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Introdução Este livro, incidindo, grosso modo, sobre violência contra mulheres, destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos – ou por que há que se preservar a família, por pior que ela seja, na medida em que esta instituição social está envolta pelo sagrado, ou porque se tem vergonha de expô-los. Com efeito, um marido que espanca sua m ulher, em geral, é poupado em vários dos am bientes por ele frequentados, em virtude de este fato não ser de conhecimento público. Também interessa a vítimas e agressores, já que podem, certamente, identificar, em sua relação violenta, algumas de suas raízes, encorajando-se a buscar ajuda. Os que ignoram o fenômen o, por terem tido sorte de n em sequer haver presen ciado as modalidades de violência aqui tratadas, podem desejar ampliar sua cultura. Há uma outra categoria de leitores, interessados por análises teóricas desta violência, pondo em especial relevo conceitos como o de gênero e o de patriarcado, que, seguramente, 9 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 9 25/1/2011, 09:28 se interessarão por ler este livro. Trata-se de iniciados(as) insatisfeitos(as) com o que aprenderam , tendo agora a seu dispor m ais um texto seja para criticá-lo, seja para a ele aderir, seja, ainda, para incorporar algumas ideias e rejeitar outras. A limitação do número de páginas constitui um sério problema para um a socióloga notoriam ente prolixa. O volum e de dados coligidos pela Fundação Perseu Abramo com a pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, realizada por seu Núcleo de Opinião Pública ( NOP ), e que foi utilizada neste trabalho, ultrapassa, de longe, as pretensões de análise de uma cientista social, que talvez pudesse usá-los em dois livros ou mais. J amais em um único. Leitores em busca de dados sentir-se-ão frustrados, imagina-se1. A autora tem o álibi de que o ser humano não é perfeito, sobretudo ela própria. Será o caso de pedir desculpas ao leitor? Não se pensa desta forma, pois é muito mais fácil divulgar dados que construir referenciais teóricos para analisá-los. Obviamente, se nutre a perspectiva de agradar. Se, todavia, isto não ocorrer, com o toda obra é datada e todos os m em bros da sociedade estão sujeitos a m udança, poderá surgir um a outra, menos subversiva que esta, em termos de conceitos reformulados e da própria concepção da História. Se o marxismo clássico atribuía im portância excessiva ao m acropoder e se os autores que chamaram a atenção para a relevância do micropoder não apresentaram um projeto de transformação da sociedade na direção da dem ocracia integral, este livro propõe-se com binar m acro e microprocessos, a fim de avançar na obtenção deste objetivo. O fem inism o aqui esposado traz, em seu bojo, um potencial crítico bastan te capaz de apon tar cam in h os, trilh as, picadas para se atingir o alvo expresso e desejado, ou seja, a dem ocracia plena. Entretanto, isto não basta; é preciso saber utilizá-lo, selecionando as m elhores estratégias em cada m om ento, o que cabe ao leitor julgar e realizar. Esta avaliação, certam ente, abrirá à autora as portas que ela não logrou abrir sozinha. Os dados detalhados da pesquisa podem ser obtidos em www.fpa.org.br/nop. 1 10 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 10 25/1/2011, 09:28 1. A realidade nua e crua Sempre que se faz uma pesquisa com a finalidade de se verificar quais são as m aiores preocupações dos brasileiros, aparecem, infalivelmente, o desemprego e a violência. J á não se trata de preocupações tão som ente dos habitantes dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de J aneiro, isolados até há alguns anos, mas de praticamente todas as capitais de estados e do Distrito Federal. Pior que isto, estes dois flagelos tom aram conta das cidades de porte médio e até de pequenos municípios. O crime organizado, expressão máxima da violência, era restrito ao Rio de J aneiro. Há aproxim adam ente duas décadas, São Paulo passou a rivalizar com o Rio de J an eiro, n esta terrível atividade. Hoje, este fenôm eno está generalizado. De um lado, o crim e organizado vive nababesca e tranquilamente nas entranhas do Estado, quer federal, estaduais ou municipais. Este fenômeno lesa o povo brasileiro, já tão sacrificado pelo decréscimo real, e até mesmo nominal, de seus rendimen11 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 11 25/1/2011, 09:28 tos, em virtude de dem issões de fun cion ários, sucedidos por novos, recebendo salários mais baixos. Tal fato do turn over ou rotatividade da força de trabalho, an tes provocado pelos em pregados, em busca de empresas dispostas a remunerá-los com certa gen erosidade, in troduzin do fatores de hum an ização n o am biente de trabalho, hoje se produz em consequência da necessidade de menor dispêndio com salários de trabalhadores, a fim de aprofundar o processo de exploração-dominação e, desta m aneira, tornar m ais rentáveis seus em preendim entos. Tomando-se apenas o ano de 20 0 3, aqueles que vivem de salários sofreram uma perda real de cerca de 15% em seus rendimentos, ou seja, em seu poder aquisitivo. Este fato, num contexto de altas taxas de desem prego, que ultrapassa 20 % da PEA (População Econom icam ente Ativa) do m unicípio de São Paulo, outrora a Meca dos habitan tes de outras regiões, assum e proporções in susten táveis. Se, de um lado, a taxa de desem prego é alta, de outro, um núm ero decrescente de trabalhadores, com poder aquisitivo em queda, deve produzir o suficiente para sustentar aqueles que nem sequer no setor inform al de trabalho con seguiram in serir-se. A rede fam iliar de solidaried ad e d esem pen h a im por tan te papel, evitan d o qu e cr esçam , num a m edida ainda m ais cruel, os contingentes hum anos sem teto, sem emprego, sem rendimento, isto é, em franco processo de desfiliação (CASTEL, 1995). Grosso modo e ligeiramente, a desfiliação consiste numa série de fatos sucessivos: desemprego, impossibilidade de pagar o aluguel, perda da moradia e, portanto, do endereço, perda dos colegas e dos amigos, esfacelamento da família, cortes crescentes dos laços sociais, cortes estes responsáveis pelo isolamento do cidadão. Enfim, de perda em perda, o desfiliado encontra-se no nãolugar, talvez no vazio mais doloroso para um ser humano, que, como já dizia Aristóteles no IV século a.C., é um ser político2 . 2 Palavra derivada de pólis, isto é, cidade em grego. A mais correta tradução de pólis, no contexto em que escreveu o filósofo, é gregarismo. 12 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 12 25/1/2011, 09:28 No Brasil, con tin gen tes h um an os n estas circun stân cias foram den om in ados in em pregáv eis pelo presiden te sociólogo. Este ign om in ioso apelido revela um a faceta da pedra an gular do liberalism o ou n eoliberalism o. Quan do o trabalh ador experim en tou o desem prego de lon ga duração, ten do buscado, às vezes duran te an os, n ova colocação e, em vez dela, en con trado o isolam ento, a solidão, o não-lugar, a responsabilidade deste fracasso é-lhe im putada pelo governante de plantão, que sou be ser su bm isso, sobr etu d o ao Im p ér io, m as n ão sou be tran sform ar a posição de seu próprio país n um a in serção soberan a n o cen ário in tern acion al, tarefa que o presiden te m etalúrgico realizou, em gran de parte e com extraordin ária habilidade diplom ática, em apenas um ano de governo. É público e notório que este processo é cotidiano e infinito, pen san do-se o poder n ão com o um objeto do qual se possa realizar um a defin itiva apropriação, m as com o algo que flui, qu e cir cu la n as e p elas r elações sociais (F OUCAULT 3 , 198 1). Esta in stabilidade do poder, ou m elhor, esta rotatividade dos poderosos n ão ocorre apen as n a m icropolítica, m as tam bém na m acropolítica. A m alha fina e a m alha grossa não são instâncias isoladas, interpenetrando-se m utuam ente, um a se nutrindo da outra. Não há um plano ou nível m icro e um plano ou n ível m a cr o, lin gu a gem u t iliza d a p or cer t os a u t or es (GUATTARI , 198 1; GUATTARI e R OLNIK, 198 6; F OUCAULT, 198 1; 1997), n ão obstan te a relevân cia de sua con tribuição teórica. “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. [...] O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. [...] Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através [sic] do indivíduo que ele constituiu” (1981, p. 183-4). 3 13 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 13 25/1/2011, 09:28 Trata-se de m icroprocessos, assim com o de m acroprocessos, operan do n as m alh as fin a e grossa, “um a sen do o avesso da outra, n ão n íveis distin tos” (SAFFIOTI , 1999, p. 8 6). Com o o poder vincula-se, com frequência e estreitam ente, a riquezas, talvez seja interessante fazer um a breve incursão pelo terren o econ ôm ico. Vive-se um a fase ím par de hegem on ia do capital financeiro, parasitário, porque nada cria. Esta é, certam ente, a m aior e m ais im portante fonte da instabilidade social n o m un do globalizado. A con cen tração m un dial de riquezas atingiu tão alto grau, que gerou um perigo político a tem er-se. Fruto de fusões de em presas e outros m ecan ism os que tam bém corroboram na realização de um a determ inação inerente ao capitalism o: a acum ulação de bens em poucas m ãos e a farta distribuição da m iséria para m uitos, n estas abissais desigualdades m orando o inim igo, ou seja, a contradição fundante deste m odo de produção, ao qual são inerentes a injustiça e a in iquidade. Sem a con cretização desta verdadeira lei, acum ulação e m iséria, o capitalism o n ão se susten taria, ou m elhor, nem seria capitalism o. Exatam ente em virtude disto, o capitalism o está sujeito a crises de prosperidade e de recessão, chegando à depressão, cujo exem plo m áxim o, até o m om ento, foi a crise de 1929. O fam oso crash da Bolsa de Nova Iorque transform ou em pobres con tin gen tes hum an os riquíssim os, do dia para a noite, repercutindo este desastre em todas as áreas da produção e, por conseguinte, desorganizando a econom ia norte-am erican a e outras dela depen den tes. O poder descreveu tr ajetór ia sem elh an te. H oje, tem -se u m a econ om ia-m u n d o, com a p r od u ção d e m er cad or ias, en volven d o, in clu sive em ter m os d e esp aço geogr áfico, vár ios p aíses. Vale d izer qu e, atualm en te, o m un do está organ izado em redes de in form ação, de produção, de troca etc., exceto qualquer rede de solidar iedade a n ão ser espor ádica e even tual, disto der ivan do, em caso de um crash de qualquer Bolsa im portante, um verdadeir o desastr e em ter m os globais. Com o pr edom ín io quase absoluto do capital fin an ceiro, n o m om en to presen te, n ão se está im un e a um n ovo crash, capaz de levar de roldão países 14 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 14 25/1/2011, 09:28 ditos de prim eiro m un do, assim com o os agora den om in ados em ergen tes, para n ão falar n os pobres, cuja m iséria se aprofundaria. Disto talvez decorresse um a nova organização m undial, incluindo-se m udanças do lugar ocupado por cada nação n o cen ário in tern acion al. Nas décadas de 1950 -1960 , o Brasil, com o tam bém outras n ações n o m esm o est ágio d e d esen volvim en t o, r ecebiam o n om e de subdesen volvidas. Na década de 1970 , passar am a ch am ar-se países em via de desen volvim en to e, a partir dos an os 198 0 , tor n ar am -se em er gen tes. Os n om es têm sofr id o var iações, m as a d istân cia econ ôm ico-social en tr e o n ú cleo orgânico, a sem iperiferia e a periferia ou continua a m esm a ou a u m en t a ( AR R I GH I , 19 9 7) . M u t a t is m u t a n d is , em b or a a globalização ten h a ger ad o n ovos pr ocessos e pr od u tos, qu e n ão podem ser ign orados, a lógica da dom in ação-exploração entre países e entre classes sociais, nos lim ites de cada nação, continua a m esm a. Todavia, não se fala m ais em im perialism o. Este term o só é utilizado pelos alcunhados, com desprezo, de din ossauros. Mas, com o diriam os fran ceses: Plus ça chan ge, plus c’est la m êm e chose, isto é, quan to m ais m uda m ais é a m esm a coisa. As ch am ad as d r ogas p esad as, sem d ú vid a, d esem p en h am im portante papel no crescim ento da violência conhecida com o violência urbana, no Brasil. Cidades de porte m édio, e tam bém m aiores e m en ores que estas, n as quais qualquer crim e seria de clam or público, dada sua raridade, com petem com os grandes cen tros urban os em m atéria de violên cia. Ribeirão Preto ( SP ) ilustra m uito bem esta situação: de cidade pacata, tornouse extrem am en te violen ta, ten do o crim e organ izado do n arcotráfico invadido o m eio rural. Rota dos aviões que transportam drogas especialm ente da Colôm bia e da Bolívia, m as tam bém do Peru, os fardos de drogas são atirados n os can aviais. Trabalhadores rurais de baixíssim os salários recolhem tais fardos para distribuição. Com o os adultos precisam trabalhar na cana, as crianças são transform adas em “aviões”. Obviam ente, não apenas suprem a dem anda urbana por este produto, com o 15 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 15 25/1/2011, 09:28 tam bém passam a consum i-la. Assim , o trabalhador do cam po tem sua vida cotidian a in vadida por um a atividade m ercan til fora da lei e por um vício, am bos destruidores de seus valores culturais, desorgan izan do, desta sorte, até suas fam ílias. Que n ão se pen se que tais trabalh adores são cam pon eses. Quem trabalha na cana tornou-se, há m uito tem po e necessariam ente, assalariado. Pior que isto, o que lhe sobrou foi ser um assalariado sazonal. Nos m eses do corte da cana, os trabalhadores locais são in suficien tes para aten der à dem an da de força de trabalho, chegan do estas plan tações a absorver trabalhadores do Vale do J equitinhonha m ineiro, que para lá m igram todos os an os, deixan do as m ulheres para cuidar do roçado, isto é, da pequen a gleba n a qual se plan tam alim en tos. Estes m ovim entos m igratórios ocorrem todos os anos. Nem todos os trabalhadores, entretanto, voltam para o Vale, a fim de se juntar aos dem ais m em bros de suas fam ílias. Muitos perm anecem na periferia da cidade, con stituem n ovas fam ílias, trabalham regularm ente no período do corte da cana, vivendo de pequenos “bicos” duran te o restan te do an o. Na ausên cia de pesquisa, n ão se sabe quan tos deles con tin uam trafican do drogas e/ ou adquiriram o h ábito de con sum i-las. As fron teiras, já m uito t ên u es , en t r e o u r b a n o e o r u r a l d eixa r a m d e exis t ir . A com er cialização d as d r ogas tam bém se globalizou , d issem inando-se por todo o território nacional. Mais do que isto, tom ou con ta do plan eta. E, com provadam en te, ela produz alterações do estado de consciência, capazes de com prom eter, de m odo n egativo, o código de ética dos que se dedicavam apenas ao trabalho lícito com o ganha-pão. A isto se deve acrescen tar as drogas lícitas, com o álcool e tabaco. Há um a inegável perm issividade social com relação ao uso destes produtos. Há, m esm o, incentivo a que os jovens os consum am , já que sua publicidade sem pre os associa a força, coragem , charm e. Só m uito recen tem en te, a sociedade brasileira tom ou con sciên cia da gravidade do con sum o de m assa, que atin ge faixas etárias cada vez m ais baixas, dos produtos em pauta, tendo com eçado a alertar a população para as enfer16 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 16 25/1/2011, 09:28 m idades que seu consum o provoca. Caberia cham ar a atenção dos brasileiros tam bém para a alteração do estado de consciência, no sentido de que o uso constante do álcool, por exem plo, não som ente pode provocar acidentes de trânsito com o, igualm en te, violên cia con tra outrem . Os estudiosos da violên cia urban a n ão en con tram correlação positiva en tre desem prego e violên cia. Se, porven tura, já a en con traram n o con texto de altas taxas de desem prego de lon ga duração, n ão se tem con hecim en to disto. Para os estudiosos da violên cia de gên ero, da violên cia con tra m ulheres, da violência dom éstica e da violência intrafam iliar, esta associação é clara, h aven do relatos de fun cion árias de albergues para m ulheres vítim as de violência e seus filhos que dem onstram , com n úm eros, tal correlação. O conceito de violência Antes de dar prosseguim ento à análise, cabe discutir o conceito de violên cia. Os habitan tes do Brasil, e até estran geiros que aqui vêm fazer turism o, saberiam m uito bem definir violência, pois ou foram diretam ente atingidos por algum a m odalidade dela ou têm , em suas fam ílias e/ ou em seu círculo de am izades, algum caso a relatar. Os sequestros são frequentes, com o tam bém o são hom icídios, latrocínios, am eaças de m orte, roubos, sendo a diferença entre furto e roubo a com ponent e violên cia , con t id a n est e ú lt im o, en q u a n t o n o fu r t o h á som ente a subtração de dinheiro e/ ou outros objetos. As pessoas habituaram -se tan to com atos violen tos que, quan do algu ém é a ssa lt a d o e t em seu d in h eir o e seu s d ocu m en t os furtados, dá-se graças a Deus pelo fato de a cidadã ou o cidadão ter saído ilesa(o) da ocorrência. Assim , o entendim ento popular da violência apoia-se num conceito, durante m uito tem po, e ainda hoje, aceito com o o verdadeiro e o único. Trata-se da violên cia com o ruptura de qualquer form a de in tegridade da vítim a: in tegr id ad e física, in tegr id ad e psíqu ica, in tegr id ad e sexual, integridade m oral. Observa-se que apenas a psíquica e 17 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 17 25/1/2011, 09:28 a m oral situam -se fora do palpável. Ainda assim , caso a violência psíquica enlouqueça a vítim a, com o pode ocorrer – e ocorre com certa frequência, com o resultado da prática da tortura por razões de ordem política ou de cárcere privado, isolandose a vítim a de qualquer com un icação via rádio ou televisão e de qualquer contato hum ano – , ela torna-se palpável. Com o o ser h u m an o é gr egár io, os efeitos do isolam en to podem ser trágicos. Mesm o não se tratando de efeitos tangíveis, são passíveis de m en suração. H á escalas psiquiátricas e psicológicas destinadas a m edir as probabilidades de vir a vítim a a com eter suicídio, a praticar atos violen tos con tra outrem , con sideran do-se, aqui, até m esm o anim ais assassinados com crueldade. A vítim a de abusos físicos, psicológicos, m orais e/ ou sexuais é vista por cien tistas com o in divíduo com m ais probabilidades de m altratar, sodom izar outros, enfim , de reproduzir, contr a ou tr os, as violên cias sofr idas, do m esm o m odo com o se m ostrar m ais vuln erável às in vestidas sexuais ou violên cia física ou psíquica de outrem . Em pesquisa realizada em quase todas as capitais de estados, no Distrito Federal e em m ais 20 cidades do estado de São Paulo, esta hipótese não foi provada. Nesta in vestigação sobre violên cia dom éstica (SAFFIOTI , in édito), n en hum a in form an te, que fora vítim a de abuso sexual de qualquer espécie, r evelou ten dên cia, seja de fazer outr as vítim as, seja de m aior vuln erabilidade a ten tativas de abuso contra si m esm a. Não se defende a postura de que abusos sexuais sejam in ócuos, n ão provocan do traum as de difícil cura. Ao contrário, em outra pesquisa, esta sobre abuso incestuoso, não se encontrou nenhum a vítim a resiliente (SAFFIOTI , 1992). A r esiliên cia con stitui fen ôm en o m uito r ar o. São r esilien tes pessoas capazes de viver terríveis dram as, sem , contudo, apresentarem um só indício de traum as, sendo, portanto, consideradas, por m eio da aplicação de testes e da observação de sua con d u ta, absolu tam en te n or m ais. Na m en cion ad a pesqu isa, assim com o n a vastíssim a literatura especializada in tern acion al, o abu so sexu al, sobr etu d o in cestu oso, d eixa fer id as n a alm a, que san gram , n o in ício sem cessar, e, posteriorm en te, 18 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 18 25/1/2011, 09:28 sem pre que um a situação ou um fato lem bre o abuso sofrido. A m agn itude do traum a n ão guarda proporcion alidade com relação ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas com êxito num grande núm ero de casos. Feridas da alm a podem , igualm en te, ser tratadas. Todavia, as probabilidades de sucesso, em term os de cura, são m uito reduzidas e, em grande parte dos casos, não se obtém nenhum êxito. Dom inaram o século XX dois pensam entos: o de Marx e o de Freud. Am bos, cada um a seu m odo e em seu cam po, questionaram agressivam ente as sociedades em que viveram . Produziram ideias e análises, por conseguinte, subversivas, legando am bos às gerações posteriores patrim ôn ios culturais até hoje valorizados. No caso de Freud, porém , um a parte desta herança tem produzido resultados extrem am en te deletérios às vítim as de abuso sexual, em especial do abuso in cestuoso. Para Freud, e hoje para m uitos de seus seguidores, os relatos das m u lh er es, qu e fr equ en tavam seu con su ltór io, sobr e abu sos sexuais con tra elas perpetrados por seus pais eram fan tasias derivadas do desejo de serem possuídas por eles, destron an do, assim , suas m ães. Na pesquisa realizada entre 1988 e 1992 (SAFFIOTI , 1992), n ão se en con trou um só caso de fan tasia. A criança pode, e o faz, enfeitar o sucedido, m as sua base é real, isto é, foi, de fato, m olestada por seu pai. Contudo, o escrito de Freud tran sform ou-se em bíblia e a crian ça perdeu credibilidade. Trata-se, em sua m aioria esm agadora, de m ulheres, que represen tam cerca de 90 % do un iverso de vítim as. Logo, os hom en s com parecem com o vítim as em apen as 10 % do total. De outra parte, as m ulheres agressoras sexuais estão entre 1% e 3%, enquanto a presença m asculina está entre 97% e 99%. Na pesqu isa sobr e abu so in cestu oso, já r efer ida, n ão se en con tr ou n en h u m gar oto com o vítim a. Por via de con sequ ên cia, tam pou co h avia m u lh er es n a con d ição d e per petr ad or as d e abuso sexual. É preciso, con tudo, pen sar que pais vitim izam não apenas suas próprias filhas, com o tam bém seus filhos. Num país tão m ach ista quan to o Brasil, este é um segredo m uito bem guardado. Se a vizinhança souber, dirá que o destino da19 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 19 25/1/2011, 09:28 quele garoto está selado: será hom ossexual, na m edida em que foi pen etrado, fen ôm en o específico de m ulher. Se o dado in ter n acion al é d e 10 % d e m en in os sexu alm en te vitim izad os, pode-se con cluir que, aqui, o fato ocorre, pelo m en os, n esta proporção. O m achism o, n um a de suas facetas altam en te n egativas para os hom ens – e há m uitas – , oculta estas ocorrências, em vez de fazer face a elas e im plem en tar políticas que visem , n o m ín im o, a sua drástica redução. Retom an do resultados da investigação m encionada, todos os agressores sexuais eram hom ens e, entre eles, 71,5% eram os próprios pais biológicos, vin do os padrastos em segun do lugar e bem distan tes dos pr im eir os, ou seja, r epr esen tan do 11,1% do u n iver so de agr essor es. Em p equ en os p er cen tu ais, com p ar ecer am avós, tios, prim os. Com o a pesquisa foi con cluída em 1992, era pertin en te levantar a hipótese de estes dados já não corresponderem à realidade atual. A pertinência da hipótese reside na m udança da com posição das fam ílias. Dada a facilidade com que se desfazem as uniões conjugais – legais ou consensuais – e a m esm a facilidade com que cada m em bro do casal reconstitui sua vida am or osa com ou tr as p essoas, as fam ílias com p ad r astos (e m ad r astas) au m en tar am em n ú m er os absolu tos e r elativos. Nada m ais justo, portanto, do que suspeitar que houvesse crescido o per cen tual de padr astos n o un iver so do abuso in cestuoso. Mais um a vez, os dados obtidos de casas-abrigo para vítim as de violên cia con firm aram os obtidos n a in vestigação realizada entre 1988 e 1992. O pai continua a ser o grande vilão, devoran do sua própria prole, con stituin do este fato um a agravan te tan to pen al quan to psicológica. O tabu do incesto O pai biológico é o adulto m asculin o n o qual a crian ça (m en or de 18 an os) m ais con fia. Este fato respon de pela m agn itude e pela profun didade do traum a. Nas cam adas m ais bem aquin hoadas, social e econ om icam en te falan do, o abuso obe20 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 20 25/1/2011, 09:28 dece à r eceita da sedu ção: m aior aten ção par a aqu ela filh a, m ais presen tes, m ais passeios, m ais viagen s etc. As técn icas são bast an t e sofist icad as, avan çan d o len t am en t e n as car ícias, qu e p assam d a t er n u r a à lascívia. Mu it as vezes e d epen d en d o d a id ad e d a cr ian ça, esta n em sabe d iscer n ir en tr e u m e ou tr o tipo de car ícia, sen do in capaz de localizar o m om en to da m udan ça. Como a sexualidade da mulher é difusa por todo o corpo e a sexualidade infantil não é genitalizada, as carícias percorrem toda a superfície de seu corpo, proporcionando prazer à vítim a. Posteriorm ente, recorrendo o adulto a pomadas especiais, dilata o ânus e o reto da filha (ou filho), a fim de preparar o caminho da penetração anal, pois a oral já ocorrera e também esta pr ovocar a pr azer n a m en in a. A pr ática da cun n ilin gus é relatada pelas m en in as com o m uito prazerosa. Nem t od a s a p r ecia m o fella t io. Aca b a , n o en t a n t o, sen d o u m a u n an im id ad e en tr e as vítim as, u m a vez qu e obed ece à lei d a r ecip r ocid ad e. Depois de todos estes passos, que in tegram a in iciação da crian ça n a sexualidade do adulto, vem a pen etração vagin al. Alguns hom ens, assim que a m enina tem sua m enarca, ou prim eira m en struação, con trolam seu ciclo m en strual, só m an ten do relações sexuais com ela n os períodos estéreis. Outros pr efer em adm in istr ar às filh as o an ticon cepcion al or al, cuidando para que elas o tom em todos os dias. Não se encontrou n en hum caso de gravidez de m en in as perten cen tes às classes m édias altas, nas quais é com um o pai ter educação superior. Nas cam adas social e econ om icam en te desfavorecidas, o processo é rápido e brutal. O pai coloca um revólver, na m ais fina das hipóteses, ou um a faca de cozinha junto à cam a ou sobre ela, joga a m enina sobre o leito, rasga-lhe as roupas e a estupr a, am eaçan do-a de m or te, se gr itar , ou am eaçan do m atar toda sua fam ília, se abrir a boca para con tar o sucedido a alguém . Não se pode negar que o pai instruído procede à iniciação sexual de sua filha de form a delicada, sem violência física ou am eaças neste sentido. Sim plesm ente, pede à m enina para não contar a ninguém , especialm ente a sua m ãe, “justificando” 21 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 21 25/1/2011, 09:28 que esta sen tiria ciúm e, daí poden do derivar sérios con flitos. No caso do pai pobre e de baixa escolaridade, vai-se diretam ente ao ato sexual, sem prolegôm enos de nenhum a espécie: n ão h á carícias, n ão h á um avan çar paulatin o. Por estas razões, é brutal. Todavia, as con sequên cias, para a vítim a, são certam en te opostas às esperadas pelo leitor. Este poderia, acredita-se, im agin ar um a associação positiva entre a brutalidade do pai na abordagem da m enina ou m enino das cam adas sociais m en os favorecidas e a profun didade do traum a causado em sua filha pelo estupro ou pela penetração an al, n o caso do garoto. Um caso de abuso in cestuoso, n um a fam ília pobr e, m as n ão m iser ável, r evelou qu e o m ar id o d e um a sen hora, ten do esta levado para seu segun do casam en to duas filhas de um a un ião an terior, foi capaz de estuprar, em ordem cron ológica, a en teada m ais velha, a en teada m ais jovem , a própria filha. Em seguida, chegou a vez dos filhos. Fez penetração oral e anal no m ais velho, no que sucedeu a este na ordem dos nascim entos, e, finalm ente, no m ais novo, que apresen t ava r et ar d o m en t al, ou seja, agr avan t e p en al. Além d e cunnilingus, fellatio, penetração anal e estupro, não se encontrou nenhum outro tipo de abuso nas cam adas desfavorecidas. Em razão da sexualidade ser exercida de diferentes m aneiras, segun do o m om en to histórico (a pederastia n a an tiga Aten as n ão era o m esm o que o hom ossexualism o de hoje), o tipo de sociedade, a classe social, a etnia, pode-se esperar que a abord agem “am or osa” n o abu so sexu al p er p etr ad o p elo h om em rude e sem in strução seja igualm en te rude. E, de fato, é isto que ocorre. Entretanto, e felizm ente, porque a pobreza atinge a m aioria dos habitantes, esta “brutalidade” não produz traum as a ela proporcion ais. Se assim n ão fora, haveria m ais um item negativo a ser incluído na cham ada cultura do pobre. A m en in a pobre, sozin h a em casa com seu pai, n ão tem a quem apelar. A presen ça da arm a bran ca ou de fogo reitera perm an en tem en te as am eaças verbais. Ela n ão tem escapatória. En trar em luta corporal com seu pai só pioraria as coisas. Prim eiro, n ão poden do m edir forças com um hom em adulto, 22 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 22 25/1/2011, 09:28 p od er ia sair m u it o fer id a d aqu ela sit u ação. Segu n d o, e em últim a in stân cia, poderia perder a vida n esta brin cadeira de m au gosto. A rigor, n ão h avia saída. Se n ão h avia escapatór ia, ela é, in dubitavelm en te, vítim a e com o tal se con cebe e defin e. Logo, n ão há razões para sen tir-se culpada. As m ulheres são trein adas para sen tir culpa. Ain da que n ão haja razões ap ar en t es p ar a se cu lp abilizar em , cu lp abilizam -se, p ois vivem n um a civilização da culpa, para usar a lin guagem de Ruth Ben edict (198 8 ). No caso aqui n arrado, porém , talvez a m en in a ain da n ão h ouvesse in trojetado a “n ecessidade” cristã de se culpabilizar. Adem ais, salvou sua fam ília da m orte. Desta sorte, esta m en in a n ão se vê com o culpada; vê-se com o vítim a. En tre as 63 vítim as estudadas, n en hum a delas, n as con d ições d a d escr it a, se cu lp abilizou . Dad as as con d ições d o estupro, 11 delas tiveram filhos dos próprios pais. Não é raro ouvir destes pais: “Don a, eu pus esta m en in a n o m un do, eu criei ela, ela é m in ha. A sen hora acha que vou en tregar ela a qu alqu er u m ? Não, ela é m in h a. Só n ão sei com o r egistr ar a crian ça. Registra com o filho ou com o n eto?”. Das m ães, m as sem un an im idade, ouve-se: “Don a, se eu posso aguen tar, por que ela n ão pode m e ajudar a carregar este fardo?”. Esta resp osta vem d e m u lh er es socializad as p ar a “sofr er ” a r elação sexual, destin ada à procriação, n ão para dela desfrutar, n ão para dela extrair prazer, in depen den tem en te de ela resultar n um a gravidez. Pen san do deste m odo, n ão se lastim a por n ão haver sido capaz de proteger a filha das in vestidas sexuais de seu próprio pai. Mais do que isto, a relação sexual é, para ela, um far do tão pesado, que n ecessita do auxílio da filh a par a carregá-lo vida afora. Outras m ães ten tam culpabilizar as filh as, pois, a seu ver, as m en in as seduziram seus pais. Pode, portan to – e isto foi en con trado – , surgir o con flito en tre m ãe e filh a; até m esm o a r uptur a da r elação. Todavia, a m en in a n ão se vê com o culpada. Afin al, n ão foi ela que salvou toda sua fam ília? Só se en con trou um caso de rejeição da crian ça por parte de sua jovem m ãe. Em todos os dem ais, elas adoravam os filhos que tiveram com o fruto de estupro in cestuoso. 23 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 23 25/1/2011, 09:28 H ouve um a que até fez o chá de bebê, quan do estava n o sétim o m ês de gravidez. Elas recusaram ofertas de aborto. Não h avia, n aquela ocasião, h ospitais que realizassem os ch am ad os abor t os legais. Legais, p or qu e est avam p r evist os com o atos n ão-cr im in osos, com o con tin u am , aliás, n o Código Pen al em vigor, de 1940 . Apen as sua parte geral sofreu alterações, a específica, n ão. Isto equ ivale a d izer qu e n ão h ou ve n en h u m a m u d an ça n os t ip os p en ais. Afir m ou -se, an t er ior m en te, que n as cam adas sociais subprivilegiadas en con tram se cun n ilin gus, fellatio, pen etração an al e estupro. Even tualm en te, um pai m ais “sen sível” pod e fazer cer tas car ícias. A possibilidade está aberta, em bora n ão se ten h a n en h um caso para expor. A m en ção dos quatro atos sexualm en te abusivos foi n ecessária em virtude de o Código Pen al referir-se à relaçã o sexu a l ocor r id a n o est u p r o com a exp r essã o “con ju n ção car n al”, com u m n a época par a d esign ar pen etr ação vagin a l. Assim , é er r ôn eo d izer -se q u e Pixot e (q u em n ã o se lem bra do film e?) foi estuprado. Com o h om en s n ão têm vagin a, as ún icas pen etrações que podem sofrer são a oral e a an al. Algu m as fem in ist as elabor ar am u m a p r op ost a d e r eform a da parte específica do Código Pen al, am plian do o con ceito de estupro, que passaria a in cluir os três tipos de pen etração: oral, an al e vagin al4 . Retom ando-se a com paração do abuso incestuoso entre pobres e entre ricos, para sim plificar, há que dizer que, de outro lado, está a m enina m im ada, acariciada, pensando estar o pai Nesta sessão, trabalhamos: uma representante do CFEMEA, grupo que atua junto ao legislativo federal nos assuntos pertinentes à causa feminista, a advogada Silvia Pimentel e eu, pelo fato de ter feito o curso de Direito e de, como socióloga, ter estudado o abuso sexual e o abuso incestuoso. Creio que solicitaram minha colaboração, sobretudo, pelo fato de que distingo incesto de abuso incestuoso, e uma das questões incidia exatamente na pergunta: deve-se ou não criminalizar o incesto? Fui e sou contra pelas razões que se seguem. Se um rapaz e uma moça, irmãos entre si, se apaixonarem um pelo outro, terão que enfrentar a reprovação quase unânime da sociedade por haverem violado um dos mais sérios tabus sociais. Se eles tiverem idades próximas, maioridade 4 24 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 24 25/1/2011, 09:28 apaixon ado por ela e já n ão am an do sua esposa. Vê sua m ãe com o sua com petidora, sua rival, dian te da qual ela, bem jovem , leva vantagens: sua beleza fresca é de lolita, sua pele não tem rugas e, portanto, é acetinada. Na m edida em que sua m ãe é con sider ada r ival, n ão pode se in teir ar dos fatos, que, em casos sem elhantes a este, duram de sete a oito anos, podendo ir m ais lon ge. Esta cr ian ça foi, cau telosa e gr ad ativam en te, in troduzida n as artes do am or por seu próprio pai, provedor tam bém de pr azer sexual. Tr ata-se, por con seguin te, de um pai am ado. Entretanto, há a outra face da m oeda: com o nunca r eagiu con tr a as p r ovocações d e seu p ai, com o n em sequ er soube identificar o m om ento da transform ação da ternura em libid in agem , colabor ou com o pai d u r an te tod o o pr ocesso. Ain da que, a rigor, n ão ten ha n en hum a culpa, tam pouco respon sabilidade, n ão se vê com o vítim a, que realm en te é, m as com o copartícipe. Disto deriva um a profun da culpa. Em bora não haja sido, em nenhum m om ento, cúm plice de seu pai, sente-se com o tal e inim iga de sua m ãe. Sua culpa é proporcional à delicadeza do processo de sedução utilizado por seu pai. Ela sente-se a sedutora. Logo, seu pai foi sua vítim a. Obviam ente, n en hum a das duas abordagen s con vém à crian ça. Em term os de danos psíquicos e distúrbios sexuais posteriorm ente m anifestados, o abuso sexual via sedução é infinitam ente pior que a brutalidade do pai m enos instruído e m enos m aneiroso. Isto é im portante para que, m ais um a vez, não se caracterize tudo que é m au com o integrante da cultura do pobre. Fulano e realmente se amarem, não me sinto, nem como profissional, nem como cidadã, no dever de defendê-los nem no de acusá-los. Sua relação é par, um não tendo poder sobre o outro; e sua vontade é convergente. Muito distinto disto é o abuso incestuoso: as idades são muito diferentes, o que traz consigo uma relação díspar, ou seja, atravessada pelo poder. As partes encontram-se em posições muito diversas, uma tendo autoridade sobre a outra, e não existe convergência de vontades. Países em que o incesto era considerado crime têm procedido no sentido de descriminá-lo. Para citar apenas alguns: Estados Unidos, muitos países europeus e latino-americanos. O Equador, que tem uma lei especificamente sobre violência doméstica, descriminou o incesto. 25 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 25 25/1/2011, 09:28 estu p r ou su a filh a, esp an ca r egu lar m en te su a m u lh er ? Isto ocor r e n as favelas, n os cor tiços, n o m eio pobr e 5, diz-se. No seio das cam adas abastadas, form a-se um a cum plicidade dos m em bros da fam ília, estabelecen do-se o sigilo em torn o dos fatos. O n om e da fam ília n ão pode ter m ácula. Con seguiu-se descobrir um a única fam ília incestuosa. Chegou-se ao portão, m as n ão foi possível ultr apassá-lo. As in for m ações dispon íveis foram facilitadas à pesquisadora por um a am iga de um a das filhas. Esta filha sofria abusos sexuais de toda ordem , perp etr ad os p or seu p ai. Só con fiou seu segr ed o a esta am iga. Em bora não haja dito nada explicitam ente, há indícios de que o pai abusava sexualm ente de todos os filhos e filhas. Recebiaos, cada um de um a vez, em seu quarto, o que, por si só, é, no m ínim o, estranho. Que o abuso ocorresse com todos os filhos e filhas constitui um a hipótese, não inteiram ente infundada. A con spiração do silên cio, todavia, im pediu a pesquisadora de estudar esta fam ília. O argumento de quem justifica, se não defende, a conduta de agressores sexuais reside no tipo de sexualidade masculina, di- Uma orientanda minha, cuja tese está praticamente pronta para a defesa, tem, entre suas entrevistadas (todas de classe média alta e alta), a esposa de um juiz. Também em caso de violência doméstica, as mulheres mais bem aquinhoadas levam desvantagem. Em sua entrevista, a espancada observa: como posso denunciá-lo, se a investigação deveria ser realizada por profissionais que o respeitam muito (ele é respeitadíssimo na cidade em que atua como profissional e vive num município de cerca de 200 mil habitantes, na Bahia) e, em última instância, o caso seria julgado por um colega seu? Quando esta moça, que já havia feito mestrado, sob minha orientação, sobre violência contra mulheres das camadas sociais menos favorecidas, procurou-me dizendo desejar continuar com o mesmo tema, eu lhe disse que os pesquisadores adoram estudar pobres, porque é mais fácil, eles estão quase sempre abertos a falar sobre o assunto (no caso de violência doméstica, quem fala são as mulheres, os homens fogem; em minha pesquisa sobre abuso incestuoso, entrevistei vítimas, suas mães e outros parentes ou vizinhos conhecedores dos fatos; tentei arduamente entrevistar agressores, mas consegui falar com muito poucos e todos mentiram descaradamente), que o difícil é estudar os ricos, já que, para não ter seu status abalado, seu nome sujo, eles se fecham. Ela aceitou o desafio e, pelo que eu lhe disse e ela verificou, o título da tese é O preço do silêncio. 5 26 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 26 25/1/2011, 09:28 ferente da fem inina. Afirm am que a sexualidade da m ulher só aflora quando provocada, e vários são os meios de fazê-lo, o que é uma meia verdade. A mulher foi socializada para conduzir-se com o caça, que espera o “ataque” do caçador. À m edida, n o entanto, que se liberta deste condicionamento, passa a tomar a iniciativa, seja no seio do casamento, seja quando deseja namorar um rapaz. Como o homem foi educado para ir à caça, para, na condição de m acho, tom ar sem pre a iniciativa, tende a não ver com bons olhos a atitude de mulheres desinibidas, quer para tom ar a dian teira n o in ício do n am oro, quer para provocar o homem na cama, visando a com ele manter uma relação sexual, salvo no seio de tribos da juventude, pelo m enos das grandes cidades, em que isto é um a prática corren te. Os con dicion amentos sociais induzem muitos a acreditar na incontrolabilidade da sexualidade m asculin a. Se assim fora, ter-se-iam relações sexuais, ou mesmo estupros, nas ruas, nos salões de dança, nos restaurantes, nos cafés etc. Obviam ente, qualquer pessoa, seja hom em ou m ulher, pode con trolar seu desejo, postergar sua concretização, esperar o momento e o local apropriados para a busca do prazer sexual. É evidente que a esm agadora m aioria de homens e de mulheres atua desta maneira, mesmo porque a sociedade é regida por numerosas normas. Não se trata de leis com o as da Física, que ocorrem inexoravelm ente. Quer Newton desejasse ou não que a m açã solta por ele caísse ao solo, ela cairia da m esm a form a. As regras sociais são passíveis de transgressão e são efetivam ente violadas. No caso em pauta, há o tabu do incesto, segundo Lévi-Strauss (1976), d e car áter u n iver sal, em bor a o in ter d ito n ão r ecaia sem pr e sobre as m esm as pessoas, quando se passa de um a sociedade a outra. A un iversalidade do tabu do in cesto é con testada por Meillassoux (1975). O tabu em pauta significa um a interdição, um não à possibilidade socialm ente não-aceita de certas pessoas se casarem en tre si. Na sociedade ociden tal m odern a, o interdito recai sobre parentes consanguíneos ou afins. No caso específico do Brasil, o novo Código Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 20 0 3, afirm a: 27 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 27 25/1/2011, 09:28 “Art. 1.521. Não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; I I – os afins em linha reta; I I I – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; I V – os irm ãos, unilaterais ou bilaterais, e dem ais colaterais, até o terceiro grau in clusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VI I – o côn juge sobreviven te com o con den ado por hom icídio ou ten tativa de hom icídio con tra o seu con sorte”. O projeto deste novo Código Civil tramitou no Congresso Nacion al, m uito len tam en te, duran te 26 an os, o que equivale a dizer que ele já nasceu desatualizado. Conservou o impedimento do matrimônio entre primos (parentes de terceiro grau), interdito cuja violação havia ocorrido m ilhares de vezes, sen do este tipo de união plenamente aceito pela sociedade. O tabu do incesto é inteiram ente social, nada havendo nele de biológico. Como a sociedade brasileira perdeu, ao longo de sua história, os rituais de tran sm issão destas proibições, ela m esm a criou as defesas sustentadoras do interdito. Trata-se de socializar as gerações imaturas na crença de que a prole de casais ligados entre si pelo parentesco apresenta anomalias de maior ou menor gravidade. As estatísticas existen tes sobre m ás-form ações fetais, mortes pré ou pós-natais não resistem à mais tênue crítica. A h is t ó r ia d e o u t r a s s o cie d a d e s co n s t it u i u m r e cu r s o extraordin ário em prol da n atureza exclusivam en te social do tabu do in cesto. No H avaí, era prescrito, portan to m ais que p er m itid o, o casam en to en tr e ir m ãos. O m esm o ocor r ia n o Egito, prim eiro n o seio da realeza, dissem in an do-se posteriorm en te por toda a população. Os descen den tes de irm ãos casados en tr e si er am de m uito boa qualidade, n em pior n em m elhor que as populações n as quais o in terdito recaía sobre irm ãos. Todo in terdito, ao m esm o tem po em que é um n ão, é 28 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 28 25/1/2011, 09:28 tam bém um sim . Sim plifican do, se irm ãs n ão são sexualm en te dispon íveis para seus irm ãos, o são para aqueles que n ão são seus irm ãos. Eviden tem en te, n o caso brasileiro, ter-se-ia que excluir todas as classes de in divíduos sobre quem pesa o n ã o, p ar a afir m ar -se qu e tod os os d em ais são sexu alm en te dispon íveis, ou seja, aqueles que carregam um sim . Isto equivale a dizer que, excluídas as classes de pessoas m en cion adas n o Código Civil, todas as dem ais m ulh eres são sexualm en te dispon íveis par a quaisquer h om en s. N ão e sim residem no interior de todas as interdições. Para ilustrar de m odo sim ples, pode-se tom ar as leis de trân sito. Um a tabuleta m ostra o sím bolo de que cam inhões não podem trafegar naquela via. O m esm o sím bolo significa sim para todos os dem ais veículos. Se, todavia, o m otorista de um cam in h ão passar por aquela rua, será n egativam en te san cion ado pela sociedade. A pena poderá ser o pagam ento de um a m ulta, pon tos n a carteira de habilitação etc. Quan to ao m atrim ôn io, os que não podem se casar entre si podem infringir esta norm a social. Com o, no civil, o casam ento será im possível, ele poderá concretizar-se pela união consensual, realizando-se ou não no religioso. Isto ocorre m uito no Brasil, sobretudo nas áreas de difícil acesso, lon ge do poder con stituído. En tretan to, n ão consta que tais populações apresentem , por exem plo, elevado percen tual de in divíduos m alform ados. En tão, para que con servar o tabu do in cesto, cuja tran sgressão, sobretudo en tre ascendentes e descendentes, é altam ente reprovada pela sociedade, isto é, san cion ada de form a m uito n egativa? Para que serve este tabu? O tabu do in cesto apresen ta alta relevân cia, pois é ele que revela a cada um seu lugar na fam ília, em vários outros grupos, enfim , na sociedade em geral. Gênero, raça/etnia, poder Rigorosam en te, a sociedade brasileira n ão tolera m esm o a união entre ascendentes e descendentes. Caso haja filhos desta união, as sanções negativas são ainda m ais severas. Um a hipó29 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 29 25/1/2011, 09:28 tese bastan te plausível pode ser levan tada: a prole destes casais m ostraria à sociedade que n en hum argum en to biológico apresenta con sistên cia. E a sociedade n ão pode abrir m ão de argum en tos desta ordem , n a m edida em que já n ão tem recursos para resgatar as an tigas práticas de tran sm issão, sem question am en tos, do in terdito. Isto posto, caberia um a pergun ta: por que se curram , n os presídios, estupradores de qualquer m ulher, em especial de crian ças? Se toda in terdição con tém um sim e um n ão, é pertin en te respon der a esta in dagação d a segu in te m an eir a: a estu p r ad a n ão er a sexu alm en te dispon ível para o estuprador, pois, se o fora, n ão teria ocorrido o estupro. Mas por que n ão poderia sê-lo para os dem ais pr esos? Tr ata-se, por con segu in te, d e in vasão d e ter r itór io, pr oced im en to m u ito pouco tolerado, especialm en te por m achões e ban didos. Ecologistas falam bastan te, e com pertin ên cia, sobre a n ecessidade de preservação do m eio am biente, da natureza. Não se ou vem , p or ém , ecologist as p r eocu p ad os com a ecologia m en tal n em com a ecologia social. Guattari, n um pequen o e prim oroso livro (1990 ), trata da ecosofia, englobando este term o as três ecologias. Com efeito, supondo-se que o ser hum an o pudesse se abster de agredir a n atureza, que sen tido teria este fato, já que não se poderia desfrutar de um a ecologia m ental, tam pouco de um a ecologia social, n um m un do pen etrado p ela cor r u p ção, aí in clu so o cr im e or gan izad o, atr avessad o pela am bição desm edida, levando filhos a m atarem seus pais, com requin tes de crueldade, e vice-versa, in vadido pelo ódio fundam entalista, disto decorrendo o terrorism o e as igualm ente fun dam en talistas reações a ele, en fim , n um m un do cujos por os for am pr een ch idos por pr ojetos de dom in ação-explor ação de lon guíssim a dur ação, dos quais der ivam a fom e, o m edo, a m orte prem atura, a ausência de solidariedade, a intolerância às diferenças? A este propósito, a resposta de hom ens negros ao racism o, m orm ente dos que conquistaram um a posição social e/ ou econôm ica privilegiada, foi o casam ento com m ulheres loiras. Se eles são socialm en te in feriores a elas em 30 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 30 25/1/2011, 09:28 razão da cor de sua pele e da textura de seus cabelos, elas são inferiores a eles na ordem patriarcal de gênero. Resultado: som a zero. Transform aram -se em iguais, nas suas diferenças, transform adas em desigualdades. Ocorre que isto tem con sequên cias. Há um contingente de m ulheres negras que não têm com quem se casar. Com o os n egros bran queados pelo din heiro se casar am e ain d a se casam com br an cas, em fu n ção d e u m a equ alização d as d iscr im in ações sofr id as, d e u m lad o, p elos n egros, de outro, pelas m ulh eres bran cas, em fun ção de seu sexo, n ão há com o se estabelecer tal igualdade en tre m ulheres n egras e hom en s bran cos, pois estes são “superiores” pela cor de sua pele e pela textura de seus cabelos, sen do “superiores” tam bém em razão de seu sexo. Na ordem patriarcal de gên ero, o bran co en con tra sua segun da van tagem . Caso seja r ico, en con t r a su a t er ceir a va n t a gem , o q u e m ost r a q u e o p od er é m a ch o, b r a n co e, d e p r efer ên cia , h et er os s exu a l (SAFFIOTI , 198 7). A dem ografia repercute estes even tos, form ando-se nela um buraco: a ausência de hom ens para m ulheres n egras casadouras. H á m ais um buraco dem ográfico a ser sen tido e deplorado crescen tem en te. Nas guerras en tre gan gues do n arcotráfico, na delinquência em geral, nos entreveros com a polícia, m orrem m uito m ais jovens de 17 a 25 anos que adultos. Que futur o, em ter m os m atr im on iais, ter ão as ad olescen tes d e h oje, um a vez que as m ulheres costum am casar-se com hom ens m ais velhos? Ou se inverte a situação, com o processo já em curso de casam en tos en tre hom en s joven s com m ulheres bem m ais velh as e pod er osas, ou estas joven s con for m am -se com su a con dição de população casadoura exceden te. No fun do, parece que am bos, hom ens e m ulheres, casam -se com o poder. Se esta h ipótese for verdadeira, é possível en con trar o h om em ser-hum ano e a m ulher-ser-hum ano em m eio a tanto poder? Do ân gulo da sexualidade, os h om en s deveriam , n os casam en tos, ter idade in ferior à das m ulheres, um a vez que estas podem ter vida sexual ativa enquanto durar sua própria vida, con tan do o hom em com um tem po lim itado. Aliás, quan to à 31 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 31 25/1/2011, 09:28 sexualidade, as m ulheres levam um a série de vantagens com parativamente aos homens. As mulheres, como não têm phallus 6 , têm sua sexualidade difusa por todo o corpo. Assim , falar em zonas erógenas para as m ulheres não é correto, pois todo seu corpo o é. Poder-se-ia tam bém afirm ar que o corpo das m ulheres é inteiram ente am or, na m edida em que erógeno deriva de Eros, deus do am or, na m itologia grega. Enquanto m uitas m ulh eres são m ultiorgásm icas, n os h om en s este fen ôm en o n ão ocorre. Em bora raro, o priapism o 7, visto com o um a superioridade dos m achos, na verdade não chega a ser nem sequer um a van tagem . Se esta existir, perten ce às m ulheres vin culadas a hom ens priápicos. Mais ainda, o prazer do orgasm o é registrad o em a p en a s u m p on t o d o cér eb r o m a scu lin o, ou seja , o septum . Nas m ulheres, são três os pontos em que este registro ocor r e: sep t u m , h ip ot á la m o e a m íg d a la 8 . Dir -se-ia qu e as m ulheres desfrutam da triplicação do prazer do orgasm o. Adem ais, as m ulheres, quan do férteis 9 , são capazes de con ceber, en qu an to aos h om en s só r esta in vejá-las. Aliás, n a obr a d e Freud, a inveja do pênis, alim entada por m ulheres, porque este órgão represen ta poder, assim com o a in veja da m atern idade são con ceitos que gozam do m esm o estatu to teór ico. Tod avia, fala-se e escreve-se m uito m ais sobre o prim eiro que sobre o segun do. Se Freud foi o m aior m isógin o da história da hum an idade, e o foi, seus seguidores o im itaram / im itam , de- Phallus significa poder, sendo representado pelo pênis. Priapismo consiste numa ereção dolorosa e permamente, não acompanhada de desejo sexual. 8 Não se trata das amígdalas da garganta, mas de uma porção do cérebro. 9 Há mais homens estéreis que mulheres. O sexismo, contudo, trata de ocultar este fato, sendo responsável pela suspeita de que sempre se pode imputar a esterilidade a elas. Tanto assim é que, nos casais sem filhos, é sempre a mulher que se submete a exames de fertilidade. Só depois que esta fica provada, o homem se dispõe a procurar um andrologista ou urologista. Comprovada a esterilidade masculina, em geral, a mulher é proibida de divulgar este resultado. A falha, no homem, deve continuar oculta. Isto é puro machismo, porquanto a esterilidade não impede o homem de ter excelente desempenho sexual. Como todo preconceito, este também é baseado na ignorância. 6 7 32 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 32 25/1/2011, 09:28 m on stran do fidelidade até n este pon to. A in veja da m atern idade é tão vigorosa que hom en s sexualm en te im poten tes pagam um preço m ais alto a prostitutas grávidas, som en te para con versar com elas e alisar-lhes a barriga. Con tudo, a in veja da m atern idade quase n ão se apresen ta em livros e em artigos, vive n a obscu r id ad e. Não foi gratuita a alta con sideração devotada às m ulh eres por parte dos hom ens, quando ainda não se conhecia a participação m asculina no ato da fecundação. Capazes de engendrar um a nova vida, de produzir todos os nutrientes necessários ao desen volvim en to dos fetos e, ain da, de fabricar in tern am en te leite para alim en tar os bebês, eram con sideradas seres poderosos, m ágicos, quase divinos. Caíram do pedestal, quando se tom ou con hecim en to da im prescin dível, m esm o que efêm era, colaboração m asculin a n o en gen dram en to de um a n ova vida, m as persistiu a inveja de dar à luz novas criaturas. No fundo, os hom en s sabem que o organ ism o fem in in o é m ais diferen ciado que o m asculino, m ais forte, em bora tendo m enor força física, capaz de suportar até m esm o as violências por eles perpetradas. Não ignoram a capacidade das m ulheres de suportar sofrim en tos de ordem psicológica, de m odo in vejável. Talvez por estas razões tenham necessidade de m ostrar sua “superioridade”, den otan do, assim , sua in ferioridade. A gíria, perm eada desta ideologia sexista, revela bem isto. A genitália fem inina apresenta m uito m ais sem elhança com um a boca que a m asculina. Com o na ideologia está presente, necessariam ente, a inversão dos fenôm enos, é m uito frequente hom en s se van glor iar em d e h aver “com id o” fu lan a, belt r an a, cicrana. Ora, a conform ação da vulva e da vagina perm ite-lhes “com er”. Por que existe o m ito da vagina dentada? Por que há m uitos hom ens, se não todos, com m edo de ter seus pênis decepados por esta vagin a devor ador a? Por que sen tem m edo exat am en t e n o m om en t o d o or gasm o fem in in o, qu an d o os m úsculos da vagin a se con traem n um m ovim en to que parece visa r a o a p r ision a m en t o? En t ã o, n a gír ia m a ch ist a , q u em “com e” quem ? Todos os elem entos foram oferecidos ao leitor, 33 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 33 25/1/2011, 09:28 a fim de que ele possa responder a esta questão. Mais do que isto, tais elem en tos con vidam os leitores a um a reflexão, visan do a con h ecer-se m elh or e, talvez assim , poderem con viver m ais prazerosam ente com suas parceiras. Mas tam bém se oferecem elem entos à reflexão das leitoras. Elas poderão contar aos hom en s que a revelação de suas fraquezas os torn ará m ais fortes, m ais sensíveis, m ais am orosos. Desta form a, eles poderão perder o m edo, fator que con corre para a tran sform ação da agressividade, um a força propulsora m uito positiva, em agressão, ato tão destrutivo – e autodestrutivo – quanto devastador . Além disto, com o se acr edita qu e o em pobr ecim en to da sexualidade m asculin a foi historicam en te produzido, tanto o hom em quanto a m ulher podem trabalhar no sentido da recuperação de um a sexualidade m ais rica, espalhada por todo o corpo, abrin do ele m ão de seu poder em face das m ulh er es à m edida que o pên is per de im por tân cia, ou seja, que sua sexualidade deixa de se concentrar neste órgão. Nem hom ens nem m ulheres têm qualquer coisa a perder com experiências deste tipo. Têm , de outra parte, m uito a ganhar, caso o resgate da sexualidade m asculin a seja com pleto. A ilustração, feita por m eio da gíria, a propósito de um a ideologia sexista que esconde um a desvantagem m asculina, transform an do-a em van tagem , servirá para m ostrar que, em toda ideologia, seja m achista, seja étnico-racial, ou ainda de classe social, está sem pre presente a inversão do fenôm eno. Isto não é apenas um detalhe, m as o núcleo duro da ideologia. Portanto, é in teressan te retê-lo, um a vez que todos os m em bros de um a sociedade com o a brasileira con vivem com tais falácias, acreditando nelas com o verdades. Mais do que isto, cada um a sua m aneira é portador destas ideologias. Obviam ente, os hom ens gostam de ideologias m achistas, sem sequer ter noção do que seja um a ideologia. Mas eles não estão sozinhos. Entre as m ulheres, socializadas todas na ordem patr iar cal d e gên er o, qu e atr ibu i qu alid ad es positivas aos h om ens e negativas, em bora nem sem pre, às m ulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias dom inantes 34 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 34 25/1/2011, 09:28 de gênero, ou seja, poucas m ulheres questionam sua inferioridade social. Desta sorte, tam bém há um n úm ero in calculável de m ulheres m achistas. E o sexism o não é som ente um a ideologia, reflete, tam bém , um a estrutura de poder, cuja distribuição é m uito desigual, em detrim ento das m ulheres. Então, poder-se-ia perguntar: o m achism o favorece sem pre os hom ens? Par a fazer ju stiça, o sexism o pr eju dica h om en s, m u lh er es e suas relações. O saldo n egativo m aior é das m ulheres, o que n ão deve obn ubilar a in teligên cia daqueles que se in teressam pelo assu n to da dem ocr acia. As m u lh er es são “am pu tadas”, sobretudo n o desen volvim en to e uso da razão e n o exercício do poder . Elas são socializadas par a desen volver com por tam en tos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os hom en s, ao con t r ár io, são est im u lad os a d esen volver con d u t as agr essivas, perigosas, que revelem força e coragem . Isto con stitui a raiz de m uitos fenôm enos, dentre os quais se pode realçar o fato de seguros de autom óveis exclusivam en te dirigidos por m ulh eres custarem m enos, porque, em geral, elas não usam o carro com o arm a, correm m enos e são m ais prudentes. Mas há um sem -núm ero de fatores prejudiciais aos hom ens. Para ilustrar, tom a-se a situação em pregatícia no Brasil atual, sob pena de reiteração. Há cidades, com o São Paulo, em que a taxa de desem prego já ultrapassou, em certo m om ento, os 20 % da força de trabalho. Além de se tratar de um a proporção insusten tável, há m uito desem prego de lon ga duração. Isto repercute em toda a população, de form a negativa. Os hom ens, contudo, são os m ais afetados, na m edida em que sem pre lhes coube prover as necessidades m ateriais da fam ília. E este papel de provedor constitui o elem ento de m aior peso na definição da virilidade. H om en s que experim en tam o desem prego por m uito tem po são tom ados por um profundo sentim ento de im potên cia, pois n ão h á o que eles possam fazer. Além de o sen tim en to de im potên cia ser gerador de violên cia, pode resu ltar tam bém em im p otên cia sexu al. H á h om en s qu e ver balizam preferir m orrer a ficar sexualm ente im potentes. Nem n este caso se perm ite ao h om em ch orar. Isto con siste n um a 35 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 35 25/1/2011, 09:28 “am pu tação”, pois h á em oções e sen tim en tos capazes d e se exp r essar som en t e p elo ch or o. Pesqu isas já d em on st r ar am (CH OMBART DE LAUWE , 1964) que glân dulas lacrim ais de hom ens sofrem o processo de atrofia, por desuso. Se um a m ulher for abordada por um hom em seja para sair, seja para dançar, ela pode recusar, pois o jogo é o da caça e do caçad or . Se, en tr etan to, u m h om em for abor d ad o p or u m a m ulher com as m esm as intenções, e ele não se interessar por ela, recusando o convite, im ediatam ente é alcunhado de “m aricas”. Pensando num a situação m ais séria, m as não incom um , rapaz e m oça num m otel, e ele, por estar estressado, excessivam en te can sado, triste em virtude de um even to qualquer, não conseguir ter um a ereção duradoura, sente-se coberto de ver gon h a. Mesm o qu e a m oça seja com pr een siva e lh e diga qu e ist o ocor r e com t od os os h om en s, o abor r ecim en t o d o rapaz é en orm e. Por quê? Porque h om em n ão falh a, ou m elhor, não tem o direito de falhar num a situação com o a figurada, já que representa a força, quase a perfeição. Não é fácil ser hom em . Se há um a tarefa perigosa a ser realizada, por um grupo sexualm ente m isto, é sem pre um hom em o escolhido para fazê-la. Se tiver bom gosto seja para se vestir, seja para decorar sua casa, não é verdadeiram ente hom em , fica no lim bo dos prováveis hom ossexuais. Se é sen sível, é efem in ado. Esta situação não é conveniente nem para hom ens nem para m ulheres. Segundo J ung (1992), tanto hom ens quanto m ulheres são dotados de anim us e anim a, sendo o prim eiro o princípio m asculino e a segunda, o princípio fem inino. O ideal seria que am bos fossem igualm en te desen volvidos, pois isto resultaria em seres hum anos bem equilibrados. Todavia, a sociedade estim ula o hom em a desen volver seu an im us, desen corajando-o a desenvolver sua anim a, procedendo de m aneira exatam ente inversa com a m ulher. Disto decorrem , de um a parte, hom ens prontos a transform ar a agressividade em agressão; e m ulheres, de outra parte, sensíveis, m as frágeis para enfrentar a vid a com p etitiva. O d esequ ilíbr io r esid e ju stam en te n u m anim us atrofiado nas m ulheres e num a anim a igualm ente pouco 36 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 36 25/1/2011, 09:28 desenvolvida nos hom ens. Sendo o núcleo central de anim us o poder, tem -se, n o terren o político, h om en s aptos ao seu desem pen ho, e m ulheres n ão-trein adas para exercê-lo. Ou seja, o patriarcado, quando se trata da coletividade, apoia-se neste desequilíbrio resultan te de um desen volvim en to desigual de anim us e de anim a e, sim ultaneam ente, o produz. Com o todas as pessoas são a história de suas relações sociais, pode-se afirm ar, da perspectiva sociológica, que a im plantação lenta e grad u al d a p r im azia m ascu lin a p r od u ziu o d esequ ilíbr io en tr e anim us e anim a em hom ens e em m ulheres, assim com o resultou deste desequilíbrio. Ora, a dem ocracia exige igualdade social. Isto n ão sign ifica que todos os socii, m em bros da sociedade, devam ser iguais. Há um a grande confusão entre conceitos com o: igualdade, diferença, desigualdade, identidade. Habitualm ente, à diferença con t r ap õe-se a igu ald ad e. Con sid er a-se, aqu i, er r ôn ea est a concepção. O par da diferença é a identidade. J á a igualdade, con ceito d e or d em política, faz par com a d esigu ald ad e. As id en t id ad es, com o t am bém as d ifer en ças, são bem -vin d as. Num a sociedade m ulticultural, n em deveria ser de outra form a. Lam entavelm ente, porém , em função de não se haver alcançado o desejável grau de dem ocracia, há um a intolerância m uito gran de em relação às diferen ças. O m ais preocupan te são as gerações m ais jovens, cujos atos de crueldade para com ín dios, sem teto, h om ossexuais revelam m ais do que in tolerân cia; dem on stram rejeição profun da dos n ão-idên ticos. As desigualdades constituem fontes de conflitos, em especial quand o tão abissais com o n o Br asil. Em casos com o este, e eles existem tam bém em outras sociedades, as desigualdades traduzem verdadeiras contradições, cuja superação só é possível quando a sociedade alcança um outro estado, negando, de facto e de jure, o status quo. Neste estágio superior, não haverá m ais as contradições presentes no m om ento atual. No entanto, podem surgir outras no processo do devir histórico. Num a sociedade com o a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças/ etnias em interação e de classes sociais, o pensa37 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 37 25/1/2011, 09:28 m en to, refletin do estas subestruturas an tagôn icas, é sem pre parcial. O próxim o capítulo focalizará exatam en te o con hecim en to, em su a con d ição d e social. Em ou tr os ter m os, tod o con h ecim en to é social. 38 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 38 25/1/2011, 09:28 2. Descobertas da área das perfumarias H á vár ias taxion om ias d as ciên cias. Or a são classificad as em ciên cias n aturais, ciên cias biológicas e ciên cias hum an as; ora se reduzem a ciên cias da n atureza e ciên cias do espírito; ora, ain da, se dividem em ciên cias n aturais e exatas, de um lado, e ciên cias sociais, de outro; ou, en tão, em ciên cias duras e hum an idades. Os cien tistas que acreditam n a n eutralidade das ciên cias duras e n o com prom etim en to político-ideológico das ciên cias h u m an as e sociais ain da n ão com pr een deram o que é ciên cia. Por esta razão, se referem às ciên cias hum an as e sociais, pejorativam en te, com o perfum arias. Tais estudiosos podem receber vários n om es: bon s cien tistas, verd a d eir os cien t ist a s, m a u s cien t ist a s, cien t ist a s p r econ ceituosos. Parece que um a m an eira n ão-agressiva de den om in álos poder ia ser cien tistas sem visão plan etár ia ou cien tistas d e p ou cas leitu r as, a fim d e evitar o ter m o ign or an te, p ois n en hum a pessoa, por m ais culta que seja, dom in a o acervo de 39 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 39 25/1/2011, 09:28 d escob er t a s e in ven ções, com o t a m b ém d e h ip ót eses e d e den ún cias, acum ulado por acadêm icos e n ão-acadêm icos, ao lon go d e sécu los d o exer cício d o p en sar , d o exp er im en t ar , do observar, en fim , do pesquisar. A própria Física, ciên cia dura por excelên cia, por m eio de Capra 10 (1982; 1983), está contribuindo, e m uito, para pôr em questão os fundam entos da ciência clássica, oficial, de caráter restrito. A história, sobretudo da Segunda Guerra Mundial, está repleta de exem plos con cretos do en gajam en to político-ideológico das cham adas ciências duras. O diálogo entre Bohr, físico dinam arquês, e Heisenberg, físico alem ão, em Copenhague, durante a guerra, em plena corrida para a construção da bom ba atôm ica, e as atitudes an típodas de cada um em face do outro revelam o com prom etim en to político-ideológico da Física, considerada ciência neutra, portanto oposta às perfum arias. Não há neutralidade em nenhum a ciência, seja dura, seja perfum aria. Todas, absolutam ente todas, são fruto de um m om en to h istór ico, con ten d o n u m er osas con ju n tu r as, cu ja in tervenção, em qualquer cam po do conhecim ento, é cristalina. Não o é, certam ente, para qualquer olhar; só para o olhar crítico. Na Din am arca ocupada pelos n azistas, Bohr aliou-se ao grupo de Los Álam os, nos Estados Unidos, que trabalhava inten sam en te para con struir a bom ba atôm ica em tem po hábil de m atar cerca de 150 m il pessoas no J apão e deixar o am biente con tam in ado com radioatividade. H eisen berg, trabalhan do n um projeto sem elh an te, n as barbas da Gestapo, verdadeiro “Fritjof Capra recebeu seu Ph.D. na Universidade de Viena e realizou pesquisas sobre Física de alta energia em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos. [...] Ele é o autor de O tao da física, um bestseller internacional que vendeu meio milhão de exemplares e foi traduzido em muitas línguas.” “O futuro de Capra ainda não começou. Ao divulgar uma mescla de ciência no seu sentido mais restrito e de pesquisa ‘alternativa’, ele obriga os cientistas a fazerem com que ele aconteça, isto é, a subverter a ciência mecânica, reducionista e dura numa visão de sistemas científicos suaves e orgânicos” (publicado por Los Angeles Times.) Ambos os excertos estão publicados na primeira página de O ponto de mutação. 10 40 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 40 25/1/2011, 09:28 panóptico 11, utilizava-se de técnicas dilatórias, a fim de atrasar a construção da bom ba, não a tornando disponível em tem po hábil. Bohr ganhou a briga e a guerra, colaborando para a carnificina. A Heisenberg coube a autoria da form ulação do princípio da in certeza, que tan ta utilidade tem dem on strado em todos os cam pos do con hecim en to. Bem an tes de H eisen berg, n o século XIX, Karl Marx (1946; 19 51; 19 53; 19 57; 19 6 3a ; 19 6 3b ; 19 70 ) h a via for m u la d o o m esm o p r in cíp io, m ostr an d o ten d ên cias, m as d eixan d o esp aço p ar a o im p on d er ável. Est e even t o n ão t eve r ep er cu ssão quan to à in certeza que preside o desen rolar dos acon tecim e n t o s . Ao co n t r á r io , M a r x é , a in d a h o je , t a ch a d o d e d et er m in ist a p or a q u eles q u e ler a m su a ob r a com ca t egorias cartesian as (com a fin alidade de situar o leitor, Descart es viveu d e 1596 a 1650 , t en d o sid o, p or con segu in t e, u m p en sad or d o sécu lo XVII ). Ad em ais, p or qu e se d ever ia alim en t ar qu alqu er p er sp ect iva d e r ep er cu ssão p osit iva, se o que in teressava ao status quo era atacá-lo, a fim de preserva r a s d e s igu a ld a d e s s o cio e co n ô m ica s , q u e m a n t in h a m in tactos os lu gar es sociais d e cad a u m ? Os p r ivilégios, afin al, n ão iam ceder espaço aos con h ecim en tos revelados por um a obra da área das perfum arias. Estudando a história da violência nas prisões, em Vigiar e punir (1977), p.173-199, Foucault vale-se da imagem do panóptico. Na Ilha da Juventude, em Cuba, foi preservado um presídio do governo de Fulgencio Baptista, anterior à vitória da revolução, em 1959, para que todos pudessem observar o panóptico. Trata-se de um edifício circular, mais estreito na sua parte superior, quase em forma de cone, com uma única porta para o exterior. As portas de todas as celas dão para o interior do prédio e, no alto, um único guarda é suficiente para vigiar um grande número de prisioneiros, sem que estes possam saber em que momento são observados. Esta imagem adequa-se à descrição da vigilância exercida sobre as mulheres ou sobre trabalhadores ou, ainda, sobre negros. As categorias sociais contra as quais pesam discriminações vivem, imageticamente falando, no interior de um enorme panóptico – a sociedade – na medida em que sua conduta é vigiada sem cessar, sem que elas o saibam. Isto é um controle social poderoso, pois a introjeção das normas sociais por mulheres funcionam como um panóptico. Desta sorte, os maridos não têm com que se preocupar. 11 41 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 41 25/1/2011, 09:28 Capr a, n a Física, m as extr apolan do-a, tem desem pen h ado papel sem elhante ao de algum as fem inistas, cujo com bate incan sável à razão cartesian a tem produzido efeitos positivos. Evelyn Fox Keller , bióloga n or te-am er ican a, descr eveu um a trajetória profissional bastante inusual e interessante. Na instituição em que trabalhava com o bióloga, fazia pesquisas em colaboração com um colega. Seu m arido, professor un iversitário, teve seu an o sabático, decidin do aproveitá-lo para trabalhar em Berkeley, em pesquisas de seu cam po. Com o costum a acontecer, a m ulher acom panhou o m arido, levando os filhos. Lá se foi a fam ília viver durante um ano no centro nervoso, em perm anente ebulição, do fem inism o. Não dem orou nada para qu e Keller en tr asse em con tato com fem in istas m ilitan tes e com a literatura fem inista, toda da área das perfum arias. Tratava-se de obras de Antropologia, de Ciência Política, de Filosofia , d e P sicologia , d e Sociologia e d a s d em a is ciên cia s hum an as e sociais. Um a bióloga, que con tin uava a trabalh ar em sua profissão com os resultados dos experim en tos en viados por seu colega, len do obras fem in istas opostas ao cartesian ism o – e o atacan do – , com eça a question ar os alicerces da ciên cia que praticava. Daí veio o passo que a levaria a question ar as bases de todas as ciên cias cartesian as 12 . A obra dest a b ió lo ga fe m in is t a é m u it o e xt e n s a , h a ve n d o - s e , a q u i, realçado o que pareceu m ais in teressan te ao leitor. Ela con tin ua trabalhan do em biologia, m as in corporan do o que a socied a d e colocou n os gen es d os in d ivíd u os. Rigor osa m en t e, qu an d o escr eve sobr e biologia, situ a-se n a in ter seção en tr e est e cam p o d o con h ecim en t o e as ciên cias sociais: “[...] os gen es car r egam u m a en or m e ‘bagagem h istór ica’” (KELLER , 20 0 2, p. 136), o que, de certo m odo, iron iza o estar dalh aço r ealizado em vir tu de do sequ en ciam en to do gen om a h u m an o, p ois as com bin ações gen ét icas são aleat ór ias e, obvia- A trajetória de Keller foi sumariada por ela própria, estando publicada na revista Daedalus, presente nas referências. 12 42 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 42 25/1/2011, 09:28 m en te, depen dem da história de vida de cada in divíduo. Toda e qu alqu er ciên cia é, p or con segu in te, con h ecim en to social (LONGINO , 1996). Sejam den om in adas ciên cias duras, sejam n o perfum arias, o con h ecim en to cien tífico reflete o m om en to h istór ico, social, político de sua pr odução. A mulher brasileira nos espaços público e privado Foi n esta perspectiva que a Fun dação Perseu Abram o, valendo-se de dados secundários, sobretudo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( FIBGE ), tam bém fez trabalho de cam po, em 20 0 1, coligin do in form ações em todo o país e, assim , descrevendo o perfil das brasileiras, com o tam bém detectan do as atividades desem pen hadas e sofridas por elas, por m eio de entrevistas. Trata-se, pois, de um a investigação, p r ed om in an tem en te, sobr e v iolên cia con tr a m u lher es. Às in form ações coletadas pela Fun dação deu-se o título de A m ulher brasileira nos espaços público e privado. A perspectiva aqui adotada foi explanada no início deste capítulo. Aliás, o p r óp r io in t er esse p ela t em át ica já r evela u m com p r om isso político-ideológico com ela. Na verdade, a história de vida de cada pessoa en con tra-se com fen ôm en os a ela exteriores, fenôm eno denom inado sincronicidade por J ung, e que perm ite afirm ar: n in guém escolh e seu tem a de pesquisa; é escolh ido por ele. Se, porventura, for necessário utilizar dados de outras fon tes, m en cion ar-se-ão as origen s das in form ações. Não haverá referência sem pre que as inform ações utilizadas forem da Fun dação Perseu Abram o. As brasileiras valorizam bastan te a liberdade con quistada, porquan to em resposta à pergun ta “Com o é ser m ulher hoje?” 39 % r essalt ar am su a in ser ção n o m er cad o d e t r abalh o e a in d ep en d ên cia q u e ist o lh es con fer e; 3 3 % r efer ir a m -se à liber d ad e d e agir segu n d o seu d esejo e, d est a sor t e, p od er tom ar decisões; apen as 8 % m en cion aram a con quista de direitos políticos, o que é verdadeiro desde a Con stituição Feder al de 198 8 , e a igualdade de dir eitos em r elação aos h o43 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 43 25/1/2011, 09:28 m en s. Esta resposta n ão foi n uan çada, pois, segun do a Carta Magn a, assim com o de acor do com a legislação in fr acon stitu cion al, a igu ald ad e existe. O p r oblem a r esid e n a p r ática, in stân cia n a qual a igualdade legal se tran sform a em desigualdade, con tra a qual tem sido sem trégua a luta fem in ista. Na caracterização do ser m ulher tam bém são apon tadas tarefas tr ad icion ais, estan d o 17% n a valor ização d estes d ever es e a m esm a proporção (17%) em sua depreciação. A especificação dos papéis tr adicion ais, en tr etan to, apon tar am tão-som en te o lad o n egativo d o ser m u lher , 4% r eclam an d o d o p eso d a r espon sabilid ad e n a cr iação d os filh os e 3% d en u n cian d o a falta d e au ton om ia em vir tu d e d as r estr ições im p ostas p or seu s m ar idos. A du pla jor n ada, som an do-se os ser viços dom ésticos com o trabalho assalariado, é den un ciada com o n egativa por 11% das in vestigadas. Se este últim o percen tual já den ota baixo n ível de in satisfação, pior ain da ocorre quan do apen as 7% das in terrogadas m an ifestam seu desagrado com o desn ível de salários en tre hom en s e m ulheres, 5%, com relação a su a in fer ior id ad e d ian te d os elem en tos m ascu lin os, e tão-som en te 2% p er cebem qu e são m ais vu ln er áveis à violên cia qu e os m ach os. Ist o r evela a n ecessid ad e d e t or n ar ain da m ais visíveis as várias m odalidades de violên cias praticadas con tra m ulh eres, em especial a violên cia dom éstica. O conceito de gênero A exp r essão violên cia d om ést ica cost u m a ser em p r egad a com o sinônim o de violência fam iliar e, não tão raram ente, tam bém de violência de gênero. Esta, teoricam ente, engloba tanto a violência de hom ens contra m ulheres quanto a de m ulheres con tra h om en s, um a vez que o con ceito de gên ero é aberto, sen d o este o gr an d e ar gu m en to d as cr íticas d o con ceito d e patriarcado, que, com o o próprio nom e indica, é o regim e da dom in ação-explor ação das m ulh er es pelos h om en s. Par a situar o leitor, talvez convenha tecer algum as considerações sobre gên ero. Este con ceito n ão se resum e a um a categoria de 44 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 44 25/1/2011, 09:28 an álise, com o m uitas estudiosas pen sam , n ão obstan te apresen tar m uita utilidade en quan to tal. Gên ero tam bém diz respeito a um a categoria histórica, cuja investigação tem dem andado m uito in vestim en to in telectual. En quan to categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias: com o apar elh o sem iótico (LAURETIS , 198 7); com o sím bolos cu ltu rais evocadores de representações, conceitos norm ativos com o grade de in terpretação de sign ificados, organ izações e in stituições sociais, iden tidade subjetiva (SCOTT, 198 8 ); com o divisões e atr ibu ições assim étr icas de car acter ísticos e poten cialidades (F LAX, 1987); com o, num a certa instância, um a gram ática sexual, regulando não apenas relações hom em – m ulher, m as t am bém r elações h om em – h om em e r elações m u lh er – m u lh er (S AFFI OTI , 19 9 2, 19 9 7b; S AFFI OTI e ALMEI DA, 19 9 5) etc. Cada fem in ista en fatiza determ in ado aspecto do gên ero, havendo um cam po, ainda que lim itado, de consenso: o gênero é a construção social do m asculino e do fem inino. O con ceito de gên ero n ão explicita, n ecessariam en te, desigualdades en tre h om en s e m ulh eres. Muitas vezes, a h ierarquia é apen as presum ida. H á, porém , fem in istas que veem a referida hierarquia, in depen den tem en te do período histórico com o qual lidam . Aí reside o grande problem a teórico, im ped in d o u m a in ter locu ção ad equ ad a e esclar eced or a en tr e as adeptas do conceito de patriarcado, as fanáticas pelo de gênero e as que trabalham , con sideran do a história com o processo, adm itin do a utilização do con ceito de gên ero para toda a h istór ia, com o categor ia ger al, e o con ceito d e p a tr ia r ca d o com o categor ia específica d e d eter m in ad o per íod o, ou seja, para os seis ou sete m ilênios m ais recentes da história da hum an id ad e (LERNER , 198 6; J OH NSON , 1997; S AFFIOTI , 20 0 1). Em geral, pensa-se ter havido prim azia m asculina no passado rem oto, o que sign ifica, e isto é verbalizado oralm en te e por escrito, que as desigualdades atuais entre hom ens e m ulheres são resquícios de um patriarcado n ão m ais existen te ou em seus últim os estertores. De fato, com o os dem ais fen ôm en os sociais, tam bém o patriarcado está em perm an en te tran sfor45 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 45 25/1/2011, 09:28 m ação. Se, na Rom a antiga, o patriarca detinha poder de vida e m orte sobre sua esposa e seus filhos, hoje tal poder não m ais existe, n o plan o de jure. En tretan to, hom en s con tin uam m atan d o su as par ceir as, às vezes com r equ in tes d e cr u eld ad e, esquartejan do-as, atean do-lhes fogo, n elas atiran do e as deixan do tetraplégicas etc. O julgam en to destes crim in osos sofr e, é óbvio, a in fluên cia do sexism o r ein an te n a sociedade, que determ ina o levantam ento de falsas acusações – devassa é a m ais com um – contra a assassinada. A vítim a é transform ada rapidam en te em ré, procedim en to este que con segue, m uitas vezes, absolver o verdadeiro réu. Durante longo período, usava-se, com êxito, o ar gum en to da legítim a defesa da h on r a, com o se esta não fosse algo pessoal e, desta form a, pudesse ser m an chada por outrem . Graças a m uitos protestos fem in istas, tal tese, sem fundam ento jurídico ou de qualquer outra espécie, deixou de ser utilizada. O percentual de condenações, contudo, situa-se aquém do desejável. O cum pr im en to da pen a con stitui assun to de pior im plem en tação. O bom com portam en to n a prisão pode reduzir o cum prim en to da pen a a um terço, até a um sexto do estabelecido, o que não é adm issível para quem deseja ver esta prática extirpada da sociedade ou, pelo m en os, drasticam en te reduzida. Apresen tan do baixa cultura geral e ín fim a capacidade crítica, a m aioria das brasileiras pode ser en quadrada n a categor ia con ser v a d or a s, ain d a sep ar an d o m u lh er es fem in in as de m ulheres fem in istas, com o se estas qualidades fossem m utuam en te exclusivas. Isto dificulta a dissem in ação das teses fem in istas, cu jo con teú d o pod e ser r esu m id o em igu ald ad e social para am bas as categorias de sexo. Por con seguin te, a m aior parte das m ulheres m an tém atitudes con trárias a ações afir m ativas gover n am en tais, qu e pod er iam con tr ibu ir gr an dem en te para o avan ço das tran sform ações sociais desejadas pelos defen sores dos direitos hum an os, n eles in clusa a m etade fem in in a da população. A h istór ia r evela que as gr an des cau sas, ben éficas esp ecialm en te aos con tin gen tes d iscr im in ados e a quase todos os dem ais, obtiveram sucesso, apesar 46 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 46 25/1/2011, 09:28 de terem sido con duzidas por pequen as m in orias. E as brasileiras têm razões de sobra para se opor ao m achism o rein an te em tod as as in stitu ições sociais, p ois o p a t r ia r ca d o n ão abr an ge ap en as a fam ília, m as atr avessa a socied ad e com o um todo. Não obstan te o desân im o abater certas fem in istas lu t ad or as, qu an d o assist em a d et er m in ad os com p or t am en t os d e m u lh er es alh eias ao sexism o, vale a p en a levar est a luta às últim as con sequên cias, a fim de se poder desfrutar de u m a ver d ad eir a d em ocr acia. Violência contra as mulheres Os dados de campo demonstram que 19% das mulheres declararam, espontaneamente, haver sofrido algum tipo de violência da parte de homens, 16% relatando casos de violência física, 2% de violência psicológica, e 1% de assédio sexual. Quando estimuladas, no entanto, 43% das investigadas admitem ter sofrido violência sexista, um terço delas relatando ter sido vítim as de violên cia física, 27% revelan do ter vivido situações de violên cia psíquica, e 11% haver experim entado o sofrim ento causado por assédio sexual. Trata-se, pois, de quase a metade das brasileiras. Os 57% restantes devem também ter sofrido alguma modalidade de violên cia, n ão as con sideran do, porém , com o tal. Uma mulher pode sair feliz de um posto público de saúde, tendo esperado quatro horas na fila, estado dois minutos na presença do m édico e “gan ho” a receita de um m edicam en to, que seu poder aquisitivo não lhe perm ite adquirir. Outra poderá considerar este fenôm eno um a verdadeira violência. Assim , o m esmo fato pode ser considerado normal por uma mulher e agressivo por outra. Eis por que a autora deste livro raramente adota o conceito de violência com o ruptura de integridades: física, psicológica, sexual, moral. Definida nestes termos, a violência não encontra lugar ontológico 13 . É preferível, por esta razão, sobre- 13 Mais adiante esclarecer-se-á este conceito. 47 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 47 25/1/2011, 09:28 tudo quando a modalidade de violência mantém limites tênues com a chamada normalidade, usar o conceito de direitos hum anos. Ainda que seja recente sua defesa, mormente para mulheres, já se consolidou um pequeno corpo de direitos universais, ou seja, internacionalmente aceitos, em nome dos quais as mulheres podem ser defendidas das agressões m achistas. Evidentemente, este corpo de direitos humanos é ainda insatisfatório, desejando-se seu crescimento, do mesmo modo que se almeja a eliminação de certas práticas comuns em cerca de 30 países da África e da Ásia. Trata-se, de um a parte, das denom inadas m utilações genitais (é preferível am pliar para sexuais) e, de outra parte, de fem icídios da esposa para, em se casan do n ovam en te, gan har um novo dote. Dada a força das palavras, é interessante dissem inar o uso de fem icídio, já que hom icídio carrega o prefixo de hom em . Fem in istas in glesas vêm difun din do este term o, em bora ele ainda não conste de The Concise Oxford Dictionary , edição de 1990 . Com o a língua é um fenôm eno social, e, portan to, sujeito per m an en tem en te a m udan ças, é in ter essan te criar novas palavras, que expurguem o sexism o. O idiom a francês, por exem plo, é extrem am en te m achista. Basta dizer que m aîtresse significa, sim ultaneam ente, professora de escola elem entar, dona de casa e am ante. Para a professora universitária n ão existe um a palavra, usan do-se M adam e le professeur (senhora o professor). Fem inistas do Canadá francês com eçar am a acr escen t ar a vogal e às p alavr as m ascu lin as, fem inilizando-as. Atualm ente, já se diz la professeure (a professora) para designar a professora universitária. As fem inistas francesas acom panharam as canadenses e, de fato, o idiom a francês está evoluin do para a elim in ação do sexism o. Entre as mutilações genitais, há a cliteridectom ia, que consiste n a ablação, n o corte, n a extirpação do clitóris, órgão que desempenha importante papel na relação sexual, sendo responsável pela m aior parte do prazer. A cliteridectom ia vem acom panhada, muitas vezes, da ablação dos lábios internos da vulva, o que reduz, ainda mais, o prazer obtido na relação sexual. Fi48 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 48 25/1/2011, 09:28 nalm ente, há outro tipo de m utilação, conhecida com o infibulação, que consiste na sutura dos lábios maiores da vulva, deixando-se um pequeno orifício para a passagem do sangue menstrual e de outros fluidos. Cada vez que um a m ulher infibulada tem um filho, ou se corta a costura anteriorm ente feita, ou os lábios maiores da vulva são dilacerados pela passagem do bebê. Em am bos os casos, esta m ulher será n ovam en te in fibulada. Não raramente, as três mutilações são realizadas em uma única m ulher, ain da n a in fân cia, visan do, cada um a a seu m odo, a diminuir o prazer proporcionado pelo sexo e, ao mesmo tempo, torn ar a relação sexual um verdadeiro suplício. Um dos elem en tos n ucleares do patriarcado reside exatam en te n o con trole da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da esposa a seu m arido. Tais m utilações podem , atualm ente, ser realizadas em hospitais com satisfatórias condições de assepsia, m as não é isto que ocorre na m aioria delas. Nas zonas rurais, nas vilas, enfim, nas regiões mais longínquas do poder central, em geral, são feitas com uma lâmina de barbear, no Brasil gilete, sem nenhum cuidado higiênico, decorrendo daí m uitas m ortes por infecção. Há povos cujo costume exige que as meninas dancem, mesmo sangrando e sofrendo dores atrozes, imediatamente após a(s) mutilação(ções). J á de pronto, morrem 15% das mutiladas. Muitas pequenas publicações, sobretudo norte-am ericanas, relatam os fatos e suas con sequên cias 14 . Em quase todos os con gressos in tern acion ais fazem -se den ún cias desta violação dos direitos hum anos das m ulheres. Nunca se chega, contudo, a um consenso, persistindo o costum e em nom e do respeito devido às especificidades culturais. Mais grave ainda foi a realização de um a cliteridectom ia, num hospital paulistano 15, Tendo doado parte de minha biblioteca, não mais disponho das revistas, ocorrendo-me o título de apenas uma: WIN News, da Women’s Internacional Network. 15 Infelizmente, não se pode oferecer o nome do médico que presenciou a operação, pois ele entrou com uma ação judicial contra o profissional da medicina que a realizou. 14 49 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 49 25/1/2011, 09:28 por um m édico m uçulm an o n um a garota m uçulm an a. Neste caso, n ão se susten ta o argum en to da especificidade cultural, já que quem é im igrante num país com o o Brasil, no qual qualquer m utilação é proibida, deve obedecer às leis e aos costum es da nação de acolhida. De outra parte, na Índia, país no qual se leva m uito a sério o regim e dotal de casam ento (no Brasil, o Código Civil que vigorou de 1917 a 20 0 3 continha o regim e dotal, já em desuso na prática [N AZZARI , 1991] e, felizm en te, abolido n o atual código), constitui-se num costum e de o hom em m atar sua esposa, dan do ao fem icídio aparên cia de aciden te, para, em seguida, casar-se com outra e, assim , receber um outro dote. Em bora a dominação inglesa na Índia tenha contribuído muito para a abolição da lei que exigia a im olação da viúva na m esm a pira em que fora crem ado seu m arido, o costum e continuou existindo. Nas pequenas cidades a obrigação da viúva, independentem ente de sua idade (com o se casam ainda m eninas, um a viúva pode ter n ão m ais que 15 an os), era, e talvez ain da o seja, tom ada com tal seriedade e, ao m esm o tem po, com o m áxim o de desprezo pelas m ulheres, que, há poucos anos, um a adolescente, tendo enviuvado, resolveu fugir da com unidade, a fim de preservar sua vida. A com unidade deliberou, então, que a prim eira jovem que lá chegasse cum priria a pena da fugitiva. E assim foi feito com um a adolescente que se m udou para lá. Observese que a fidelidade da m ulh er a seu esposo deve ser etern a. Continuar viva não garante este absurdo costum e. Logo, a im olação da jovem é con siderada im prescin dível. Em bora brasileiras e brasileiros se assustem com tais atrocidades, aqui ocorrem outras não m enos graves. Há pouco m ais de duas décadas, um nordestino m arcou, com o ferro em brasa u tilizad o par a m ar car gad o, su a com pan h eir a com as letr as MGSM , iniciais da expressão m ulher galheira só m orta, m eram ente porque suspeitava estar sua esposa com etendo infidelidade con jugal. H á outro caso do uso, n a esposa, do ferro de m arcar gado, recentem ente noticiado pelos jornais e pela televisão. O caso de Maria Celsa é m uito conhecido e deve ter ocor50 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 50 25/1/2011, 09:28 rido por volta de duas décadas atrás. Seu nam orado jogou álcool em seu corpo e ateou-lhe fogo. A m oça teve queim aduras de sum a gravidade, ficando deform ada. A solidariedade de fem in istas e de m édicos per m itiu qu e ela passasse por vár ias cirurgias plásticas, que m elhoraram sua aparência, sem restituir-lhe o an tigo rosto. A belíssim a Ângela Diniz foi assassinada por Doca Street, que descar r egou seu r evólver especialm en te em seu r osto e cr ânio, im pedindo-a de conservar sua beleza, pelo m enos, até seu en terro. Atirar n um lin do rosto deve ter tido um sign ificado, talvez o fato de aquela grande beleza tê-lo fascinado, aprisionando-o a ela, im potente para abandoná-la. Este crim e de clam or público foi perpetrado em 30 de dezem bro de 1976, n a residên cia de Ân gela, n a Praia dos Ossos, m un icípio de Cabo Frio, estado do Rio de J aneiro. Com o Ângela Maria Fernandes Diniz havia decidido rom per definitivam ente sua relação am orosa com Raul Fernando do Am aral Street, este, inconform ado com a separação e com seu insucesso na tentativa de persuadila a reconsiderar a decisão, m atou-a. O poder, com o já foi escrito (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995), tem duas faces: a da potência e a da im potên cia. As m ulheres estão fam iliarizadas com esta últim a, m as este não é o caso dos hom ens, acreditando-se que, quan do eles per petr am violên cia, estão sob o efeito da im potência. Em seu prim eiro julgam ento pelo Tribunal do J úri de Cabo Frio, em 198 0 , o fam oso crim inalista Evandro Lins e Silva ressuscitou a an tiquíssim a tese, em desuso havia m uito tem po, da legítim a defesa da hon ra (BARSTED , 1995). Doca Street foi condenado a apenas dois anos de detenção, com direito a sursis 16 , um a vez que o conselho de sentença aceitou a Quando a pena é fixada em até dois anos de detenção, o juiz pode conceder ao réu o direito de sursis, isto é, o réu foi condenado, mas não cumpre a pena de privação de liberdade. A função do conselho de sentença consiste em responder aos quesitos elaborados pelo juiz. Como, neste caso, os jurados aceitaram a tese defendida por Lins e Silva, o juiz fixou uma pena simbólica para Doca Street, concedendo-lhe, ainda, o direito de sursis. 16 51 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 51 25/1/2011, 09:28 tese do excesso culposo no estado de legítim a defesa. Dado o brilh an tism o do crim in alista, foi aplaudido pela assistên cia, quando da enunciação do resultado. Doca Street declarara que m atara por am or. Um grupo de fem inistas do estado do Rio de J an eiro organ izou-se para con scien tizar a população de Cabo Frio, de cujo seio sairiam os jurados que integrariam o conselho de sentença, pois o réu seria levado novam ente ao Tribun al do J úri, já que o prim eiro julgam en to fora an ulado pelo Tribunal de J ustiça do Estado de Rio de J aneiro. Aproveitando-se do que dissera o réu, fem in istas se m obilizaram com o slogan “Quem am a não m ata”. Doca Street, desta vez, foi conden ado a 15 an os de reclusão. Logo con seguiu o ben efício de trabalhar duran te o dia (justo um play boy que jam ais h avia trabalhado), voltando para a prisão para dorm ir. Fingia trabalhar n um a con cession ária de autom óveis. Não tardou a con quista da liberdade total. Eliane de Grammont foi morta por seu ex-marido – de quem se tinha separado havia cerca de dois anos – em público, enquanto cantava, numa boate. A filha de Glória Peres foi brutalmente assassinada por um casal, parece que em virtude do ciúm e m anifesto pela esposa. Am bos cum priram parcela curta da pena e gozam de plena liberdade. A jornalista Sandra Gomide foi assassinada, com prem editação, o que constitui agravante pen al, pelo tam bém jorn alista Pim en ta (talvez m alagueta), que responde ao processo em liberdade. Todos estes foram crim es de clam or público e, por isto, gravados na m em ória de grande parte da população. H á um caso que foge ao clam or público, valendo a pena mencioná-lo. O relato deste triste caso foi feito por um a ex-aluna e atual am iga da autora deste livro. Ela era garota de seus 8, 9 anos, quando da ocorrência do crime. Uma de suas tias paternas, casada, sofria violência de toda ordem da parte de seu marido. Depois de muitos anos de verdadeira tortura, tomou uma deliberação, a fim de ver-se livre daquele homem. Na época, uma mulher separada ou desquitada gozava de má reputação. O casal tinha um bar e, para auxiliar no trabalho deste pequeno negócio, haviam contratado um empregado. Em 52 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 52 25/1/2011, 09:28 geral, a mulher não tem coragem de matar. Quando deseja fazêlo, contrata alguém para realizar o serviço sujo, guardando para si o planejam ento. No m om ento com binado, o em pregado com eçou a desem penhar sua função. Incom petente, precisou da ajuda de sua patroa. Ambos foram presos, pois houve flagrante, julgados e condenados. O irmão da ré, morador de uma cidadezinha do interior, vinha a São Paulo, quando podia, visitar sua irmã prisioneira. Numa destas viagens, sua filha, já com 10 , 12 anos, também veio visitar a tia. Na prisão, o irmão da presidiária pôs-se a chorar, tendo ele e sua pequena filha ouvido o seguinte da prisioneira: “Não chore por minha causa; foi aqui na prisão que conheci a liberdade”. Quanto deve haver sofrido esta m ulh er n as garras de seu m arido para con h ecer a liberdade n a clausura! Então, a democracia não começa em casa? Alguns estudiosos citam Hannah Arendt para legitimar suas ideias de que o espaço doméstico é o espaço da privação. Não levam em conta as condições em que viviam os judeus no gueto de Varsóvia. O gueto era sim o espaço da privação. Hoje, estão presentes no espaço dom éstico o rádio, a televisão, os jorn ais, a in tern et. Logo, o dom éstico não é, necessariam ente, o espaço da privação. Isto dependerá das posses da fam ília, de sua religião, enfim, de uma série de fatores. O conceito de patriarcado Neste ponto da discussão, convém fazer uma incursão na vertente sexual, crescentem ente apêndice, da teoria/ doutrina política do contrato. Para tanto, recorrer-se-á a Patem an (1993). “A dom in ação dos hom en s sobre as m ulheres e o direit o m a scu lin o d e a cesso sexu a l r egu la r a ela s est ã o em questão n a for m ulação do pacto or igin al. O con tr ato social é um a história de liberdade; o con trato sexual é um a h ist ór ia d e su jeiçã o. O con t r a t o or igin a l cr ia a m b a s, a liberdade e a dom in ação. A liberdade do h om em e a sujeição da m ulh er derivam do con trato origin al e o sen ti- 53 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 53 25/1/2011, 09:28 d o d a liber d ad e civil n ão p od e ser com p r een d id o sem a m et a d e p er d id a d a h ist ór ia , q u e r evela com o o d ir eit o p at r iar cal d os h om en s sobr e as m u lh er es é cr iad o p elo con tr ato. A liber d ad e civil n ão é u n iver sal – é u m atr ibuto m asculin o e depen de do direito patriarcal. Os filhos su b ver t em o r egim e p a t er n o n ã o a p en a s p a r a con q u ist a r su a lib er d a d e, m a s t a m b ém p a r a a ssegu r a r a s m u lh er es p a r a si p r óp r ios. Seu su cesso n esse em p r een d im en to é n arrado n a h istória do con trato sexual. O pacto or igin al é tan to u m con tr ato sexu al qu an to social: é social n o sen t id o d e p at r iar cal – ist o é, o con t r at o cr ia o direito político dos h om en s sobre as m ulh eres – , e tam bém sexual n o sen tido do estabelecim en to de um acesso sistem ático d os h om en s ao cor p o d as m u lh er es. O con t r a t o or igin a l cr ia o q u e ch a m a r ei, segu in d o Ad r ien n e Rich, de ‘lei do direito sexual m asculin o’. O con trato está lon ge d e se con tr ap or ao p atr iar cad o: ele é o m eio p elo qu al se con st it u i o p at r iar cad o m od er n o” (p . 16 -17). In tegra a ideologia de gên ero, especificam en te patriarcal, a ideia, defendida por m uitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este últim o à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao m u n d o pú blico ou , pelo m en os, n ão tem par a ele n en h u m a relevância. Do m esm o m odo com o as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contam inam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, m as im pregn a tam bém o Estado. Ain da que n ão se possa negar o predom ínio de atividades privadas ou íntim as na esfera da fam ília e a prevalência de atividades públicas no espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes espaços profundam en te ligados e parcialm en te m esclados. Para fin s an alíticos, trata-se de esferas distin tas; são, con tudo, in separáveis para a com preensão do todo social. “A liberdade civil depende do direito patriarcal” (p. 19). 54 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 54 25/1/2011, 09:28 Raciocin an do n a m esm a direção de J oh n son (1997), Patem an m ostra o caráter m asculino do contrato original, ou seja, é um con trato en tre hom en s, cujo objeto são as m ulheres. A diferen ça sexual é con vertida em diferen ça política, passan do a se exprim ir ou em liberdade ou em sujeição. Sendo o patriarcado um a form a de expressão do poder político, esta abordagem vai ao en con tro da m áxim a legada pelo fem in ism o radical: “o pessoal é político”. Entre outras alegações, a polissem ia do con ceito de patriarcado, aliás, existen te ain da com m ais força n o de gên ero, con stitui um argum en to con tra seu uso. Aban d on á-lo “[...] r ep r esen t ar ia, n a m in h a m an eir a d e en t en d er , a p er d a, p ela t eor ia p olít ica fem in ist a, d o ú n ico con ceit o que se refere especificam en te à sujeição da m ulher, e que sin gu lar iza a for m a d e d ir eito p olítico qu e tod os os h om en s exercem pelo fato de serem hom en s. Se o problem a n ão for n om ead o, o p at r iar cad o p od er á m u it o bem ser habilm en te jogado n a obscuridade, por debaixo das categorias con ven cion ais da an álise política. [...] Gran de parte da con fusão surge porque ‘patriarcado’ ain da está por ser d esven cilh ad o d as in t er p r et ações p at r iar cais d e seu significado. Até as discussões fem inistas tendem a perm an ecer den tro das fron teiras dos debates patriarcais sobre o patr iar cad o. É u r gen te qu e se faça u m a h istór ia fem in ista d o con ceito d e p atr iar cad o. Aban d on ar o con ceito significaria a perda de um a história política que ainda está p ar a ser m ap ead a” (P ATEMAN , p . 39 -4 0 ). Não apenas se endossa o pensam ento de Patem an, com o tam bém se reforça sua preocupação com o abandono do conceito de patriarcado, evocando-se um a autora hoje contrária ao uso deste con structo m en tal17. 17 O constructo mental pode ser um conceito ou uma categoria analítica, esta de menor grau de abstração que o primeiro. 55 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 55 25/1/2011, 09:28 “As ca t egor ia s a n a lít ica s fem in ist a s d evem ser in st á veis – t eor ia s con sist en t es e coer en t es em u m m u n d o instável e incoerente são obstáculos tanto para nossa com preen são quan to para n ossas práticas sociais” (H ARDING, 19 8 6 , p . 6 4 9 ) . Efetivam ente, quanto m ais avançar a teoria fem inista, m aiores serão as probabilidades de que suas form uladoras se libert em d as cat egor ias p at r iar cais d e p en sam en t o. Ou m elh or , quanto m ais as(os) fem inistas se distanciarem do esquem a patriarcal de pen sam en to, m elhores serão suas teorias. Colocar o nom e da dom inação m asculina – patriarcado – na som bra significa operar segundo a ideologia patriarcal, que torna n at u r a l es s a d om in a çã o- exp lor a çã o. Ain d a q u e m u it a s ( os ) teóricas(os) adeptas(os) do uso exclusivo do con ceito de gên ero den un ciem a n aturalização do dom ín io dos hom en s sob r e a s m u lh er es, m u it a s vezes, in con scien t em en t e, in visibilizam este processo por m eio, por exem plo, da apresentação de dados. À m edida que as(os) teóricas(os) fem inistas forem se desven cilhan do das categorias patriarcais, n ão apen as adquir ir ão p od er p ar a n om ear d e p a tr ia r ca d o o r egim e atu al d e r e la çõ e s h o m e m – m u lh e r , co m o t a m b é m a b a n d o n a r ã o a acepção de poder patern o do direito patriarcal e o en ten der ão com o d ir eito sexu al. Isto equ ivale a d izer qu e o agen te social m arido se con stitui an tes que a figura do pai. Esta se en con t r a at en u ad a n as socied ad es com p lexas con t em p or ân eas, m as ain da é legítim o afirm ar-se que se vive sob a lei do pai. Tod avia, a figu r a for te é a d o m ar id o, pois é ela qu e o con trato sexual dá à luz. O patria potestas cedeu espaço, n ão à m ulher, m as aos filhos. O patriarca que n ele estava em butid o con t in u a vivo com o t it u la r d o d ir eit o sexu a l. O p en sa m en t o d e P a t em a n , n est e sen t id o, va i a o en con t r o d o d e H ardin g, expresso n o artigo de 198 6, referido. “A in t e r p r e t a çã o p a t r ia r ca l d o ‘p a t r ia r ca d o ’ co m o d ir e it o p a t e r n o p r o vo co u , p a r a d o xa lm e n t e , o o cu lt a - 56 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 56 25/1/2011, 09:28 m en t o d a or igem d a fa m ília n a r ela çã o en t r e m a r id o e esposa. O fato d e qu e os h om en s e m u lh er es fazem par t e d e u m con t r a t o d e ca sa m en t o – u m con t r a t o or igin a l q u e in s t it u iu o ca s a m en t o e a fa m ília – e d e q u e eles são m ar id os e esposas a n tes d e ser em pais e m ães é esq u ecid o. O d ir eit o con ju ga l est á , a ssim , su b su m id o sob o d ir eito p ater n o e as d iscu ssões sobr e o p atr iar cad o gir am em t or n o d o p od er (fam iliar ) d as m ães e d os p a is , ocu lt a n d o, p or t a n t o, a q u es t ã o s ocia l m a is a m p la r efer en t e a o ca r á t er d a s r ela ções en t r e h om en s e m u lh e r e s e à a b r a n gê n cia d o d ir e it o s e xu a l m a s cu lin o ” ( P ATE M AN , p . 4 9 ) . Muitas an álises em term os de patriarcado pecam por n ão terem dado conta de que os vínculos fam iliares de parentesco são atr ibuídos e par ticular es, en quan to os vín culos con ven cion a d os e u n iver sa is d o con t r a t o est r u t u r a m a socied a d e m odern a. Caberia, en tão, n ovam en te, a pergun ta: por que se m anter o nom e patriarcado? Sistem atizan do e sin tetizan do o acim a exposto, porque: 1 – não se trata de um a relação privada, m as civil; 2 – dá direitos sexuais aos hom ens sobre as m ulheres, praticam ente sem restrição. Haja vista o débito conjugal explícito nos códigos civis inspirados no Código Napoleônico e a ausência sistem ática do tipo penal estupro no interior do casam ento nos códigos penais. Há apenas um a década, e depois de m uita luta, as francesas conseguiram capitular este crim e no Código Penal, não se tendo conhecim ento de se, efetivam ente, há den ún cias con tra m aridos que violen tam suas esposas. No Brasil, felizm ente, não há especificação do estuprador. Neste caso, pode ser qualquer h om em , até m esm o o m arido, pois o que im porta é contrariar a vontade da m ulher, m ediante o uso de violên cia ou grave am eaça; 3 – con figu r a u m tipo h ier ár qu ico d e r elação, qu e in vad e todos os espaços da sociedade; 4 – tem um a base m aterial; 57 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 57 25/1/2011, 09:28 5 – corporifica-se; 6 – representa um a estrutura de poder baseada tanto na ideologia quan to n a violên cia. Depois de extenso exam e de dados de dezenas de nações situadas n os cin co con tin en tes, in form ações estas expostas n as páginas 169-285, Castells (1999) conclui: “[...] o patriarcalism o [sic] dá sinais no m undo inteiro de que ainda está vivo e passando bem [...]” (p. 278 ). En ten dido com o im agen s que as sociedades con stroem do m asculin o e do fem in in o, n ão pode h aver um a só sociedade sem gên ero. A eles correspon de um a certa divisão social do trabalho, con hecida com o divisão sexual do trabalho, n a m edida em que ela se faz obedecendo ao critério de sexo. Isto não im plica, todavia, que as atividades socialm en te atribuídas às m ulheres sejam desvalorizadas em relação às dos hom ens. Nas sociedades de caça e coleta, por exem plo, a prim eira atividade cabe aos hom ens e a segunda às m ulheres. Em bora proteínas anim ais sejam necessárias ao organism o hum ano (nunca, entretanto, se ouviu falar da m orte de um vegetariano por carência de proteína anim al), em tais sociedades as m ulheres eram responsáveis por m ais de 60 % da provisão dos víveres necessár ios ao gr u po (LERNER , 198 6). En qu an to a coleta é cer ta, acon tecen do cotidian am en te, a caça é in certa. Um grupo de hom en s pode voltar da caçada com um an im al de gran de ou m édio por te, pr oven do as n ecessidades de seu gr upo, com o pode voltar sem nada. Logo, a atividade dos hom ens, realizada um a ou duas vezes por sem ana, não é confiável em term os de produto. J á a das m ulheres lhes perm ite voltar a sua com unidade sem pre com algum as raízes, folhas e frutos. A rigor, então, a sobrevivên cia da h um an idade, felizm en te varian do n o tem po e n o espaço, com esta divisão sexual do trabalho (n ão se pode afirm ar que todos os povos hajam passado pelo estágio da caça e coleta), foi assegurada pelo trabalho das m ulheres. J ohnson atribui a dois fatores históricos a lenta transição d est a socied ad e igu alit ár ia às socied ad es qu e se con h ecem 58 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 58 25/1/2011, 09:28 hoje 18 : 1) a produção de excedente econôm ico, cerca de 11 m il anos atrás; 2) a descoberta de que o hom em era im prescindível para engendrar um a nova vida, o que se deu logo depois. Baseada em resultados de pesquisas paleontológicas, arqueológicas e ou tr as evid ên cias, Ler n er apr esen ta ou tr o sistem a de datação. Desprezan do a produção de exceden te econ ôm ico, p a r t e d o con h ecim en t o d a p a r t icip a çã o m a scu lin a n a a n t r op op r od u çã o 19 (B E RTAUX , 19 77), o q u e d á m a is p od er aos hom en s, perm itin do-lhes a im plan tação de um regim e de dom in ação-exploração das m ulheres. Estas, em bora n ão fossem deten toras de m ais poder que os hom en s, n as sociedades de caça e coleta, eram con sideradas seres poderosos, fortes, verdadeiros seres m ágicos, em virtude de sua capacidade de con ceber e dar à luz, presum ivelm en te sozin has. Com o a caça Maurice Godelier (1982), antropólogo francês, estudou, durante mais de uma década, o povo Baruia, da Nova Guiné, tendo-o conhecido em 1967, quando de sua primeira viagem. Vivem numa ilha, ao norte da Austrália, tendo tido seu primeiro contato com brancos em 1951. Em 1960, a Austrália estabeleceu seu domínio sobre os Baruia. Portanto, até 1960, este povo “se governava sem classe dirigente, sem Estado, o que não quer dizer sem desigualdades. Uma parte da sociedade, os homens, dirigia a outra, as mulheres; eles regiam a sociedade não sem as mulheres, mas contra elas” (p. 10). Como os homens davam gigantesca importância ao sêmen, instituiu-se o fellatio como prática sexual rotineira dos casais, sendo esta prática também incluída em ritos de passagem da idade infantil à fase adulta da vida. Como os meninos não produziam sêmen, era necessário que eles o bebessem, a fim de poderem ser considerados homens, ou seja, superiores às meninas e mulheres de mais idade. Isto tudo, na verdade muito mais, resultou de uma importância exagerada atribuída ao sêmen, que era o único responsável pela geração de uma nova vida, pela produção dos nutrientes para o desenvolvimento do feto e pela fabricação de leite, com o qual alimentar o bebê. Este livro, La production de grands hommes, foi publicado em 1982. Este fato tem alta relevância, pois o leitor poderia imaginar que esta sociedade na qual a inferiorização das mulheres era enorme tivesse existido há milênios, quando, na verdade, sua organização social, especificamente sua estrutura de poder, foi estudada recentemente. Embora já se tenha chamado a atenção do leitor para a não-necessidade desta etapa e para sua não-coincidência no tempo e no espaço, este exemplo é muito esclarecedor, porque, em termos históricos, esta sociedade existiu ontem. 19 Antropoprodução consiste na produção de seres humanos, ou seja, na sua reprodução não apenas biológica, mas também social. 18 59 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 59 25/1/2011, 09:28 n ão é um a atividade diária, aos hom en s sobrava m uito tem po livr e, im p r escin d ível p ar a o exer cício d a cr iat ivid ad e. Foi, por con seguin te, n a cham ada “som bra e água fresca” que os h om en s cr iar am sistem as sim bólicos da m aior eficácia par a d est r on a r su a s p a r ceir a s. Est e p r ocesso foi ext r em a m en t e len to, graças à resistên cia das m ulheres. Segun do esta histor iad or a au st r íaca, viven d o n os Est ad os Un id os d esd e a ascen são do n azism o, o processo de in stauração do patriarcado teve in ício n o an o 310 0 a.C. e só se con solidou n o an o 60 0 a.C. A forte resistên cia oposta pelas m ulh eres ao n ovo regim e exigiu qu e os m ach os lu tassem d u r an te d ois m ilên ios e m eio para chegar a sua con solidação. Se a con tagem for realizada a partir do com eço do processo de m udan ça, pode-se dizer que o patriarcado con ta com a idade de 5.20 3-4 an os. Se, todavia, se preferir fazer o cálculo a partir do fim do processo de tran sform ação das relações h om em – m ulh er, a idade desta estrutura hierárquica é de tão-som en te 2.60 3-4 an os. Trata-se, a rigor, de um recém -n ascido em face da idade da h um an idade, estim ada en tre 250 m il e 30 0 m il an os. Logo, n ão se vivem sobrevivên cias de um p atriarcado rem oto; ao con trário, o patriarcado é m uito jovem e pujan te, ten do sucedido às sociedades igualitárias. De m aneira nenhum a se nega a utilidade do conceito de gên ero. Em bor a o con ceito n ão existisse, o gên ero, con cebido com o o significado do m asculino e do fem inino produzido pela vida gregária, sem pre esteve presente. A divisão sexual do trabalho nas sociedades de caça e coleta não se explica pela m aior força física do hom em , pois há sociedades n as quais cabe às m ulheres a caça da foca. Não se trata de pequeno anim al, há de se agregar. Além disto, a foca é tão lisa quanto alguns políticos brasileiros e estran geiros. Ela é caçada, in clusive por m ulheres grávidas, quan do tom a sol n as roch as que circun dam os oceanos e m ares. Com o m ovim ento das águas, pedras e focas ficam con stan tem en te m olh adas. Tais circun stân cias dificultam ainda m ais sua caça, um a vez que elas se tornam excessivam ente escorregadias. Não obstante, são caçadas por m ulhe60 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 60 25/1/2011, 09:28 res. Logo, o argum ento da força física não se sustenta. A hipótese m ais con vin cen te para justificar a divisão sexual do trabalho n as sociedades de caça e coleta parece ser a que se segue. Com o não havia Nestlé, era obrigatório o aleitam ento do bebê ao seio. Desta sorte, o trabalh o fem in in o era realizado com a m ulher carregan do seu bebê am arrado ao peito ou às costas. Os bebês er am , assim , aleitados facilm en te toda vez que sentissem fom e. Com o bebê não fala, sua m aneira de expressar suas necessidades é o choro. Daí vem a sabedoria popular, inclusive em sentido figurado, dizendo: “quem não chora não m am a”. Presum a-se que às m ulheres fosse atribuída a tarefa da caça. O m enor sussurro do bebê espantaria o anim al destin ado à m orte e as caçadoras voltariam , in variavelm en te, para seu grupo, sem nenhum alim ento. J á as plantas, desde as raízes, passando pelas folhas e chegando aos frutos, perm anecem im perturbáveis ouvin do o ch oro das crian ças. Pelo m enos era assim que se com portavam , antes de serem habituadas a produzir m ais frutos ao som do “Adágio”, de Albinoni, tocado pelo flautista J ean-Pierre Ram pal. Esta brincadeira constitui um a paráfrase do uso da m úsica clássica para elevar a produção de ovos ou de leite, evidentem ente por galinhas e vacas de bom gosto. Mas, por outro lado, se o gen e, de fato, sofre in fluên cia das con dições históricas vividas, por que n ão pen sar que tais condutas em granjas e estábulos auxiliam os argum entos de Keller? En quan to an im ais ditos irracion ais com em , dorm em , produzem ao som de um a bela m úsica, m ulheres são espan cadas, hum ilhadas, estupradas e, m uitas vezes, assassin adas por seus próprios com pan heiros e, com frequên cia, por ex-com pan heir os, ex-n am or ados, ex-am an tes. Sobr etudo quan do a in iciativa d o r om pim en to d a r elação é d a m u lh er , esta per segu içã o, est a im p or t u n a çã o, est e m olest a m en t o p od em ch ega r ao fem icíd io. Vár ias m u lh er es n estas con d ições solicitar am proteção policial. Com o a seguran ça das m ulheres é con sider ada questão secun dár ia, o pedido n ão foi aten dido, daí r esultan do a m or te das am eaçadas. Em bor a a violên cia ten h a 61 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 61 25/1/2011, 09:28 seu ciclo, especialm en te a dom éstica, isto é m eram en te descritivo, n ão in duzin do sequer a atitudes preven tivas. É m ais ad equ ad a a p er cep ção d e qu e a violên cia con t r a m u lh er es desen volve-se em escalada. Isto sim pode m ostrar a prem ên cia da form ulação e da im plem en tação de políticas públicas que visem a sua extin ção. A sociedade assem elha-se a um galin heiro, sen do, con tudo, o galinheiro hum ano m uito m ais cruel que o galináceo. Quando se abre um a fresta na tela do galinheiro e um a galinha escapa, o galo con tin ua dom in an do as galin has que restaram em seu território geográfico. Com o o território hum ano não é m eram en te físico, m as tam bém sim bólico, o hom em , con siderado todo-poderoso, não se conform a em ter sido preterido por outro por sua m ulher, nem se conform a quando sua m ulher o aban don a por n ão m ais suportar seus m aus-tratos. Qualquer que seja a razão do rom pim ento da relação, quando a iniciativa é da m ulher, isto constitui um a afronta para ele. Na condição d e m ach o d om in ad or , n ão pod e ad m itir tal ocor r ên cia, poden do chegar a extrem os de crueldade. A sociedade, sim ilarm ente ao galinheiro, tam bém apresenta um a ordem das bicadas, assunto a ser tratado, se possível, m ais adiante. Lesão Corporal Dolosa O trabalh o de cam po da Fun dação Perseu Abram o produziu dados que m ostram que 20 % das m ulh eres sofrem lesão corporal dolosa ( LCD ) con siderada leve, o crim e m ais com etido por h om en s con tra m ulh eres, em particular quan do vivem n o m esm o d om icílio. Não é n ecessár io qu e se tr ate d e casais; as brigas podem ocorrer en tre irm ãos, em detrim en to da m ulher. Geralm en te, porém , são m esm o os com pan heiros os agen tes destas violên cias. Pouco m en os de um quin to (18 %) das in ter r ogadas sofr e violên cia psicológica, sen do fr equen tes as ofen sas à con duta m oral das vítim as. O crim e de am eaça costum a acom pan h ar outras m odalidades de violên cia ou substituir a violên cia física. A pesquisa Violên cia dom éstica: 62 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 62 25/1/2011, 09:28 qu est ã o d e p olícia e d a socied a d e r evelou u m a t en d ên cia de queda da LCD e, em substituição, um a elevação do crim e de am eaça. Lem bra-se que tal pesquisa coligiu dados dos an os de 198 8 e 1992, quan do a m aioria dos crim es com etidos con tra m ulheres eram julgados pelo Código Pen al, um a vez que a legislação agora em vigor – a Lei 9.0 99 – en trou em vigên cia em n ovem bro de 1995. Em bora n ão seja agradável viver sob am eaça, certam en te é m en os m au que sofrer espan cam en tos e outros m aus-tratos. Lam en tavelm en te, esta ten dên cia, con siderada positiva, em virtude do m edo in fun dido pela autoridade policial – a delegada – n o hom em (este se con tin ha n a LCD , con t en t a n d o-se com a m ea ça r su a com p a n h eir a ), foi a b r u p t a m en t e in t er r om p id a p ela a p r ova çã o d a Lei 9 .0 9 9 , qu e, segu n do r evelou a pesqu isa Violên cia dom éstica sob a Lei 9.0 99/ 95 (S AFFIOTI , 20 0 3), legalizou pelo m en os a violên cia dom éstica, en quadrada n os tipos pen ais apen ados com até um an o de deten ção. Retom ando o fruto do trabalho de cam po, 15% das entrevistadas afirm aram sofrer um tipo de violência dos m ais trágicos, em term os de abertura de ch agas n a alm a. Trata-se de um a conduta inaceitável do hom em – quebrar objetos e rasgar roupas da com panheira – em virtude de tentar destruir, às vezes conseguindo, a identidade desta m ulher. Os resultados destas agressões n ão são feridas n o corpo, m as n a alm a. Vale dizer feridas de difícil cura. Nas cerca de 30 0 entrevistas feitas com vítim as na pesquisa Violência dom éstica: questão de polícia e da sociedade, é frequente as m ulheres se pronunciarem a respeito da m aior facilidade de superar um a violência física, com o em purrões, tapas, pon tapés, do que hum ilhações. De acordo com elas, a hum ilhação provoca um a dor m uito profunda. Propor ção n ão n egligen ciável d e m u lh er es (12%) r elatou h aver sofrido, com certa frequên cia, violên cias verbais desrespeitosas e desqualificadoras de seu trabalho, seja fora do lar, seja n este, LCD , provocan do cortes, m arcas ou fraturas, foi n arrada por 11% das en trevistadas. Este tipo de LCD é con siderado de n atureza grave (art. 129 do Código Pen al) e, depen den do 63 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 63 25/1/2011, 09:28 das sequelas que deixar na vítim a, é apenado com m ais de um ano de reclusão (cinco anos), sendo julgado, portanto, de acordo com o Código Pen al. Duvida-se, con tudo, que os réus ten ham sido con den ados, porque, já n a delegacia de polícia, o crim e é classificado com o LCD leve, cuja pena é de detenção 20 de três m eses a um ano, sendo julgado segundo os dispositivos da Lei 9.0 99, nos J uizados Especiais Crim inais ( J ECrim ). O cárcere privado foi sofrido por 9% das investigadas, que, um a vez trancadas em suas casas, foram obrigadas a faltar ao trabalho; 8% foram am eaçadas com arm as de fogo; e 6% foram forçadas a realizar determ in adas práticas sexuais que n ão as agradavam . Con sideran do-se apen as m ulh er es que têm ou tiver am filh os (18 %), 10 % for am vítim as de acu sações r eiter adas de que n ão eram boas m ães. Dada a valorização da m ãe n as culturas cristãs, estas críticas in fun dem m uita culpa n a acusada. Aliás, as m ulheres são culpabilizadas por quase tudo que n ão dá certo. Se ela é estuprada, a culpa é dela, porque sua saia er a m u ito cu r ta ou seu d ecote, ou sad o. Em bor a isto n ão se susten te, um a vez que bebês e outras crian ças ain da pequen as sofrem abusos sexuais que podem dilacerá-las, a vítim a ad u lt a sen t e-se cu lp ad a. Se a ed u cação d os filh os d o casal resulta positivam en te, o pai é form idável; se algo dá errado, a m ãe n ão soube educá-los. Mais um a vez, a vítim a sabe, racion alm en te, n ão ter culpa algum a, m as, em ocion alm en te, é in evitável que se culpabilize. Benedict tem m esm o razão: pelo m enos para as m ulheres, a civilização ocidental é a civilização da culpa. Eis por que é fácil as m ulheres assum irem o papel de vítim as. Pior ainda é o fato de m uitas cientistas entrarem neste jogo, assum indo a posição vitim ista. Ora, nem sem pre as m ulheres são vítim as. Há as que provocam o parceiro, a fim de criar um a situação de violência; outras den igrem o n om e de seus com pan h eiros, in ven tan do fatos que eles teriam com etido, m as não o fez. As m ulheres são A detenção é mais leve do que a reclusão. Os detentos podem alcançar benefícios interditados aos reclusos. 20 64 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 64 25/1/2011, 09:28 gran des espan cadoras de crian ças, em geral de seus próprios filhos. É verdade que, m esm o trabalhan do fora do lar, a m ulher perm anece m ais tem po com seus filhos, o que lhe possibilita ver certas atitudes destas crianças que m erecem correção. Não se defen de, aqui, a pedagogia da violên cia. En tr etan to, quem convive m uito com os filhos e os proíbe de fazer certas coisas, depois de 20 reprim en das verbais sem êxito, perde a paciência, ou m elhor, sente-se im potente e dá um as palm adas n o(a) autor (a) das tr avessur as. Tal fen ôm en o pode tam bém ser cham ado de síndrom e do pequeno poder (SAFFIOTI , 1989), à qual estão sujeitas am bas as categorias de sexo. É verdade que o hom em entra em síndrom e do pequeno poder com m ais facilidade e fr equên cia que a m ulh er . Pode-se até dizer que quando a m ãe dá palm adas em seus filhos está, rigorosam ente, exercendo o poder patriarcal, que lhe foi delegado pelo pai das crian ças. Isto se expressa, de m an eira cristalin a, n a própria fala da m ãe ao filho punido: “Isto é só o aperitivo. Você levará aquela surra quando seu pai chegar e eu lhe contar o que você fez”. A autoridade m áxim a é o pai, a quem a m ãe evoca, n o m om en to da im potên cia, exatam en te com este papel. Assim , em bora as m ulheres não sejam cúm plices dos patriarcas, cooperam com eles, m uitas vezes inconscientem ente, para a perp et u a çã o d est e r egim e. As p r ojeções d a Fu n d a çã o P er seu Abr am o, p ar t in d o d os d ad os coligid os, são: Com o 11% d as in vestigadas relataram vivên cias de espan cam en to ( LCD ) n um un iverso de 61,5 m ilhões, estim a-se que, en tre as brasileiras vivas, pelo m enos 6,8 m ilhões delas tiveram , ainda que um a só vez, esta exp er iên cia. J á qu e as casad as com esp an cad or es contum azes relataram que a últim a violência deste tipo havia ocorrido n o período dos 12 m eses an teriores ao trabalh o de cam po, pr ojetou-se, por baixo, cer ca de 2,1 m ilh ões de vítim as de LCD ao ano, 175 m il ao m ês, 5,8 m il ao dia, 243 a cada hora, o que significa quatro vítim as por m inuto ou um a a cada 15 segun dos. Esta realidade estava bem escon dida. E foi descober ta pela ár ea das per fum ar ias. E h á m uitas outr as que, in felizm en te, n ão con quistarão espaço n este pequen o livro. 65 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 65 25/1/2011, 09:28 é, sem dúvida, o crim e prevalente contra m ulheres. Entre suas vítim as, 32% afirm aram ter este fato ocorrido apenas um a vez, enquanto outros 20 % delas apontaram para duas ou três vezes. En tre as vítim as de LCD , 11% adm itiram sua ocorr ên cia por m ais de dez vezes. H á, ain da, aquelas (15%) que certam en te perderam a con ta do n úm ero de espan cam en tos que sofreram , preferindo m encionar o tem po em que ficaram expostas a este tipo de violência: m ais de dez anos foi com um , havendo 4% que se referiram a m ais de dez anos e durante toda a vida. O m arido agressor com parece com 53% n os casos de am eaça à in tegridade física da com pan h eira com arm as, subindo sua presença para 70 % quando se tom am todas as m odalidades de violên cia in vestigadas, exceto o assédio sexual. Se aos com pan heiros se som arem os ex-m aridos, ex-n am orad os, ex-com pan h eir os, os h om en s am ad os con stitu em a esm agadora m aioria dos agressores. Talvez pelo fato de serem encarregadas da educação dos filhos, as m ulheres, em geral, sejam tão onipotentes. J ulgam -se capazes de m udar o com pan heiro, quan do, a rigor, n in guém m uda outr em . A pessoa pode decidir tr an sfor m ar -se e, com auxílio de um bom profissional psi, ter êxito. Tal sucesso pode tam bém ser obtido sem ajuda de ninguém , sendo, entretanto, m ais penoso, m ais lento e de duvidoso êxito. Os seres hum an os s ã o con d icion a d os a t r ein a r s u a s h a b ilid a d es e potencialidades num a certa direção. Por assim dizer, especializam -se. Isto n ão ocorre apen as n o âm bito do trabalho, m as em tod as as ativid ad es por ele(a) d esem pen h ad as. Especializam -se até nas m anias, tornando-se com pulsivas certas condutas. Não se está aderindo à m aneira sim plória de resolver o p r oblem a d a violên cia con t r a m u lh er es, ou seja, à p at ologização, m as am plian do o leque de perspectivas, em bora n ão se tr ate de um a adesão acr ítica àquilo que Bour dieu (198 9) cham ou de habitus. “[...] o habitus, com o in dica a palavra, é um con hecim en to adquirido e tam bém um hav er, um capital de um agente em ação [...]” (p. 61). Trata-se, pois, de dispositivos que operam “sem necessidade de o agente raciocinar para LCD 66 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 66 25/1/2011, 09:28 se orien tar e se situar de m an eira racion al n um espaço” (p. 62). O habitus nasce justam ente da interação entre o processo de socialização e o equipam ento genético de que é portador o agente social. Este conceito tem utilidade, m as incom oda por sua quase absoluta perm anência, ou seja, quase im possibilidade de m udar. Se assim n ão fora, Bourdieu n ão teria escrito, com a colaboração de Passeron , um livro sobre a reprodução ao qual atribuiu exatam ente este título (BOURDIEU e P ASSERON , 1970 ). O ha bitu s m ais for te em Bou r d ieu er a exatam en te o m ecan ism o da per m an ên cia (por esta r azão, quase todos os seus con ceitos são fech ados), em detrim en to da tran sform ação. Tod avia, estan d o aler ta p ar a isto, os cien tistas sociais podem utilizá-los todos. Parece, n o en tan to, m uito m en os ou nada problem ático o uso, quando cabível, do conceito de conservação-dissolução, form ulado por Bettelheim (1969), in spirado em Marx. Este, fazendo a crítica da econom ia burguesa, m ostra a n ecessidade de se com eçar pelo com plexo, a fim de poder com preender o sim ples. Desta sorte, é preciso analisar a socied ad e bu r gu esa p ar a se en ten d er as qu e a p r eced er am , m esm o porque aquela con tém , ain da que de form a estiolada, travestida, a sociedade antiga e a sociedade feudal. “Um a for m a çã o socia l ja m a is d esa p a r ece a n t es q u e estejam desen volvidas todas as forças produtivas que ela pode conter, jam ais relações de produção novas e superior es su bstitu em as an tigas an tes qu e as con d ições m ater iais d e existên cia d estas r elações d esabr och em n o p r ópr io seio da velh a sociedade. Eis por qu e a h u m an idade jam ais levanta problem as que ela não pode resolver, pois, olhando-a de m ais perto, saber-se-á que o próprio problem a n ã o su r ge sen ã o on d e a s con d ições m a t er ia is p a r a r esolvê-lo já exist am ou , p elo m en os, est ão em vias d e em er gir ” (Ma r x, 19 57, p r efá cio, p . 5). Assim , o n ovo e o velho coexistem até que prevaleça o prim eiro, sem , contudo, desaparecer com pletam ente o velho, que 67 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 67 25/1/2011, 09:28 se apresen ta de outras form as. Na fam ília, coexistem n ovas e velhas relações até que as prim eiras venham a ser prevalentes. As relações violen tas devem ser trabalhadas n o sen tido de se tor n ar em igu alitár ias, d em ocr áticas, n a pr esen ça, por tan to, ain da que con tidas, auto-reprim idas, das an tigas. As pessoas envolvidas na relação violenta devem ter o desejo de m udar. É por esta razão que n ão se acredita n um a m udan ça radical de um a relação violenta, quando se trabalha exclusivam ente com a vítim a. Sofren do esta algum as m udan ças, en quan to a outra parte perm an ece o que sem pre foi, m an ten do seus habitus, a relação pode, in clusive, torn ar-se ain da m ais violen ta. Todos p er cebem qu e a vítim a p r ecisa d e aju d a, m as p ou cos veem esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de auxílio para prom over um a verdadeira transform ação da relação violenta. Em m uitos países, esta necessidade foi apreendida há décadas, dan do oportun idade para a em ergên cia de serviços de ajuda aos agressores. Algun s países latin o-am erican os os têm . No Brasil, existem algum as ONGs, com o o PAPAI , em Recife, e o NOOS, talvez o m ais antigo, que opera na cidade do Rio de J aneiro e em m ais dois ou três m unicípios da região m etropolitana. Em São Paulo, o Pró Mulher trabalha com a vítim a e com o agressor. Em bora não se possa fazer um a avaliação de todos(as) os(as) profissionais destas organizações, conhecem se algu n s en tr e os qu e pr estam seu s ser viços n o PAPAI e n o NOOS . Em am bos, h á profission ais de alto n ível, m as n ão se con h ecem todos. No Pró Mulh er pode h aver excelen tes profissionais. Com o só se conhece a coordenadora, o que se pode afirm ar é que sua especialidade era patologizar os agressores. No en tan to, o próprio serviço e as relações com a equipe podem ter produzido seu deslocam en to para outra perspectiva. Desta form a, é m elhor suspender o juízo até que se obtenham inform ações precisas e atuais a este respeito. É chegado o m om ento de se esclarecer, com a precisão possível, as sobreposições e diferen ças en tre várias m odalidades de violên cia, o que será realizado n o próxim o capítulo. 68 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 68 25/1/2011, 09:28 3. Para além da violência urbana Há, no Brasil, um a enorm e confusão sobre os tipos de violência. Usa-se a categoria v iolência contra m ulheres com o sinônim o de v iolência de gênero. Tam bém se confunde v iolência dom éstica com violência intrafam iliar. Far-se-á, aqui, um esforço para dem onstrar as sobreposições parciais entre estes con ceitos e, m esm o assim , suas especificidades. Sem con ceitos precisos, pode-se pen sar estar falan do de um fen ôm en o, en quan to se fala de outr o. Mais gr ave, ain da, é in iciar um a p esqu isa com este em ar an h ad o d e con str u ctos m en ta is, n a m edida em que isto com prom eteria até m esm o a elaboração do roteiro de en trevista ou question ário, levan do o pesquisador a deixar de obter as r espostas que ele busca par a obter inform ações que não dizem respeito direto a sua pesquisa. A violência de gênero é, sem dúvida, a categoria m ais geral. En tr etan to, cau sa u m cer to m al-estar qu an do se pen sa este con ceito com o aquele que en globa os dem ais, cada um apre69 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 69 25/1/2011, 09:28 sentando tão-som ente nuanças distintas. Não se trata propriam en te disto, pois tam bém apresen tam características específicas. É exatam ente para estas especificidades que se pretende ch am ar a aten ção do leitor. Por estas razões, estim a-se prudente m ostrar estes fatos em suas peculiaridades, a fim de se trabalhar com um quadro teórico de referência, capaz de orientar o investigador, em vez de confundi-lo. Não se pretende, por ora, voltar a discorrer sobre o conceito de gênero, pois o leitor já conhece o fundam ental sobre ele para acom panhar o raciocín io deste capítulo. Recorrer-se-á a ele n o próxim o capítulo para aprofundar o que já foi expresso. No presente capítulo, ele será evocado som en te quan do n ecessário. O uso deste conceito pode, segundo Scott (1988), revelar sua neutralidade, na m edida em que não inclui, em certa instância, desigualdades e poder com o n ecessários. Aparen tem en te um d etalh e, esta exp licitação p er m ite con sid er ar o con ceito d e gên ero com o m uito m ais am plo que a n oção de patriarcado ou, se se preferir, viriarcado, androcentrism o, falocracia, falologo-cen trism o. Para a discussão con ceitual, este pon to é ext r em am en t e r elevan t e, u m a vez qu e g ên er o d eixa aber t a a p ossibilid ad e d o vetor d a d om in ação-exp lor ação, en qu an to os d em ais term os m arcam a presen ça m asculin a n este pólo. Neste livro, con siderar-se-á gên ero in depen den tem en te de a quem perten ça a prim azia: aos hom en s ou às m ulheres. Que, entretanto, isto não seja tomado como adesão ao caráter supostam ente m ais neutro do conceito de gênero, pois, de certo ângulo, pode-se afirm ar exatam ente o oposto (J OH NSON , 1997). Em bora aqui se interprete gênero tam bém com o um conjunto de n orm as m odeladoras dos seres hum an os em hom en s e em m ulheres, norm as estas expressas nas relações destas duas categorias sociais, ressalta-se a n ecessidade de am pliar este con ceito para as relações hom em – hom em e m ulher– m ulher, com o, aliás, já se m encionou. Obviam ente, privilegia-se o prim eiro tipo de relação, posto que existe n a realidade objetiva com a qual todo ser hum an o se depara ao n ascer. Ain da que histórica, esta realidade é previam ente dada para cada ser hu70 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 70 25/1/2011, 09:28 m an o que passa a con viver socialm en te. A desigualdade, lon ge de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agen tes en volvidos n a tram a de relações sociais. Nas relações en tre hom en s e en tre m ulheres, a desigualdade de gênero não é dada, m as pode ser construída, e o é, com frequên cia. O fato, porém , de n ão ser dada previam en te ao estabelecim ento da relação a diferencia da relação hom em – m ulh er. Nestes term os, gên ero con cern e, preferen cialm en te, às relações hom em – m ulher. Isto n ão sign ifica que um a relação de violên cia en tr e dois h om en s ou en tr e duas m ulh er es não possa figurar sob a rubrica de violência de gênero. A disputa por um a fêm ea pode levar dois hom ens à violência, o m esm o poden do ocorrer en tre duas m ulheres n a com petição por um m acho. Com o se trata de relações regidas pela gram ática sexu al, pod em ser com pr een d id as pela violên cia d e gên er o. Mais do que isto, tais violên cias podem caracterizar-se com o v iolên cia d om ést ica , d ep en d en d o d as cir cu n st ân cias. Fica, assim , paten teado que a violên cia de gên ero pode ser perpetr ada por u m h om em con tr a ou tr o, por u m a m u lh er con tr a outra. Todavia, o vetor m ais am plam ente difundido da violência de gênero cam inha no sentido hom em contra m ulher, tendo a falocracia com o caldo de cultura. Não h á m aiores dificuldades em se com preen der a violên cia fam iliar, ou seja, a que en volve m em bros de um a m esm a fam ília exten sa ou n uclear, levan do-se em con ta a con san guin idade e a afin idade. Com preen dida n a v iolência de gênero, a v iolên cia fam iliar pode ocor r er n o in ter ior do dom icílio ou fora dele, em bora seja m ais frequen te o prim eiro caso. A violên cia in trafam iliar extrapola os lim ites do dom icílio. Um avô, cu jo d om icílio é separ ad o d o d e seu (su a) n eto(a), pod e com eter violên cia, em n om e da sagrada fam ília, con tra este(a) p eq u en o( a ) p a r en t e( a ) . A violên cia d om és t ica a p r es en t a pon tos de sobreposição com a fam iliar. Atin ge, porém , tam bém pessoas que, n ão perten cen do à fam ília, vivem , parcial ou in tegralm en te, n o dom icílio do agressor, com o é o caso de agregadas(os) e em pregadas(os) dom ésticas(os). Estabelecido 71 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 71 25/1/2011, 09:28 o dom ín io de um território, o chefe, via de regra um hom em , passa a r ein ar quase in con dicion alm en te sobr e seus dem ais ocupan tes. O processo de territorialização do dom ín io n ão é p u r a m en t e geogr á fico, m a s t a m b ém sim b ólico (S AF F I OTI , 1997a). Assim , um elem en to hum an o perten cen te àquele território pode sofrer violên cia, ain da que n ão se en con tre n ele in stalado. Um a m ulher que, para fugir de m aus-tratos, se m uda da casa de seu m arido pode ser perseguida por ele até a con sum ação do fem icídio, fem in ilizan do-se a palavra h om icídio (R ADFORD e R USSELL, 1992). Este fen ôm en o n ão é tão r ar o q u a n t o o sen so com u m in d ica . A violên cia d om ést ica t em lu gar , p r ed om in an t em en t e, n o in t er ior d o d om icílio. Nad a im p ed e o h om em , con t u d o, d e esp er ar su a com p an h eir a à p or ta d e seu tr abalh o e su r r á-la exem p lar m en te, d ian te d e todos os seus colegas, por se sen tir ultrajado com sua atividade extralar, com o pode ocorrer de a m ulh er queim ar com ferro de passar a cam isa preferida de seu com pan heiro, porqu e d escobr iu qu e ele tem u m a am an te ou tom ou con h ecim en t o d e qu e a p eça d o vest u ár io foi p r esen t e “d a ou t r a”. Poder-se-ia pergun tar, n este m om en to, se a violên cia de gên ero, em geral, ou a in trafam iliar ou, ain da, a dom éstica esp ecificam en te são sem p r e r ecíp r ocas. Mesm o ad m itin d o-se que pudesse ser sem pre assim , o que n ão é o caso, a m ulher levaria desvan tagem . No plan o da força física, resguardadas as difer en ças in dividu ais, a der r ota fem in in a é pr evisível, o m esm o se passan do n o terren o sexual, em estreita vin culação com o poder dos m úsculos. É voz corren te que a m ulher ven ce n o cam p o ver bal. En t r et an t o, en t r evist as com m u lh er es vítim as de violên cia dom éstica têm revelado que o hom em é, m u itas vezes, ir r em ed iavelm en te fer in o (S AFFIOTI , in éd ito). Isto n ão sign ifica que a m ulher sofra passivam en te as violên cias com etidas por seu parceiro. De um a form a ou de outra, sem p r e r eage. Qu an d o o faz violen tam en te, su a violên cia é r eativa. Isto n ão im p ed e qu e h aja m u lh er es violen tas. São, todavia, m uito raras, dada a suprem acia m asculin a e sua socialização par a a docilidade. 72 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 72 25/1/2011, 09:28 O fem icídio com etido por parceiro acontece, num erosas vezes, sem prem editação, diferentem ente do hom icídio nas m esm as cir cu n stân cias, qu e exige plan ejam en to. Este der iva de um a der r ota pr esum ível da m ulh er n o con fr on to com o h om em . No Brasil, não há pesquisas neste sentido. Na Inglaterra, as pen as para as m ulheres que com etem hom icídios de seus m aridos são m aiores que as sentenciadas aos hom ens que perpetram fem icídio de suas esposas, ou uxoricídios, exatam ente em razão da prem editação, que constitui agravante penal. Não obstante os m aus-tratos de que podem ter sido vítim as durante toda a vigência da sociedade conjugal, a punição é m aior em virtude da m enor força física da m ulher, que exige o planejam en to do hom icídio, ou seja, sua prem editação. Resta discutir uma questão sobre a qual tampouco há consenso. A violência praticada por pai e mãe contra a prole pode ser con sider ada violên cia de gên er o, in tr afam iliar e dom éstica? Indubitavelm ente, sua natureza é fam iliar. Para quem define a violência dom éstica em term os do estabelecim ento de um domínio sobre os seres humanos situados no território do patriarca con siderado, n ão resta dúvida de que a hierarquia com eça no chefe e termina no mais frágil dos seus filhos, provavelmente filhas. Cabe debater o papel da mulher que, tendo seus direitos hum anos violados por seu com panheiro, m altrata seus filhos. Apesar de que “as m ulheres figuram em n úm ero im portan te dentre as vítimas de violência e em número reduzido dentre os autores de violência” (COLLIN , 1976), há m uitas m ulheres que m altratam seus filhos, elem entos inferiores na hierarquia doméstica. Não apenas o homem, mas também a mulher está sujeita à síndrome do pequeno poder, sendo uma frequente autora de m aus-tratos con tra crian ças. Com o afirm a Welzer-Lan g (1991), a violência dom éstica é m asculina, sendo exercida pela m ulher por delegação do chefe do grupo dom iciliar. Com o ela “é o prim eiro m odo de regulação das relações sociais entre os sexos” (W ELZER -LANG, p. 23), é desde crian ça que se experimen ta a dom in ação-exploração do patriarca, seja diretam en te, seja usan do a m ulher adulta. A fun ção de en quadram en to 73 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 73 25/1/2011, 09:28 (BERTAUX, 1977) é desempenhada pelo chefe ou seus prepostos. A mulher, ou por síndrome do pequeno poder ou por delegação do macho, acaba exercendo, não raro, a tirania contra crianças, último elo da cadeia de assimetrias. Assim, o gênero, a família e o território domiciliar contêm hierarquias, nas quais os homens figuram com o dom in adores-exploradores e as crian ças com o os elem en t os m a is d om in a d os-exp lor a d os. Nos t er m os d e Welzer-Lang, “a violência doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/ da dom inante” (p. 278). Desta sorte, a mulher é violenta no exercício da função patriarcal ou viriarcal. No grupo dom iciliar e n a fam ília n ão im pera necessariam ente a harm onia, porquanto estão presentes, com frequência, a com petição, a trapaça, a violência. Há, entretanto, um a ideologia de defesa da fam ília, que chega a im pedir a den ún cia, por parte de m ães, de abusos sexuais perpetrados por pais contra seus (suas) próprios(as) filhos(as), para não mencionar a tolerância, durante anos seguidos, de violências físicas e sexuais contra si m esm as. No que tange a abusos sexuais de crian ças, a gram ática portuguesa im põe o uso do m asculin o, embora internacionalmente seja de cerca de apenas 10 % a proporção de meninos afetados por este fenômeno. Contudo, mesmo que se tratasse de um só garoto, valeria a pena lutar contra esta violên cia. O significado da violência No que con cern e à precisão de con ceitos, é im portan te que se aborde, ain da que ligeiram en te, o sign ificado da violên cia nas m odalidades aqui focalizadas. É óbvio que a sociedade considera norm al e natural que hom ens m altratem suas m ulheres, assim com o que pais e m ães m altratem seus filhos, ratificando, deste m odo, a pedagogia da violên cia. Trata-se da ordem social das bicadas (SAFFIOTI , 1997a). “[...] a cr im in a lid a d e, a violên cia p ú b lica é u m a violên cia m asculin a, isto é, um fen ôm en o sexuado. A dispa- 74 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 74 25/1/2011, 09:28 r id a d e m u scu la r , et er n o a r gu m en t o d a d ifer en ça , d eve ser in ter pelad a em d ifer en tes n íveis. [...] Nós con fu n d im os fr eq u en t em en t e: for ça -p ot ên cia -d om in a çã o e vir ilid a d e” (W E LZE R -L AN G , 19 9 1, p . 59 ). Efetivam ente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que os hom en s exerçam sua força-potência-dom inação contra as m ulheres, em detrim ento de um a virilidade doce e sensível, portanto m ais adequada ao desfrute do prazer. O con sen tim en to social para que os h om en s con vertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte, apenas as m ulheres, m as tam bém a eles próprios. A organização social de gênero, baseada na virilidade com o força-potên cia-dom in ação, perm ite prever que há um desen con tro am oroso m arcado en tre hom en s e m ulheres. As violências física, sexual, em ocional e m oral não ocorrem isoladam ente. Qualquer que seja a form a assum ida pela agressão, a violência em ocional está sem pre presente. Certam ente, se pode afirm ar o m esm o para a m oral. O que se m ostra de d ifícil u tilização é o con ceito d e violên cia com o r u p tu r a d e diferentes tipos de integridade: física, sexual, em ocional, m oral. Sobretudo em se tratan do de violên cia de gên ero, e m ais especificam en te in trafam iliar e dom éstica, são m uito tên ues os lim ites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o destin o de gên er o tr açado par a as m u lh er es: su jeição aos hom en s, sejam pais ou m aridos. Desta m an eira, cada m ulher colocará o lim ite em um pon to distin to do con tin uum en tre agressão e direito dos hom ens sobre as m ulheres. Mais do que isto, a m era existên cia desta ten uidade represen ta violên cia. Com efeito, paira sobre a cabeça de todas as m ulheres a am eaça de agressões m asculin as, fun cion an do isto com o m ecan ism o de sujeição aos hom en s, in scrito n as relações de gên ero. Em bora se trate de m ecanism o de ordem social, cada m ulher o in terpretará sin gularm en te. Isto posto, a ruptura de in tegrid ad es com o cr it ér io d e avaliação d e u m at o com o violen t o situa-se n o terren o da in dividualidade. Isto equivale a dizer 75 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 75 25/1/2011, 09:28 qu e a violên cia, en ten d id a d esta for m a, n ão en con tr a lu gar on tológico 21, com o já se m en cion ou. Fundam entalm ente por esta razão, prefere-se trabalhar com o con ceito de direitos hum an os, en ten den do-se por violên cia todo agenciam ento capaz de violá-los. É bem verdade que isto exige um a releitura dos direitos hum anos. J á desde a Revolução Francesa os direitos hum anos foram pensados no m asculin o: Declaração Un iversal dos Direitos do H om em e do Cidadão. Por haver escrito a versão fem inina dos direitos hum anos (Declaração Un iversal dos Direitos da Mulh er e da Cidadã), Olym pe de Gouges foi sentenciada à m orte na guilhotina, em 1792. Com o o hom em sem pre foi tom ado com o o protótipo de h u m an id ad e (F ACI O , 19 9 1), bast ar ia m en cion ar os d ir eit os daquele para con tem plar esta. Rigorosam en te, é ain da m uito in cip ien te a con sid er ação d os d ir eitos h u m an os com o tam bém fem ininos. Tudo, ou quase tudo, ainda é feito sob m edida para o hom em . Os equipam entos fabris estão neste caso, não obstan te as m u lh er es ter em pen etr ado n as fábr icas desde a Revolução Industrial. Claro que a m áquina de costura, inclusive a industrial, é feita para o corpo da m ulher, a fim de m antêla em suas fun ções tradicion ais. Nos países em que bordar à m áquina constitui tarefa m asculina, com o o Senegal, o equipam en to é adaptado ao corpo m asculin o. Nem sequer se pen sa na adequação de outras m áquinas ao corpo fem inino. Mulheres que passaram a trabalhar em equipam entos planejados para 21 Se não existe uma percepção unânime da violência, cada socius definindo-a como a sente, não se pode fazer ciência sobre a violência caracterizada como ruptura de integridades, uma vez que não há ciência do individual. Se as integridades e, por conseguinte, suas rupturas integrassem o ser social, fossem a ele inerentes, haveria uma mesma concepção destes fenômenos. Ao contrário, como se mostrou atrás, será possível construir uma sociedade igualitária, porque outras muitas deste gênero ocorreram no passado. A desigualdade, a violência, a intolerância não são inerentes ao ser social. Ao contrário, o são a identidade e a diferença. Estas sim têm, por via de consequência, lugar ontológico assegurado. Decompondo o vocábulo, lógico ou logia = estudo, ciência. do ser. 76 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 76 25/1/2011, 09:28 hom en s tiveram que a eles se adaptar, com prejuízo, m uitas vezes, da própria saúde. Entender que as diferenças pertencem ao reino da natureza, por m ais tran sform ada que esta ten ha sido pelo ser hum an o, en quan to a igualdade n asceu n o dom ín io do político, parece fora do horizonte de um a ideologia de gênero, que naturaliza atribuições sociais, baseando-se nas diferenças sexuais. O próprio tabu do incesto, fato fundante da vida em sociedade (LÉVI S TRAUSS , 1976), é ap r esen tad o aos socii com o se estivessse an corado em razões de ordem biológica. A n aturalização do fem inino com o pertencente a um a suposta fragilidade do corpo da m ulher e a naturalização da m asculinidade com o estando in scrita n o corpo forte do hom em fazem parte das tecn ologias de gên ero (LAURETIS, 198 7), que n orm atizam con dutas d e m u lh er es e d e h om en s. A r igor , t od a via , os cor p os sã o gendrados 22 , recebem um im print do gênero. Donde ser neces22 O vocábulo gendrado, oriundo de gender (palavra inglesa para gênero), tem sido utilizado por feministas, na falta de um adjetivo correspondente ao substantivo gênero. Trata-se de um neologismo, incorporado do inglês (gendered) e ainda não dicionarizado. Pode-se falar em corpo gendrado para designar não o corpo sexuado, mas o corpo formatado segundo as normas do ser mulher ou do ser homem. Estatisticamente, a socialização do bebê ancora-se no sexo, mas não é tão raro que famílias com cinco filhas, e desejando um filho, socializem a sexta filha como homem. Na literatura brasileira, pode ser lembrada a figura de Diadorim, nascida da imaginação de Guimarães Rosa, mas existente, por vezes, na realidade concreta da vida. George Sand não constitui um bom exemplo, mas lembra este fato. Em aldeias agrárias da ex-Iugoslávia, na ex-República de Montenegro, ocorria este fenômeno, embora não se possa dizer com que frequência, em decorrência da crença de que famílias sem nenhum filho, só com filhas, sofreriam desgraças em razão do mau tempo, das más colheitas, da fome, das doenças. Quem se interessar pelo assunto, pode assistir ao filme Vírgina, disponível em grandes locadoras, que mostra dois casos reais numa mesma família extensa. Obviamente, não se tratava de escapar das adversidades, mas de enganar a comunidade, numa clara desmistificação da referida crença. Pode-se também dizer que o pai da filha socializada como filho fazia um pacto com São Jorge, padroeiro de Montenegro. A desmistificação reside no fato de: se a comunidade acreditasse que aquela criança era do sexo masculino, a família se livraria dos males, porque, afinal, se tratava apenas de uma crença, nada mais. Vírgina era do sexo feminino, mas seu corpo era gendrado como masculino. Logo, a palavra sexuado não substitui gendrado. 77 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 77 25/1/2011, 09:28 sária um a especial releitura dos direitos hum anos, de m odo a con tem plar as diferen ças en tre hom en s e m ulheres, sem perder de vista a aspiração à igualdade social e a luta para a obtenção de sua com pletude (F ACIO , 1991). A con sideração das diferenças só faz sentido no cam po da igualdade. Neste sentido, o par da diferença é a identidade, enquanto o da igualdade é a desigualdade, sendo esta que se precisa elim inar. Poder-se-ia argum en tar que tam pouco a com preen são dos direitos hum anos é hom ogênea, pois varia segundo as classes sociais, segun do as raças/ etn ias, de acordo com os gên eros. No seio m esm o de cada um a destas categorias en con tram -se d istin ções d e en ten d im en to. Gr osso m od o, en tr etan to, elas servem com o balizas, evitando-se que se resvale para o individual. Por outro lado, há um a con sciên cia avan çada da situação, capaz de definir os direitos hum anos no fem inino, com o, aliás, vem sen do feito n os cam pos da saúde, da educação, da violên cia, n o terren o jurídico etc. Os portadores desta con sciência lutam por sua difusão, assim com o pela concretização de um a cidadania am pliada, isto é, de direitos hum anos tam bém para pobres, negros, m ulheres. O respeito ao outro constitui o ponto nuclear desta nova concepção da vida em sociedade. Com o afirm a Saram ago, enquanto a religião exige que os seres hum anos se am em uns aos outros, o que depende de convivência, um a vez que nem m esm o o am or m aterno é instintivo (BADINTER , 198 0 ), a com p r een são d os d ir eitos h u m an os im põe que cada um respeite os dem ais. Am ar o outro não constitui um a obrigação, m esm o porque o am or não nasce da im posição. Respeitar o outro, sim , con stitui um dever do cidadão, seja este outro m ulher, n egro, pobre. Ademais, o gênero, a raça/ etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturan tes da sociedade. Estas con tradições, tom ad as isolad am en te, apr esen tam car acter ísticas d istin tas daquelas que se pode detectar no nó que formaram ao longo da história (SAFFIOTI , 1997b). Este contém uma condensação, uma exacerbação, um a potenciação de contradições. Com o tal, m erece e exige tratam ento específico, m esm o porque é no nó que 78 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 78 25/1/2011, 09:28 atuam, de forma imbricada, cada uma das contradições mencionadas. Além disto, esta concepção é extrem am ente im portante p a r a se en t en d er o su jeit o m ú lt ip lo (L AURE TI S , 19 8 7) e a m otilidade entre suas facetas. Efetivam ente, o sujeito, constituído em gênero, classe e raça/ etnia, não apresenta homogeneidade. Depen den do das con dições históricas viven ciadas, um a destas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda que vivas, colocam-se à sombra da primeira. Em outras circunstâncias, será uma outra faceta a tornar-se dominante. Esta mobilidade do sujeito múltiplo acompanha a instabilidade dos processos sociais, sem pre em ebulição. Pontos de referência Em face deste quadro teórico de referência, exposto ainda que sum ariam en te, pode-se ressaltar certos pon tos, fruto de reflexão em basada em dados em píricos. 1. A violência dom éstica ocorre num a relação afetiva, cuja ruptura dem anda, via de regra, intervenção externa. Raram ente um a m ulher consegue desvincular-se de um hom em violent o sem au xílio ext er n o. At é qu e est e ocor r a, d escr eve u m a trajetória oscilante, com m ovim entos de saída da relação e de retorno a ela. Este é o cham ado ciclo da violência, cuja utilidade é m er am en te descr itiva. Mesm o quan do per m an ecem n a relação por décadas, as m ulheres reagem à violên cia, varian do m uito as estratégias. A com preensão deste fenôm eno é im portante, porquanto há quem as considere não-sujeitos e, por via de con sequên cia, passivas (CH AUI , 198 5; GREGORI , 198 9). Mulheres em geral, e especialm ente quando são vítim as de violên cia, r ecebem tr atam en to de n ão-su jeitos. Isto, todavia, é difer en te de ser n ão-su jeito, o qu e, n o con texto deste livr o, con stitui um a con tradictio in subjecto (con tradição n os term os). Com o afirm a Linda Gordon, “tem sid o n ecessár io m ostr ar qu e a v iolên cia fam iliar n ão é a exp r essão u n ilat er al d o t em p er am en t o violen t o 79 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 79 25/1/2011, 09:28 d e u m a p essoa, m as é tr am ad a con ju n tam en te – em bor a n ão igu alm en te – p or vár ios in d ivíd u os n o cald eir ão d a fa m ília . N ã o h á ob jet os, a p en a s su jeit os...” (19 8 9 , p . 2 9 1) . Isto n ão sign ifica que as m ulheres sejam cúm plices de seus agressores, com o defen dem Chaui e Gregori. Para que pudess e m s e r cú m p lice s , d a r s e u co n s e n t im e n t o à s a gr e s s õ e s m asculin as, precisariam desfrutar de igual poder que os h om en s. Sen d o d eten tor as d e par celas in fin itam en te m en or es de poder que os h om en s, as m ulh er es só podem ceder , n ão con sen tir (M ATH IEU , 198 5). Tr ata-se d e caso sim ilar à r elação patrão– em pregado. Este últim o n ão con sen te com as con dições do con trato, tam pouco com o salário, m as cede, pois qu ase sem p r e é abu n d an t e a ofer t a d e for ça d e t r abalh o e escassa a oferta de postos de trabalho, particularm en te n este m om en t o h ist ór ico. 2 . As m ulheres lidam , via de regra, m uito bem com m icrop od er es. Não d et êm sa v oir fa ir e n o t er r en o d os m acr op od er es, em vir tu d e d e, h istor icam en te, ter em sid o d eles alijadas. Mais do que isto, n ão con hecem sua história e a histór ia d e su as lu tas, acr ed itan d o-se in cap azes d e se m over n o seio da m acropolítica (LERNER , 198 6). En tretan to, quan do se a p er ceb em d e q u e h á u m a p r ofu n d a in t er -r ela çã o en t r e a m icr op olítica e a m acr op olítica, elas p od em p en etr ar n esta últim a com gran de grau de sucesso. Na verdade, trata-se de p r ocessos m icr o e p r ocessos m acr o, at r avessan d o a m alh a social. Não há um plan o m acro e um plan o m icro, com o creem cer t os in t elect u a is (G U ATTAR I , 19 8 1; G UATTAR I e R OLN I K , 198 6). Eviden tem en te, há um a m alha grossa e um a m alha fin a, um a sen do o avesso da outra, e n ão n íveis diferen tes. A rigor, poder -se-ia dizer qu e os pr ocessos sociais apr esen tam du as faces: um a m icro e outra m acro, sobressain do-se um a ou outr a, d ep en d en d o d as cir cu n stân cias. Tr an sm itin d o as p alavras plan o e n ível a ideia de hierarquia, as pessoas põem logo o m acro acim a do m icro. Esta nova term inologia pretende evi80 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 80 25/1/2011, 09:28 tar esta hierarquização, além de m ostrar o em aran hado destes processos. E as m ulh eres sabem com o tecer a m alh a social, op er an d o em p r ocessos m acr o e em p r ocessos m icr o. Con ver ter a con sciên cia dom in ada das m u lh er es (M ATH IEU , 1985) em detentoras deste conhecim ento, certam ente, aum entaria seu n úm ero n a política in stitucion al e em outras in stân cias de decision m akin g. 3 . Violência de gênero, inclusive em suas m odalidades fam iliar e dom éstica, não ocorre aleatoriam ente, m as deriva de um a organização social de gênero, que privilegia o m asculino. Diferen tem en te da taxion om ia que divide os diferen tes tipos de espaço-tem po em dom éstico, da produção e da cidadan ia (SANTOS, 1995), propõe-se, aqui, um a nova m aneira de se conceber em est es fen ôm en os. O esp aço-t em p o d om ést ico ser á substituído pelo espaço-tem po do dom icílio. Este se subdivid e em esp aço-tem p o d om éstico, esp aço-tem p o d o tr abalh o resultante da produção antroponôm ica (BERTAUX, 1977), em inentem ente, para não dizer exclusivam ente, fem inino, e espaço-tem po privado, do ócio, da in tim idade, quase totalm en te restrito aos hom ens. Quantas são as m ulheres com privacidade, se a sociedade inteira considera dever da m ulher cum prir o que no Código Civil de 1917, recém -reform ado, era cham ado de débito conjugal (felizm ente abolido no novo Código Civil), ou seja, ceder a um a relação sexual contra sua vontade, a fim de satisfazer o desejo do com panheiro? De que privacidade se pode falar se m ilhões de m ulheres são literalm ente estupradas n o seio do casam en to todos os dias, duas vezes por sem an a etc.? O espaço-tem po da produção é m uito restrito. Propõe-se sua substituição por espaço-tem po público. Fin alm en te, o espaço-tem po da cidadan ia n ão pode ser con cebido separadam en te com o se a cidadan ia só pudesse ser exercida n a aren a da política in stitucion al. Deve, ao con trário, pen etrar os dem ais espaços-tem pos para que, de fato, o ser hum an o possa desfrutar de sua con dição de cidadão em todas as suas relações sociais. Pelo m enos é esta a luta da perspectiva fem inista, que busca ser o m ais holística possível. 81 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 81 25/1/2011, 09:28 4 . Não h á d u as esfer as: u m a d as r elações in t er p essoais (relations sociales) e outra das relações estruturais (rapports sociaux), com o querem certas fem inistas francesas e algum as brasileiras. Não existe a classe social com o entidade abstrata. Um a classe social negocia com outra por m eio de seus representantes, que tam pouco são entidades abstratas, m as pessoas. Todas as relações hum an as são in terpessoais, n a m edida em que são agen ciadas por pessoas, cada qual com sua h istória singular de contatos sociais. Por m ais que desejem desvincularse desta história para representar sua classe, seu passado e sua singularidade pesam tanto que se cham am alguns de bons negociadores e outros de m aus negociadores. O m esm o se passa com as categorias n egros e bran cos. Afirm ar que as relações de gên ero são relações in terpessoais sign ifica sin gularizar os casais, perden do de vista a estrutura social e torn an do cada hom em in im igo das m ulheres (D ELPH Y, 1998 ). Nesta con cepção, o en con tr o am or oso ser ia im p ossível. E ele é p ossível, apesar de os destinos de gênero – traçados pelas estruturas de poder – apresentarem m uita força. Em outros term os, nunca é dem ais realçar, o gênero é tam bém estruturante da sociedade, do m esm o m odo que a classe social e a raça/ etnia. Percorrendo a literatura sobre violên cia con tra crian ças e adolescen tes no Brasil, verificou-se que só as classes sociais eram tom adas com o categor ia h istór ica fu n dan te, passan do-se ao lar go da raça/ etnia e do gênero. Ora, são palpáveis as diferenças entre as form as de violên cia que atin gem bran cos e n egros, assim com o m eninos e m eninas (SAFFIOTI , 1997b). O privilegiam ento da classe social obscurece as dem ais clivagen s existen tes n a socied ad e. 5 . Tam bém obscurece a com preensão do fenôm eno da violência de gênero o raciocínio que patologiza os agressores. Intern acion alm en te falan do, apen as 2% dos agressores sexuais, por exem plo, são doen tes m en tais, haven do outro tan to com passagem pela psiquiatria. Ainda que estes também sejam considerados doen tes m en tais, para fazer um a con cessão, perfazem, no total, 4%, o que é irrisório. O mecanismo da patologização 82 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 82 25/1/2011, 09:28 ignora as hierarquias e as contradições sociais, funcionando de form a sem elhante à culpabilização dos pobres pelo espantoso n ível de violên cia de diversos tipos. Im putar aos pobres um a cultura violenta significa pré-conceito e não conceito. A violência de gênero, especialmente em suas modalidades doméstica e fam iliar, ignora fronteiras de classes sociais, de grau de industrialização, de ren da per capita, de distin tos tipos de cultura (ocidental X oriental) etc. Aliás, é m ais fácil entender relações incestuosas quando, às vezes, nem m esm o um cobertor separa os corpos do que nas residências em que cada um tem seu próprio dorm itório. Esta questão da pobreza relacionada à violência não tem sido posta em term os adequados. Pode-se interrogar a realidade, a fim de se ten tar descobrir se as con dições materiais que caracterizam a pobreza têm um peso significativo na produção da violência. Com o desencadeadoras da violência, acredita-se que tenham uma função, como, aliás, tem o álcool. É necessário testar se o ser hum ano se habitua às circunstâncias da m iséria ou se elas lhe causam estresse. Se confirm ada esta últim a hipótese, os pobres seriam agen tes de m ais violên cias que os ricos, não por possuírem uma cultura da violência, mas por vivenciarem, mais amiúde, situações de estresse. Ainda que esta mudança de ângulo de observação tenha um peso extraordinário, convém sublinhar que há formas de violência só possíveis entre os ricos. Haja vista o uso do patrimônio, que homens fazem para subjugar suas m ulheres. A am eaça perm anente de em pobrecim en to in duz m uitas m ulheres a suportar hum ilhações e outras form as de violên cia. Cabe, agora, a pergun ta: o poder do hom em rico, no uso do patrim ônio com o m ecanism o de sujeição e/ ou in tim idação da m ulher para fazer valer sua vontade, não com pensa a eventual m aior violência perpetrada pelo hom em pobre, vivendo em condições m ateriais precárias? Cabe interrogar a realidade, a fim de se poder tomar posição a respeito desta questão. 6 . Com o a m aior parte da violên cia de gên ero tem lugar em relações afetivas – fam ília extensa e unidade dom éstica – acredita-se ser útil o con ceito de codepen dên cia. 83 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 83 25/1/2011, 09:28 “Um a p essoa cod ep en d en t e é algu ém qu e, p ar a m an ter u m a sen sação d e segu r an ça on tológica, r equ er ou tr o in d ivíd u o, ou u m con ju n t o d e in d ivíd u os, p a r a d efin ir as suas carências; ela ou ele não pode sentir autoconfiança sem estar dedicado às n ecessidades dos outros. Um relacion a m en t o cod ep en d en t e é a q u ele em q u e u m in d ivíd u o est á liga d o p sicologica m en t e a u m p a r ceir o, cu ja s atividades são dirigidas por algum tipo de com pulsividade [sic]. Ch am arei de relacion am en to fixado aquele em que o p r óp r io r ela cion a m en t o é ob jet o d o vício” (G I DDENS , 19 9 2 , p . 10 1- 10 2 ) . Sem dúvida, m ulheres que suportam violência de seus com panheiros, durante anos a fio, são codependentes da com pulsão do m acho e o relacion am en to de am bos é fixado, n a m edida em que se torna necessário. Neste sentido, é a própria violência, in separável da relação, que é n ecessária. É verdade, por ou t r o la d o, q u e h á m u lh er es r es ilien t es ( K OTLI AR E N CO , CÁCERES , F ONTECILLA, 1997), qu e n ão se d eixam abater por con d ições ad ver sas. 7 . O poder apresenta duas faces: a da potência e a da im potência. As m ulheres são socializadas para conviver com a im potência; os hom ens – sem pre vinculados à força – são prepar a d os p a r a o exer cício d o p od er . Con vivem m a l com a im potência. Acredita-se ser no m om ento da vivência da im potên cia que os hom en s praticam atos violen tos, estabelecen do relações deste tipo (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995). Há num erosas evidências nesta direção. Por esta razão, form ula-se a hipótese, baseada em dados parciais, de que a violên cia dom éstica aum en ta em fun ção do desem prego. Todos os estudiosos de violên cia u r ban a sabem o qu ão d ifícil, se n ão im possível, é descobrir associações entre este fenôm eno, de um lado, e desigualdade, pauperização, desem prego, de outro. A violên cia dom éstica constitui um caso especial. O papel de provedor das n ecessid a d es m a t er ia is d a fa m ília é, sem d ú vid a , o m a is defin idor da m asculin idade. Perdido este status, o hom em se 84 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 84 25/1/2011, 09:28 sente atingido em sua própria virilidade, assistindo à subversão da hierarquia dom éstica. Talvez seja esta sua m ais im portante experiência de im potência. A im potência sexual, m uitas vezes, con stitu i apen as u m por m en or deste pr ofu n do sen tim en to de im potên cia, que destron a o hom em de sua posição m ais im portan te. Violência doméstica A violên cia dom éstica apresen ta características específicas. Um a das m ais relevan tes é sua rotin ização (SAFFIOTI , 1997c), o qu e con tr ibu i, tr em en d am en te, par a a cod epen d ên cia e o estabelecim en to da relação fixada. Rigorosam en te, a relação violen ta se con stitui em ver dadeir a pr isão. Neste sen tido, o próprio gên ero acaba por se revelar um a cam isa de força: o hom em deve agredir, porque o m acho deve dom in ar a qualqu er cu sto; e a m u lh er deve su por tar agr essões de toda or dem , porque seu “destino” assim o determ ina. Nã o se p od e n ega r a im p or t â n cia d a ch a m a d a violên cia urbana, que atinge hom ens e m ulheres, em bora de m odos distintos. De acordo com as estatísticas de m ortalidade (M ORTALIDADE BRASIL, 1997), havia diferen ças gigan tescas en tre hom ens e m ulheres no que tange aos óbitos por causas externas, que incluem hom icídio. No total, em 1994, m orreram , por causas extern as, quase cin co vezes m ais h om en s que m ulh eres. Na faixa etária de 15 a 19 anos, as m ulheres m ortas desta m an eira represen taram apen as 20 % dos hom en s. En tre 20 e 29 anos, m orreram 7,7 vezes m ais hom ens que m ulheres por causas externas, atingindo esta proporção 6,9 vezes na faixa etária de 30 a 39 an os. O espaço público é ain da m uito m asculin o, estan do os hom en s m ais sujeitos a atropelam en tos, passan do p or acid en t es d e t r ân sit o e ch egan d o at é ao h om icíd io. As m ulheres ain da têm um a vida m ais reclusa, estan do in fin itam en te m ais expostas à violên cia dom éstica. Difer en tem en te da violência urbana, a dom éstica incide sem pre sobre as m esm as vítim as, torn an do-se habitual. 85 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 85 25/1/2011, 09:28 O país carece de estudos n esta área. Realizou-se o m apeam ento deste fenôm eno em quase todas as capitais de estados, n o Distrito Federal e em 20 cidades do in terior do estado de São Paulo (SAFFIOTI , in édito). Esta pesquisa, que con tou com o apoio do Fundo de Desenvolvim ento das Nações Unidas para a Mulher ( UNIFEM ), do Fundo das Nações Unidas para a Infância ( UNICEF ), da Organização Pan-Am ericana de Saúde ( OPAS), da Fun dação Ford, da Fun dação MacArthur, da Fun dação de Am paro à Pesquisa do Estado de São Paulo ( FAPESP ) e do Conselh o Nacion al de Desen volvim en to Cien tífico e Tecn ológico ( CNP q), desenvolveu-se durante m uitos anos, enfrentando toda sorte de dificuldades. É extrem am en te difícil coorden ar um a in vestigação deste por te n um país com o o Br asil, n o qual a consciência profissional é precária, m as se espera que, dentro em breve, se tenha um relatório contendo todos os dados. Por ora, conta-se com dados parciais, um a vez que não houve tem po para inform atizar todos os coligidos. Em parte, a m orosidade resulta do caráter artesanal da pesquisa. Não se trata de um surv ey da população, que seria ideal, m as de um estudo bastan te exaustivo da violên cia den un ciada. Foram exam in ados todos os boletin s de ocorrên cia ( BO ) lavrados n as Delegacias de Defesa da Mulher ( DDM ), todos os BOs de 10 % dos distritos policiais ( DP ) e todos os BOs de delegacias de hom icídios, quando existem , anotando-se m anualm ente (à falta de laptops) os dados do agressor e da vítim a, inform ações estas que, posteriorm en te, foram in troduzidas n o com putador. Logo, realizouse o m esm o tr abalh o duas vezes. Acom pan h ou-se o BO , que podia ter sido arquivado ou con vertido em in quérito policial ( IP ). Neste prim eiro passo, já existia um gran de fun il. Outro gargalo existia entre o IP e o processo crim inal. A m aioria dos IP s era arquivada ou por falta de provas ou por falta de vontade de prosseguir. Com o já se ouviu de um procurador, responden do a um a pergun ta do porquê de a justiça ser len ta: “Os juízes perdem m uito tem po cuidando da surra que o Sr. J osé deu na Dona Maria e, enquanto isto, os problem as im portantes se avolum am , retardan do as decisões” (citação de m em ór ia). 86 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 86 25/1/2011, 09:28 Não é apen as este procurador que tem este en ten dim en to. Na ver d ad e, ele apen as r eflete a com placên cia qu e a socied ad e tem para com a violên cia dom éstica. E, en tretan to, ela talvez seja o fen ôm en o m ais “dem ocrático”: quase todas as m ulheres recebem seu quin hão. Poucos são, en tão, os IP s tran sform ados em processos-crim e. Destes, m uito poucos term in am em con den ação. Dados parciais de 198 8 revelam que a proporção de réus con den ados era de 11%, ten do crescido para 12,5%, em 1992, par a LCD ; 7% par a estupr o e abuso sexual, n os dois m om en tos; ten do aum en tado de 5% para 7%, para o crim e de am eaça, m uitas vezes de m orte, que acaba se con sum a n d o. A solu ção n ão con siste em agr avam en to d e p en a, m as n a certeza da pun ição. De 198 8 para 1992, an os escolhidos para a in vestigação, com a difusão de DDM s, houve um a m udan ça sign ificativa n os tipos de crim es com etidos: LCD , que represen tava cerca de 8 5% da violên cia dom éstica, caiu para 68 %. Em com pen sação, o crim e de am eaça aum en tou de 4% para 21% n o in tervalo m en cion ado. Na m aioria das vezes, quan do a m u lh er p r ocu r ava u m a DDM , n a ver d ad e, esp er ava qu e a delegada desse um a “pren sa” em seu m arido agressor, a fim de que a relação pudesse se estabelecer em n ovas bases (leiase harm on iosas). A am biguidade da con duta fem in in a é m uito gran de e com preen de-se o porquê disto. Em prim eiro lugar , tr ata-se d e u m a r elação afetiva, com m ú ltip las d ep en dên cias recíprocas. Em segun do lugar, raras são as m ulheres que con stroem sua própria in depen dên cia ou que perten cem a gr u pos d om in an tes. Segu r am en te, o gên er o fem in in o n ão con stitu i u m a categor ia social d om in an te. In d ep en d ên cia é d ifer en t e d e au t on om ia. As p essoas, sobr et u d o vin cu lad as por laços afetivos, depen dem um as das outras. Não há, pois, para n in guém , total in depen dên cia. “Gr u p os d om in a n t es s ã o ger a lm en t e a u t ôn om os n o sen tido de que n ão são respon sáveis por aqueles que lhes estão abaixo e n ão têm que pedir perm issão para fazer o 87 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 87 25/1/2011, 09:28 que desejam . En tretan to, isto n ão torn a os grupos dom in an tes in d ep en d en t es. [...] p or ém , eles têm a van tagem de ter m uito m ais controle sobre o m odo com o a realidade é defin ida e podem usar isto para m ascarar os acon tecim en t os (J OH N SON , 19 9 7, p . 14 7). Em terceiro lugar, na m aioria das vezes, o hom em é o único provedor do grupo dom iciliar. Um a vez preso, deixa de sê-lo, configurando-se um problem a sem solução, quando a m ulher tem m uitos filhos pequenos, ficando im pedida de trabalhar fora. Entre outras m uitas razões, cabe m encionar, em quarto lugar, a pressão que fazem a fam ília extensa, os am igos, a Igreja etc., no sentido da preservação da sagrada fam ília. Im porta m enos o que se passa em seu seio do que sua preservação com o instituição. Há, pois, razões suficientes para justificar a am biguidade da m ulher, que num dia apresentava a queixa e, no seguinte, solicitava sua retirada. Isto para n ão m en cion ar as am eaças de n ovas agressões e até de m orte que as m ulheres recebiam de com panheiros violentos. Em bora nunca haja existido a figura da retirada da queixa no ordenam ento jurídico da naçã o, ela er a en ga vet a d a . Logo q u e se in st a lou a p r im eir a DDM brasileira, em São Paulo, em agosto de 198 5, a delegada Rosm ary Corrêa, con hecida com o delegada Rose, atualm en te deputada estadual, n o segun do ou terceiro m an dato, ten tou abolir este pr ocedim en to, con sider ado m asculin o, quer en do isto dizer que prosseguir com o processo era secundário para os hom en s. BOs referentes a crim es frequentes contra m ulheres, m as que n ão se con figu r avam com o violên cia d om ést ica, er am , n ão propriam en te an otados, m as tabulados n um form ulário especial, a fim de que se pudesse calcular quanto, por exem plo, os estu p r os d om ésticos r ep r esen tavam d o m on tan te n u m ér ico total deste crim e. Assim , em bora o fulcro da pesquisa ten h a sido violência dom éstica, a não-dom éstica tam bém era com putada para efeito de com paração, evitando-se, assim , que a prim eira viesse a con stituir um un iverso fechado. 88 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 88 25/1/2011, 09:28 Os processos crim inais foram acom panhados em fóruns, anotando-se os fatos principais da ocorrência, assim com o depoim en tos e provas m ateriais, com o laudos do In stituto Médico Legal ( IML), arm as etc., chegando-se à sentença prolatada por juiz sin gular ou à decisão do Tr ibun al do J úr i, em casos de crim es contra a vida. Esta fase da investigação ficou prejudicada em alguns estados, em que não se conseguiu perm issão para exam in ar processos-crim e. Outros organ ism os de den ún cia – SOS CRIANÇA, conselhos tutelares – foram procurados, na tentativa de se detectar a m ãe agressora, que raram ente aparece em r egistr os d e d elegacias d e polícia. A pesqu isa en volveu , ain d a, en t r evist as com vít im as d e violên cia d om ést ica qu e apresentaram queixas em DDM s, assim com o com policiais dest as d elegacias esp ecializad as. O objet ivo d est as en t r evist as consistia, de um a parte, em aprofundar o conhecim ento qualitativo sobre a violência dom éstica e, de outra, avaliar os serviços prestados pelas DDM s. Delegacias de defesa da mulher A ideia de cr iação de delegacias especializadas n o aten dim ento à m ulher apresenta, inegavelm ente, originalidade e intenção de propiciar às vítim as de violência de gênero em geral e, em especial, d a m od alid ad e sob en foqu e, u m tr atam en to diferenciado, exigindo, por esta razão, que as policiais conhecessem a área das relações de gên ero. Sem isto, é im possível com pr een d er a am bigu id ad e fem in in a. Tod avia, os pod er es públicos não im plem entaram a ideia original. Em São Paulo, só em 1998 , h ou ve u m cu r so 23 sobr e violên cia d e gên er o, com Na época, existiam cerca de 126 DDMs no estado de São Paulo. As do interior foram trazidas e hospedadas com recursos do erário público. Eu havia ministrado, com a colaboração de S. S. de Almeida, um curso para comandantes e subcomandantes da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro e, portanto, tinha o programa que elaborei e, posteriormente, desenvolvi em sala de aula. O curso foi ministrado graciosamente, na tentativa de que se rotinizasse. Nilo Batista era vice-governador do Rio de Janeiro, 23 89 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 89 25/1/2011, 09:28 dur ação de 40 h or as, m in istr ado às en tão 126 delegadas de DDM s do estado. Em bora haja dem anda por m ais cursos, o segun do ain da n ão se realizou. Não se trata de afirm ar que as delegadas são in com peten tes. Com o policiais, devem ser todas m uito capazes. O problem a reside n o con h ecim en to das relações de gên ero, que n ão é detido por n en hum a categoria ocupacion al. Profission ais da saúde, da educação, da m agistratura, do Min istério Público etc., n ecessitam igualm en te e com urgên cia, desta qualificação. Adem ais, há que se form ularem diretrizes a serem seguidas por todas as DDM s, a fim de se assegurar um tratam ento de boa qu alidade e h om ogên eo a todas as vítim as de violên cia qu e bu scam este ser viço. Talvez a pr im eir a escu ta n ão d eva ser realizada na DDM e por policiais. Um a assistente social ou um a psicóloga poderia, em local separado, m as próxim o da DDM , fazer a triagem dos casos e dar a suas protagonistas o encam in ham en to correto: serviço jurídico, de apoio psicológico, policial etc. Por en quan to, a orien tação das DDM s depen de das boas ou m ás intuições de suas delegadas, estando m uito longe de ser uniform e. As DDM s constituem apenas um a m edida isolada, sen do de pequen a eficácia sem o apoio de um a rede de quando apresentei a proposta, e ele teve muita sensibilidade, aderindo à ideia. Quando o curso foi ministrado, ele era governador. Como eu havia tido esta experiência, a delegada Dra. Maria Inês Valente, coordenadora de todas as DDMs do estado, trabalhou, juntamente com Maria Aparecida de Laia, presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina, junto ao governo para obter a verba necessária para transportar, hospedar e alimentar as delegadas do interior. Também conseguiram numerário para xerografar artigos, capítulos de livros e trabalhos da autoria das professoras sobre o assunto, material este distribuído às delegadas. Numa reunião com a presença de Dra. M. I. Valente, S. Pimentel, M. Ap. de Laia, deliberamos ampliar o curso, incorporando direitos humanos, a cargo de Sílvia Pimentel e suas colaboradoras; comunicação, sob responsabilidade de Fátima Pacheco Jordão; sociologia, a mim atribuída; e uma abordagem psicológica da questão, sob encargo da psicóloga Malvina Muszkat. Por serem muitas, as delegadas foram divididas em dois grupos e cada um deles teve o mesmo curso semanal. Em certas oportunidades, encontro-me com algumas ex-alunas destes grupos, sempre prontas a reivindicar outros cursos. 90 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 90 25/1/2011, 09:28 serviços. Em bora a figura da retirada da queixa não existisse, de que outra m aneira poderia se conduzir um a delegada, quando a m ulher voltava à DDM com esta dem anda por estar sendo am eaçada de m orte por seu com pan h eiro, sen ão “esquecen do” a n otitia crim in is, em vir tude da ausên cia de alber gues apropriados para acolher esta m ulher? Atualm en te, há cerca de 80 abrigos para vítim as de violência em todo o país, o que é, n o m ín im o, r idículo. Um a ver dadeir a política de com bate à violência dom éstica exige que se opere em rede, englobando a colaboração de diferen tes áreas: polícia, m agistratura, Min istério Público, defen soria pública, hospitais e profission ais da saú d e, in clu sive d a ár ea psi, d a ed u cação, d o ser viço social etc. e grande núm ero de abrigos m uito bem geridos. Cabe ressaltar , um a vez m ais, a n ecessidade ur gen te de qualificação destes profission ais em relações de gên ero com realce especial da violência dom éstica. Exatam ente em razão do esvaziam ento, em term os de funções, das DDM s, cabe operacionalizar um a rede de serviços, com todos os seus profissionais qualificados n o assun to relações de gên ero. Os an os escolh idos para com paração – 198 8 e 1992 – são anteriores à lei 9.0 99, que entrou em vigor no final de 1995 e criou os J uizados Especiais, n as áreas cível e crim in al. Esta n ova legislação alterou o rito processual, para os crim es apen ados com até um an o (a lei pode abran ger crim es apen ados com m ais de um an o de privação da liberdade, m as, n o que con cern e à violên cia dom éstica, são os apen ados com até um ano que interessam ), com extinção da figura do réu, da perda da prim ariedade, depen den do das circun stân cias, das pen as de privação de liberdade, substituídas por pen as altern ativas, em benefício da oralidade, da agilidade, da conciliação. Provavelm en te, fun cion a bem para dirim ir querelas en tre vizin hos, m as tem se r evelad o u m a lástim a n a r esolu ção d e con flitos dom ésticos, n a opin ião da m aioria das delegadas de DDM s e outros profissionais do ram o. Da pesquisa term inada recentem en te (SAFFIOTI , 20 0 3), pode-se con cluir a ur gên cia ur gen tíssim a de, no m ínim o, reform ar a lei 9.0 99, m as seria m uito 91 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 91 25/1/2011, 09:28 m ais in ter essan te legislar especificam en te sobr e a violên cia dom éstica. Alguns países latino-am ericanos têm feito isso, entre eles o Equador. No Brasil, a m ulta irrisória tem sido um a pena alternativa m uito utilizada, ficando os hom ens legalm ente autorizados a voltar a agredir suas com panheiras. Paga a m ulta e sem perda da prim ariedade – é verdade que depen den do do com portam ento do acusado – , os hom ens sentem -se livres para con tin uar sua “carreira” de violên cias. H á casos de m ulheres que apresen taram queixas a DDM s, ten do sido elaborados os term os circunstanciados ( TC), que substituíram os boletins de ocorrência em crim es de m enor potencial ofensivo, por três e até sete vezes. Seus com panheiros não apenas voltaram a praticar toda espécie de violên cia, especialm en te a LCD , con tr a elas, com o assassin aram algum as. Audiên cias são realizadas, m uitas vezes, nos corredores dos fóruns, por m esárias, sem a presença de juiz nem de prom otor. De acordo com a lei referida, o juiz é obrigado a nom ear um advogado gratuito para as vítim as que não constituíram o seu particular, caso de praticam ente todas, já que são as pobres que recorrem ao J ECrim (só há um em São Paulo, m as todas as varas crim inais de todos os fóruns são obrigadas a obedecer à lei, de caráter nacional, porque federal). Foram m uitas as audiências assistidas e nunca se viu um a vítim a en trar com seu advogado, n em dispor de um nom eado pelo juiz. A lei já não serve para tratar de violência dom éstica, m as pior ainda é sua im plem entação. Por ter visto bem de perto com o as coisas funcionam , pode-se repetir que a Lei 9.0 99/ 95 legalizou a violência contra a m ulher, em especial a violên cia dom éstica. Na fam ília, n a escola e em outras in stituições en sin am -se as crian ças a n ão aceitar con vites, doces e outros presen tes de estr an h os. Rar am en te um a m ulh er , seja cr ian ça, adolescen te, adulta ou idosa, sofre violên cia por parte de estran hos. Os agressores são ou am igos ou con hecidos ou, ain da, m em bros da fam ília. Isto é m uito claro em casos de abuso sexual, crim e n o qual predom in am paren tes. Na violên cia de gên ero, teoricam en te poden do ter com o agressor tan to o h om em quan to 92 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 92 25/1/2011, 09:28 a m ulher, n a prática a prevalên cia é, com um a predom in ân cia esm agad or a, d e h om en s, p ar en tes, am igos, con h ecid os, r ar am en te estr an h os. Os tipos m ais difun didos de violên cia con t r a a m u lh er são d e violên cia d om ést ica e d e violên cia in tr afam iliar . É, p ois, p r u d en te m an ter o olh ar em d ir eção aos que habitam o m esm o dom icílio, a fim de n ão se dorm ir com o in im igo. Nos anos escolhidos para a investigação sobre violência dom éstica, a legislação en tão vigen te previa pen as de privação da liberdade m esm o para crim es de baixo poten cial ofen sivo, m as raram en te um hom em era detido a prim eira vez que espan cava sua m ulh er . Mesm o n a r ein cidên cia, a im pun idade grassava solta. Os baixos índices de condenação ilustram grosseiram en te este fen ôm en o. A rigor, n ão bastava ser con den ado, m as seria necessário cum prir a pena. Ora, o que ocorria em m uitos casos era a evasão do sen ten ciado, haven do m ilhares de m andados de prisão sem cum prim ento. A situação anterior à Lei 9.0 99, portanto, não era adequada ao com bate da violência dom éstica. Todavia, a nova legislação tornou-a ainda pior, na opinião da m aioria de profissionais desta área e desta pesquisadora. Com o já se revelou, os operadores do Direito, in clusive o advogado do povo (prom otor), im plem entam -na com tal desprezo pelas vítim as, com tanto sexism o, que conseguem torn á-la bem pior. Eis por que tais profission ais carecem de qualificação em relações de gên ero. É verdade que há nela pontos positivos. O crim e de LCD, anter ior m en te d e ação p ú blica in con d icion ad a, h oje exige r epresentação da vítim a. Este pode ser considerado um elem ento de tratam en to da vítim a pelo m en os com o pessoa adulta, r esp on sável p or seu s at os. En t r et an t o, n ão se ofer ecem às m ulheres os serviços de apoio de que elas necessitam , nem se im plem en tam políticas de em poderam en to 24 desta parcela da 24 Empoderamento é tradução literal do inglês empowerment. Significa atribuir poder às mulheres, elevando, por exemplo, sua auto estima. Também se empoderam mulheres por meio de ações afirmativas estatais. Com a Lei 9.099/95, entretanto, operou-se de modo inteiramente 93 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 93 25/1/2011, 09:28 população. E sem isto a lei é n ão apen as in justa para com as vítim as de violên cia dom éstica, com o tam bém altam en te in eficaz m esm o em seus aspectos positivos. Seus efeitos revelam a pouca im portân cia que a sociedade atribui a um fen ôm en o com con sequên cias m uito n egativas para a saúde orgân ica e psíquica das m ulheres, para a educação das novas gerações e, na m edida em que m ilhares de horas de trabalho deixam de ser pr een ch idas todos os an os, par a o pr ópr io desen volvim en to da n ação. O patriarcado ou ordem patriarcal de gên ero é dem asiadam ente forte, atravessando todas as instituições, com o já se afirm ou. Isto posto, por que a J ustiça não seria sexista? Por que ela deixaria de proteger o status quo, se aos operador es h om en s d o Dir eito isto ser ia tr abalh ar con tr a seu s pr óprios privilégios? E por que as juízas, prom otoras, advogadas, m esárias são m achistas? Quase todos o são, hom ens e m ulher es, p or qu e am bas as categor ias d e sexo r esp ir am , com em , bebem , dorm em etc., n esta ordem patriarcal de gên ero, exatam en te a subordin ação devida ao hom em . Se todos são socializados para ser m achistas, não poderá esta sociedade m udar, cam inhando para a dem ocracia plena? Este processo é lento e gradual e consiste na luta fem inista. Trocar h om en s por m ulh er es n o com an do dar ia, com toda cer teza, num a outra hierarquia, m as sem pre um a hierarquia geradora de desigualdades. As fem inistas não deixam de ser fem ininas, n em são m al am adas, feias e in vejosas do poder m asculin o. São seres hum anos sem consciência dom inada, que lutam sem cessar pela igualdade social en tre h om en s e m ulh eres, en tre brancos e negros, entre ricos e pobres. Aprofundar-se-á a análise deste assun to n o próxim o capítulo. oposto ao empoderamento. As mulheres vítimas de violência doméstica passaram a ser sinônimos de cesta básica. Os juízes, em geral dotados de um sexismo exacerbado, mas sem imaginação, adoram sentenciar os acusados com: o pagamento de uma multa, geralmente de 60 reais, ou a entrega de uma cesta básica a uma instituição de caridade. Ainda dentro do fórum, o acusado diz à vítima que ela passará a fazer quatro faxinas por semana em vez de duas, porque ele terá de comprar duas cestas básicas, já que lhe dará duas surras em lugar de uma. 94 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 94 25/1/2011, 09:28 4. “Não há revolução sem teoria” (Frase de Lenin) Na década de 1970 , m as tam bém nos fins da anterior, várias fem inistas, especialm ente as conhecidas com o radicais, prestaram grande serviço aos então chamados estudos sobre mulher, utilizan do um con ceito de patriarcado cuja sign ificação raram en te m an tin h a qu alquer relação com o con structo m en tal w eberiano. Rigorosamente, muitas delas nem conheciam Weber, exceto de segunda mão, sendo sua intenção bastante política, ou seja, a de denunciar a dominação masculina e analisar as relações homem– mulher delas resultantes. Não se mencionava a exploração que, na opinião da autora deste livro, constitui um a das faces de um m esm o processo: dom inação-exploração ou exploração-dom inação. Quando consta apenas o term o dom inação, suspeita-se de que a visão da sociedade seja tripartite – política, econôm ica e social – , isto é, de filiação weberiana. Por este lado, é possível, sim, estabelecer um nexo entre esta vertente do pensam ento fem inista e Weber. Muito m ais recen95 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 95 25/1/2011, 09:28 temente, feministas francesas cometeram o mesmo erro (COMBES e H AICAULT, 1984), situando a dom inação no cam po político e a exploração no terreno econômico. A hierarquia entre homens e mulheres, com prejuízo para as últimas, era, então, trazida ao debate, fazen do face à abordagem fun cion alista, que, em bora enxergasse as discrim inações perpetradas contra as m ulheres, situava seus papéis dom ésticos e públicos no m esm o patam ar, atribuindo-lhes igual potencial explicativo. Estudos sobre família 25, notadamente os de Talcott Parsons (1965), cuja leitura de Weber foi realizada com categorias an alíticas fun cion alistas, apresentavam este traço, assim como pesquisas incidindo diretamente sobre mulheres. Neste último caso, estavam, entre outros, Chom bart de Lauwe (1964) e dem ais pesquisadores que colaboraram em sua antologia. Não foram tão som ente fem inistas radicais que contestaram esta abordagem hom ogen eizadora dos papéis sociais fem in in os. J uliet Mitch ell, já em 1966, publicava ar tigo, an cor ada em u m a leitu r a alth u sser ian a de Mar x, atr ibu in do distin tos relevos às diferen tes fun ções das m ulheres. Em bora, m utatis m utan dis 26 , reafirm asse velha tese deste pen sador, con testava o que, em seu entendim ento, era representado pelo privilégio d esfr u t a d o p ela p r od u çã o st r ict o sen su , e m esm o la t o sen su, n o pen sam en to m arxista. Con siderava im prescin dível, para a liberação das m ulheres, um a profunda m udança de todas as estruturas das quais elas participam , e um a “un ité de rupture” (p. 30 ), ou seja, a descoberta, pelo m ovim ento revolucion ário, do elo m ais fraco n a com bin ação. As estruturas por ela discrim inadas – produção, reprodução, socialização e sexualidade – , contrariam ente ao procedim ento Uma coletânea apresentando numerosas abordagens foi organizada por Arlene S. SKOLNICK e Jerome H. SKOLNICK. (1971) Family In Transition – Rethinking Marriage, Sexuality, Child Rearing, and Family Organization. USA/Canadá: Little, Brown & Company Limited. 26 O primeiro a afirmar que o desenvolvimento de uma sociedade se mede pela condição da mulher foi o socialista utópico Charles Fourier, encampado posteriormente por Marx e, sobretudo, por Engels. 25 96 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 96 25/1/2011, 09:28 hom ogen eizador, são percebidas com o apresen tan do um desenvolvim ento desigual, cuja im portância é ressaltada, inclusive para a estratégia de luta. Mitchell estabeleceu in stigan tes in terlocuções com a Psican álise e com distin tas corren tes do pensam ento m arxista. O prim eiro diálogo continua m uito vivo até hoje, ten do dado algun s frutos in teressan tes tan to para a Psicanálise quanto para outras ciências que se debruçam sobre a questão de gênero. Não se pode afirmar o mesmo com relação à in terlocução estabelecida com o pen sam en to m arxista. Na década de 1970 , Hartmann (1979a) publicou artigo em que considerou os conceitos marxistas sex-blind (cegos para o gênero), opinião que prosperou e calou am pla e profundam ente, fazendo-se presente até os dias atuais. Nenhum(a) feminista interpelou desta form a o positivism o e a Sociologia da com preensão, de Weber. E, no entanto, os conceitos formulados por estas vertentes da Sociologia não discernem o gênero, ou seja, tam bém são sex-blind. É bem verdade que o m arxism o adquiriu m uita evidência, tendo sido um dos pensam entos dom inantes do século XX, ao lado da Psicanálise. Todavia, não obstante a m isoginia de Freud e de m uitos de seus seguidores, n ão h ouve este tipo de in terpelação de sua teoria. Note-se – e isto faz a diferença – que o questionam ento d as cat egor ias m ar xist as d eu -se n o cam p o ep ist em ológico, enquanto isto não ocorreu com a Psicanálise. Freud tratou da filogênese 27, m as jam ais fez qualquer referência à ontogênese 28 . H á, certam en te, um a com pon en te ideológica im portan te n essas in terlocuções, a m erecer m en ção. O pen sam en to psican alítico foi subversivo e con servador, ao passo que ao m arxista não se aplica o segundo term o. Neste sentido, havia possibilidade de fin alizar o en quadram en to da Psican álise n o status Filogênese significa o desenvolvimento, no caso do ser humano. A ontogênese é exatamente a busca das origens do ser. Para Freud, do ser humano. A ontologia busca compreender a natureza e a gênese, a origem, para Marx, do ser social, ou seja, da sociedade. É isto que Freud não faz. 27 28 97 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 97 25/1/2011, 09:28 q u o, p or in t er m éd io d o q u e F ou ca u lt ( 19 76 ) ch a m a d e edipianização do agente social, ou seja, de sua sujeição à lei do pai. Um dos grandes m éritos deste últim o autor foi com preend er a h istor icid ad e d a sexu alid ad e. Com efeito, o exer cício desta não se dá num vácuo social, m as obedece às norm as sociais do m om en to. Isto n ão sign ifica que a sexualidade esteja sem pre vinculada à lei do pai. Sociedades igualitárias do ângulo do gênero não são presididas por esta lei, o que não equivale a dizer que n ão h aja regras para o exercício da sexualidade. Certamente, Freud foi, neste particular, o grande inspirador de Fou cau lt (1976). Com o o m arxism o não se presta a cum plicidades com o status quo, as críticas a ele dirigidas, n o passado e n o presen te, são superficiais, n ão atin gin do sequer sua epistem ologia. Não se con h ece n en h u m a abor d agem on tológica d a obr a d e Fr eu d , certam ente em razão da ausência de um a ontogênese. É o próprio con teúdo das categorias do pen sam en to m arxian o, resp on sáveis p elo p r ocesso d e con h ecim en t o, qu e é p ost o em xeque. As assim denom inadas suspeitas, e até m esm o recusas veem entes, com relação às explicações universais, não justificam a acusação de que os con ceitos m arxistas são in capazes de perceber o gênero. Weber está na base de porção significativa dos pensadores pós-m odernos, sem que seus porta-vozes m ais proem inentes, ou nem tanto, se interroguem a que conduzirá tão extrem ado relativism o ou se seus tipos ideais podem ser corretam ente utilizados quando aplicados a situações distintas daquelas com base nas quais foram form ulados. Gran de con hecedora da obra de Weber (1964, 1965), Maria Sylvia d e Ca r va lh o Fr a n co (19 72 ) m ost r a com o o or d en a m en to dos fen ôm en os sociais é feito com prin cípios a priori, n ão apen as pelo autor em questão com o tam bém por outros idealistas filiados ao pen sam en to kan tian o. A autora detecta, n o p en sa d or em p a u t a , a p r esen ça d e u m a “su b jet ivid a d e in stauradora de sign ificados” com o alicerce do objeto, o que lh e p er m ite afir m ar , a r esp eito d a tip ologia d a d om in ação, que o sen tido em pírico específico das relações de dom in ação 98 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 98 25/1/2011, 09:28 é p r od u zid o p ela ativid ad e em p ír ica d e u m a su bjetivid ad e. Est e m esm o sen t id o d efin e o objet o e con st it u i a au t oju stificação por m eio da n aturalização das desigualdades. Weber an alisa, assim , as bases d a legitim id ad e r ecor r en d o a fatos sem p r e r ed u t íveis à su b jet ivid a d e, in scr even d o-se a a u t ojustificação com o processo pelo qual se erige em lei un iversal o con ceito subjacen te à dom in ação. A tradição opera com o princípio teórico, constitutivo de um a das for m as de dom in ação. Tan to o m étodo qu an to o objeto encontram seu sustentáculo no sentido. O rigor da interpretação é assegurado pela identidade, no que tange à racionalidade, n o objeto e n o m étod o. Neste sen tid o, a ação r acion al com relação a fins perm ite a captação da irracionalidade das ações d ela d iscr ep an tes. Obser vam -se, ao lad o d e u m r elativism o praticam en te absoluto, outros pecados in aceitáveis até m esm o p ar a aqu eles em cu jo p en sam en to Weber p en etr ou . Na m ed id a em qu e o m ét od o e o objet o ap r esen t am a m esm a racion alidade, e a subjetividade in staura sen tido, o prim eiro ganha prim azia: a razão é coextensiva à sociedade. Isto posto, não é difícil perceber as dificuldades, ou a im possibilidade, de se utilizarem con ceitos weberian os em outros con textos. Segundo a autora em pauta, as configurações históricas são únicas em term os con ceituais e são apreen síveis com o form ações de sentido fechadas sobre si m esm as. Trata-se de form ações nãopassíveis de fragmentação. Embora a análise exija a decomposição dos fenômenos, é sempre presidida pelo sentido, caracterizado por um prin cípio sin tetizador n o seio do qual se situa a lógica substantiva do sistem a. A an álise de Fran co, que in cide sobre o m au em prego dos con structos m en tais w eberian os pelos teóricos da m odern ização, é, sem dú vida, de alto n ível e totalm en te per tin en te. Em outros term os, os tipos ideais weberian os n ão se prestam ao exam e d e ou t r as r ealid ad es d ist in t as d aqu elas qu e lh es d er a m or igem . Efet iva m en t e, o t ip o id ea l é con st r u íd o d e m an eira a atá-lo à especificidade do con texto social n o qual teve su a gên ese. Tr ata-se d e con ceitos gen éticos. O pr ópr io 99 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 99 25/1/2011, 09:28 Weber defin e seu esquem a de pen sam en to com o um un iverso n ão-con t r ad it ór io d e r elações p en sad as. Com o o p en sam en to op er a u m a acen tu ação u n ilater al d e cer tos asp ectos d a r ea lid a d e, os con ceit os n ã o cor r esp on d em exa t a m en t e a e s t a , s e n d o , n e s t e s e n t id o , u m a u t o p ia . O vín cu lo d o con structo m en tal com a realidade é resum ido pelo próprio autor com o um a represen tação pragm ática, elaborada segun do a in tuição e a com preen são, da n atureza específica destas relações de acordo com um tipo ideal. A máquina do patriarcado Esta incursão por Franco e por Weber, ainda que ligeira, deixa patente a não-utilização do conceito weberiano de patriarcado por parte de fem inistas 29 , sejam elas radicais (F IRESTONE , 1972; R EED , 1969; KOEDT , LEVINE , R APONE , 1973; M ILLETT , 1969, 1970 , 1971) ou m arxistas (M ILLETT , 1971; R EED , 1969; D AWSON et alii, 1971; E ISENSTEIN , 1979; SARGENT, 198 1). Certam ente, todas as fem inistas que diagnosticaram a dom inação patriarcal nas sociedades contem porâneas sabiam , não que os con ceitos gen éticos de Weber são in tran sferíveis, m as que já não se tratava de com unidades nas quais o poder político estivesse or gan izad o in d epen d en tem en te d o Estad o 30 . Por qu e, en tão, n ão u sar a exp r essão d om in ação m ascu lin a, com o o tem feito Bourdieu, ou falocracia ou, ain da, an drocen trism o, falo-logo-cen tr ism o? Pr ovavelm en te, por n um er osas r azões, en tre as quais cabe m en cion ar: este con ceito reform ulado de patriarcado exprim e, de um a só vez, o que é expresso nos ter- Citam-se apenas algumas. Há feministas que entram em duas categorias. Às vezes, como é o caso de Sargent, organizadora da coletânea citada, trata-se de várias autoras com posições metodológicas distintas e, inclusive, opostas. A classificação usada é, portanto, precária. Todas, porém, utilizam o conceito de patriarcado. Dispensa-se, aqui, a citação de Marx e Engels, cujo uso do referido conceito é notório. 30 MEILLASSOUX, Claude (1975), mostra bem este fenômeno, analisando comunidades domésticas. 29 100 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 100 25/1/2011, 09:28 m os logo acim a sugeridos, além de trazer estam pada de form a m uito clara a força da in stituição, ou seja, de um a m áquin a bem azeitada, que opera sem cessar e, abrindo m ão de m uito r igor , q u a se a u t om a t ica m en t e. Com o b em m ost r a Zh a n g Yim ou, no film e Lanternas verm elhas, nem sequer a presença do patriarca é im prescin dível para m over a m áquin a do patriarcado, levando à forca a terceira esposa, pela transgressão com etida con tra a ordem patriarcal de gên ero. Tã o som en t e r ecor r en d o a o b om sen so, p r esu m e-se q u e n en hum (a) estudioso(a) sério(a) con sideraria igual o patriarcado rein an te n a Aten as clássica ou n a Rom a an tiga ao que vige n as sociedades urban o-in dustriais do Ociden te. Mesm o tom ando só o m om ento atual, o poder de fogo do patriarcado vigen te en tr e os povos afr ican os e/ ou m u çu lm an os é extr em am en te gran de n o que tan ge à subordin ação das m ulheres aos hom ens. Observam -se, por conseguinte, diferenças de grau no dom ínio exercido por hom ens sobre m ulheres. A natureza do fenôm eno, entretanto, é a m esm a. Apresenta a legitim idade que lhe atribui sua naturalização. Por outro lado, com o prevalece o pen sam en to dicotôm ico, pr ocu r a-se d em on str ar a u n iver salid ad e d o patr iar cad o por m eio da in existên cia de provas de even tuais sociedades m atr iar cais. Neste er r o, aliás, n ão in cor r em apen as as pessoas com un s. Fem in istas radicais tam bém procederam desta form a. De acordo com a lógica dualista, se há patriarcado, deve h aver m atr iar cad o. A p er gu n ta cabível n aqu ele m om en to e ain d a h oje é: h ou ve socied ad es com igu ald ad e social en t r e h om en s e m u lh er es? Esta in ter r ogação ter ia, m u ito segu r am en te, d ad o ou tr o d estin o à valor ização d a im por tân cia d o conceito de patriarcado na descrição e na explicação da inferioridade social das m ulheres. O film e La n ter n a s v er m elha s apr esen ta im agen s e tr am a reveladoras do acim a expresso. Além de o patriarcado fom entar a guerra en tre as m ulheres, fun cion a com o um a en gren agem quase autom ática, pois pode ser acion ada por qualquer um , inclusive por m ulheres. Quando a quarta esposa, em esta101 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 101 25/1/2011, 09:28 do etílico, den un cia a terceira, que estava com seu am an te, à segunda, é esta que faz o flagrante e que tom a as providências para que se cum pra a tradição: assassin ato da “traidora”. O patr iar ca n em sequer estava pr esen te n o palácio n o qual se desen rolaram os fatos. Duran te toda a película, n ão se vê o rosto deste hom em , revelando este fato que Zhang Yim ou captou corretam en te esta estrutura hierárquica, que con fere aos hom ens o direito de dom inar as m ulheres, independentem ente da figura hum ana singular investida de poder. Quer se trate de Pedro, J oão ou Zé Ninguém , a m áquina funciona até m esm o acion ada por m ulh eres. Aliás, im buídas da ideologia que dá cobertura ao patriarcado, m ulheres desem penham , com m aior ou m enor frequência e com m ais ou m enos rudeza, as funções do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou adolescen tes, segun do a lei do pai. Ain da que n ão sejam cúm plices deste regim e, colaboram para alim en tá-lo. Tam bém há categorias profission ais cujo papel con siste em en qu adr ar (BERTAUX, 1977) seu s su bor din ados n este esqu em a d e p en sa r / sen t ir / a gir . Est es t r ês t er m os r ep r esen t a m facetas de um a unidade: o ser hum ano. Isto é im portante para não se reduzir o patriarcado a um m ero adjetivo de um a ideologia. Não que esta não tenha um substrato m aterial. Ela o tem e ele assu m e en or m e im por tân cia qu an do n ão se oper a por categorias dicotôm icas, separan do corpo de m en te, n atureza de cultura, razão de em oção. Em b or a h a ja p r ofu n d a s d ifer en ça s en t r e a s t r ês esfer a s on tológicas – a in orgân ica, a orgân ica e o ser social – , um a n ão pr escin d e d as d em ais. Na pr im eir a, n ão h á vid a e, por con segu in te, n ão h á r epr od u ção. H á u m pr ocesso d e tr an sform ação de um estado em outro estado, a roch a torn an dose ter r a, por exem plo. Na segu n d a, h á vid a e, por tan to, r eprodução. Um a m an gueira produzirá sem pre m an gas, jam ais jacas. Na esfer a p r op r iam en te social, a con sciên cia d esem pen h a papel fun dam en tal, perm itin do a pré-ideação das ativid ad es e até, pelo m en os par cialm en te, a pr evisão d e seu s r esu lt ad os. Na ver d ad e, as t r ês esfer as on t ológicas con st i102 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 102 25/1/2011, 09:28 tuem um a un idade, com o bem m ostra Lukács (1976-8 1), sen do irredutíveis um a(s) à(s) outra(s). O ser social, dotado de con sciên cia, é respon sável pelas tran sform ações da sociedad e, per m an ecen d o, en tr etan to, u m ser n atu r al. A socied ad e tem , pois, fun dam en to biológico. O pen sam en to cartesian o separou radicalm en te o corpo da psique, a em oção da razão, gerando verdadeiro im passe. Efetivam ente, se a cultura dispõe de um a enorm e capacidade para m odelar o corpo, este é o próprio veículo da tran sm issão das tr ad ições. Com o, en tr etan to, r estabelecer a u n id ad e d o ser hum ano sem recorrer a um a abordagem ontológica? Entre as fem in istas, é extr em am en te r ar o este tip o d e ap r oxim ação. Wh itbeck (198 3) ten ta, em in ter essan te ar tigo, apr opr iar -se do real em term os de um a ontologia fem inista, capaz de conter – e aí reside sua im portân cia – o diferen te e o an álogo. Não procede, contudo, em term os de um a ontogênese, a um a análise das relações hom em – m ulher. Duas tentativas de tratar esta questão n estes m oldes for am r ealizadas, ao que se sabe, n o Brasil (SAFFIOTI , 1991, 1997b). É preciso, ainda, trabalhar m uito nesta direção, talvez ligeiram ente neste livro, ao analisar o con ceito de gên ero. Não se t r at a d e d efen d er a t ese d e qu e os est u d os sobr e m ulher(es) devam ceder espaço, inteiram ente, aos estudos de gênero. Há ainda m uita necessidade dos prim eiros, na m edida em que a atuação das m ulheres sem pre foi pouquíssim o registrada e que, por via de consequência, a maior parte de sua história está por ser estudada. Historiadoras feministas (BRIDENTHAL e KONNZ, 19 77; CARROLL , 19 76 ; F I GES , 19 70 ; F I SH ER , 19 79 ; GIMBUTAS, 198 2; H ARTMAN e BANNER , 1974; J ANEWAY, 1971, 198 0 ; LERNER , 1979, 198 6; TH OMPSON , 1964) têm , é verdade, r ealizad o esfor ços n est a d ir eção. Mas h á, ain d a, u m lon go caminho a percorrer. E é absolutamente imprescindível que esta trajetória seja descrita para que haja em poderam ento, não de mulheres, mas da categoria social por elas constituída. Há uma ten são en tre a experiên cia histórica con tem porân ea das m ulheres e sua exclusão dos esquemas de pensamento, que permi103 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 103 25/1/2011, 09:28 tem a interpretação desta experiência. A este fenômeno Lerner (1986) chama de “a dialética da história das mulheres”. Além de em poderar a categoria m ulheres, e não apenas m ulheres, o conhecim ento de sua história perm ite a apreensão do caráter histórico do patriarcado. E é im prescin dível o reforço perm an en te da dim en são h istórica da dom in ação m asculin a par a que se com pr een da e se dim en sion e adequadam en te o p atr iar cad o. Con sid er a-se m u ito sim p lista a alegação d e ahistoricidade deste conceito. Prim eiro, porque este constructo m en tal pode, sim , apr een der a h istor icidade do patr iar cado com o fen ôm en o social que é, além do fato de o con ceito ser heurístico. Segundo, porque na base do julgam ento do conceito com o a-histórico reside a n egação da historicidade do fato social. Isto equivale a afirm ar que por trás desta crítica esconde-se a presun ção de que todas as sociedades do passado rem oto, do passado m ais próxim o e do m om ento atual com portaram / com portam a subordin ação das m ulheres aos hom en s. Quem enxerga Weber no conceito de patriarcado utilizado por fem in istas n a verdade in corre, n o m ín im o, em dois erros: 1) não conhece suficientem ente este autor; 2) im puta a estas intelectuais/ m ilitan tes a ign orân cia total de que este regim e de relações hom em – m ulher tenha tido um a gênese histórica posterior a um outro dele distinto, m as tam bém hierárquico. Ainda que não se possa aceitar a hipótese de sociedades m atriarcais nem prévias às patriarcais nem a estas posteriores, por falta de com provação h istórica, h á evidên cias apreciáveis, sobretudo de natureza arqueológica, de que existiu outra ordem de gênero, distinta da m antida pela dom inação m asculina. A fim de se adentrar este difícil terreno, é preciso que se parta, explicitam en te, d e u m con ceito d e patr iar cad o e d e u m con ceito d e gênero. Apelar-se-á, no m om ento, para Hartm ann (1979), definindo-se patriarcado com o um pacto m asculino para garantir a opressão de m ulheres. As relações hierárquicas en tre os hom en s, assim com o a solidariedade en tre eles existen te, capacitam a categoria con stituída por hom en s a estabelecer e a m an ter o con trole sobre as m ulheres. 104 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 104 25/1/2011, 09:28 Há que se fazerem alguns comentários sobre este conceito de patriarcado, a fim de aclarar certas nuanças importantes. Seguramente, este regime ancora-se em uma maneira de os homens assegurarem, para si mesmos e para seus dependentes, os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida. Bastaria, presume-se, mencionar a produção da vida, na medida em que ela inclui a produção antroponômica (BERTAUX, 1977). Há, sem dúvida, um a econ om ia dom éstica, ou dom esticam en te organizada, que sustenta a ordem patriarcal. Dentre os diferentes m achos há, pelo m enos, um a hierarquia estabelecida com base nas distintas faixas etárias, cada um a desem penhando suas funções sociais e tendo um certo significado. A hierarquia apoiada na idade, entretanto, não é suficiente para im pedir a em ergên cia e a m an u t en ção d a solid ar ied ad e en t r e os h om en s. Tam pouco o são, de form a perm an en te, as con tradições presen tes n as classes sociais e n o r acism o. A in ter depen dên cia gerada por estas duas últim as clivagens e a solidariedade entre os hom ens autorizam os especialistas a antecipar a determ inação, em m aior ou m enor grau, do destino das m ulheres com o categor ia social. Neste regim e, as m ulheres são objetos da satisfação sexual dos hom ens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras. Diferentem ente dos hom ens com o categoria social, a sujeição das m ulheres, tam bém com o grupo, en volve p r est ação d e ser viços sexu ais a seu s d om in ad or es. Esta som a/ m escla de dom inação e exploração é aqui entendida com o opressão, discussão a ser retom ada m ais adiante. Ou m elh or , com o n ão se t r at a d e fen ôm en o qu an t it at ivo, m as qualitativo, ser explorada e dom inada significa um a realidade n ova. Tam bém parece ser este, aproxim adam en te, o sen tido atribuído por Hartm ann ao am bíguo term o opressão, em bora ela afirm e que as m ulheres são dom inadas, exploradas e oprim idas, de form a sistem ática (1979a). Se a palavra oprim idas pode ser agregada às palavras dom in adas e exploradas, isto sign ifica que tem sen tido próprio, in depen den te do sign ificado das outras. 105 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 105 25/1/2011, 09:28 O importante a reter é que a base material do patriarcado não foi destruída, não obstante os avanços fem ininos, quer na área profissional, quer na representação no parlam ento brasileiro e demais postos eletivos políticos. Se na Roma antiga o patriarca tinha direito de vida e morte sobre sua mulher, hoje o homicídio é crim e capitulado no Código Penal, m as os assassinos gozam de am pla im punidade. Acrescente-se o tradicional m enor acesso das m ulheres à educação adequada à obten ção de um posto de trabalho prestigioso e bem remunerado. Este fenômeno marginalizou-as de muitas posições no mercado de trabalho. A exploração chega ao ponto de os salários m édios das trabalhadoras brasileiras serem cerca de 64% ( IBGE ) dos rendim entos médios dos trabalhadores brasileiros 31, embora, nos dias atuais, o grau de escolaridade das prim eiras seja bem superior ao dos segundos. A dom inação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua m arginalização de im portantes papéis econôm icos e político-deliberativos, m as tam bém no controle de sua sexualidade e, por con seguin te, de sua capacidade reprodutiva. Seja para in duzir as m ulheres a ter gran de n úm ero de filhos, seja para convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tem po en tre os filhos, o con trole está sem pre em m ãos m asculinas, em bora elem entos fem ininos possam interm ediar e m esm o im plem entar estes projetos. Ainda que o conceito de Hartmann apresente inegáveis qualidades, é necessário se fazerem certos acréscimos. O patriarcado, em presença de – na verdade, enovelado com – classes sociais e racismo (SAFFIOTI , 1996), apresenta não apenas uma hierarquia Em outubro de 2001, quando foram coligidos os dados, pela Fundação Perseu Abramo, da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, a situação era a seguinte: famílias recebendo até 2 salários mínimos = 42% (então, 360 reais); mais de 2 a 5 = 34%; mais de 5 a 10 = 12%; mais de 10 a 20 = 6%; e acima de 20 SM (3.600 reais), tãosomente 2%. 31 106 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 106 25/1/2011, 09:28 entre as categorias de sexo, mas traz também, em seu bojo, uma contradição de interesses. Isto é, a preservação do status quo consulta os interesses dos homens, ao passo que transformações no sentido da igualdade social entre homens e mulheres respondem às aspirações fem ininas. Não há, pois, possibilidade de se con siderarem os in teresses das duas categorias com o apen as conflitantes. São, com efeito, contraditórios. Não basta ampliar o campo de atuação das mulheres. Em outras palavras, não basta que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas etc., tradicion alm en te reservadas aos hom en s. Como já se afirmou, qualquer que seja a profundidade da dom in ação-exploração da categoria m ulheres pela dos hom en s, a natureza do patriarcado continua a m esm a. A contradição não encontra solução neste regim e. Ela adm ite a superação, o que exige transformações radicais no sentido da preservação das diferenças e da eliminação das desigualdades, pelas quais é responsável a sociedade. J á em uma ordem não-patriarcal de gênero a contradição não está presente. Conflitos podem existir e para este tipo de fenômeno há solução nas relações sociais de gênero isentas de hierarquias, sem mudanças cruciais nas relações sociais mais amplas. As origens do conceito de gênero Diferentemente do que, com frequência, se pensa, não foi uma mulher a formuladora do conceito de gênero. O primeiro estudioso a m en cion ar e a con ceituar gên ero foi Robert Stoller 32 (1968). O conceito, todavia, não prosperou logo em seguida. Só a partir de 1975, com o famoso artigo de Gayle Rubin, mulher, A rigor, embora não haja formulado o conceito de gênero, Simone de Beauvoir mostra que só lhe faltava a palavra, pois, em sua famosa frase – “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” – estão os fundamentos do conceito de gênero. Lutando contra o essencialismo biológico – “A anatomia é o destino” –, enveredou pela ação da sociedade na transformação do bebê em mulher ou em homem. Foi, por conseguinte, a precursora do conceito de gênero (SAFFIOTI, 1999b). 32 107 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 107 25/1/2011, 09:28 frutificaram estudos de gên ero, dan do origem a um a ên fase pleon ástica em seu car áter r elacion al e a um a n ova postur a adjetiva, ou seja, a perspectiva de gênero. Vale a pena retroagir um quarto de século, a fim de se perceberem certas n uan ças hoje consideradas fam iliares e, portanto, desconhecidas. Confor m e afir m ou Rubin , em 1975, um sistem a de sexo/ gên er o consiste numa gramática, segundo a qual a sexualidade biológica é transform ada pela atividade hum ana, gram ática esta que torna disponíveis os m ecanism os de satisfação das necessidades sexuais transformadas. Embora os elementos históricos recolhidos até o momento da redação do mencionado artigo indicassem a presença sistemática de hierarquia entre as categorias de sexo, Rubin adm ite, pelo m en os teoricam en te, relações de gênero igualitárias. Recomenda a manutenção da diferença entre a necessidade e a capacidade humana de organizar de forma opressiva, em piricam en te, os m un dos sexuais im agin ários ou reais que cria. Segundo a autora, o patriarcado abrange os dois significados. Diferentem ente, o sistem a de sexo/ gênero aponta para a não-inevitabilidade da opressão e para a construção social das relações que criam este ordenam ento. Assim , de acordo com ela, o con ceito de sistem a de sexo/ gên er o é n eutr o, servindo a objetivos econôm icos e políticos distintos daqueles aos quais originariam ente atendia. Com o por ta de en tr ada e cam in h o explor atór io das n ovas reflexões acerca das representações sociais do m asculino e do fem inino, o artigo de Rubin revela grande sofisticação. A elaboração social do sexo (SAFFIOTI , 1969a) deve m esm o ser ressaltada, sem , con tudo, gerar a dicotom ia sexo e gên ero, um situado n a biologia, n a n atureza, outro, n a sociedade, n a cultura. É possível trilhar cam inhos para elim inar esta dualidade. Algum as poucas teorias já form uladas têm tratado de fugir das categor ias car tesian as, com cer to êxito. Um gr an d e con tin gente de fem inistas, m ulheres e hom ens, tem com batido o raciocínio dualista, o que já representa algo. A postura aqui assum ida con siste em con siderar sexo e gên ero um a un idade, um a vez que n ão existe um a sexualidade 108 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 108 25/1/2011, 09:28 biológica in depen den te do con texto social em que é exercida. A on togên ese tem -se m ostrado um a via frutífera para a preservação da un idade do in orgân ico, do orgân ico e do social. Movim en tos sociais recen tes e atuais, com o o ecologista, têm um a percepção m ais ou m enos aguda desta integração. Guattari (1990 ), cam inhando por outras trilhas, elaborou sua ecosofia, ou seja, uma costura ético-política entre os três momentos ecológicos – m eio am bien te, relações sociais e subjetividades – , r essalt an d o a im p or t ân cia d os p r ocessos m olecu lar es, n os quais estão com preen didos a sen sibilidade, a in teligên cia e o desejo. Com o se pode observar facilm ente, a unidade do sexo/ gên ero foi, de certo m odo, preservada. In cidin do especificam ente sobre as relações de gênero, Guattari propõe, em outra lin guagem – um a r essin gular ização in dividual e/ ou coletiva das subjetividades, fugin do da form atação m ediática – , um a reorgan ização, en tre outras, da ordem de gên ero. Naquele m om en to, Rubin precisou separar as duas dim en sões subsum idas n o con ceito de patriarcado: o sexo e o gên er o. Em bor a o qu alificat ivo n eu t r o, u sad o p ar a gên er o, n ão ten ha sido apropriado, ela abriu cam in ho, com ele, para adm itir, ao m en os teoricam en te, um a altern ativa à dom in ação m asculin a, ou seja, ao patriarcado. Pen a é que ten ha restrin gido dem asiadam en te o uso deste con ceito, n um a con tr adição com sua própria cren ça de que todas ou quase todas as socied ad es con h ecid as ap r esen t ar am / ap r esen t am a su bor din ação fem in in a. Com o an tropóloga, porém , poderia ter-se debruçado sobre dados referen tes a sociedades de caça e coleta, a fim de con ferir realidade àquilo que adm itia som en te n o plan o da teoria. Um dos pon tos im portan tes de seu trabalho con siste em deixar m ais ou m en os livre o em prego sim ultân eo dos dois con ceitos. O conceito de gênero, no Brasil, alastrou-se rapidam ente na década de 1990 . J á n o fim dos an os 198 0 , circulava a cópia xér ox d o ar t igo d e J oan Scot t (19 8 3, 19 8 8 ). Tr ad u zid o em 1990 , no Brasil, difundiu-se rápida e extensam ente. O próprio título do trabalho em questão ressalta o gênero com o catego109 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 109 25/1/2011, 09:28 r ia a n a lít ica , o q u e t a m b ém ocor r e a o lon go d o a r t igo. A epígrafe utilizada pela historiadora, retirada de um dicionário, r efor ça, de m an eir a r adical, o car áter an alítico da categor ia gên ero. Não obstan te, n em todos os bon s dicion ários seguem a m esm a lin h a d o escolh id o p or ela . T h e Con cise Ox for d Dictionary chega a registrar gênero com o o sexo de um a pessoa, em lin guagem coloquial. Para m an ter o rigor con ceitual, entretanto, pode-se adotar a expressão categorias de sexo para se fazerem referên cias a h om en s e a m ulh eres com o grupos diferen ciados, em bora a gram ática os distin ga pelos gên eros m asculin o e fem in in o e apesar de o gên ero dizer respeito às im agens que a sociedade constrói destes m esm os m asculino e fem inino. Neste sentido, o conceito de gênero pode representar um a categoria social, histórica, se tom ado em sua dim en são m eram en te descritiva, ain da que seja preferível voltar à velh a exp r essão cat egor ia d e sexo (S AFFI OTI , 19 6 9 a, 19 77). Um a das razões, porém , do recurso ao term o gênero foi, sem d ú vid a, a r ecu sa d o essen cialism o biológico, a r ep u lsa p ela im utabilidade im plícita em “a anatom ia é o destino”, assunto can den te n aquele m om en to h istórico. Deu-se, in dubitavelm en te, um passo im portan te, ch am an do-se a atenção para as relações hom em – m ulher, que nem sem pre pareciam preocupar (ou ocupar) as(os) cientistas. Era óbvio q u e s e a s m u lh er es er a m , com o ca t egor ia s ocia l, discrim in adas, o eram por hom en s n a qualidade tam bém de um a categoria social. Mas, com o quase tudo que é óbvio passa despercebido, houve van tagem n esta m udan ça con ceitual. No Brasil, já na década de 1960 , realizou-se estudo sobre m ulheres, pesquisan do-se tam bém seus m aridos (SAFFIOTI , 1969b). A in t er p r et ação d o car át er r elacion al d o gên er o, t od avia, deixa, m uitas vezes, a desejar. Com efeito, se para esta vertente do pensam ento fem inista gênero é exclusivam ente social, a queda no essencialism o social é evidente. E o corpo? Não desem penha ele nenhum a função? O ser hum ano deve ser visto com o um a totalidade, n a m edida em que é un o e in divisível. En tre n um erosos exem plos, pode-se lem brar a som atização. 110 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 110 25/1/2011, 09:28 Há m ulheres que, não obstante jam ais terem sofrido violência física ou sexual, tiveram suas roupas ou seus objetos de m aquiagem ou seus docum entos rasgados, cortados, inutilizados. Trata-se de um a violência atroz, um a vez que se trata da destruição da própria iden tidade destas m ulheres. Sua ferida de alm a m anifesta-se no corpo sob diversas m odalidades. Muitas passam m al, ch egan do a desfalecer . São levadas ao pr on tosocorro, saindo de lá com um a receita de calm ante. Diagnóstico? Doença dos nervos, quando, a rigor, são as m anifestações das feridas da alm a. Um profissional psi faria um diagnóstico inteiram ente distinto, propondo um a psicoterapia, talvez aliada a rem édios, dependendo da situação, na qual certam ente se descobririam as razões de seu m al-estar. Voltando ao início do parágrafo anterior, certas(os) estudiosas(os) parecem pen sar que basta fazer a afirm ação, ou seja, que ela não dem anda um a inflexão do pensam ento. Defendese, neste trabalho, a ideia de que se, de um a parte, gênero não é tão som ente um a categoria analítica, m as tam bém um a categor ia h istór ica, d e ou tr a, su a d im en são ad jetiva exige, sim , um a inflexão do pensam ento, que pode, perfeitam ente, se fazer presen te tam bém n os estudos sobre m ulher. Na verdade, quando aqui se valorizam esses estudos, pensa-se em enerválos com a perspectiva de gên ero. A história das m ulheres ganha m uito com investigações deste tipo. A própria Scott (1988) p er cor r eu m ean d r os d o gên er o em su a for m a su bst an t iva, com o categor ia h istór ica. Com efeito, sua pr im eir a pr oposição estabelece quatro elem en tos substan tivos en laçados, en volvidos pelo gên ero, in do desde sím bolos culturais, passan do por conceitos norm ativos e instituições sociais, até a subjet ivid ad e. Discorre a autora sobre aspectos substan tivos do gên ero, o que se pode considerar negativo, já que ela valoriza excessivam en te o discurso (sem sujeito) 33 . Acusa, tam bém , um caráter 33 Afirma Scott, em sua defesa: “Por ‘linguagem’, os pós-estruturalistas não entendem palavras, mas sistemas de significado – ordens simbóli- 111 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 111 25/1/2011, 09:28 descr itivo n o con ceito de gên er o, usado com o substituto de m ulheres: gênero não im plica, necessariam ente, desigualdade ou poder nem aponta a parte oprim ida. Não seria esta, justam en te, a m aior van tagem do uso do con ceito de gên ero? Ou seja, deixar aberta a direção do vetor da dom in ação-exploração n ão tor n ar ia, com o par ece tor n ar , o con ceito de gên er o m ais abr an gen te e capacitado a explicar even tuais tr an sfor m ações, seja no sentido do vetor, seja na abolição da exploração-dom in ação? Com o, n o artigo em pauta, a autora realiza u m a apr eciação de distin tas cor r en tes de pen sam en to, u m a certa am biguidade é gerada no que tange às opiniões da própr ia Scott. Assim , cr itican do o con ceito de patr iar cado com base n a con cepção de qu e este con stru cto m en tal se baseia nas diferenças de sexo, condena sua a-historicidade, apontando o perigo de se transform ar a história em m ero epifenôm eno. É verdade que algun s(m as) teóricos(as) en ten dem o gên ero com o sendo, em qualquer m om ento histórico e área geográfica, baseado em hierarquia entre hom ens e m ulheres na estrutura de poder. Parece ser este, quase exatam en te, o caso de Scott. Partin do de sua segun da proposição, sin aliza a im portân cia do gên ero com o um a m an eira prim ordial de sign ificar relações de poder e a recorrência deste elem ento, na tradição judaico-cristã e n a islâm ica, para tam bém estruturar os m odos de perceber e organizar, concreta e sim bolicam ente, toda a vida social. Não se contestam algum as, e grandes, contribuições de Scott, por várias razões, in clusive por haver ela colocado o fen ôm eno do poder no centro da organização social de gênero. Tam bém se considera m uito expressivo e valioso o fato de ela haver afir m ad o qu e a aten ção d ir igid a ao gên er o é r ar am en te explícita, sen do, n o en tan to, um pon to fun dam en tal do estacas – que precedem o atual domínio do discurso, da leitura e da escrita” (p. 37). Esta explanação é dispensável, persistindo a questão, tão bem abordada por Lerner (1986), do(s) formulador(es) dos sistemas simbólicos responsáveis pela inferiorização social de mulheres, negros e outras categorias sociais sobre as quais pesam numerosas discriminações. 112 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 112 25/1/2011, 09:28 belecim ento e da m anutenção da igualdade e da desigualdade. Pena é que este período está obscurecido por outros argum entos m eio am bíguos e que ela não ressaltou o fato de que o poder pode ser con stelado n a direção da igualdade ou da desigualdade en tre as categorias de sexo. Com o o gên ero é visto ora com o capaz de colorir toda a gam a de relações sociais, ora com o um m ero aspecto destas relações, é difícil dim en sion ar su a im por tân cia, assim com o su a capacid ad e par a ar ticu lar relações de poder. Cabe também mencionar que Scott não faz nenhuma restrição a Foucault, aceitando e adotando seu conceito de poder, qualquer que seja o âmbito em que este ocorre, quaisquer que sejam a profundidade e o alcance da análise. É sabido que Foucault, em bora reún a vários m éritos, n un ca elaborou um projeto de transformação da sociedade. Ora, quem lida com gênero de uma perspectiva fem in ista con testa a dom in ação-exploração m asculin a. Por via de con sequên cia, estrutura, bem ou m al, um a estratégia de luta para a construção de uma sociedade igualitária. Sem dúvida, é notável a contribuição de Scott. Todavia, dada a ambiguidade que perpassa seu texto, assim como certos comprom issos por ela explicitados, seria m ais interessante discutir suas ideias do que colocá-la em um pedestal. Gênero e poder Nin guém con testa que o poder seja cen tral n a discussão de determ inada fase histórica do gênero, já que este fenôm eno é cristalino. O que precisa ficar patente é que o poder pode ser dem ocraticam en te partilhado, geran do liberdade, com o tam b ém exer cid o d iscr icion a r ia m en t e, cr ia n d o d esigu a ld a d es. Definir gênero com o um a privilegiada instância de articulação das relações de poder exige a colocação em relevo das duas m odalidades essenciais de participação nesta tram a de interações, dando-se a m esm a im portância à integração por m eio da igualdade e à in tegração subordin ada. Faz-se n ecessário verificar se h á evidên cias con vin cen tes, ao lon go da h istór ia da 113 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 113 25/1/2011, 09:28 h um an idade, da pr im eir a alter n ativa. Adem ais, n a ausên cia de m odelos, é im portan te averiguar sua existên cia com o form a de em poderam en to das hoje subordin adas, com o categoria social. Em poderar-se equivale, n um n ível bem expressivo do com bate, a possuir altern ativa(s), sem pre n a con dição de categoria social. O em poderam ento individual acaba transform ando as em poderadas em m ulheres-álibi, o que joga água no m oin h o do (n eo)liberalism o: se a m aioria das m ulh eres n ão con segu iu u m a situ ação p r oem in en te, a r esp on sabilid ad e é delas, porquanto são pouco inteligentes, não lutaram suficientem ente, não se dispuseram a suportar os sacrifícios que a ascensão social im põe, num m undo a elas hostil. Dispor de altern ativa(s), con tudo, pressupõe saberes a respeito de si próprio e dos outros com o categorias que partilham / disputam o poder. Escrevendo sobre um a obra de Thom pson, Scott 34 percebeu corretam ente que este autor, ao m esm o tem po, não excluía as m ulheres da classe trabalhadora inglesa desde sua gên ese, m as as m argin alizava do processo de sua form ação. É óbvio que seria im possível negar a presença das m ulheres n as fábricas duran te a Revolução In dustrial e posteriorm en t e. Dest a sor t e, ela s n ã o est ã o a u sen t es d o est u d o d e Thom pson . En tretan to, o autor n ão revela a participação fem in in a n o próprio processo de con strução desta classe. Em outros term os, trata-se de m ostrar com o o gênero, historicam en te m ilên ios an terior às classes sociais, se recon strói, isto é, absorvido pela classe trabalhadora in glesa, n o caso de Thom pson , se recon strói/ con strói jun tam en te com um a n ova m an eira de articular relações de poder: as classes sociais. A gênese destas não é a m esm a, nem se dá da m esm a form a que a do gên ero. Eviden tem en te, estas duas categor ias têm h istórias distin tas, datan do o gên ero do in ício da hum an idade, há cerca de 250 -30 0 m il anos, e sendo as classes sociais propria“Women in the Making of the English Working Class” pode ser lido na mesma coletânea de artigos de Scott, organizada por Heilburn e Miller (1988, p. 68-90). 34 114 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 114 25/1/2011, 09:28 m en te ditas um fen ôm en o in extrin cavelm en te ligado ao capitalism o e, m ais propriam ente, à constituição da determ inação in dustrial deste m odo de produção, ou seja, à Revolução In dustrial. Se, com o sistem a econôm ico, ele teve início no século XVI , só se torn a um verdadeiro m odo de produção com a constituição de sua dim ensão industrial, no século XVIII . Quando se consideram os em briões de classe, pode-se retroceder às sociedades escravocratas an tigas. Mesm o n este caso, as classes sociais têm um a história m uito m ais curta que o gên ero. Desta form a, as classes sociais são, desde sua gênese, um fenôm eno gendrado. Por sua vez, um a série de transform ações no g ên er o são in t r od u zid as p ela em er gên cia d as classes. Par a am arrar m elhor esta questão, precisa-se jun tar o racism o. O n ó (S AFFIOTI , 198 5, 1996) for m ad o p or estas tr ês con tr ad ições apresenta um a qualidade distinta das determ inações que o integram . Não se trata de som ar racism o + gênero + classe social, m as de perceber a realidade com pósita e n ova que resulta desta fusão. Com o afirm a Kergoat (1978 ), o con ceito de superexploração n ão dá con ta da realidade, um a vez que n ão exist em ap en as d iscr im in ações qu an t it at ivas, m as t am bém qualitativas. Um a pessoa n ão é discrim in ada por ser m ulher, trabalhadora e negra. Efetivam ente, um a m ulher não é duplam ente discrim inada, porque, além de m ulher, é ainda um a trabalhadora assalariada. Ou, ainda, não é triplam ente discrim in ad a. Não se tr ata d e var iáveis qu an titativas, m en su r áveis, m as sim de determ inações, de qualidades, que tornam a situação destas m ulheres m uito m ais com plexa. Não seria justo usar um texto antigo de Kergoat, no qual ela expõe uma ideia ainda válida, mas em que se utiliza de um conceito – patriarcado – que abandonou. Com efeito, grande parte, talvez a maioria, das(os) feministas francesas(es) usam a expressão relações sociais de sexo em lugar de relações de gênero. Fazem tanta questão disto que algumas usam a expressão relations sociales de sexe, em lugar de gender relations (relations de genre, em francês), como fazem as norte-americanas e certas inglesas, reservando a expressão rapports sociaux para designar a estru115 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 115 25/1/2011, 09:28 tura social expurgada do gênero. Deste m odo, procedem com o certas brasileiras, colocan do as relações in terpessoais fora da estrutura social. Que lugar seria este? Da perspectiva aqui assumida, este é o não-lugar. Grande parte das feministas francesas eram/ são um bastião de resistência contra a penetração, no francês, de uma palavra – gênero – com outro significado que o gramatical. Na tentativa de valorizar a expressão relações sociais de sexo, Kergoat não considera incompatíveis os conceitos de gênero e patriarcado. Em sua opinião, pensar em termos de relações sociais de sexo deriva de uma certa visão de mundo, fica praticamente impossível falar, ao mesmo tempo, de relações sociais de sexo e patriarcado (KERGOAT, 1996). Embora a ambiguidade do texto seja gritante, vale realçar a adm issão da com patibilidade dos conceitos referidos. Este pequeno artigo de Kergoat contém, não apenas nas ideias utilizadas, vários pensam entos que pedem reflexão. Concordase com ela, certamente não pelas mesmas razões, no que tange ao uso sim ultân eo dos con ceitos de gên ero e de patriarcado, com o se deverá deixar claro posteriorm en te. Aparen tem en te, sua recusa do termo gênero está correta. Entretanto, gênero diz respeito às representações do m asculino e do fem inino, a im agens construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas inter-relacionadas. Ou seja, como pensar o m asculin o sem evocar o fem in in o? Par ece im possível, m esm o quando se projeta um a sociedade não ideologizada por dicotom ias, por oposições sim ples, m as em que m asculin o e fem inino são apenas diferentes. Cabe lem brar, aqui, que diferen te faz par com idên tico. J á igualdade faz par com desigualdade, e são con ceitos políticos (SAFFIOTI , 1997a). Assim , as práticas sociais de m ulheres podem ser diferentes das de hom ens da m esm a m aneira que, biologicam ente, elas são diferentes deles. Isto não significa que os dois tipos de diferen ças perten çam à m esm a in stân cia. A experiên cia histórica das m ulheres tem sido m uito diferen te da dos hom ens exatam ente porque, não apenas do ponto de vista quantitativo, m as tam bém em term os de qualidade, a partici116 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 116 25/1/2011, 09:28 pação de um as é distin ta da de outr os. Costum a-se atr ibuir estas diferenças de história às desigualdades, e estas desem penham im portante papel nesta questão. Sem dúvida, por exem plo, a m arginalização das m ulheres de certos postos de trabalh o e d e cen tr os d e p od er cavou p r ofu n d o fosso en tr e su as experiências e as dos hom ens. É im portante frisar a natureza qualitativa deste hiato. Trata-se m esm o da necessidade de um salto de qualidade para pôr as m ulheres n o m esm o patam ar que os hom ens, não esquecendo, porém , de hum anizar os hom ens. Certam ente, este não seria o resultado caso as duas categorias de sexo fossem apenas diferentes, m as não desiguais. O pensam ento de Kergoat revela que seu texto de 1978, citado anteriorm ente, já não reflete seu pensam ento m ais recente, na m edida em que ela descartou a noção de patriarcado. Quando separa radicalm ente os conceitos relações sociais de sexo e gênero (aqui já existe um problem a, pois, via de regra, usa-se a expressão relações de gênero, isto é, relações entre o m asculino e o fem inino, entre hom ens e m ulheres), procede pelo que considera a presença da relação, no prim eiro caso, e a ausência da relação, no segundo. Se o conceito de gênero não envolve relações sociais e é com patível com a noção de patriarcado, esta tam pouco o faz. Esta ideia vem im plícita n as con siderações de a-historicidade do patriarcado, porquanto a única possibilidade de esta ordem de gênero m anter-se im utável consiste n a ausên cia de oposições sim ples, dicotôm icas. Um a vez que n ão se trabalha com o con ceito weberian o de dom inação 35, com preende-se que o processo de dom inação só possa se estabelecer num a relação social. Desta form a, há o(s) d om in a d or (es) e o(s) d om in a d o(s). O(s) p r im eir o(s) n ã o elim ina(m ) o(s) segundo(s), nem pode ser este seu intento. Para con tin u ar d om in an d o, d eve(m ) pr eser var seu (s) su bor d in a35 “Por dominação deve entender-se a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo entre pessoas dadas” (WEBER, 1964, p. 43, § 16). “Deve entender-se por ‘dominação’ [...] a probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos específicos (ou para toda classe de mandatos)” (p. 170). 117 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 117 25/1/2011, 09:28 do(s). Em outros term os, dom in ação presum e subordin ação. Portanto, está dada a presença de, no m ínim o, dois sujeitos. E sujeito atua sem pre, ainda que situado no polo de dom inado. Se o esquem a de dom inação patriarcal põe o dom ínio, a capacidade legitim ada de com andar, nas m ãos do patriarca, deixa livre aos seus subordinados, hom ens e m ulheres, especialm ente estas últim as, a iniciativa de agir, cooperando neste processo, m as tam bém solapando suas bases. Eis aí a contradição que perpassa as relações hom em – m ulher n a ordem patriarcal de gênero. Aliás, o conceito de dom inação, em Weber, é distinto do conceito de poder. Enquanto a prim eira conta com a aquiescên cia dos dom in ados, o poder dispen sa-a, poden do m esm o ser exercido con tra a von tade dos subordin ados. Do exposto decorre que se con sidera errôn eo n ão en xergar no patriarcado uma relação, na qual, obviamente, atuam as duas partes. Tam pouco se considera correta a interpretação de que sob a ordem patriarcal de gên ero as m ulheres n ão detêm n enhum poder. Com efeito, a cumplicidade exige consentimento e este só pode ocorrer numa relação par, nunca díspar, como é o caso da relação de gên ero sob o regim e patriarcal (M ATH IEU , 198 5). O consentim ento exige que am bas as partes desfrutem do mesmo poder. Do ângulo da pedra fundamental do liberalismo, o contrato de casamento deveria ser nulo de pleno direito. J á que as mulheres estão muito aquém dos homens em matéria d e p od er , elas n ão p od em con sen tir , m as p u r am en te ced er (Mathieu). Se um a m ulher é am eaçada de estupro por um homem armado, e resolve, racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem m aior, ou seja, a vida, sua atitude atuará contra ela perante o Direito brasileiro, cujos fundamentos são positivistas, ou seja, os mesmos que informam o (neo)liberalismo. O juiz interpretaria a cessão com o consentim ento. Gênero e patriarcado O exposto perm ite verificar que o gên ero é aqui en ten dido com o m uito m ais vasto que o patriarcado, na m edida em que 118 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 118 25/1/2011, 09:28 n este as relações são hierarquizadas en tre seres socialm en te desiguais, en quan to o gên er o com pr een de tam bém r elações igualitárias. Desta forma, o patriarcado é um caso específico de relações de gênero. Como já se expôs, em capítulo anterior, nas posições de Lerner e J ohnson, deve ser cristalina a ideia de que o patriarcado é, em term os históricos, um recém -nascido. Em bora Lerner não seja m arxista, lida bastante bem com as in ter-relações en tre o arcabouço m aterial das sociedades e as realidades im aginárias que criam . Por outro lado, é m uito cuidadosa na análise das evidências históricas, mostrando quando e p or q u e se p od e t r a b a lh a r com d et er m in a d a s h ip ót eses. H istoriciza o conceito de patriarcado, já que, com o fenôm eno social, ele apresenta este caráter. Apresenta uma visão de totalidade, em duplo sen tido. Um deles diz respeito à totalidade com o conjunto interligado de instituições m ovidas por coletividades. Neste aspecto, faz fascin an te in cursão pelas sociedades de caça e coleta. Contrariando a escola de pensam ento do m an-the-hunter, revela uma série de exemplos de complementaridade entre as categorias de sexo, assim como o desfrute, por parte das mulheres, de status relativam ente alto. Esta m aneira de exprimir os achados já mostra que ela se situa bem longe da preocupação de encontrar provas de supremacia feminina. Afirma a autora, por outro lado, que independentemente da grande importância econômica das mulheres e de seu alto status social nas sociedades de caça e coleta, em todas as sociedades conhecidas as m ulheres, com o categoria social, não têm capacidade decisória sobre o grupo dos homens, não ditam normas sexuais nem controlam as trocas m atrim oniais. Talvez esta seja a razão pela qual Lern er usa sem pre a palavra relativ a para se referir à igualdade en tre h om en s e m ulheres. Adem ais, an alisan do a obra de Mellart, afirm a que com u n idades r elativam en te igu alitár ias, do ân gu lo do gên er o, n ão sobreviveram . Não oferece, todavia, n en hum a razão para este perecim en to, o que pode sign ificar ausên cia de qualquer evidên cia explicativa deste fen ôm en o, já que ela n ada afirm a sem p r ovas. 119 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 119 25/1/2011, 09:28 Em bor a m u itas fem in istas, Scott in clu sive e m u ito for tem en te, ten ham horror a qualquer referên cia às diferen ças biológicas en t r e h om en s e m u lh er es, n ão é p ossível esqu ecer que, sob con dições prim itivas, an tes da em ergên cia de in stituições da sociedade dita civilizada, a un idade m ãe– filho era absolutam en te fun dam en tal para a perpetuação do grupo. A crian ça só con tava com o calor do corpo da m ãe para se aquecer, assim com o com o leite m atern o para se alim en tar. Segun do Lern er, a m ãe doadora da vida detin ha poder de vida e m orte sobre a prole in defesa. Desta sorte, n ão con stitui n en h u m a su r p r esa qu e h om en s e m u lh er es, assist in d o a est e d r am át ico e m ist er ioso p od er d a m u lh er , se d evot assem à ven er ação de Mães-Deusas. Em bora já se haja feito referências a J ohnson, cabe ressaltar a r elevân cia qu e ele at r ibu i ao con t r ole, in clu sive d o m eio am biente, pelas sociedades que se sedentarizaram . Obviam ente, o controle é parte integrante de toda sociedade, m as a agricultura perm itiu/ exigiu seu in crem en to. J oh n son vale-se de um a h ipótese de Fish er (1979) para raciocin ar sobre a n ova relação estabelecida en tre, de um lado, os seres hum an os, e, de outro, a vida orgânica e a m atéria inorgânica. Para pôr isto n a lin guagem que expressa os raciocín ios básicos deste livro, poder-se-á afirm ar que o ser social, à m edida que se diferencia e se torna m ais com plexo, m uda sua relação tanto com a esfera on tológica in orgân ica quan to com a esfera on tológica orgân ica, elevando seu controle sobre am bas. Os seres hum anos, que tinham um a relação igual e equilibrada entre si e com os anim ais, transform aram -na em controle e dom inação. O patriarcado é um dos exem plos vivos deste fen ôm en o. Quando se passou a criar anim ais para corte ou tração, sua reprodução m ostrou-se de gran de valor econ ôm ico. Foi fácil, en tão, perceber que, quan to m ais filh os um h om em tivesse, maior seria o número de braços para cultivar áreas mais extensas de terra, o que permitia maior acumulação. Passam, então, os seres humanos, a se distanciar da natureza e a vê-la simplesm en te com o algo a ser con trolado e dom in ado. Isto tudo foi 120 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 120 25/1/2011, 09:28 crucial para estabelecer en tre os hom en s e as m ulheres relações de dom inação-exploração. Além disto, a com preensão do fenôm eno reprodutivo hum ano, observando-se o acasalam ento d os an im ais, m in ou os p od er es fem in in os. De acor d o com J ohnson, desacreditado o caráter m ágico da reprodução fem inina e descoberta a possibilidade de este fenôm eno poder ser controlado com o qualquer outro, estava desfeito o vínculo especial das mulheres com a força da vida universal, podendo os hom ens se colocar no centro do universo. Com o portadores da sem ente que espalhavam nos passivos úteros das m ulheres, os homens passaram a se considerar a fonte da vida. Este autor foi m uito feliz ao perceber que o patriarcado se baseia no controle e no m edo, atitude/ sentim ento que form am um cír culo vicioso. H á m uito tem po, afir m ou-se que os h om ens ignoram o altíssim o preço, inclusive em ocional (m as não só), que pagam pela am putação de facetas de suas person alidades, da explor ação-dom in ação que exer cem sobr e as m ulheres (SAFFIOTI , 1985,1987). Desta form a, não se trata de uns serem m elh ores que outros, m as de disputa pelo poder, que com por ta, n ecessar iam en te, con tr ole e m edo. Efetivam en te, os hom ens convertem sua agressividade em agressão m ais frequentem ente que as m ulheres. Segundo Daly e Wilson, que estudaram 35 am ostras de estatísticas de 14 países, incluindo-se aí socied ad es pr é-letr ad as e a In glater r a d o sécu lo XIII , em m édia, hom ens m atam hom ens com um a frequência 26 vezes m aior do que m ulheres m atam m ulheres (apud P INKER, 1999). O outro sentido da concepção de totalidade de Lerner é represen tado pela con sideração da história da hum an idade até quan do os registros e achados arqueológicos perm item . Trata-se, portan to, de obra da m aior seriedade. Con tudo, um só in telectual n ão pode realizar um a tarefa cum ulativa, n ecessariam en te de m uitos. Desta m an eira, ain da que certam en te se pr ecisar á voltar à obr a de Ler n er , con tin uar -se-á a r ecor r er tam bém a outros autores. Se a m aior parte da história da hum an idade foi vivida n um a ou tr a or gan ização social, esp ecialm en te d e gên er o, é p er ti121 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 121 25/1/2011, 09:28 n en te r aciocin ar , com o J oh n son , em ter m os d a em er gên cia d e fa t os – d escob er t a s, in ven ções – a p a r en t em en t e d esvin cu lad os d as r elações h om em – m u lh er e qu e, n o en tan to, fu n cion ar am com o p r econ d ições d a con st r u ção d o p at r iar cado, há, aproxim adam en te, 7 m il an os. Em bora o patriarcado diga respeito, em term os específicos, à ordem de gên ero, exp an d e-se p or t od o o cor p o social. Ist o n ão sign ifica qu e n ão existam violên cias praticadas em , por exem plo, sociedades coletoras. Mas o valor cen tral da cultura gerada pela dom in a çã o - e xp lo r a çã o p a t r ia r ca l é o co n t r o le , va lo r q u e p er p assa tod as as ár eas d a con vivên cia social. Ain d a qu e a m aior ia das defin ições de gên er o im pliqu e h ier ar qu ia en tr e as categorias de sexo, n ão visibiliza os perpetradores do con tr ole/ violên cia. Descon sid er an d o o p atr iar cad o, en tr etan to, o fem in ism o liberal tran sform a o privilégio m asculin o n um a qu estão in d ivid u al apen as r em otam en te vin cu lad a a esqu em as d e exp lor ação-d om in ação m ais am p los, qu e o p r om ovem e o p r otegem (J OH NSON , 1997). O r epar o qu e se pode fazer ao pen sam en to exposto é qu e n un ca alguém m en cion ou a n ão-existên cia de sistem as m ais am plos qu e o patr iar cad o. Pessoas pod em se situ ar for a d o esq u em a d e d om in a çã o-exp lor a çã o d a s cla sses socia is ou do de raça/ etn ia. Nin guém , n em m esm o hom ossexuais m asculin os e fem in in os, travestis e tran sgên eros, fica fora do esquem a de gên ero patriarcal. Do ân gulo quan titativo, portan to, que é o indicado pela palavra usada por J ohnson (larger), o patriarcado é, n as sociedades ociden tais urban o-in dustriaisin form acion ais, o m ais abran gen te. Da perspectiva qualitativa, a in vasão por parte desta organ ização social de gên ero é total. Tom em -se, por exem plo, as religiões. Estão inteiram ente perpassadas pela estrutura de poder patriarcal. A recusa da utilização do conceito de patriarcado perm ite que este esquem a de exploração-dom inação grasse e encontre form as e m eios m ais insidiosos de se expressar. Enfim , ganha terreno e se torn a in visível. Mais do que isto: é veem en tem en te n egado, levan do a aten ção de seus participan tes para outras direções. 122 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 122 25/1/2011, 09:28 Cum pre, pois, um desserviço a am bas as categorias de sexo, m as, seguram ente, m ais ainda à das m ulheres. Gênero e ideologia As fem inistas radicais revelam as bases m aterial e social do patriarcado. Muita discussão foi travada a propósito dos serviços gratuitos – dom ésticos e sexuais – que as m ulheres prestam aos hom en s: a seus com pan heiros e aos patrões de seus com pan heiros. Muito se escreveu sobre os privilégios m asculinos em geral e as discrim inações praticadas contra as m ulheres. Convém lem brar que o patriarcado serve a interesses dos gr u p os/ classes d om in an t es (S AFFI OTI , 19 6 9 , 19 8 7) e qu e o sexism o n ão é m er am en t e u m p r econ ceit o, sen d o t am bém o poder de agir de acordo com ele (J ohnson). No que tange ao sexism o, o p or tad or d e p r econ ceito está, p ois, in vestid o d e poder, ou seja, habilitado pela sociedade a tratar legitim am ente as pessoas sobre quem recai o preconceito da m aneira com o este as r etr ata. Em ou tr as palavr as, os pr econ ceitu osos – e este fenôm eno não é individual, m as social – estão autorizados a discrim in ar categorias sociais, m argin alizan do-as do con vívio social com um , só lhes perm itin do um a in tegração subordinada, seja em certos grupos, seja na sociedade com o um todo. Não é esta, porém , a interpretação cotidiana de preconceito e de sexism o, tam bém um precon ceito. Mesm o in telectuais de nom eada consideram o m achism o um a m era ideologia, adm itindo apenas o term o patriarcal, isto é, o adjetivo. Com o quase nunca se pensa na dim ensão m aterial das ideias, a ideologia é interpretada com o pairando acim a da m atéria. O pon to de vista aqui assum ido perm ite ver a ideologia se corporifican do em sen tido literal e em sen tido figurado. Com efeito, este fenômeno atinge materialmente o corpo de seus portadores e daqueles sobre quem recai. A postura corporal das mulheres enquanto categoria social não tem uma expressão altiva. Evidentemente, há mulheres que escapam a este destino de gênero (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995), m as se trata de casos indi123 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 123 25/1/2011, 09:28 viduais, jam ais podendo ser tom ados com o expressão da categoria m ulheres, extrem am en te diversificada. Via de regra, as mulheres falam baixo ou se calam em discussões de grupos sexualm ente m istos. Nas reuniões festivas, o com um é se form arem dois grupos: o da Luluzinha e o do Bolinha. Como este último está em poderado e, portanto, dita as regras, o primeiro sujeita-se ao jogo socialm en te estabelecido. A ideologia sexista corporifica-se nos agentes sociais tanto de um polo quanto de outro da relação de dom inação-subordinação. O sentido figurado da corporificação das ideologias em geral e da sexista em especial reside n o vín culo arbitrariam en te estabelecido en tre fenôm enos: voz grave significa poder, ainda que a pessoa fale baixo. O porquê disto en con tra-se n a posição social dos h om ens com o categoria social em relação à das m ulheres. A voz grave do assalariado não o em podera diante de seu patrão, pois o código na estrutura de classes é outro. Não se pode prosseguir sem , pelo m enos, dar um a pincelada n um a questão bastan te séria e pouco m en cion ada. Sexism o e racism o são irm ãos gêm eos. Na gên ese do escrav ism o con stava um tratam ento distinto dispensado a hom ens e a m ulheres. Eis por que o racism o, base do escrav ism o, independent em en t e d a s ca r a ct er ís t ica s fís ica s ou cu lt u r a is d o p ovo con qu istad o, n asceu n o m esm o m om en to h istór ico em qu e n asceu o sexism o. Quan do um povo con quistava outro, subm etia-o a seus desejos e a suas necessidades. Os hom ens eram tem idos, em virtude de represen tarem gran de risco de revolta, já que dispõem , em m édia, de m ais força física que as m ulheres, sendo, ainda, treinados para enfrentar perigos. Assim , er am su m ar iam en te elim in ad os, assassin ad os. As m u lh er es eram preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam força de trabalho, im portan te fator de produção em sociedades sem tecnologia ou possuidoras de tecnologias rudim entares; eram reprodutoras desta força de trabalho, assegurando a con tin uidade da produção e da própria sociedade; prestavam (cediam ) ser viços sexuais aos h om en s do povo vitor ioso. Aí estão as raízes do sexism o, ou seja, tão velho quanto o racis124 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 124 25/1/2011, 09:28 m o. Esta constitui um prova cabal de que o gênero não é tãosom ente social, dele participando tam bém o corpo, quer com o m ão d e obr a, qu er com o objet o sexu al, qu er , ain d a, com o reprodutor de seres hum anos, cujo destino, se fossem hom ens, seria participar ativam ente da produção, e, quando m ulheres, entrar com três funções na engrenagem descrita. Retom an d o o n ó (SAFFIOTI , 198 5), d ifícil é lid ar com esta n ova r ealid ad e, for m ad a p elas t r ês su best r u t u r as: g ên er o, classe social, raça/ etn ia, já que é pr esidida por um a lógica con t r ad it ór ia, d ist in t a d as qu e r egem cad a con t r ad ição em sep ar ad o. Um a voz m en os gr ave ou m esm o agu d a d e u m a m u lh er é r elevan te em su a atu ação, segu n d o o p r econ ceito étn ico-racial, e, m ais seguram en te, n a relação de gên ero e n a de classes sociais. O im portan te é an alisar estas con tradições n a con dição de fun didas ou en oveladas ou en laçadas em um nó. Não se trata da figura do n ó górdio n em apertado, m as do n ó frouxo, deixan do m obilidade para cada um a de suas com pon en tes (SAFFIOTI , 1998 ). Não que cada um a destas con tradições atue livre e isoladam en te. No n ó, elas passam a apresen t a r u m a d in â m ica esp ecia l, p r óp r ia d o n ó. Ou seja , a din âm ica de cada um a con dicion a-se à n ova realidade, presidida por um a lógica con traditória (SAFFIOTI , 198 8 ). De acordo com as circun stân cias h istóricas, cada um a das con tradições in t egr a n t es d o n ó a d q u ir e r elevos d is t in t os . E es t a m otilid ad e é im p or tan te r eter , a fim d e n ão se tom ar n ad a com o fixo, aí in clusa a or gan ização destas subestr utur as n a estrutura global, ou seja, destas con tradições n o seio da n ova r e a lid a d e – n o v elo p a t r ia r ca d o - r a cis m o - ca p it a lis m o (S AFFIOTI , 198 7) – h istor icam en te con stitu íd a. A im agem do nó não consiste em m era m etáfora; é tam bém um a m etáfora. Há um a estrutura de poder que unifica as três ordens – de gênero, de raça/ etnia e de classe social – , em bora as an álises ten dam a separá-las. Aliás, o prejuízo cien tífico e político não advém da separação para fins analíticos, m as sim da ausên cia do cam in ho in verso: a sín tese. Com o já se m ostrou, o patriarcado, com a cultura especial que gera e sua cor125 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 125 25/1/2011, 09:28 respondente estrutura de poder, penetrou em todas as esferas da vida social, n ão correspon den do, h á m uito tem po, ao supor te m ater ial d a econ om ia d e oik os (d om éstica). De ou tr a parte, o capitalism o tam bém m ercan tilizou todas as relações sociais, nelas incluídas as cham adas específicas de gênero, lingu agem aqu i con sid er ad a in ad equ ad a. Da m esm a for m a, a raça/ etn ia, com tudo que im plica em term os de discrim in açã o e, p or con segu in t e, est r u t u r a d e p od er , im p r im iu su a m arca n o corpo social por in teiro. A an álise das relações de gênero não pode, assim , prescindir, de um lado, da análise das dem ais, e, de outro, da recom posição da totalidade de acordo com a posição que, nesta nova realidade, ocupam as três contradições sociais básicas. Par afr asean d o Mar x (19 57) 36 , p od e-se afir m ar qu e é est e n ovo ar r an jo que per m ite com pr een der sociedades igualitárias, não baseadas no controle, na dom inação, na com petição. A or gan ização d as categor ias h istór icas n o in ter ior d e cad a tipo varia n ecessariam en te. Assim , da m esm a form a com o a anatom ia do hom em é a chave para a com preensão da anatom ia do sím io, a sociedade burguesa con stitui a chave para o entendim ento das sociedades m ais sim ples. Cabe ressaltar tam bém , seguindo-se este m étodo, que a análise das form as m ais sim ples de or gan ização social só é possível quan do a for m a m ais desen volvida de sociedade se debr u ça sobr e si m esm a com o tem a de pesquisa e com preen são. Neste ponto da discussão, seria interessante aprofundar a análise de Patem an . Todavia, em n ão h aven do espaço para isto, apenas se registra que é importante reter o seguinte: O contrato não se contrapõe ao patriarcado; ao contrário, ele é a base do patriarcado m oderno. Integra a ideologia de gênero, especifi“Assim, a economia burguesa nos dá a chave da economia antiga etc. [...] Mas, é preciso não identificá-las. Como, além disso, a própria sociedade burguesa não é senão uma forma antitética do desenvolvimento histórico, são relações pertencentes a formas anteriores de sociedade que não se podem reencontrar nela senão inteiramente estioladas ou mesmo travestidas” (p. 169-170). 36 126 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 126 25/1/2011, 09:28 camente patriarcal, a ideia, defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este últim o à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado n ão diz respeito ao m un do público ou, pelo m en os, n ão tem para ele nenhum a relevância. Do m esm o m odo com o as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contam in am toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa n ão apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Ainda que não se possa negar o predomínio de atividades privadas ou ín tim as n a esfera da fam ília e a prevalên cia de atividades públicas no espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes espaços profundamente ligados e parcialmente mesclados. Para fin s an alít icos, t r at a-se d e esfer as d ist in t as; são, con t u d o, in separáveis para a com preen são do todo social. A liberdade civil deriva do direito patriarcal e é por ele limitada. Raciocinando na mesma direção de J ohnson, Pateman mostra o caráter m asculino do contrato original, ou seja, um contrato entre homens, cujo objeto são as mulheres. A diferença sexual é convertida em diferença política, passando a se exprimir ou em liberdade ou em sujeição. Sendo o patriarcado uma forma de expressão do poder político, esta abordagem vai ao encontro da m áxim a legada pelo fem inism o radical: “o pessoal é político”. Entre outras alegações, a polissemia do conceito de patriarcado, aliás existente tam bém no de gênero, constitui um argum ento con tr a seu u so. Aban d on á-lo sign ificar ia, n a per spectiva d e Pateman, a perda, pela teoria política feminista, do único conceito que marca nitidamente a subordinação das mulheres, especificando o direito político conferido aos homens pelo fato de serem homens. Um sério problema a ser sanado neste campo é constituído pelas interpretações patriarcais do patriarcado. Interpretação patriarcal do patriarcado O patria potestas cedeu espaço, n ão à m ulher, m as aos filhos. O patriarca que n ele estava em butido con tin ua vivo co127 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 127 25/1/2011, 09:29 m o titular do direito sexual. O pensam ento de Patem an, neste sentido, vai ao encontro do de Harding. Com efeito, Patem an m ostra com o a in terpretação patriarcal do patriarcado com o direito do pai causou o obscurecim en to da relação en tre m arido e esposa n a origem da fam ília. Esquece-se o fato de que an t es d e ser em p ais e m ães, os h om en s e as m u lh er es são m aridos e esposas. O con ceito de patriarcado, com preen dido por m eio da h istór ia do con tr ato sexual, per m ite a ver ificação da estrutura patriarcal do capitalism o e de toda a socied ad e civil. Focalizar o con tr ato sexu al, colocan d o em r elevo a figu r a d o m ar id o, per m ite m ostr ar o car áter d esigu al d este pacto, n o qual se troca obediên cia por proteção. E proteção, com o é n otór io, sign ifica, n o m ín im o a m édio e lon go pr azos, explor ação-dom in ação. Isto r evela que as m ulh er es jam ais alcan çaram a categoria de in divíduos, com poder de con tratar de igual para igual. E esta categoria é de sum a relevân cia n a sociedade burguesa, n a qual o in dividualism o é levado ao ext r em o. O con ceit o d e cid ad ão, r igor osam en t e, con st it u i-se pelo in d ivíd u o. O casam en to, capaz d e estabelecer r elações igualitárias, ter-se-ia que dar en tre in divíduos. Ora, n ão é isto qu e ocor r e, p ois ele u n e u m in d ivíd u o a u m a su bor d in ad a. Aquilo que é trocado n o casam en to n ão é propriam en te propriedade ou, pelo m en os, n ão é n ecessário que assim o seja. Eviden tem en te, n as cam adas abastadas, há um a ten dên cia à adição de fortun as, m as esta n ão é a regra n a sociedade em geral, m esm o porque a gran de m aioria da população n ão detém ben s de m on ta ou é com pletam en te despossuída. O con trato represen ta um a troca de prom essas por m eio da fala ou de assin aturas. Firm ado o con trato, estabelece-se um a n ova relação n a qual cada parte se posicion a em face da outra. A parte que oferece proteção é autorizada a determ in ar a for m a com o a outra cum prirá sua fun ção n o con trato. A patern id ad e im p õe a m at er n id ad e. O d ir eit o sexu al ou con ju gal estabelece-se an tes do direito de patern idade. O poder político d o h om em assen ta-se n o d ir eito sexu al ou con ju gal. As128 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 128 25/1/2011, 09:29 sim , a au tor idade política do h om em já está gar an tida bem an tes de ele se tran sform ar em pai. Tem r azão Pat em an , p ois o st a t u s d e in d ivíd u o con st it u i precondição para a constituição do sujeito em cidadão. A Revolução Fr an cesa foi um m ar co im por tan te desta tr an sição, caben do lem brar que as m ulheres foram deixadas à m argem da Declaração Universal dos Direitos do Hom em e do Cidadão. O con tr ato sexu al é con su bstan cial à socied ad e civil, estr u turando tam bém o espaço do trabalho. Na estrutura patriarcal capitalista das ocupações, as m ulheres não figuram com o trabalh ad or as, m as t ão som en t e com o m u lh er es. Os h om en s, com o trabalh adores, são sujeitos à autoridade de seu ch efe. En tretan to, esta subordin ação é diferen te da das trabalhadoras, porquanto o hom em é um “senhor prisioneiro” (Patem an). Talvez se possa traduzir esta expressão por: quem é rei nunca perde a m ajestade, m esm o que seja subordinado nas relações de trabalh o. Ca b e r essa lt a r a con ver gên cia d a a n á lise sociológica d e Kergoat (1978 ) e a abordagem política, via teoria do contrato, de Patem an , dez an os depois (a edição origin al do livro é de 198 8 ). Desde seus inícios, a exploração econôm ica da m ulher faz-se conjuntam ente com o controle de sua sexualidade. J á se analisou, ainda que ligeiram ente, a unicidade do racism o e do sexism o. É óbvio que este fato preexistiu, de longe, à em ergência do capitalism o; m as este se apropriou desta desvan tagem fem inina, procedendo com todas as dem ais da m esm a form a. Tir ou , p or t an t o, p r oveit o d as d iscr im in ações qu e p esavam contra a m ulher (SAFFIOTI , 1969), e assim continua procedendo. Com o se pode verificar facilm en te n as cadeias produtivas nacionais e internacionais, as m ulheres predom inam nos estágios m ais degradados da terceirização ou quarterização. A Nike, por exem plo, usa m ão de obra fem inina oriental, trabalhando em dom icílio e recebendo quantias m iseráveis. Todos os estudos sobre força de trabalho fem in in a n o m un do de econ om ia globalizad a r evelam su a m ais acen tu ad a su bor d in ação. Isto equivale a dizer que, quanto m ais sofisticado o m étodo de ex129 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 129 25/1/2011, 09:29 ploração praticado pelo capital, m ais profun dam en te se vale da dom inação de gênero de que as m ulheres já eram , e contin uam sen do, vítim as. O p er igo d este tip o d e an álise r esid e em r esvalar -se p elo dualism o. Não h á, de um lado, a dom in ação patriarcal e, de outro, a exploração capitalista. Para com eçar, n ão existe um processo de dom inação separado de outro de exploração. Por esta razão, usa-se, aqui e em outros textos, a expressão dom in ação-explor ação ou explor ação-dom in ação. Alter n am -se os term os, para evitar a m á interpretação da precedência de um processo e, por via de consequência, da sucessão do outro. De r igor , n ão h á dois pr ocessos, m as duas faces de um m esm o processo. Daí ter-se criado a m etáfora do nó para dar conta da realidade da fusão patriarcado– racism o– capitalism o. Mitchell (1966, 1971, 1974) e H artm an n , (1979a, 1979b), n ão obstan te suas grandes contribuições, laboraram / laboram na direção da teoria dos sistem as duais (YOUNG, 198 1; J ÓNASDÓTTIR , 1993). E isto significa operar na lógica binária, própria do pensam ento cartesian o, de um lado, e, de outro, dos con structos m en tais im pingidos pelas ideologias e dem ais tecnologias de gênero, raça/ etn ia e classe social, elaboradas pelas categorias sociais poderosas ou a seu serviço. Todas as categorias sociais e classes dispõem de seus intelectuais orgânicos (GAMSCI , 1967; P ORTELLI , 1973), a fim de terem seus objetivos e m étodos para alcan çá-los legitim ados. O h om em é visto com o essen cial, a m ulh er, com o in essen cial. O prim eiro é con siderado sujeito, a m ulher, o outro. O fato de o patriarcado ser um pacto entre os hom en s n ão sign ifica que a ele as m ulheres n ão opon ham resistência. Com o já se patenteou, sem pre que há relações de d om in ação-explor ação, h á r esistên cia, h á lu ta, h á con flitos, que se expressam pela vingança, pela sabotagem , pelo boicote ou pela luta de classes. Efetivam ente, a análise de Patem an revela a dim ensão m ais profun da, essen cial, do patriarcado, atribuin do-lhe um sign ificado que a m aioria de suas(seus) utilizadoras(es) ign oram . Além disto, esta autora ressignifica outras questões, presum i130 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 130 25/1/2011, 09:29 velm en te apen as circun dan tes. Im puta-se, via de regra, um a respon sabilidade quase exclusiva à socialização sofrida pelas m ulheres à subm issão destas. Patem an dispõe de outro argum en to. Diferen tem en te de m uitas explicações, a con sciên cia que as m ulheres têm de si m esm as não deriva da socialização que receberam , m as de sua inserção com o m ulheres e esposas n a estrutura social. Obviam en te, a socialização faz par te d este pr ocesso d e se torn ar m ulh er/ esposa. Mas n ão se trata apen as daquilo que as m u lh er es in t r ojet ar am em seu in con scien t e/ con scien t e. Trata-se de vivên cias con cretas n a relação com hom en s/ m aridos. Tan to assim é que n as sociedades ociden tais m odern as a m ulher perde direitos civis ao casar. Data de 27 de agosto de 1962, n o Brasil, a Lei 4.121, tam bém con hecida com o estatuto da m ulher casada. Até a prom ulgação desta lei, a m ulher n ã o p od ia d esen volver a t ivid a d e r em u n er a d a for a d e ca sa sem o con sen tim en to de seu m arido, en tre outras lim itações. Era, literal e legalm en te, tutelada por seu côn juge, figuran do ao lad o d os pr ód igos e d os silvícolas, qu an to a su a r elativa in capacidade civil. A pr opósito desta qu estão, evoca-se o já citado texto de Math ieu, n o qual ela tr abalh a, am pla e pr ofun dam en te, a “con sciên cia dom in ada” das m ulheres. Sim ultan eam en te, as m u lh er es in tegr am e n ão in tegr am a or dem civil, um a vez que são in cor por adas com o m ulh er es, subor din adas, e n ão com o in divíduos. A subm issão das m ulh er es n a sociedade civil assegura o recon h ecim en to do direito patriarcal dos h om en s. Com o tão-som en te o con tr ato ger a r elações livr es, pr esu m in do igualdade de con dições das partes, é n ecessário in corporar as m ulheres à sociedade civil por m eio de um con trato. En tretan to, sim ultan eam en te, é preciso que este con trato recon heça e reafirm e o direito patriarcal. Assim , n o pen sam en t o p olít ico con t em p or â n eo, a su b or d in a çã o civil ga n h ou o n om e de liberdade por m eio da n egação da in terdepen dên cia en tre liberdade civil e direito patriarcal. Tem razão a autora em pauta, quan do en un cia que o patriarcado con tratual m o131 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 131 25/1/2011, 09:29 d er n o p r esu m e a liber d ad e d as m u lh er es, n ão fu n cion an d o sem este pressuposto. Por outro lado, tam bém n ega liberdade às m ulheres. Para se elim in ar a dom in ação m asculin a, substituin do-a pela auton om ia de am bas as categorias de sexo, a liber d ad e in d ivid u al d eve en con tr ar lim ite n a estr u tu r a d as r elações sociais. Gênero X patriarcado O argum ento final aqui desenvolvido em favor das ideias até agora defen didas girará em torn o da recusa do uso exclusiv o do conceito de gênero. Por que este conceito teve am pla, profunda e rápida penetração não apenas no pensam ento acadêm ico, m as tam bém n o das(os) m ilitan tes fem in istas e, ain da, em organ ism os in tern acion ais? Efetivam en te, o Ban co Mun dial só con cede verbas a projetos que apresen tem recorte de gên ero. Residiria a resposta tão som en te n a n ecessidade percebida de alterar as relações sociais desiguais entre hom ens e m ulheres? Mas o conceito de patriarcado já não revelava este fenôm eno, m uito antes de o conceito de gênero ser cunhado? Não estaria a rápida difusão deste con ceito vin culada ao fato de ele ser infinitam ente m ais palatável que o de patriarcado e, por conseguinte, poder ser considerado neutro? Estas perguntas apontam para um a resposta: o conceito de gênero, ao contrário do que afirm aram m uitas(os), é m ais ideológico do que o de patriarcado. Neutro, não existe nada em sociedade. Com o n ão se é a favor de jogar fora o bebê com a água do ban ho, defen de-se: 1. a utilidade do con ceito de gên ero, m esm o porque ele é m uito m ais am plo do que o de patriarcado, levando-se em conta os 250 m il anos, no m ínim o, da hum anidade; 2 . o uso sim ultân eo dos con ceitos de gên ero e de patriarca d o, já q u e u m é gen ér ico e o ou t r o esp ecífico d os ú lt im os seis ou sete m ilên ios, o prim eiro cobrin do toda a histór ia e o segu n d o qu alifican d o o p r im eir o ou , p or econ om ia, 132 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 132 25/1/2011, 09:29 sim p lesm en t e a exp r essão p at r iar cad o m it igad o ou , ain d a, m er am en t e p at r iar cad o; 3 . a im possibilidade de aceitar, m an ten do-se a coerên cia teórica, a redutora substituição de um con ceito por outro, o que tem ocorrido n essa torren te bastan te ideológica dos últim os dois decên ios, quase três. Nem sequer abstratam ente se pode conceber sociedades sem r epr esen tação do fem in in o e do m ascu lin o. Descober tas r ecen tes sobre a capacidade de apren der dos an im ais in dicam que se pode levantar a hipótese de que os hom inídeos já fossem capazes de criar cultura. Não se precisa, no entanto, ir tão longe, podendo-se exam inar, em bora ligeiram ente, o processo de diferenciação que está na base da terceira esfera ontológica: o ser social. A esfera ontológica inorgânica constitui condição sine qua non do nascim ento da vida. Um a proteína, provavelm en te, deu origem à esfera on tológica orgân ica. Diferen ciações n esta esfera geraram seres sexuados. O sexo, desta form a, per ten ceu , or igin ar iam en te, apen as à esfer a on tológica orgân ica. À m edida que a vida orgân ica ia se torn an do m ais com p lexa , ia , s im u lt a n ea m en t e, s u r gin d o a cu lt u r a . Os hom inídeos desceram das árvores, houve m utações e a cultura foi se desen volven do. É pertin en te supor-se que, desde o início deste processo, foram sendo construídas representações do fem in in o e do m asculin o. Con stitui-se, assim , o gên ero: a diferen ça sexual, an tes apen as existen te n a esfera on tológica orgânica, passa a ganhar um significado, passa a constituir um a im portan te referên cia para a articulação das relações de poder. A vida da natureza (esferas ontológicas inorgânica e orgân ica), que, n o m áxim o, se reproduz, é m uito distin ta do ser social, que cria sem pre fen ôm en os n ovos. A on tologia lukacsian a perm ite ver, com n itidez, que os seres hum anos, não obstante terem construído e continuarem a con struir um a esfera on tológica irredutível à n atureza, con tin u am a per ten cer a esta u n id ad e, qu e in clu i as tr ês esfer as on tológicas. Mais do que isto, Lukács distin gue dois tipos de 133 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 133 25/1/2011, 09:29 posições teleológicas 37: as posições que incidem sobre a natureza, visando à satisfação das necessidades, por exem plo, econôm icas; e as posições cujo alvo é a consciência dos outros, na tentativa de m odelar-lhes a conduta. Está aqui, sem dúvida, a “consciência dom inada” das m ulheres (Mathieu) e, ao m esm o tem po, sua possibilidade de escapar de seu destino de gênero, via tran sgressão, que perm ite a criação de n ovas m atrizes de gên ero, cada um a lutan do por destron ar a m atriz dom in an te de sua posição hegem ônica. Com efeito, para Lukács, não existe igualdade entre as intenções de um agente social e seu resultado, exatam ente porque outros socii atuam sobre o prim eiro. Enfim , não há coincidência exata entre a intenção e o resultado que produz, em virtude da pluralidade de intenções/ ações presen tes n o processo in terativo. Situado n um terren o m uito distinto do de Weber, o Lukács da Ontologia enfatiza o fato de o resultado das in ten ções in dividuais ultrapassá-las, in screvendo-se na instância causal e não teleológica, o que abre espaço para as contingências do cotidiano. O ser social, na interpretação que Tertulian (1996) faz de Lukács, con siste n um a in teração de com plexos h eterogên eos, perm an en tem en te em m ovim en to e devir, apresen tan do um a m escla de con tin uidad e e d escon t in u id ad e, d e for m a a p r od u zir sem p r e o n ovo irreversível. É chegada a hora de alertar o leitor para a natureza das categorias históricas gênero e patriarcado. Gênero constitui um a categoria on tológica, en quan to o m esm o n ão ocorre com a categoria ordem patriarcal de gênero. Ainda que m uito rapidam ente, pode-se afirm ar, com veem ência, que é possível transformar o patriarcado em muito menos tempo do que o que foi exigido para sua implantação e consolidação. Lembra-se que este últim o processo durou 2.50 0 anos! Teleológicas são as ações dos agentes sociais, isto é, têm uma finalidade, dirigem-se a um alvo. Embora as ações humanas sejam teleológicas, a História não o é. O erro de muitos, na interpretação da obra de Marx, consiste em considerar teleológica a História, quando Marx situou as ações humanas como tal. Que teleologia não seja confundida com ontologia e nem esta com antologia, isto é, uma coletânea de textos. 37 134 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 134 25/1/2011, 09:29 Quando a consciência hum ana se projetou sobre a natureza, introduzindo a m arca do nexo final nas cadeias causais objetivas, teve origem o ato intencional, teleológico, finalista. Desta sorte, a teleologia é um a categoria histórica e, portan to, irredutível à natureza. Deste ângulo, o gênero inscreve-se no plano da história, embora não possa jamais ser visto de forma definitivamente separada do sexo, na medida em que também está inscrito na natureza. Am bos fazem parte desta totalidade aberta, que engloba natureza e ser social. Corpo e psique, por conseguinte, constituem um a unidade. Com o praticam ente a totalidade das teorias feministas não ultrapassa a gnosiologia, a teoria do conhecim ento, perm anecendo no terreno das categorias meramente lógicas ou epistemológicas, não dá conta da riqueza e da diversidade do real. Revelam-se, por isso, incapazes de juntar aquilo que o cartesianism o sistem atizou com o separado. O gênero independe do sexo apenas no sentido de que não se apoia necessariamente no sexo para proceder à formatação do agente social. Há, no entanto, um vínculo orgânico entre gênero e sexo, ou seja, o vínculo orgânico que torna as três esferas ontológicas uma só unidade, ainda que cada uma delas não possa ser reduzida à outra. Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, da mesma forma como é impensável o sexo como fenômeno puramente biológico. Não seria o gênero exatam ente aquela dim ensão da cultura por meio da qual o sexo se expressa? Não é precisamente por meio do gênero que o sexo aparece sempre vinculado ao poder? O estupro não é um ato de poder, independentemente da idade e da beleza da mulher, não estando esta livre de sofrê-lo mesmo aos 98 anos de idade? Não são todos os abusos sexuais atos de poder? As evidências históricas, com o já se m ostrou, cam inham no sen tido da existên cia de um poder com partilhado de: papéis sociais diferentes, m as não desiguais. Ainda que isto cause engulhos nas(os) teóricas(os) posicionadas(os) contra a diferença sexual, n a gên ese, ela teve extrem a im portân cia. Esta, aliás, con stitui um a das razões pelas quais se im põe a abordagem ontológica. Ao longo do desenvolvim ento do ser social, as m e135 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 135 25/1/2011, 09:29 diações culturais foram crescendo e se diferenciando, portanto deixando cada vez mais remota e menos importante a diferença sexual. Com o, porém , o ser social n ão poderia existir sem as outras duas esferas ontológicas, não se pode ignorá-las. Mais do que isto, o ser humano consiste na unidade destas três esferas, donde não se poder separar natureza de cultura, corpo de mente, emoção de razão etc. É por isso que o gênero, embora construído socialmente, caminha junto com o sexo. Isto não significa atentar som ente para o contrato heterossexual. O exercício da sexualidade é muito variado; isto, contudo, não impede que con tin uem existin do im agen s diferen ciadas do fem in in o e do m asculino. O patriarcado refere-se a m ilênios da história m ais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em term os exclusivam en te do con ceito de gên ero distrai a aten ção do poder do patriarca, em especial com o hom em / m arido, “n eu t r alizan d o” a exp lor ação-d om in ação m ascu lin a. Nest e sen t id o, e con t r ar iam en t e ao qu e afir m a a m aior ia d as(os) teóricas(os), o con ceito de gên ero carrega um a dose apreciável de ideologia. E qual é esta ideologia? Exatam ente a patriarcal, forjada especialm ente para dar cobertura a um a estrutura de poder que situa as m ulheres m uito abaixo dos hom ens em todas as áreas da con vivên cia hum an a. É a esta estrutura de poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de patriarcado diz respeito. Desta sorte, trata-se de con ceito crescen tem en te preciso, que prescin de das n um erosas con fusões de que tem sido alvo. Chegou-se a um a situação paradoxal: teóricas fem inistas atacan do o con ceito de patr iar cado e teór icos fem in istas advogan do seu uso. A título de ilustração, veja-se o que afirm am J ohn son e Kurz. Para J ohn son , o patriarcado é paradoxal. O paradoxo com eça na própria existência do patriarcado, resultante de um pacto entre os hom ens e a nutrição perm anente da com petição, da agressão e da opressão. A dinâm ica entre controle e m edo rege o patriarcado. Em bora sem pre referido às r elações en tr e h om en s e m u lh er es, o p atr iar cad o está m ais 136 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 136 25/1/2011, 09:29 profun dam en te vin culado às relações en tre os h om en s. Para Ku r z (20 0 0 ), n em todas as sociedades são estr u tu r adas em term os patriarcais. A história registra sociedades igualitárias do ân gulo do gên ero. Assim , “a desvalorização da m ulher n a m odern idade deriva das próprias relações sociais m odern as”. Da perspectiva aqui assum ida, o gênero é constitutivo das relações sociais, com o afirm a Scott (1983, 1988), da m esm a form a que a violência é constitutiva das relações entre hom ens e m u lh er es, n a fase h ist ór ica d a or d em p at r iar cal d e gên er o (SAFFIOTI , 20 0 1), ainda em curso. Na ordem falocrática, o gên er o, in for m a d o p ela s d es igu a ld a d es s ocia is , p ela hierarquização entre as duas categorias de sexo e até pela lógica da com plem en taridade (BADINTER , 198 6), traz a violên cia em seu cerne. “A popularidade do slogan e sua força para fem in istas em er gem d a com plexid ad e d a posição d as m u lh er es n as socied ad es liber al-p atr iar cais con tem p or ân eas. O p r ivado ou pessoal e o público ou político são sustentados com o separados e irrelevan tes um em relação ao outro; a exper iên cia cot id ian a d as m u lh er es ain d a con fir m a est a sep ar ação e, sim u ltan eam en te, a n ega e afir m a a con exão in t egr al en t r e as d u as esfer as. A sep ar ação en t r e o p r ivado e o público é, ao m esm o tem po, parte de n ossas vid a s a t u a is e u m a m ist ifica çã o id eológica d a r ea lid a d e lib er a l-p a t r ia r ca l. A sep a r a çã o en t r e a vid a d om ést ica p r iva d a d a s m u lh er es e o m u n d o p ú b lico d os h om en s tem sido con stitutiva do liberalism o patriarcal desde sua gên ese e, desde m eados do século XIX, a esposa econ om icam en t e d ep en d en t e t em est ad o p r esen t e com o o id eal de todas as classes sociais da sociedade” (P ATEMAN , 198 9, p . 13 1- 2 ) . Com o a teoria é m uito im portante para que se possa operar tran sform ações profun das n a sociedade, con stitui tarefa urgente que as teóricas fem inistas se indaguem : a quem serve a 137 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 137 25/1/2011, 09:29 teoria do gênero utilizada em substituição à do patriarcado? A urgên cia desta resposta pode ser aquilatada pela prem ên cia de situar as m ulheres em igualdade de con dições com os hom en s. É evid en te qu e esta lu ta n ão pod e (n em d ever ia) ser levada a cabo exclusivam en te por m ulh eres. O con curso dos hom ens é fundam ental, um a vez que se trata de m udar a relação entre hom ens e m ulheres. Todavia, é a categoria dom inada-explorada que conhece m inuciosam ente a engrenagem patriarcal, no que ela tem de m ais perverso. Tem , pois, obrigação de liderar o processo de m udança. Recusando-se, no entanto, a enxergar o patriarcado ou recusando-se a adm iti-lo, a m aioria das teóricas fem inistas dá dois passos para trás: 1. n ão atacan do o coração da en gren agem de exploraçãodom in ação, alim en ta-a; 2 . perm ite que pelo m enos alguns hom ens encarnem a vanguarda do processo de den ún cia das in iquidades perpetradas con tra m ulheres e m ostrem o essen cial para a form ulação de um a estratégia de luta m ais adequada. Ainda que as teóricas fem inistas tam bém desejem construir um a sociedade igualitária do ân gulo do gên ero (será possível restringir as transform ações apenas a este dom ínio?), o resultado da interação de todos esses agentes sociais será eventualm en te diverso de suas in ten ções, lem bran do Luckács. É n ecessário precaver-se no sentido de im pedir que a resultante da ação coletiva fique aquém , ou m uito aquém , do fim posto. E a teoria desem penha papel fundam ental neste processo. Não se trata de abolir o uso do con ceito de gên ero, m as de elim in ar su a u tilização exclu siva. Gên er o é u m con ceit o p or d em ais palatável, porque é excessivam ente geral, a-histórico, apolítico e pretensam ente neutro. Exatam ente em função de sua gener alidade excessiva, apr esen ta gr an de gr au de exten são, m as baixo nível de com preensão. O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrário, com o vem explícito em seu nom e, só se aplica a um a fase h istór ica, n ão ten do a pr eten são da 138 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 138 25/1/2011, 09:29 gen er alidade n em da n eutr alidade, e deixan do pr opositadam en te explícito o vetor d a d om in ação-explor ação. Per d e-se em exten são, porém se gan ha em com preen são. En tra-se, assim , n o r ein o d a H ist ór ia. Tr at a-se, p ois, d a falocr acia, d o an drocen trism o, da prim azia m asculin a. É, por con seguin te, um conceito de ordem política. E poderia ser de outra ordem se o objetivo das(os) fem inistas consiste em transform ar a socied a d e, elim in a n d o a s d es igu a ld a d es , a s in ju s t iça s , a s in iquidades, e in stauran do a igualdade? (SAFFIOTI , 1997a). A id eologia con stitu i u m r elevan te elem en to d e r eificação, de alien ação, de coisificação. Tam bém con stitui um a poderosa tecn ologia de gên ero (LAURETIS, 198 7), assim com o “cin em a, d iscu r sos in stitu cion ais, epistem ologias e pr áticas críticas” (p. IX), estas últim as entendidas com o as m ais am plas pr áticas sociais e cultur ais. A alien ação, em sua acepção de cisão, é alim entada pelas tecnologias de gênero, aí inclusas as ideologias. É m uito útil a con cepção de sujeito, de Lauretis, pois ele é constituído em gênero, em raça/ etnia, em classe social; não se trata de um sujeito unificado, m as m últiplo; “não tão d ivid id o qu an to qu estion ad or ” (p . 2). Im p or ta r eter n a m em ória que não apenas as ideologias atuam sobre os agentes sociais subjugados, m as tam bém outras m últiplas tecn ologias sociais de gênero, de raça/ etnia e de classe social. Não obstante a força e a eficácia política de todas as tecnologias sociais, especialm en te as de gên er o, e, em seu seio, das ideologias de gên er o, a violên cia ain da é n ecessár ia par a m an ter o status quo. Isto n ão sign ifica adesão ao uso da violên cia, m as um a d olor osa con statação. 139 Gênero, patriarcado, violência genero 2 reimp.p65 139 25/1/2011, 09:29 140 genero 2 reimp.p65 Heleieth I. B. Saffioti 140 25/1/2011, 09:29 Referências bibliográficas ARRIGH I, Giovan n i. (19 9 7) A ilu sã o d o d esen v olv im en t o. Petrópolis: Vozes. BADINTER, Elisabeth. (198 0 ) L’am our en plus – H istoire de l’am our m aternel (Sec. X VII-X X ). Montrouge, França. BARSTED, Leila Linhares. (1995) A ordem legal e a (des)ordem fam iliar. Cadernos CEPIA, nº 2, Rio de J aneiro. 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