que seriam as lendas talmúdicas.
9 As traduções do inglês e do castelhano são todas de nossa autoria, portanto não diremos novamente que
se trata de tradução nossa. Podemos colocar a abreviação: TN. Textos latinos foram traduzidos por Resnick,
Ballestin Serrano e Ducay.
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Talmude (e mais precisamente contra a literatura judaica pós bíblica) como fonte do erro
judaico [...]”.
A conversão de Rabi Moisés
Rabi Moisés (ou Moshé) não aparece em obras do início do século XII, salvo em sua
própria narrativa até a sua conversão. Portanto pouco sabemos dele, até que ele é convertido
na catedral de Huesca em c. 1110.10 Diz Ballestin Serrano (1993, p. 30): “No título I do
Dialogo, fala do batismo no dia de São Pedro de 1106, que foi oficiado pelo bispo Estevão
(1099 -1130), na catedral de Huesca. Justifica seu novo nome cristão, em razão de celebrarse o dia de São Pedro e de ser apadrinhado pelo rei Afonso I”. Mas pairam dúvidas sobre a
precisão dos detalhes.
Há autores como Carmen Cardelle de Hartman (2012) que consideram duvidoso que
seu padrinho seja o rei de Aragão, e supõe que possa ser Afonso VI de Leão, pois no texto
do Diálogo descreve o padrinho como imperador da Espanha, título que o rei aragonês
nunca portou e o leonês sim. O texto se refere ao padrinho como Alfonsus gloriosus Hispaniae
Imperator, e este seria o leonês. Mas adverte que a duvida tem fundamento pois como a data 141
é obscura, o rei aragonês teve um casamento breve e conturbado com a herdeira do leonês, a
rainha Urraca. Poderia se auto considerar como imperador?
O que fica patente é que a conversão de um rabino era um fato, um tanto quanto inédito
e se prestava para que um rei, seja qual deles for, se colocar como padrinho, e ao lado de um
bispo, converter o rabino. A atitude se revela bastante polêmica e sendo incomum neste
período e nesta região,11 gera repúdio e manifestações de pesar entre os judeus de Aragão.
Está implícita na introdução do Diálogo que Pedro/Moisés está justificando sua apostasia e
tratando de provar que sua escolha é legítima.
Os historiadores e outros pesquisadores que trabalharam sobre a obra e sobre a polêmica,
revelam por vezes posições bastante sensíveis ao tema. Alguns até questionam as razões de
Pedro Afonso. Hartman (2012) embasada no texto de Cohen (1987) e outros percebe que a
crítica não é ao Judaísmo, e sim ao rabinismo, ou seja, ao Talmude. Não seria uma novidade
de lembrarmos que no Islã oriental, em locais como Egito e Mesopotâmia havia uma forte
10 As datas aparentam divergir (1106 ou 1110), mas há dois calendários vigentes na região.
11 Conversões forçadas estavam ocorrendo no norte da Europa. Seja no império, seja no norte do reino da
França na sombra das Cruzadas. Sugerimos a leitura de nosso artigo A atitude papal em relação aos judeus no
início do século XIII publicado em 2012 no periódico Webmosaica
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crítica ao rabinismo, da parte dos que se denominou caraítas.12 O caraísmo foi combatido por
sábios como Saadia Gaon (c. 882 – c. 942) que como diz o nome era líder de uma academia
rabínica ou gaon na Mesopotâmia (Babilônia).
O caraísmo existe até nossos dias, e é uma minoria nada significativa, mas foi uma grave
ameaça a unidade da religião judaica, e seus seguidores, estavam espalhados seja sob o amplo
espaço do Islã, seja no seio do ocidente medieval cristão. O Talmude se espalhou e se tornou
a referencia comum dos judeus, unificando pensamentos, legislação e costumes de toda esta
imensa diáspora. Há suspeita de que o apostata Nicolas Donin que acusou o Talmude de
blasfêmias anti cristãs e motivou seja a polêmica de Paris (1240), seja o efeito desta última, a
queima de exemplares do Talmude, na praça frontal a catedral de Notre Dame de France em
Paris, fosse um caraita (AMARAL; FELDMAN, 2019).
A historiografia sobre Pedro Afonso e sua apostasia se alterna dependendo dos autores.
Os autores ibéricos cristãos são muito respeitosos e exultam ao descrevê-lo mesmo passados
mil anos. É um marco na polêmica cristã judaica, pois Pedro Afonso traz conhecimentos e
reflexões importantes para o campo cristão. Os historiadores tradicionais e em especial do
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período franquista, são os mais efusivos.
O historiador Jose Amador de Los Rios (rep. 1973, p. 166) já no século XIX descreve
a importância do aporte de Petrus Alfonso (que denomina rabi Mosséh há-Sefardi) em seu
“Diálogos contra as ímpias opiniões dos judeus” dizendo: “[...] livro em que combatia
rudemente as definições teológicas do Talmude, jogando sobre elas e seus defensores o
menosprezo e o ódio dos cristãos”. 13
O que Amador de los Rios intui e aponta é que há um rompimento nas relações cristãs
judaicas, que eram regidas pela tolerância no modelo agostiniano. A partir de Agostinho de
Hipona (início do século V), há um acomodamento nas relações entre cristãos aliados do
império romano e os judeus que tendo o estatuto de “religio licita” eram considerados um
grupo nocivo e estranho ao corpo da Res publica cristã. O estatuto reformulado a partir de
Agostinho, condiciona os judeus a uma segregação parcial e a uma tolerância limitada, numa
12 O caraísmo surge por questões pessoais, quando um candidato ao cargo de Exilarca no século IX é preterido. Seu nome é Anan ben David. Ele começa a questionar o papel dos líderes de academias religiosa
(ieshiva, pl. ieshivot) denominados gaonim que eram os herdeiros da cultura talmúdica. Para atingi-los
empreende uma crítica ao rabinismo que acaba se tornando um movimento religioso que nega o a Lei Oral,
ou seja o Talmude...
13 “[...] libro em que combatia rudamente las definiciones teológicas del Talmud, echando sobre ellas y sus
defensores el menosprecio y ódio de los cristianos”.
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espécie de semi cidadania, ou de segunda classe, vivendo sob restrições e isolamento parcial.
A motivação de tal reformulação seria a conversão dos judeus no final dos tempos, pois se
tratava da religião “mãe” ou tronco inicial do Cristianismo.
Os pensadores cristãos, por pouco mais de meio milênio, a partir do bispo de Hipona,
mantiveram um olhar sobre os judeus ainda firmemente ancorado na percepção dos judeus
como o “bibliotecário escravo”, ou seja, os receptores da primeira revelação que está inscrita
na coletânea denominada pela Cristandade como “Antigo Testamento”.14
Tudo isso estava fundamentado na percepção de que os judeus eram os receptores
desta primeira fase da revelação divina, e ainda a seguiam. Seriam, portanto, parcialmente
iluminados, mas “cegos e surdos” por não perceberem que o Messias já havia chegado e era
Jesus. Tolerá-los era parte da concepção de que dependeria da conversão dos judeus, pelo
menos uma parte destes, para que a segunda vinda de Jesus se consumasse (FELDMAN,
2010).
Este estatuto se manteve com exceções diversas, mas de maneira bastante ampla como
uma posição aceita pelo alto clero e geralmente acatada pelo baixo clero, até um pouco depois
do ano Mil. As cruzadas, na transição do século XI para o XII, alteraram esta tolerância. A 143
efervescência espiritual neste período gerou muita tensão em algumas regiões, tal como no
império germânico, e nos reinos da França e Inglaterra.
As reações do baixo clero e de setores marginalizados destas sociedades culminaram
numa reviravolta que chegou ao extremo de massacres no império e no norte da França
em paralelo a primeira cruzada, e depois novos massacres no reino da Inglaterra no início
da terceira cruzada. O papado e o alto clero tentaram manter a tolerância e a proteção aos
judeus (FELDMAN, 2012).
Não se pode relacionar os massacres com a exposição causada pela obra de Pedro Afonso,
já que a maioria dos participantes nos massacres eram iletrados e desconheciam os termos
da polêmica. Mas sem dúvida, a obra do ex rabino agregará mais um importante elemento
na polêmica cristã judaica, elevando a tensão contra os judeus, justamente no nível do alto
clero, que se opôs a violência antijudaica no século XII e persistiu na afirmação da doutrina
agostiniana (e de Gregório Magno – final do sec. VI) de tolerância aos judeus.
14 Os judeus denominam a Bíblia Hebraica como Tanach, uma sigla que é criada através das iniciais de Torá
(Pentateuco), Profetas e Escritos. Para os judeus esta é a Bíblia, para os cristãos é apenas a primeira parte que
se completa com o Novo Testamento.
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Os modelos de polêmica e a mudança de estilo
Em artigo que lançamos no ano retrasado (AMARAL; FELDMAN, 2019) analisamos
facetas da polêmica que começam a se alterar. Dahan (1999, p. 13) recorda que o modelo dos
debates ocorridos antes do século XII eram focados nas escrituras tradicionais, ou seja, na
Bíblia. E seu foco era tanto a autoridade (auctoritas) do texto, quanto a racionalidade (ratio).
É necessário compreender que racionalidade é um conceito mutante e difere de época,
para época. Já havia o uso de termos e conceitos filosóficos, seja de origens neoplatônicas,
leia-se tradicionais, e em contraponto a novidade eram os conceitos neoaristotélicos, que
pretendiam ser mais racionais e embasados na realidade. As três religiões monoteístas do
ocidente serão atingidas por polêmicas internas entre seguidores do neoplatonismo em
conflito com os adeptos do neoaristotelismo.
As elites tradicionais das três religiões monoteístas terão inúmeras ressalvas às novas
tendências embasadas em leituras renovadas da obra do Estagirita. Os conflitos entre os
tradicionais e os racionalistas por vezes levarão à fogueira, ora obras, ora pessoas. O modelo
racionalista foi inúmeras vezes acusado de extremista e denominado como averroísmo. Isto
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ocorrerá em todas as vertentes monoteístas, e criará tensões. Optamos por não entrar nesta
senda, mas é óbvio o uso do racionalismo na obra de Pedro Afonso.
A novidade, na polêmica cristã-judaica, era que as fontes começaram a ser ampliadas:
seguem sendo da Bíblia, mas começam a ser utilizadas fontes talmúdicas. Algumas questões
se propõem a partir do século XII.
A primeira delas: os judeus ainda poderiam gozar da tolerância no modelo agostiniano
se sua vida religiosa era baseada mais na lei oral (Talmude), do que na revelação propriamente
dita que está nas escrituras comuns às duas religiões, ou seja, na Bíblia?
A segunda questão seria se o Talmude, sendo obra coletiva dos rabinos e sábios teria a
mesma autoridade das escrituras?
A terceira seria parte de uma nova forma de polêmica: O Talmude tem trechos que são
lendas e alegorias diversas, que não sendo consideradas revelação divina, beiram a fantasia e
o mito, podendo ser refutadas como uma fonte desacreditada e repleta de superstições.
Num texto já considerado clássico Funkenstein (1971, p. 373-374, TN) 15 descreve os
quatro modelos de debates entre as três religiões existentes antes, durante e a partir do século
15 Fizemos uso desta citação de Funkenstein no artigo de 2019, pois é a melhor e a mais adequada a nossa
reflexão.
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XII e define os padrões básicos de cada um deles:
(1) [...] o modelo antigo de Dialogi cum Judaeis ou Tractatus contra Judaeos – uma repetição estereotipada de argumentos voltando-se para o uso de Tertuliano, Cipriano e
Agostinho; (2) a polêmica racionalista objetivando a comprovação do dogma cristão
ou a demonstração da superioridade filosófica do Cristianismo; (3) o ataque contra
o Talmude, ou, mais exatamente, contra a totalidade da literatura religiosa judaica
pós bíblica: a acusação de que esta era herética mesmo se analisada sob os termos do
Judaísmo propriamente dito. Esta é, eu creio a mais perigosa parte dos julgamentos
do Talmude ocorridos a partir do século XIII, ainda mais que as acusações de trechos (topoi) de blasfêmia; (4) a tentativa de demonstrar com a ajuda do Talmude,
que a própria literatura judaica pós bíblica, especialmente o Midrash, contêm alusões
explícitas da veracidade do dogma cristão (tradução nossa). 16
No que tange ao nosso objeto de estudo, Pedro Afonso está inserido tanto o caso 2,
quanto no caso 3. Parte do modelo 1, se esforça para demonstrar sua racionalidade inserida
e embasada no modelo 2 e é o pioneiro do modelo 3. Tendo sido rabino e um dos primeiros
apóstatas de origem judaica e com denso conhecimento da lei oral judaica, leia-se Talmude,
consideramos ele, em nossa percepção como sendo um ‘divisor de águas’.
O Talmude entra na pauta da polêmica a partir dele e permanecerá até o final do
medievo como um tema central dos debates. Os dois grande debates do século XIII serão em
Paris (1240) e em Barcelona (1263): no primeiro debate o foco são as blasfêmias anticristãs
presentes no Talmude, ou seja modelo 3; no segundo há uma inversão de foco e o que se
pretende provar é que Jesus é visível e assinalado como o Messias que “já chegou”, entre as
páginas da lei oral judaica, ou seja o modelo 4.
O disparador do foco no Talmude, de ódio e preocupação no modelo 3, ou de ansiedade
messiânica no modelo 4 é Pedro Afonso, um ex rabino, intelectual no modelo que Le Goff
16 (1) […] the older pattern of Dialogi cum Judaeis or Tractatus contra Judaeos-a stereotype repetition of
arguments usually going back to Tertullian, Cyprian and Augustine (2) The rationalistic polemics, attempting a deduction of the Christian dogma or a demonstration of the philosophical superiority of Christianity.
(3) The attack against the Tahnud, or, more exactly, against the totality of postbiblical Jewish religious literature: the accusation that it is heretical even in the terms of Judaism proper. This, I believe, was the most
dangerous part of the Talmud trials since the thirteenth century, by far more detrimental than the accusation
of blasphemous topoi in the Talmud. (4) The attempt to demonstrate, with the help of the Talmud, that even
postbiblical Jewish literature, especially the Midrash, contains explicit hints of the veracity of the Christian
dogma. [Trecho assemelhado ao do artigo recém publicado por ser fundamental]
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define na sua obras ‘Intelectuais da Idade Média’, e que conhece os dois (ou três) lados
deste manancial das religiões monoteístas. Na sua obra “Diálogos”, reflete esta guinada da
polêmica.
Esta é uma aguda reviravolta pelo que nos salientou Funkenstein. As polêmicas dos
séculos seguintes terão este embasamento. Não só Paris e Barcelona, mas também o denso
estudo que os dominicanos farão do Talmude, após o resultado da polêmica de 1263.
Orientados por Raimundo Peñaforte e tendo como coordenador Raimundo Marti será
editada uma imensa obra de estudo em torno do Talmude para provar que este ‘confirmava’
a messianidade de Jesus e verdade cristã: o Pugio Fidei.
Estes estudos dos dominicanos serão o farol de obras e polêmicas através da Baixa
Idade Média. O franciscano Afonso (Alonso) de Espina, com sua obra a Fortaleza da fé, no
século XV ainda se embasa na obra de Pedro Afonso.
Tolan descreve e analisa a difusão dos escritos de Pedro Afonso, em partícular o ‘Diálogo’
e demonstra a ampla utilização deste em argumentações de cunho antijudaico na sua obra
Petrus Alfonsi and His Medieval Readers (1993) e confirma a importância das teses de Pedro
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Afonso entre os polemistas cristãos dos séculos XII a XVI.
Lacarra (2003) analisa as referencias ao conjunto da obra de Pedro Afonso, tanto o
‘Dialogo’, quanto a Disciplina Clerical, em obras que não se encaixariam na polêmica, e que
ela define como literatura medieval castelhana, e constata teriam sido lidas por autores de
outros países, mostrando a difusão de suas obras não apenas entre polemistas. Já no âmbito
da polêmica é mais marcante ainda a influência de sua obra fora dos limites da Hispânia.
A obra de Pedro Afonso
Nosso personagem era rabino e médico, conhecia astronomia/astrologia, e muito do
conhecimento científico de sua época. Duas obras mais marcantes, entre as diversas que nos
legou: uma obra dedicada aos clérigos, denominada ‘Disciplina clerical’ e sua obra polêmica
‘Diálogo contra os judeus’.17
Além destas tem obras sobre astronomia/astrologia e mais escritos de menor alcance. Sua
estatura intelectual é controversa: quando comparado aos refinados pensadores e cientistas
de Al Andaluz do período do califado e das taifas é mediana; tendo em vista que se converte
17 Disciplina clericalis é uma renomada obra. Já o Dialogus contra Iudaeos ésua obra polêmica. Optamos por
chamar esta obra de Dialogos.
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ao Cristianismo e dialoga com os reinos cristãos do norte da Europa, tendo vivido alguns
anos no reino da Inglaterra, por exemplo, adquire um porte de autoridade, tanto na polêmica
anti judaica, quanto nas ciências ou na filosofia. Será referenciado por alguns séculos depois
de sua morte.
Um dos mais renomados estudiosos de sua obra, e na introdução de uma das traduções
que utilizamos afirma que :“Se bem que sua erudição científica não chegava a ser excepcional
tendo em conta os níveis da época em Al Andaluz, era superior a que possuíam seus
contemporâneos do norte da Europa (TOLAN, Introdução, 1996, p. IX)”.
Tópicos selecionados da obra ‘Diálogo contra os judeus’
Pedro Afonso é o personagem da narrativa, mas aparece tanto como o “ego”, quanto
como o “alter ego”. Como isto seria possível? O diálogo se propõe a ser uma conversa entre
um judeu Moisés (ou Moshé) e um cristão Pedro: ambos são Pedro Afonso. O primeiro era
ele antes de apostasiar, e o segundo é ele tentando justificar sua escolha.
Este artifício literário é esclarecido no próprio texto. Os dois ‘amigos’, se encontram e
conversam sobre as razões da apostasia de Pedro: um judeu e um convertido. O diálogo está 147
articulado em temas que pretendem desconstruir as premissas da fé ‘antiga’ e fortalecer a
escolha do apóstata.
Para evitar confusões entre o autor e um dos personagens chamaremos o autor de Pedro
Afonso e o personagem apenas de Pedro. Efetivamente os dois são apenas uma pessoa, e o
mesmo vale para Moisés.
Maza (1997, p. 273, TN) analisa um sutil detalhe do texto. Trata-se de um artifício
literário que coloca dois amigos, que de fato são uma mesma pessoa, mas o andamento do
‘debate’, é muito cordial, sem agressões e sem acusações proferidas com ardor retórico. Mescla
autoridade e razão, senso literal e alegórico. Articula-se um sutil convencimento, tema atrás
tema, analisando e justificando a escolha de Pedro Afonso (o autor) através das delicadas e
bem articuladas palavras de Pedro (o personagem). Maza afirma no mesmo trecho:
Seus Dialogi [...] que contribuíram notavelmente a sua fama medieval, desenvolvem
o esquema consagrado da altercatio religiosa, em um tom, senão cordial, pelo menos
sereno, sem duvida facilitado pelo desdobramento da voz, do próprio autor, naquelas
dos dois interlocutores, Pedro o cristão e o judeu Moisés 18[...] o programa se cumpre
18 Sus Dialogi, (...) que contribuyeron notablemente a su fama medieval
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sem deterioração no trato entre ambos, e aplicando a exposição dialética critérios
então modernos: certos desenvolvimento dos argumentos do judeu, combinação de
auctoritates e ratio, e da exegese alegórica com a literal 19
A obra está dividida em partes que se propõe a analisar temáticas da polêmica.
Analisaremos algumas de maneira ampla e outras apenas comentaremos de maneira
minimalista, O primeiro título (tema ou capítulo)20 é típico desta época e aparece nas três
religiões, contrapondo no seio de cada uma, posições místicas diante de análises racionais,
embasadas, ora no neoplatonismo, ora no neoaristotelismo. E do debate interno de cada uma
das religiões, a polêmica passa para a crítica externa direcionada a uma das outras religiões
monoteístas do ocidente. Este tópico polemiza sobre o antropomorfismo e as leituras de
interpretações do texto bíblico, na literatura rabínica.
No Talmude, e em especial nos trechos da Agadá, que está composta por lendas e
narrativas alegóricas, percebem-se narrativas com descrições de partes de um pretenso “corpo
de Deus”. Na clássica narrativa do Êxodo, se afirma que Deus tirou o povo de Israel do
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cativeiro do Faraó no Egito, “com mão forte e braço estendido” (Êxodo 14 e 15).21
Como interpretar este trecho: alegórico ou literal? Deus teria membros e poderia ser
corporificado? Os místicos, pouco se importam com as críticas e já os racionalistas pretendem
ser esta uma alegoria que explicita ao leitor leigo, em parâmetros compreensíveis as mentes
humanas. As religiões alternam explicações, ora místicas, e ora racionais. Há sempre elementos
que saem do padrão aceito, por algum dos grupos.
Pedro argumenta que os ‘doutores’22 judeus, corporalizam Deus numa percepção não
racional (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 116). 23 E repete uma crítica que os exegetas
desarrollan el esquema consagrado de la altercatio religiosa en un tono, si no cordial, al menos sereno, sin
duda facilitado por el desdoblamiento de la voz del propio autor en las de los dos interlocutores: Pedro, el
cristiano, y el judio Moisés.
19 El programa se cumple sin apenas deterioro en el trato de ambos, aplicando a la exposición dialéctica
criterios entonces modernos: cierto desarrollo de los argumentos del judío, combinación de auctoritatesy
ratio, y de la exégesis alegórica con la literal.. {O termo moderno é do autor e optamos por não comentá-lo]
20 Poder-se-ia utilizar tanto capítulo, como tema, mas seguiremos a tradução castelhana do texto que usa a
expressão título.
21 Expressões que povoam os livros de oração (sidur) e a denominada Hagadá (diferenciar da Agadá=lendas
talmúdicas) que é lida nas primeiras noites dos oito dias da Páscoa judaica, festa denominada Pessach.
22 Expressão usada por Pedro Afonso ao se referir aos rabinos e sábios judeus.
23 ¿No te acuerdas de vuestros doctores que escribieron vuestra doctrina, sobre la cual se apoya toda vuestra
Ley, según vuestra opinión, como aseguran que Dios tiene cuerpo y forma; y tales cosas aplican a su inefable
majestad sin apoyarse en ninguna razón?
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alexandrinos Clemente e Orígenes, por exemplo, já faziam nos primeiros séculos da era
comum: os judeus interpretavam as escrituras sagradas num ‘formato literal’, ignorando
as leituras alegóricas. Isso é impreciso, pois já existiam leituras alegóricas no Judaísmo há
séculos, no que se convencionou chamar de Pardes (pomar ou jardim de Éden) que oferecia
quatro níveis de exegese, sendo somente a primeira literal (COHN-SHERBOK, 1992, p.
415).
O espaço ocupado por Deus e sua localização no ‘ocidente’ perpassam, várias páginas
da narrativa, mas optamos por não as comentar. Demandaria muitos detalhes e extrapolaria
este artigo. A questão da alegoria será tema contínuo seja internamente em cada uma das
religiões, seja nas polêmicas entre as três vertentes religiosas.
Neste primeiro tema também se sobressai a questão dos mortos que ressuscitariam
no final dos tempos. Embasadas em Ezequiel 37, havia crenças difundidas nas religiões
monoteístas que quando viesse o Messias, os justos ressuscitariam e seus ossos reencarnariam
de maneira mágica. O tema em hebraico se denomina “techiat hametim” que significa
‘renascimento dos mortos’ (RESNICK, 2006, p. 15). Literal ou alegórico?
Maza (1997, p. 274) concorda conosco que se trata de um artifício retorico muito bem 149
articulado, mas que estão mais presentes nos quatro primeiros títulos, e que pretendem
definir a irracionalidade do Judaísmo, e o mau uso da autoridade. Assim consegue colocar
gradualmente o personagem Moisés, do lado de suas ideias.
Pedro Afonso ironiza amplamente a crença na ressurreição no final dos tempos,24 mesmo
sabendo que não havia consenso interno no Judaísmo. Alguns sábios judeus a consideravam
alegóricas, já outros literal. Pedro afirma que se trata de uma ilusão e um falso consolo para
o exílio milenar dos judeus (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 116). E adiante usará este
tema para imputar aos judeus o crime de deicídio e a punição do exílio.
O segundo título é a questão do exílio que Pedro Afonso denomina cativeiro, e as
razões deste ocorrer. Volta a tona a temática da culpa dos judeus, da sua responsabilidade
no ‘deicídio’ do filho, que é uma acusação de longa duração, pois remonta a Justino o mártir
(século II da Era comum) em sua polêmica com o judeu Trifão ou Tarfon (SENA PERA,
2009).
As múltiplas acusações contra os judeus através de mais de um milênio, repetem a
24 Existem muitas posições no Cristianismo, em especial na mística que agregam a ressurreição no final
dos tempos, a crença cristã. No séculos anteriores obras como a do Beato de Liébana, tiveram presença no
ideário cristão da escatologia.
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proposição que: a) os judeus não entenderam a mensagem e o caráter messiânico de Jesus,
mesmo tendo sido alertados pelos profetas em múltiplas pregações; b) os judeus eram os
responsáveis pelo deicídio, de forma ampla e geral; c) os efeitos desta descrença e deste
deicídio se expressam através da história antiga e do período da escrita da obra.
Pedro Afonso não altera em essência esta afirmação. Desenvolve uma reflexão a partir
do primeiro cativeiro, quando os judeus foram exilados por mais de meio século para a
Babilônia (c. 586 -c.536). Avalia que as razões deste exílio seriam os múltiplos pecados
do povo, denunciados pelos profetas. E arquiteta um vínculo destas profecias, de maneira
anacrônica, com o segundo cativeiro (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 147). E frisa
que entre os pecados judaicos estaria a usura, que estranhamente não é algo enfocado como
muito importante pelos profetas hebreus, mas que era um tema já candente no início do
século XII no ocidente medieval.
Pedro questiona as razões do prolongado exílio, que ele calcula como 1040 anos, e o
tratamento cruel aos judeus que se fizera através deste período. Relembra que: a) Deus puniu
os adoradores do bezerro de ouro e aqueles que se revoltaram contra Moisés, mas seus filhos
150
nascidos livres e obedientes entraram na terra de Canaã, após quarenta anos no deserto; b)
Deus puniu os adoradores de Baal que cometeram múltiplos crimes no final do período do
primeiro templo com o cativeiro da Babilônia, por setenta anos, mas outorgou a liberdade e
o retorno a Sião, a seus descendentes que puderam optar pela volta a Jerusalém e a opção de
reconstruir o templo (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 151).
Pedro Afonso entende que prevalecia a doutrina que previa o castigo apenas aos
responsáveis, alterando as versões arcaicas, tal como no segundo mandamento (Êxodo, c. 20,
v. 4) que dizia que os pecados dos pais passariam aos filhos através de três ou quatro gerações.
Isso claramente teria sido alterado. Jeremias (c. 31, vers. 29) já enfatiza que os “pais
comeram uvas verdes, e que os filhos ‘não teriam’ os dentes “embotados”25. Assim Deus
perdoara seja aos que nasceram nos quarenta anos do deserto, seja aos que nasceram no
cativeiro de Babilônia (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 151-152). Ora, o que pretende
Pedro Afonso postular?
Pretende dizer que Deus é misericordioso e ao perdoar os herdeiros dos que serviram
o bezerro de ouro no deserto, e aos descendentes dos que cultuavam Baal e não seguiam as
25 Fizemos uma mudança no versículo para torna-lo compreensível, no contexto pós destruição do primeiro
templo.
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normas de justiça social no período dos dois reinos (entre o final do reinado de Salomão
e o cativeiro da Babilônia) estava ensinando que ele não colocaria a culpa do pecado ou
dos pecados ‘nos descendentes’ dos pecadores que fossem justos e servidores de Deus
(BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 151-152).
Assim sendo como entender os mil e quarenta anos de exílio e humilhação que passavam
os judeus desde o ano 70 da era comum até o momento em que ele escrevia? A sua análise
direcionava esta persistência na decadência e submissão dos judeus embasada na doutrina
agostiniana: os judeus cegos e descrentes tinham uma função histórica-religiosa. Ao “abrirem
seus olhos e libertarem seus corações da descrença em Cristo” estariam livres desta opressão
e deste destino inferiorizado. 26
Os pecados destas duas gerações acima citadas são enormes, mas não incidiram sobre
as gerações seguintes, explica Pedro. Os descendentes foram perdoados. Por que neste caso
dos judeus que nasceram depois da destruição do segundo templo por Tito (70 d. E. C.) a
punição prossegue por mais de um milênio.
Explica Pedro Afonso: o crime da cegueira judaica é enorme, pois este foi o povo eleito
para receber o Messias/Cristo em seu seio. O recebeu e o negou, não percebendo que viera 151
e ainda pior o sacrificaram, executando-o. O deicídio seria um crime imperdoável, lado a
lado com a descrença. (BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 151-152). Outros elementos
aparecem no titulo dois, mas nos parecem menos expressivos.
O título terceiro foca na ressurreição dos mortos que ocorreria no final dos tempos
seguindo a profecia de Ezequiel 37, já comentada no título1. Pedro opta por trazer um enfoque
pretensamente racionalista, mas que sem dúvida é acoplado a autoridade das escrituras. Assim
descreve que Deus pode ferir e se desejar pode curar. Exemplifica com os casos de Miriam
irmã de Moisés (Números, c. 12), Ezequias (livro dos II Reis, c. 20)), Naaman (livro dos II
Reis, c. 5), e Jó ou Job (c. 12).
E que se for necessário mataria numa só noite todos os primogênitos egípcios (Êxodo,
c. 12) ou uma larga parte do exército assírio diante dos portões de Jerusalém (livro dos II
Reis, c. 19). E por fim ressuscitou através de profetas: “[...] ao filho da viúva pela mão de Elias
(livro dos I Reis, c. 17) e ao filho da sunamita pelas mãos de Eliseu (livro dos II Reis, c. 4)”
(BALLESTÍN SERRANO, 1993, p. 163, TN).
26 Sugerimos a leitura do artigo FELDMAN, Sergio A. Judeus na Antiguidade Tardia: a construção da
alteridade sob Agostinho. IN: Dimensões, vol. 25, 2010, p. 131-147.
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Pedro confirma que a Deus tudo é possível e este pode ressuscitar, tal como nos dois
últimos casos. Mas reflete de forma racionalista que se tratam de exceções. Assim Pedro
refuta esta ressurreição corporal como sendo irracional (COHEN, 1987, p. 26). Subentende
que mesmo nos casos de ressuscitados acima narrados com Elias e Eliseu, trata-se de corpos
não putrefeitos e deteriorados.
E afirma que admite que o Deus todo poderoso pudesse fazê-lo, mas que a partir de
uma percepção racionalista, não seria uma reencarnação no sentido corporal: “Não nego que
o todo poderoso possa ressuscitar os mortos, pois creio e afirmo que há de ressuscitar a todos
os homens no dia do juízo, mas o que eu não creio é que uma vez ressuscitados, iriam habitar
de novo a terra (PEDRO AFONSO, 1987, p. 269)”.
A intenção de Pedro é demonstrar que se trata de uma espécie de propaganda enganosa,
uma articulação retórica dos rabinos para oferecer a um povo exilado e maltratado um consolo
e uma perspectiva escatológica. Não haveria uma reencarnação efetiva. E diz que não tem
fundamento nem na razão e nem na escritura: “Mas isto não foi dito por nenhum profeta
daqueles que vieram antes de Cristo. Seus descendentes inventaram este falso milagre para
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que os judeus persistissem na sua infidelidade (PEDRO AFONSO, 1987, p. 269)”. Os dois
personagens ainda polemizam com citações de Isaías e outros, mas prevalece a percepção de
Pedro.
Reflexões parciais
Pedro Afonso adquire um estatuto de autoridade e de racionalidade na polêmica que
excede sua temporalidade e o espaço ibérico, como demonstra Tolan (1993). Não tem o
brilho dos teólogos e filósofos de Al Andaluz, mas refulge diante dos polemistas do ocidente
medieval cristão. Era rabino e talmudista. Essa posição anterior lhe outorga condições de
postular críticas ao rabinismo talmúdico e articular uma desconstrução da condição judaica
sob o manto da tolerância embasada nas teses de Agostinho de Hipona.
Poucos serão os sábios judeus que conseguirão enfrentar em condições de igualdade
representantes cristãos que tinham nascido judeus e haviam se convertido, sabendo manipular
as fontes judaicas. Uma exceção é o sábio judeu catalão Nachmanides (sec. XIII); outra foi
o rabino Hasdai Crescas (final do século XIV / início do XV). A grande maioria dos sábios
judeus fica acuada quando expostos a virulência dos pregadores mendicantes, em particular
os dominicanos. Há alguns textos apologéticos judaicos que descontroem o oponente cristão.
Os dominicanos capitaneados pelo frei Raimundo Peñaforte iniciam uma profunda
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incursão nos meandros das lendas talmúdicas contidas na Agadá, na segunda metade do
séc. XIII. Ainda na primeira metade do mesmo século criara-se um arsenal de acusações e
afirmações. Inicialmente no modelo do debate de Paris (1240) enfocando nas blasfêmias anti
cristãs pretensamente contidas na lei oral judaica; e a partir do debate de Barcelona (1263)
enfatizando que Jesus aparecia no Talmude e os judeus apenas escondiam e disfarçavam sua
presença com subterfúgios, apenas para não admitir seus erros.
A polêmica cristã judaica se altera e se agudiza dos dois lados. Os escritos que simulam
polêmicas e os debates públicos que começam a ser efetivos no século XIII, trazem uma
intensidade muito maior a partir de Pedro Afonso (sec. XII) e em especial com o surgimento
dos mendicantes no século seguinte (XIII). A inserção do Talmude nos debates e escritos,
não impede o uso da Bíblia, mas oferece uma nova e ampla fonte para polemizar.
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