Introdução
Este livro, incidindo, grosso modo, sobre violência contra mulheres, destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer
fenômenos sociais relativamente ocultos – ou por que há que se
preservar a família, por pior que ela seja, na medida em que esta
instituição social está envolta pelo sagrado, ou porque se tem
vergonha de expô-los. Com efeito, um marido que espanca sua
m ulher, em geral, é poupado em vários dos am bientes por ele
frequentados, em virtude de este fato não ser de conhecimento
público. Também interessa a vítimas e agressores, já que podem,
certamente, identificar, em sua relação violenta, algumas de suas
raízes, encorajando-se a buscar ajuda. Os que ignoram o fenômen o, por terem tido sorte de n em sequer haver presen ciado as
modalidades de violência aqui tratadas, podem desejar ampliar
sua cultura. Há uma outra categoria de leitores, interessados por
análises teóricas desta violência, pondo em especial relevo conceitos como o de gênero e o de patriarcado, que, seguramente,
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se interessarão por ler este livro. Trata-se de iniciados(as) insatisfeitos(as) com o que aprenderam , tendo agora a seu dispor
m ais um texto seja para criticá-lo, seja para a ele aderir, seja,
ainda, para incorporar algumas ideias e rejeitar outras.
A limitação do número de páginas constitui um sério problema
para um a socióloga notoriam ente prolixa. O volum e de dados
coligidos pela Fundação Perseu Abramo com a pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, realizada por seu
Núcleo de Opinião Pública ( NOP ), e que foi utilizada neste trabalho, ultrapassa, de longe, as pretensões de análise de uma cientista social, que talvez pudesse usá-los em dois livros ou mais. J amais em um único. Leitores em busca de dados sentir-se-ão frustrados, imagina-se1. A autora tem o álibi de que o ser humano não
é perfeito, sobretudo ela própria. Será o caso de pedir desculpas
ao leitor? Não se pensa desta forma, pois é muito mais fácil divulgar dados que construir referenciais teóricos para analisá-los.
Obviamente, se nutre a perspectiva de agradar. Se, todavia, isto
não ocorrer, com o toda obra é datada e todos os m em bros da
sociedade estão sujeitos a m udança, poderá surgir um a outra,
menos subversiva que esta, em termos de conceitos reformulados
e da própria concepção da História. Se o marxismo clássico atribuía im portância excessiva ao m acropoder e se os autores que
chamaram a atenção para a relevância do micropoder não apresentaram um projeto de transformação da sociedade na direção
da dem ocracia integral, este livro propõe-se com binar m acro e
microprocessos, a fim de avançar na obtenção deste objetivo.
O fem inism o aqui esposado traz, em seu bojo, um potencial
crítico bastan te capaz de apon tar cam in h os, trilh as, picadas
para se atingir o alvo expresso e desejado, ou seja, a dem ocracia plena. Entretanto, isto não basta; é preciso saber utilizá-lo,
selecionando as m elhores estratégias em cada m om ento, o que
cabe ao leitor julgar e realizar. Esta avaliação, certam ente, abrirá à autora as portas que ela não logrou abrir sozinha.
Os dados detalhados da pesquisa podem ser obtidos em
www.fpa.org.br/nop.
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1. A realidade nua e crua
Sempre que se faz uma pesquisa com a finalidade de se verificar quais são as m aiores preocupações dos brasileiros, aparecem, infalivelmente, o desemprego e a violência. J á não se trata
de preocupações tão som ente dos habitantes dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de J aneiro, isolados até há
alguns anos, mas de praticamente todas as capitais de estados e
do Distrito Federal. Pior que isto, estes dois flagelos tom aram
conta das cidades de porte médio e até de pequenos municípios.
O crime organizado, expressão máxima da violência, era restrito ao Rio de J aneiro. Há aproxim adam ente duas décadas, São
Paulo passou a rivalizar com o Rio de J an eiro, n esta terrível
atividade. Hoje, este fenôm eno está generalizado.
De um lado, o crim e organizado vive nababesca e tranquilamente nas entranhas do Estado, quer federal, estaduais ou municipais. Este fenômeno lesa o povo brasileiro, já tão sacrificado
pelo decréscimo real, e até mesmo nominal, de seus rendimen11
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tos, em virtude de dem issões de fun cion ários, sucedidos por
novos, recebendo salários mais baixos. Tal fato do turn over ou
rotatividade da força de trabalho, an tes provocado pelos em pregados, em busca de empresas dispostas a remunerá-los com
certa gen erosidade, in troduzin do fatores de hum an ização n o
am biente de trabalho, hoje se produz em consequência da necessidade de menor dispêndio com salários de trabalhadores, a
fim de aprofundar o processo de exploração-dominação e, desta m aneira, tornar m ais rentáveis seus em preendim entos.
Tomando-se apenas o ano de 20 0 3, aqueles que vivem de salários sofreram uma perda real de cerca de 15% em seus rendimentos, ou seja, em seu poder aquisitivo. Este fato, num contexto de altas taxas de desem prego, que ultrapassa 20 % da PEA
(População Econom icam ente Ativa) do m unicípio de São Paulo, outrora a Meca dos habitan tes de outras regiões, assum e
proporções in susten táveis. Se, de um lado, a taxa de desem prego é alta, de outro, um núm ero decrescente de trabalhadores, com poder aquisitivo em queda, deve produzir o suficiente para sustentar aqueles que nem sequer no setor inform al de
trabalho con seguiram in serir-se. A rede fam iliar de solidaried ad e d esem pen h a im por tan te papel, evitan d o qu e cr esçam ,
num a m edida ainda m ais cruel, os contingentes hum anos sem
teto, sem emprego, sem rendimento, isto é, em franco processo
de desfiliação (CASTEL, 1995).
Grosso modo e ligeiramente, a desfiliação consiste numa série
de fatos sucessivos: desemprego, impossibilidade de pagar o aluguel, perda da moradia e, portanto, do endereço, perda dos colegas e dos amigos, esfacelamento da família, cortes crescentes dos
laços sociais, cortes estes responsáveis pelo isolamento do cidadão. Enfim, de perda em perda, o desfiliado encontra-se no nãolugar, talvez no vazio mais doloroso para um ser humano, que,
como já dizia Aristóteles no IV século a.C., é um ser político2 .
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Palavra derivada de pólis, isto é, cidade em grego. A mais correta
tradução de pólis, no contexto em que escreveu o filósofo, é gregarismo.
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No Brasil, con tin gen tes h um an os n estas circun stân cias foram den om in ados in em pregáv eis pelo presiden te sociólogo.
Este ign om in ioso apelido revela um a faceta da pedra an gular
do liberalism o ou n eoliberalism o. Quan do o trabalh ador experim en tou o desem prego de lon ga duração, ten do buscado,
às vezes duran te an os, n ova colocação e, em vez dela, en con trado o isolam ento, a solidão, o não-lugar, a responsabilidade
deste fracasso é-lhe im putada pelo governante de plantão, que
sou be ser su bm isso, sobr etu d o ao Im p ér io, m as n ão sou be
tran sform ar a posição de seu próprio país n um a in serção soberan a n o cen ário in tern acion al, tarefa que o presiden te m etalúrgico realizou, em gran de parte e com extraordin ária habilidade diplom ática, em apenas um ano de governo.
É público e notório que este processo é cotidiano e infinito,
pen san do-se o poder n ão com o um objeto do qual se possa
realizar um a defin itiva apropriação, m as com o algo que flui,
qu e cir cu la n as e p elas r elações sociais (F OUCAULT 3 , 198 1).
Esta in stabilidade do poder, ou m elhor, esta rotatividade dos
poderosos n ão ocorre apen as n a m icropolítica, m as tam bém
na m acropolítica. A m alha fina e a m alha grossa não são instâncias isoladas, interpenetrando-se m utuam ente, um a se nutrindo da outra. Não há um plano ou nível m icro e um plano
ou n ível m a cr o, lin gu a gem u t iliza d a p or cer t os a u t or es
(GUATTARI , 198 1; GUATTARI e R OLNIK, 198 6; F OUCAULT, 198 1;
1997), n ão obstan te a relevân cia de sua con tribuição teórica.
“O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. [...] O poder funciona e se exerce em rede. Nas
suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. [...] Efetivamente,
aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam
identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos
de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros
efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio
fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através
[sic] do indivíduo que ele constituiu” (1981, p. 183-4).
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Trata-se de m icroprocessos, assim com o de m acroprocessos,
operan do n as m alh as fin a e grossa, “um a sen do o avesso da
outra, n ão n íveis distin tos” (SAFFIOTI , 1999, p. 8 6).
Com o o poder vincula-se, com frequência e estreitam ente, a
riquezas, talvez seja interessante fazer um a breve incursão pelo
terren o econ ôm ico. Vive-se um a fase ím par de hegem on ia do
capital financeiro, parasitário, porque nada cria. Esta é, certam ente, a m aior e m ais im portante fonte da instabilidade social
n o m un do globalizado. A con cen tração m un dial de riquezas
atingiu tão alto grau, que gerou um perigo político a tem er-se.
Fruto de fusões de em presas e outros m ecan ism os que tam bém corroboram na realização de um a determ inação inerente
ao capitalism o: a acum ulação de bens em poucas m ãos e a farta distribuição da m iséria para m uitos, n estas abissais desigualdades m orando o inim igo, ou seja, a contradição fundante
deste m odo de produção, ao qual são inerentes a injustiça e a
in iquidade. Sem a con cretização desta verdadeira lei, acum ulação e m iséria, o capitalism o n ão se susten taria, ou m elhor,
nem seria capitalism o. Exatam ente em virtude disto, o capitalism o está sujeito a crises de prosperidade e de recessão, chegando à depressão, cujo exem plo m áxim o, até o m om ento, foi
a crise de 1929. O fam oso crash da Bolsa de Nova Iorque transform ou em pobres con tin gen tes hum an os riquíssim os, do dia
para a noite, repercutindo este desastre em todas as áreas da
produção e, por conseguinte, desorganizando a econom ia norte-am erican a e outras dela depen den tes. O poder descreveu
tr ajetór ia sem elh an te. H oje, tem -se u m a econ om ia-m u n d o,
com a p r od u ção d e m er cad or ias, en volven d o, in clu sive em
ter m os d e esp aço geogr áfico, vár ios p aíses. Vale d izer qu e,
atualm en te, o m un do está organ izado em redes de in form ação, de produção, de troca etc., exceto qualquer rede de solidar iedade a n ão ser espor ádica e even tual, disto der ivan do,
em caso de um crash de qualquer Bolsa im portante, um verdadeir o desastr e em ter m os globais. Com o pr edom ín io quase
absoluto do capital fin an ceiro, n o m om en to presen te, n ão se
está im un e a um n ovo crash, capaz de levar de roldão países
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ditos de prim eiro m un do, assim com o os agora den om in ados
em ergen tes, para n ão falar n os pobres, cuja m iséria se aprofundaria. Disto talvez decorresse um a nova organização m undial, incluindo-se m udanças do lugar ocupado por cada nação
n o cen ário in tern acion al.
Nas décadas de 1950 -1960 , o Brasil, com o tam bém outras
n ações n o m esm o est ágio d e d esen volvim en t o, r ecebiam o
n om e de subdesen volvidas. Na década de 1970 , passar am a
ch am ar-se países em via de desen volvim en to e, a partir dos
an os 198 0 , tor n ar am -se em er gen tes. Os n om es têm sofr id o
var iações, m as a d istân cia econ ôm ico-social en tr e o n ú cleo
orgânico, a sem iperiferia e a periferia ou continua a m esm a ou
a u m en t a ( AR R I GH I , 19 9 7) . M u t a t is m u t a n d is , em b or a a
globalização ten h a ger ad o n ovos pr ocessos e pr od u tos, qu e
n ão podem ser ign orados, a lógica da dom in ação-exploração
entre países e entre classes sociais, nos lim ites de cada nação,
continua a m esm a. Todavia, não se fala m ais em im perialism o.
Este term o só é utilizado pelos alcunhados, com desprezo, de
din ossauros. Mas, com o diriam os fran ceses: Plus ça chan ge,
plus c’est la m êm e chose, isto é, quan to m ais m uda m ais é a
m esm a coisa.
As ch am ad as d r ogas p esad as, sem d ú vid a, d esem p en h am
im portante papel no crescim ento da violência conhecida com o
violência urbana, no Brasil. Cidades de porte m édio, e tam bém
m aiores e m en ores que estas, n as quais qualquer crim e seria
de clam or público, dada sua raridade, com petem com os grandes cen tros urban os em m atéria de violên cia. Ribeirão Preto
( SP ) ilustra m uito bem esta situação: de cidade pacata, tornouse extrem am en te violen ta, ten do o crim e organ izado do n arcotráfico invadido o m eio rural. Rota dos aviões que transportam drogas especialm ente da Colôm bia e da Bolívia, m as tam bém do Peru, os fardos de drogas são atirados n os can aviais.
Trabalhadores rurais de baixíssim os salários recolhem tais fardos para distribuição. Com o os adultos precisam trabalhar na
cana, as crianças são transform adas em “aviões”. Obviam ente,
não apenas suprem a dem anda urbana por este produto, com o
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tam bém passam a consum i-la. Assim , o trabalhador do cam po
tem sua vida cotidian a in vadida por um a atividade m ercan til
fora da lei e por um vício, am bos destruidores de seus valores
culturais, desorgan izan do, desta sorte, até suas fam ílias. Que
n ão se pen se que tais trabalh adores são cam pon eses. Quem
trabalha na cana tornou-se, há m uito tem po e necessariam ente, assalariado. Pior que isto, o que lhe sobrou foi ser um assalariado sazonal. Nos m eses do corte da cana, os trabalhadores
locais são in suficien tes para aten der à dem an da de força de
trabalho, chegan do estas plan tações a absorver trabalhadores
do Vale do J equitinhonha m ineiro, que para lá m igram todos
os an os, deixan do as m ulheres para cuidar do roçado, isto é,
da pequen a gleba n a qual se plan tam alim en tos. Estes m ovim entos m igratórios ocorrem todos os anos. Nem todos os trabalhadores, entretanto, voltam para o Vale, a fim de se juntar
aos dem ais m em bros de suas fam ílias. Muitos perm anecem na
periferia da cidade, con stituem n ovas fam ílias, trabalham regularm ente no período do corte da cana, vivendo de pequenos
“bicos” duran te o restan te do an o. Na ausên cia de pesquisa,
n ão se sabe quan tos deles con tin uam trafican do drogas e/ ou
adquiriram o h ábito de con sum i-las. As fron teiras, já m uito
t ên u es , en t r e o u r b a n o e o r u r a l d eixa r a m d e exis t ir . A
com er cialização d as d r ogas tam bém se globalizou , d issem inando-se por todo o território nacional. Mais do que isto, tom ou con ta do plan eta. E, com provadam en te, ela produz alterações do estado de consciência, capazes de com prom eter, de
m odo n egativo, o código de ética dos que se dedicavam apenas ao trabalho lícito com o ganha-pão.
A isto se deve acrescen tar as drogas lícitas, com o álcool e
tabaco. Há um a inegável perm issividade social com relação ao
uso destes produtos. Há, m esm o, incentivo a que os jovens os
consum am , já que sua publicidade sem pre os associa a força,
coragem , charm e. Só m uito recen tem en te, a sociedade brasileira tom ou con sciên cia da gravidade do con sum o de m assa,
que atin ge faixas etárias cada vez m ais baixas, dos produtos
em pauta, tendo com eçado a alertar a população para as enfer16
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m idades que seu consum o provoca. Caberia cham ar a atenção
dos brasileiros tam bém para a alteração do estado de consciência, no sentido de que o uso constante do álcool, por exem plo,
não som ente pode provocar acidentes de trânsito com o, igualm en te, violên cia con tra outrem .
Os estudiosos da violên cia urban a n ão en con tram correlação positiva en tre desem prego e violên cia. Se, porven tura, já
a en con traram n o con texto de altas taxas de desem prego de
lon ga duração, n ão se tem con hecim en to disto. Para os estudiosos da violên cia de gên ero, da violên cia con tra m ulheres,
da violência dom éstica e da violência intrafam iliar, esta associação é clara, h aven do relatos de fun cion árias de albergues
para m ulheres vítim as de violência e seus filhos que dem onstram , com n úm eros, tal correlação.
O conceito de violência
Antes de dar prosseguim ento à análise, cabe discutir o conceito de violên cia. Os habitan tes do Brasil, e até estran geiros
que aqui vêm fazer turism o, saberiam m uito bem definir violência, pois ou foram diretam ente atingidos por algum a m odalidade dela ou têm , em suas fam ílias e/ ou em seu círculo de
am izades, algum caso a relatar. Os sequestros são frequentes,
com o tam bém o são hom icídios, latrocínios, am eaças de m orte, roubos, sendo a diferença entre furto e roubo a com ponent e violên cia , con t id a n est e ú lt im o, en q u a n t o n o fu r t o h á
som ente a subtração de dinheiro e/ ou outros objetos. As pessoas habituaram -se tan to com atos violen tos que, quan do algu ém é a ssa lt a d o e t em seu d in h eir o e seu s d ocu m en t os
furtados, dá-se graças a Deus pelo fato de a cidadã ou o cidadão
ter saído ilesa(o) da ocorrência. Assim , o entendim ento popular da violência apoia-se num conceito, durante m uito tem po,
e ainda hoje, aceito com o o verdadeiro e o único. Trata-se da
violên cia com o ruptura de qualquer form a de in tegridade da
vítim a: in tegr id ad e física, in tegr id ad e psíqu ica, in tegr id ad e
sexual, integridade m oral. Observa-se que apenas a psíquica e
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a m oral situam -se fora do palpável. Ainda assim , caso a violência psíquica enlouqueça a vítim a, com o pode ocorrer – e ocorre com certa frequência, com o resultado da prática da tortura
por razões de ordem política ou de cárcere privado, isolandose a vítim a de qualquer com un icação via rádio ou televisão e
de qualquer contato hum ano – , ela torna-se palpável. Com o o
ser h u m an o é gr egár io, os efeitos do isolam en to podem ser
trágicos. Mesm o não se tratando de efeitos tangíveis, são passíveis de m en suração. H á escalas psiquiátricas e psicológicas
destinadas a m edir as probabilidades de vir a vítim a a com eter
suicídio, a praticar atos violen tos con tra outrem , con sideran do-se, aqui, até m esm o anim ais assassinados com crueldade.
A vítim a de abusos físicos, psicológicos, m orais e/ ou sexuais
é vista por cien tistas com o in divíduo com m ais probabilidades de m altratar, sodom izar outros, enfim , de reproduzir, contr a ou tr os, as violên cias sofr idas, do m esm o m odo com o se
m ostrar m ais vuln erável às in vestidas sexuais ou violên cia física ou psíquica de outrem . Em pesquisa realizada em quase
todas as capitais de estados, no Distrito Federal e em m ais 20
cidades do estado de São Paulo, esta hipótese não foi provada.
Nesta in vestigação sobre violên cia dom éstica (SAFFIOTI , in édito), n en hum a in form an te, que fora vítim a de abuso sexual
de qualquer espécie, r evelou ten dên cia, seja de fazer outr as
vítim as, seja de m aior vuln erabilidade a ten tativas de abuso
contra si m esm a. Não se defende a postura de que abusos sexuais sejam in ócuos, n ão provocan do traum as de difícil cura.
Ao contrário, em outra pesquisa, esta sobre abuso incestuoso,
não se encontrou nenhum a vítim a resiliente (SAFFIOTI , 1992).
A r esiliên cia con stitui fen ôm en o m uito r ar o. São r esilien tes
pessoas capazes de viver terríveis dram as, sem , contudo, apresentarem um só indício de traum as, sendo, portanto, consideradas, por m eio da aplicação de testes e da observação de sua
con d u ta, absolu tam en te n or m ais. Na m en cion ad a pesqu isa,
assim com o n a vastíssim a literatura especializada in tern acion al, o abu so sexu al, sobr etu d o in cestu oso, d eixa fer id as n a
alm a, que san gram , n o in ício sem cessar, e, posteriorm en te,
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sem pre que um a situação ou um fato lem bre o abuso sofrido. A
m agn itude do traum a n ão guarda proporcion alidade com relação ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas
com êxito num grande núm ero de casos. Feridas da alm a podem , igualm en te, ser tratadas. Todavia, as probabilidades de
sucesso, em term os de cura, são m uito reduzidas e, em grande
parte dos casos, não se obtém nenhum êxito.
Dom inaram o século XX dois pensam entos: o de Marx e o de
Freud. Am bos, cada um a seu m odo e em seu cam po, questionaram agressivam ente as sociedades em que viveram . Produziram ideias e análises, por conseguinte, subversivas, legando
am bos às gerações posteriores patrim ôn ios culturais até hoje
valorizados. No caso de Freud, porém , um a parte desta herança tem produzido resultados extrem am en te deletérios às vítim as de abuso sexual, em especial do abuso in cestuoso. Para
Freud, e hoje para m uitos de seus seguidores, os relatos das
m u lh er es, qu e fr equ en tavam seu con su ltór io, sobr e abu sos
sexuais con tra elas perpetrados por seus pais eram fan tasias
derivadas do desejo de serem possuídas por eles, destron an do, assim , suas m ães. Na pesquisa realizada entre 1988 e 1992
(SAFFIOTI , 1992), n ão se en con trou um só caso de fan tasia. A
criança pode, e o faz, enfeitar o sucedido, m as sua base é real,
isto é, foi, de fato, m olestada por seu pai. Contudo, o escrito de
Freud tran sform ou-se em bíblia e a crian ça perdeu credibilidade. Trata-se, em sua m aioria esm agadora, de m ulheres, que
represen tam cerca de 90 % do un iverso de vítim as. Logo, os
hom en s com parecem com o vítim as em apen as 10 % do total.
De outra parte, as m ulheres agressoras sexuais estão entre 1%
e 3%, enquanto a presença m asculina está entre 97% e 99%. Na
pesqu isa sobr e abu so in cestu oso, já r efer ida, n ão se en con tr ou n en h u m gar oto com o vítim a. Por via de con sequ ên cia,
tam pou co h avia m u lh er es n a con d ição d e per petr ad or as d e
abuso sexual. É preciso, con tudo, pen sar que pais vitim izam
não apenas suas próprias filhas, com o tam bém seus filhos. Num
país tão m ach ista quan to o Brasil, este é um segredo m uito
bem guardado. Se a vizinhança souber, dirá que o destino da19
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quele garoto está selado: será hom ossexual, na m edida em que
foi pen etrado, fen ôm en o específico de m ulher. Se o dado in ter n acion al é d e 10 % d e m en in os sexu alm en te vitim izad os,
pode-se con cluir que, aqui, o fato ocorre, pelo m en os, n esta
proporção. O m achism o, n um a de suas facetas altam en te n egativas para os hom ens – e há m uitas – , oculta estas ocorrências, em vez de fazer face a elas e im plem en tar políticas que
visem , n o m ín im o, a sua drástica redução. Retom an do resultados da investigação m encionada, todos os agressores sexuais
eram hom ens e, entre eles, 71,5% eram os próprios pais biológicos, vin do os padrastos em segun do lugar e bem distan tes
dos pr im eir os, ou seja, r epr esen tan do 11,1% do u n iver so de
agr essor es. Em p equ en os p er cen tu ais, com p ar ecer am avós,
tios, prim os.
Com o a pesquisa foi con cluída em 1992, era pertin en te levantar a hipótese de estes dados já não corresponderem à realidade atual. A pertinência da hipótese reside na m udança da
com posição das fam ílias. Dada a facilidade com que se desfazem as uniões conjugais – legais ou consensuais – e a m esm a
facilidade com que cada m em bro do casal reconstitui sua vida
am or osa com ou tr as p essoas, as fam ílias com p ad r astos (e
m ad r astas) au m en tar am em n ú m er os absolu tos e r elativos.
Nada m ais justo, portanto, do que suspeitar que houvesse crescido o per cen tual de padr astos n o un iver so do abuso in cestuoso. Mais um a vez, os dados obtidos de casas-abrigo para
vítim as de violên cia con firm aram os obtidos n a in vestigação
realizada entre 1988 e 1992. O pai continua a ser o grande vilão, devoran do sua própria prole, con stituin do este fato um a
agravan te tan to pen al quan to psicológica.
O tabu do incesto
O pai biológico é o adulto m asculin o n o qual a crian ça (m en or de 18 an os) m ais con fia. Este fato respon de pela m agn itude e pela profun didade do traum a. Nas cam adas m ais bem
aquin hoadas, social e econ om icam en te falan do, o abuso obe20
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dece à r eceita da sedu ção: m aior aten ção par a aqu ela filh a,
m ais presen tes, m ais passeios, m ais viagen s etc. As técn icas
são bast an t e sofist icad as, avan çan d o len t am en t e n as car ícias, qu e p assam d a t er n u r a à lascívia. Mu it as vezes e d epen d en d o d a id ad e d a cr ian ça, esta n em sabe d iscer n ir en tr e u m e ou tr o tipo de car ícia, sen do in capaz de localizar o
m om en to da m udan ça. Como a sexualidade da mulher é difusa
por todo o corpo e a sexualidade infantil não é genitalizada, as
carícias percorrem toda a superfície de seu corpo, proporcionando prazer à vítim a. Posteriorm ente, recorrendo o adulto a
pomadas especiais, dilata o ânus e o reto da filha (ou filho), a fim
de preparar o caminho da penetração anal, pois a oral já ocorrera e também esta pr ovocar a pr azer n a m en in a. A pr ática da
cun n ilin gus é relatada pelas m en in as com o m uito prazerosa.
Nem t od a s a p r ecia m o fella t io. Aca b a , n o en t a n t o, sen d o
u m a u n an im id ad e en tr e as vítim as, u m a vez qu e obed ece à
lei d a r ecip r ocid ad e.
Depois de todos estes passos, que in tegram a in iciação da
crian ça n a sexualidade do adulto, vem a pen etração vagin al.
Alguns hom ens, assim que a m enina tem sua m enarca, ou prim eira m en struação, con trolam seu ciclo m en strual, só m an ten do relações sexuais com ela n os períodos estéreis. Outros
pr efer em adm in istr ar às filh as o an ticon cepcion al or al, cuidando para que elas o tom em todos os dias. Não se encontrou
n en hum caso de gravidez de m en in as perten cen tes às classes
m édias altas, nas quais é com um o pai ter educação superior.
Nas cam adas social e econ om icam en te desfavorecidas, o processo é rápido e brutal. O pai coloca um revólver, na m ais fina
das hipóteses, ou um a faca de cozinha junto à cam a ou sobre
ela, joga a m enina sobre o leito, rasga-lhe as roupas e a estupr a, am eaçan do-a de m or te, se gr itar , ou am eaçan do m atar
toda sua fam ília, se abrir a boca para con tar o sucedido a alguém . Não se pode negar que o pai instruído procede à iniciação sexual de sua filha de form a delicada, sem violência física
ou am eaças neste sentido. Sim plesm ente, pede à m enina para
não contar a ninguém , especialm ente a sua m ãe, “justificando”
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que esta sen tiria ciúm e, daí poden do derivar sérios con flitos.
No caso do pai pobre e de baixa escolaridade, vai-se diretam ente ao ato sexual, sem prolegôm enos de nenhum a espécie:
n ão h á carícias, n ão h á um avan çar paulatin o. Por estas razões, é brutal. Todavia, as con sequên cias, para a vítim a, são
certam en te opostas às esperadas pelo leitor.
Este poderia, acredita-se, im agin ar um a associação positiva
entre a brutalidade do pai na abordagem da m enina ou m enino
das cam adas sociais m en os favorecidas e a profun didade do
traum a causado em sua filha pelo estupro ou pela penetração
an al, n o caso do garoto. Um caso de abuso in cestuoso, n um a
fam ília pobr e, m as n ão m iser ável, r evelou qu e o m ar id o d e
um a sen hora, ten do esta levado para seu segun do casam en to
duas filhas de um a un ião an terior, foi capaz de estuprar, em
ordem cron ológica, a en teada m ais velha, a en teada m ais jovem , a própria filha. Em seguida, chegou a vez dos filhos. Fez
penetração oral e anal no m ais velho, no que sucedeu a este na
ordem dos nascim entos, e, finalm ente, no m ais novo, que apresen t ava r et ar d o m en t al, ou seja, agr avan t e p en al. Além d e
cunnilingus, fellatio, penetração anal e estupro, não se encontrou nenhum outro tipo de abuso nas cam adas desfavorecidas.
Em razão da sexualidade ser exercida de diferentes m aneiras,
segun do o m om en to histórico (a pederastia n a an tiga Aten as
n ão era o m esm o que o hom ossexualism o de hoje), o tipo de
sociedade, a classe social, a etnia, pode-se esperar que a abord agem “am or osa” n o abu so sexu al p er p etr ad o p elo h om em
rude e sem in strução seja igualm en te rude. E, de fato, é isto
que ocorre. Entretanto, e felizm ente, porque a pobreza atinge
a m aioria dos habitantes, esta “brutalidade” não produz traum as a ela proporcion ais. Se assim n ão fora, haveria m ais um
item negativo a ser incluído na cham ada cultura do pobre.
A m en in a pobre, sozin h a em casa com seu pai, n ão tem a
quem apelar. A presen ça da arm a bran ca ou de fogo reitera
perm an en tem en te as am eaças verbais. Ela n ão tem escapatória. En trar em luta corporal com seu pai só pioraria as coisas.
Prim eiro, n ão poden do m edir forças com um hom em adulto,
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p od er ia sair m u it o fer id a d aqu ela sit u ação. Segu n d o, e em
últim a in stân cia, poderia perder a vida n esta brin cadeira de
m au gosto. A rigor, n ão h avia saída. Se n ão h avia escapatór ia, ela é, in dubitavelm en te, vítim a e com o tal se con cebe e
defin e. Logo, n ão há razões para sen tir-se culpada. As m ulheres são trein adas para sen tir culpa. Ain da que n ão haja razões
ap ar en t es p ar a se cu lp abilizar em , cu lp abilizam -se, p ois vivem n um a civilização da culpa, para usar a lin guagem de Ruth
Ben edict (198 8 ). No caso aqui n arrado, porém , talvez a m en in a ain da n ão h ouvesse in trojetado a “n ecessidade” cristã de
se culpabilizar. Adem ais, salvou sua fam ília da m orte. Desta
sorte, esta m en in a n ão se vê com o culpada; vê-se com o vítim a. En tre as 63 vítim as estudadas, n en hum a delas, n as con d ições d a d escr it a, se cu lp abilizou . Dad as as con d ições d o
estupro, 11 delas tiveram filhos dos próprios pais. Não é raro
ouvir destes pais: “Don a, eu pus esta m en in a n o m un do, eu
criei ela, ela é m in ha. A sen hora acha que vou en tregar ela a
qu alqu er u m ? Não, ela é m in h a. Só n ão sei com o r egistr ar
a crian ça. Registra com o filho ou com o n eto?”. Das m ães, m as
sem un an im idade, ouve-se: “Don a, se eu posso aguen tar, por
que ela n ão pode m e ajudar a carregar este fardo?”. Esta resp osta vem d e m u lh er es socializad as p ar a “sofr er ” a r elação
sexual, destin ada à procriação, n ão para dela desfrutar, n ão
para dela extrair prazer, in depen den tem en te de ela resultar
n um a gravidez. Pen san do deste m odo, n ão se lastim a por n ão
haver sido capaz de proteger a filha das in vestidas sexuais de
seu próprio pai. Mais do que isto, a relação sexual é, para ela,
um far do tão pesado, que n ecessita do auxílio da filh a par a
carregá-lo vida afora. Outras m ães ten tam culpabilizar as filh as, pois, a seu ver, as m en in as seduziram seus pais. Pode,
portan to – e isto foi en con trado – , surgir o con flito en tre m ãe
e filh a; até m esm o a r uptur a da r elação. Todavia, a m en in a
n ão se vê com o culpada. Afin al, n ão foi ela que salvou toda
sua fam ília? Só se en con trou um caso de rejeição da crian ça
por parte de sua jovem m ãe. Em todos os dem ais, elas adoravam os filhos que tiveram com o fruto de estupro in cestuoso.
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H ouve um a que até fez o chá de bebê, quan do estava n o sétim o m ês de gravidez. Elas recusaram ofertas de aborto. Não
h avia, n aquela ocasião, h ospitais que realizassem os ch am ad os abor t os legais. Legais, p or qu e est avam p r evist os com o
atos n ão-cr im in osos, com o con tin u am , aliás, n o Código Pen al em vigor, de 1940 . Apen as sua parte geral sofreu alterações, a específica, n ão. Isto equ ivale a d izer qu e n ão h ou ve
n en h u m a m u d an ça n os t ip os p en ais. Afir m ou -se, an t er ior m en te, que n as cam adas sociais subprivilegiadas en con tram se cun n ilin gus, fellatio, pen etração an al e estupro. Even tualm en te, um pai m ais “sen sível” pod e fazer cer tas car ícias. A
possibilidade está aberta, em bora n ão se ten h a n en h um caso
para expor. A m en ção dos quatro atos sexualm en te abusivos
foi n ecessária em virtude de o Código Pen al referir-se à relaçã o sexu a l ocor r id a n o est u p r o com a exp r essã o “con ju n ção car n al”, com u m n a época par a d esign ar pen etr ação vagin a l. Assim , é er r ôn eo d izer -se q u e Pixot e (q u em n ã o se
lem bra do film e?) foi estuprado. Com o h om en s n ão têm vagin a, as ún icas pen etrações que podem sofrer são a oral e a
an al. Algu m as fem in ist as elabor ar am u m a p r op ost a d e r eform a da parte específica do Código Pen al, am plian do o con ceito de estupro, que passaria a in cluir os três tipos de pen etração: oral, an al e vagin al4 .
Retom ando-se a com paração do abuso incestuoso entre pobres e entre ricos, para sim plificar, há que dizer que, de outro
lado, está a m enina m im ada, acariciada, pensando estar o pai
Nesta sessão, trabalhamos: uma representante do CFEMEA, grupo que
atua junto ao legislativo federal nos assuntos pertinentes à causa feminista, a advogada Silvia Pimentel e eu, pelo fato de ter feito o curso de
Direito e de, como socióloga, ter estudado o abuso sexual e o abuso
incestuoso. Creio que solicitaram minha colaboração, sobretudo, pelo
fato de que distingo incesto de abuso incestuoso, e uma das questões
incidia exatamente na pergunta: deve-se ou não criminalizar o incesto?
Fui e sou contra pelas razões que se seguem. Se um rapaz e uma moça,
irmãos entre si, se apaixonarem um pelo outro, terão que enfrentar a
reprovação quase unânime da sociedade por haverem violado um dos
mais sérios tabus sociais. Se eles tiverem idades próximas, maioridade
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apaixon ado por ela e já n ão am an do sua esposa. Vê sua m ãe
com o sua com petidora, sua rival, dian te da qual ela, bem jovem , leva vantagens: sua beleza fresca é de lolita, sua pele não
tem rugas e, portanto, é acetinada. Na m edida em que sua m ãe
é con sider ada r ival, n ão pode se in teir ar dos fatos, que, em
casos sem elhantes a este, duram de sete a oito anos, podendo
ir m ais lon ge. Esta cr ian ça foi, cau telosa e gr ad ativam en te,
in troduzida n as artes do am or por seu próprio pai, provedor
tam bém de pr azer sexual. Tr ata-se, por con seguin te, de um
pai am ado. Entretanto, há a outra face da m oeda: com o nunca
r eagiu con tr a as p r ovocações d e seu p ai, com o n em sequ er
soube identificar o m om ento da transform ação da ternura em
libid in agem , colabor ou com o pai d u r an te tod o o pr ocesso.
Ain da que, a rigor, n ão ten ha n en hum a culpa, tam pouco respon sabilidade, n ão se vê com o vítim a, que realm en te é, m as
com o copartícipe. Disto deriva um a profun da culpa. Em bora
não haja sido, em nenhum m om ento, cúm plice de seu pai, sente-se com o tal e inim iga de sua m ãe. Sua culpa é proporcional
à delicadeza do processo de sedução utilizado por seu pai. Ela
sente-se a sedutora. Logo, seu pai foi sua vítim a. Obviam ente,
n en hum a das duas abordagen s con vém à crian ça. Em term os
de danos psíquicos e distúrbios sexuais posteriorm ente m anifestados, o abuso sexual via sedução é infinitam ente pior que a
brutalidade do pai m enos instruído e m enos m aneiroso.
Isto é im portante para que, m ais um a vez, não se caracterize
tudo que é m au com o integrante da cultura do pobre. Fulano
e realmente se amarem, não me sinto, nem como profissional, nem como
cidadã, no dever de defendê-los nem no de acusá-los. Sua relação é
par, um não tendo poder sobre o outro; e sua vontade é convergente.
Muito distinto disto é o abuso incestuoso: as idades são muito diferentes, o que traz consigo uma relação díspar, ou seja, atravessada pelo
poder. As partes encontram-se em posições muito diversas, uma tendo
autoridade sobre a outra, e não existe convergência de vontades. Países em que o incesto era considerado crime têm procedido no sentido
de descriminá-lo. Para citar apenas alguns: Estados Unidos, muitos países europeus e latino-americanos. O Equador, que tem uma lei especificamente sobre violência doméstica, descriminou o incesto.
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estu p r ou su a filh a, esp an ca r egu lar m en te su a m u lh er ? Isto
ocor r e n as favelas, n os cor tiços, n o m eio pobr e 5, diz-se. No
seio das cam adas abastadas, form a-se um a cum plicidade dos
m em bros da fam ília, estabelecen do-se o sigilo em torn o dos
fatos. O n om e da fam ília n ão pode ter m ácula. Con seguiu-se
descobrir um a única fam ília incestuosa. Chegou-se ao portão,
m as n ão foi possível ultr apassá-lo. As in for m ações dispon íveis foram facilitadas à pesquisadora por um a am iga de um a
das filhas. Esta filha sofria abusos sexuais de toda ordem , perp etr ad os p or seu p ai. Só con fiou seu segr ed o a esta am iga.
Em bora não haja dito nada explicitam ente, há indícios de que
o pai abusava sexualm ente de todos os filhos e filhas. Recebiaos, cada um de um a vez, em seu quarto, o que, por si só, é, no
m ínim o, estranho. Que o abuso ocorresse com todos os filhos
e filhas constitui um a hipótese, não inteiram ente infundada. A
con spiração do silên cio, todavia, im pediu a pesquisadora de
estudar esta fam ília.
O argumento de quem justifica, se não defende, a conduta de
agressores sexuais reside no tipo de sexualidade masculina, di-
Uma orientanda minha, cuja tese está praticamente pronta para a defesa, tem, entre suas entrevistadas (todas de classe média alta e alta), a
esposa de um juiz. Também em caso de violência doméstica, as mulheres mais bem aquinhoadas levam desvantagem. Em sua entrevista, a
espancada observa: como posso denunciá-lo, se a investigação deveria ser realizada por profissionais que o respeitam muito (ele é respeitadíssimo na cidade em que atua como profissional e vive num município
de cerca de 200 mil habitantes, na Bahia) e, em última instância, o caso
seria julgado por um colega seu? Quando esta moça, que já havia feito
mestrado, sob minha orientação, sobre violência contra mulheres das
camadas sociais menos favorecidas, procurou-me dizendo desejar continuar com o mesmo tema, eu lhe disse que os pesquisadores adoram
estudar pobres, porque é mais fácil, eles estão quase sempre abertos a
falar sobre o assunto (no caso de violência doméstica, quem fala são as
mulheres, os homens fogem; em minha pesquisa sobre abuso incestuoso, entrevistei vítimas, suas mães e outros parentes ou vizinhos conhecedores dos fatos; tentei arduamente entrevistar agressores, mas consegui falar com muito poucos e todos mentiram descaradamente), que o
difícil é estudar os ricos, já que, para não ter seu status abalado, seu
nome sujo, eles se fecham. Ela aceitou o desafio e, pelo que eu lhe disse
e ela verificou, o título da tese é O preço do silêncio.
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ferente da fem inina. Afirm am que a sexualidade da m ulher só
aflora quando provocada, e vários são os meios de fazê-lo, o que
é uma meia verdade. A mulher foi socializada para conduzir-se
com o caça, que espera o “ataque” do caçador. À m edida, n o
entanto, que se liberta deste condicionamento, passa a tomar a
iniciativa, seja no seio do casamento, seja quando deseja namorar um rapaz. Como o homem foi educado para ir à caça, para,
na condição de m acho, tom ar sem pre a iniciativa, tende a não
ver com bons olhos a atitude de mulheres desinibidas, quer para
tom ar a dian teira n o in ício do n am oro, quer para provocar o
homem na cama, visando a com ele manter uma relação sexual,
salvo no seio de tribos da juventude, pelo m enos das grandes
cidades, em que isto é um a prática corren te. Os con dicion amentos sociais induzem muitos a acreditar na incontrolabilidade
da sexualidade m asculin a. Se assim fora, ter-se-iam relações
sexuais, ou mesmo estupros, nas ruas, nos salões de dança, nos
restaurantes, nos cafés etc. Obviam ente, qualquer pessoa, seja
hom em ou m ulher, pode con trolar seu desejo, postergar sua
concretização, esperar o momento e o local apropriados para a
busca do prazer sexual. É evidente que a esm agadora m aioria
de homens e de mulheres atua desta maneira, mesmo porque a
sociedade é regida por numerosas normas. Não se trata de leis
com o as da Física, que ocorrem inexoravelm ente.
Quer Newton desejasse ou não que a m açã solta por ele caísse ao solo, ela cairia da m esm a form a. As regras sociais são
passíveis de transgressão e são efetivam ente violadas. No caso
em pauta, há o tabu do incesto, segundo Lévi-Strauss (1976),
d e car áter u n iver sal, em bor a o in ter d ito n ão r ecaia sem pr e
sobre as m esm as pessoas, quando se passa de um a sociedade a
outra. A un iversalidade do tabu do in cesto é con testada por
Meillassoux (1975). O tabu em pauta significa um a interdição,
um não à possibilidade socialm ente não-aceita de certas pessoas se casarem en tre si. Na sociedade ociden tal m odern a, o
interdito recai sobre parentes consanguíneos ou afins. No caso
específico do Brasil, o novo Código Civil, em vigor desde 11 de
janeiro de 20 0 3, afirm a:
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“Art. 1.521. Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
I I – os afins em linha reta;
I I I – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
I V – os irm ãos, unilaterais ou bilaterais, e dem ais colaterais,
até o terceiro grau in clusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VI I – o côn juge sobreviven te com o con den ado por hom icídio ou ten tativa de hom icídio con tra o seu con sorte”.
O projeto deste novo Código Civil tramitou no Congresso Nacion al, m uito len tam en te, duran te 26 an os, o que equivale a
dizer que ele já nasceu desatualizado. Conservou o impedimento do matrimônio entre primos (parentes de terceiro grau), interdito cuja violação havia ocorrido m ilhares de vezes, sen do
este tipo de união plenamente aceito pela sociedade. O tabu do
incesto é inteiram ente social, nada havendo nele de biológico.
Como a sociedade brasileira perdeu, ao longo de sua história, os
rituais de tran sm issão destas proibições, ela m esm a criou as
defesas sustentadoras do interdito. Trata-se de socializar as gerações imaturas na crença de que a prole de casais ligados entre
si pelo parentesco apresenta anomalias de maior ou menor gravidade. As estatísticas existen tes sobre m ás-form ações fetais,
mortes pré ou pós-natais não resistem à mais tênue crítica.
A h is t ó r ia d e o u t r a s s o cie d a d e s co n s t it u i u m r e cu r s o
extraordin ário em prol da n atureza exclusivam en te social do
tabu do in cesto. No H avaí, era prescrito, portan to m ais que
p er m itid o, o casam en to en tr e ir m ãos. O m esm o ocor r ia n o
Egito, prim eiro n o seio da realeza, dissem in an do-se posteriorm en te por toda a população. Os descen den tes de irm ãos casados en tr e si er am de m uito boa qualidade, n em pior n em
m elhor que as populações n as quais o in terdito recaía sobre
irm ãos. Todo in terdito, ao m esm o tem po em que é um n ão, é
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tam bém um sim . Sim plifican do, se irm ãs n ão são sexualm en te dispon íveis para seus irm ãos, o são para aqueles que n ão
são seus irm ãos. Eviden tem en te, n o caso brasileiro, ter-se-ia
que excluir todas as classes de in divíduos sobre quem pesa o
n ã o, p ar a afir m ar -se qu e tod os os d em ais são sexu alm en te
dispon íveis, ou seja, aqueles que carregam um sim . Isto equivale a dizer que, excluídas as classes de pessoas m en cion adas
n o Código Civil, todas as dem ais m ulh eres são sexualm en te
dispon íveis par a quaisquer h om en s.
N ão e sim residem no interior de todas as interdições. Para
ilustrar de m odo sim ples, pode-se tom ar as leis de trân sito.
Um a tabuleta m ostra o sím bolo de que cam inhões não podem
trafegar naquela via. O m esm o sím bolo significa sim para todos os dem ais veículos. Se, todavia, o m otorista de um cam in h ão passar por aquela rua, será n egativam en te san cion ado
pela sociedade. A pena poderá ser o pagam ento de um a m ulta,
pon tos n a carteira de habilitação etc. Quan to ao m atrim ôn io,
os que não podem se casar entre si podem infringir esta norm a
social. Com o, no civil, o casam ento será im possível, ele poderá concretizar-se pela união consensual, realizando-se ou não
no religioso. Isto ocorre m uito no Brasil, sobretudo nas áreas
de difícil acesso, lon ge do poder con stituído. En tretan to, n ão
consta que tais populações apresentem , por exem plo, elevado
percen tual de in divíduos m alform ados. En tão, para que con servar o tabu do in cesto, cuja tran sgressão, sobretudo en tre
ascendentes e descendentes, é altam ente reprovada pela sociedade, isto é, san cion ada de form a m uito n egativa? Para que
serve este tabu? O tabu do in cesto apresen ta alta relevân cia,
pois é ele que revela a cada um seu lugar na fam ília, em vários
outros grupos, enfim , na sociedade em geral.
Gênero, raça/etnia, poder
Rigorosam en te, a sociedade brasileira n ão tolera m esm o a
união entre ascendentes e descendentes. Caso haja filhos desta
união, as sanções negativas são ainda m ais severas. Um a hipó29
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tese bastan te plausível pode ser levan tada: a prole destes casais m ostraria à sociedade que n en hum argum en to biológico
apresenta con sistên cia. E a sociedade n ão pode abrir m ão de
argum en tos desta ordem , n a m edida em que já n ão tem recursos para resgatar as an tigas práticas de tran sm issão, sem
question am en tos, do in terdito. Isto posto, caberia um a pergun ta: por que se curram , n os presídios, estupradores de qualquer m ulher, em especial de crian ças? Se toda in terdição con tém um sim e um n ão, é pertin en te respon der a esta in dagação d a segu in te m an eir a: a estu p r ad a n ão er a sexu alm en te
dispon ível para o estuprador, pois, se o fora, n ão teria ocorrido o estupro. Mas por que n ão poderia sê-lo para os dem ais
pr esos? Tr ata-se, por con segu in te, d e in vasão d e ter r itór io,
pr oced im en to m u ito pouco tolerado, especialm en te por m achões e ban didos.
Ecologistas falam bastan te, e com pertin ên cia, sobre a n ecessidade de preservação do m eio am biente, da natureza. Não
se ou vem , p or ém , ecologist as p r eocu p ad os com a ecologia
m en tal n em com a ecologia social. Guattari, n um pequen o e
prim oroso livro (1990 ), trata da ecosofia, englobando este term o as três ecologias. Com efeito, supondo-se que o ser hum an o pudesse se abster de agredir a n atureza, que sen tido teria
este fato, já que não se poderia desfrutar de um a ecologia m ental, tam pouco de um a ecologia social, n um m un do pen etrado
p ela cor r u p ção, aí in clu so o cr im e or gan izad o, atr avessad o
pela am bição desm edida, levando filhos a m atarem seus pais,
com requin tes de crueldade, e vice-versa, in vadido pelo ódio
fundam entalista, disto decorrendo o terrorism o e as igualm ente fun dam en talistas reações a ele, en fim , n um m un do cujos
por os for am pr een ch idos por pr ojetos de dom in ação-explor ação de lon guíssim a dur ação, dos quais der ivam a fom e, o
m edo, a m orte prem atura, a ausência de solidariedade, a intolerância às diferenças? A este propósito, a resposta de hom ens
negros ao racism o, m orm ente dos que conquistaram um a posição social e/ ou econôm ica privilegiada, foi o casam ento com
m ulheres loiras. Se eles são socialm en te in feriores a elas em
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razão da cor de sua pele e da textura de seus cabelos, elas são
inferiores a eles na ordem patriarcal de gênero. Resultado: som a
zero. Transform aram -se em iguais, nas suas diferenças, transform adas em desigualdades. Ocorre que isto tem con sequên cias. Há um contingente de m ulheres negras que não têm com
quem se casar. Com o os n egros bran queados pelo din heiro se
casar am e ain d a se casam com br an cas, em fu n ção d e u m a
equ alização d as d iscr im in ações sofr id as, d e u m lad o, p elos
n egros, de outro, pelas m ulh eres bran cas, em fun ção de seu
sexo, n ão há com o se estabelecer tal igualdade en tre m ulheres n egras e hom en s bran cos, pois estes são “superiores” pela
cor de sua pele e pela textura de seus cabelos, sen do “superiores” tam bém em razão de seu sexo. Na ordem patriarcal de
gên ero, o bran co en con tra sua segun da van tagem . Caso seja
r ico, en con t r a su a t er ceir a va n t a gem , o q u e m ost r a q u e o
p od er é m a ch o, b r a n co e, d e p r efer ên cia , h et er os s exu a l
(SAFFIOTI , 198 7). A dem ografia repercute estes even tos, form ando-se nela um buraco: a ausência de hom ens para m ulheres n egras casadouras.
H á m ais um buraco dem ográfico a ser sen tido e deplorado
crescen tem en te. Nas guerras en tre gan gues do n arcotráfico,
na delinquência em geral, nos entreveros com a polícia, m orrem m uito m ais jovens de 17 a 25 anos que adultos. Que futur o, em ter m os m atr im on iais, ter ão as ad olescen tes d e h oje,
um a vez que as m ulheres costum am casar-se com hom ens m ais
velhos? Ou se inverte a situação, com o processo já em curso
de casam en tos en tre hom en s joven s com m ulheres bem m ais
velh as e pod er osas, ou estas joven s con for m am -se com su a
con dição de população casadoura exceden te. No fun do, parece que am bos, hom ens e m ulheres, casam -se com o poder. Se
esta h ipótese for verdadeira, é possível en con trar o h om em ser-hum ano e a m ulher-ser-hum ano em m eio a tanto poder?
Do ân gulo da sexualidade, os h om en s deveriam , n os casam en tos, ter idade in ferior à das m ulheres, um a vez que estas
podem ter vida sexual ativa enquanto durar sua própria vida,
con tan do o hom em com um tem po lim itado. Aliás, quan to à
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sexualidade, as m ulheres levam um a série de vantagens com parativamente aos homens. As mulheres, como não têm phallus 6 ,
têm sua sexualidade difusa por todo o corpo. Assim , falar em
zonas erógenas para as m ulheres não é correto, pois todo seu
corpo o é. Poder-se-ia tam bém afirm ar que o corpo das m ulheres é inteiram ente am or, na m edida em que erógeno deriva de
Eros, deus do am or, na m itologia grega. Enquanto m uitas m ulh eres são m ultiorgásm icas, n os h om en s este fen ôm en o n ão
ocorre. Em bora raro, o priapism o 7, visto com o um a superioridade dos m achos, na verdade não chega a ser nem sequer um a
van tagem . Se esta existir, perten ce às m ulheres vin culadas a
hom ens priápicos. Mais ainda, o prazer do orgasm o é registrad o em a p en a s u m p on t o d o cér eb r o m a scu lin o, ou seja , o
septum . Nas m ulheres, são três os pontos em que este registro
ocor r e: sep t u m , h ip ot á la m o e a m íg d a la 8 . Dir -se-ia qu e as
m ulheres desfrutam da triplicação do prazer do orgasm o. Adem ais, as m ulheres, quan do férteis 9 , são capazes de con ceber,
en qu an to aos h om en s só r esta in vejá-las. Aliás, n a obr a d e
Freud, a inveja do pênis, alim entada por m ulheres, porque este
órgão represen ta poder, assim com o a in veja da m atern idade
são con ceitos que gozam do m esm o estatu to teór ico. Tod avia, fala-se e escreve-se m uito m ais sobre o prim eiro que sobre o segun do. Se Freud foi o m aior m isógin o da história da
hum an idade, e o foi, seus seguidores o im itaram / im itam , de-
Phallus significa poder, sendo representado pelo pênis.
Priapismo consiste numa ereção dolorosa e permamente, não acompanhada de desejo sexual.
8
Não se trata das amígdalas da garganta, mas de uma porção do cérebro.
9
Há mais homens estéreis que mulheres. O sexismo, contudo, trata de
ocultar este fato, sendo responsável pela suspeita de que sempre se
pode imputar a esterilidade a elas. Tanto assim é que, nos casais sem
filhos, é sempre a mulher que se submete a exames de fertilidade. Só
depois que esta fica provada, o homem se dispõe a procurar um
andrologista ou urologista. Comprovada a esterilidade masculina, em
geral, a mulher é proibida de divulgar este resultado. A falha, no homem,
deve continuar oculta. Isto é puro machismo, porquanto a esterilidade
não impede o homem de ter excelente desempenho sexual. Como todo
preconceito, este também é baseado na ignorância.
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m on stran do fidelidade até n este pon to. A in veja da m atern idade é tão vigorosa que hom en s sexualm en te im poten tes pagam um preço m ais alto a prostitutas grávidas, som en te para
con versar com elas e alisar-lhes a barriga. Con tudo, a in veja
da m atern idade quase n ão se apresen ta em livros e em artigos, vive n a obscu r id ad e.
Não foi gratuita a alta con sideração devotada às m ulh eres
por parte dos hom ens, quando ainda não se conhecia a participação m asculina no ato da fecundação. Capazes de engendrar
um a nova vida, de produzir todos os nutrientes necessários ao
desen volvim en to dos fetos e, ain da, de fabricar in tern am en te
leite para alim en tar os bebês, eram con sideradas seres poderosos, m ágicos, quase divinos. Caíram do pedestal, quando se
tom ou con hecim en to da im prescin dível, m esm o que efêm era,
colaboração m asculin a n o en gen dram en to de um a n ova vida,
m as persistiu a inveja de dar à luz novas criaturas. No fundo,
os hom en s sabem que o organ ism o fem in in o é m ais diferen ciado que o m asculino, m ais forte, em bora tendo m enor força
física, capaz de suportar até m esm o as violências por eles perpetradas. Não ignoram a capacidade das m ulheres de suportar
sofrim en tos de ordem psicológica, de m odo in vejável. Talvez
por estas razões tenham necessidade de m ostrar sua “superioridade”, den otan do, assim , sua in ferioridade.
A gíria, perm eada desta ideologia sexista, revela bem isto. A
genitália fem inina apresenta m uito m ais sem elhança com um a
boca que a m asculina. Com o na ideologia está presente, necessariam ente, a inversão dos fenôm enos, é m uito frequente hom en s se van glor iar em d e h aver “com id o” fu lan a, belt r an a,
cicrana. Ora, a conform ação da vulva e da vagina perm ite-lhes
“com er”. Por que existe o m ito da vagina dentada? Por que há
m uitos hom ens, se não todos, com m edo de ter seus pênis decepados por esta vagin a devor ador a? Por que sen tem m edo
exat am en t e n o m om en t o d o or gasm o fem in in o, qu an d o os
m úsculos da vagin a se con traem n um m ovim en to que parece
visa r a o a p r ision a m en t o? En t ã o, n a gír ia m a ch ist a , q u em
“com e” quem ? Todos os elem entos foram oferecidos ao leitor,
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a fim de que ele possa responder a esta questão. Mais do que
isto, tais elem en tos con vidam os leitores a um a reflexão, visan do a con h ecer-se m elh or e, talvez assim , poderem con viver m ais prazerosam ente com suas parceiras. Mas tam bém se
oferecem elem entos à reflexão das leitoras. Elas poderão contar aos hom en s que a revelação de suas fraquezas os torn ará
m ais fortes, m ais sensíveis, m ais am orosos. Desta form a, eles
poderão perder o m edo, fator que con corre para a tran sform ação da agressividade, um a força propulsora m uito positiva, em agressão, ato tão destrutivo – e autodestrutivo – quanto
devastador . Além disto, com o se acr edita qu e o em pobr ecim en to da sexualidade m asculin a foi historicam en te produzido, tanto o hom em quanto a m ulher podem trabalhar no sentido da recuperação de um a sexualidade m ais rica, espalhada
por todo o corpo, abrin do ele m ão de seu poder em face das
m ulh er es à m edida que o pên is per de im por tân cia, ou seja,
que sua sexualidade deixa de se concentrar neste órgão. Nem
hom ens nem m ulheres têm qualquer coisa a perder com experiências deste tipo. Têm , de outra parte, m uito a ganhar, caso o
resgate da sexualidade m asculin a seja com pleto.
A ilustração, feita por m eio da gíria, a propósito de um a ideologia sexista que esconde um a desvantagem m asculina, transform an do-a em van tagem , servirá para m ostrar que, em toda
ideologia, seja m achista, seja étnico-racial, ou ainda de classe
social, está sem pre presente a inversão do fenôm eno. Isto não
é apenas um detalhe, m as o núcleo duro da ideologia. Portanto, é in teressan te retê-lo, um a vez que todos os m em bros de
um a sociedade com o a brasileira con vivem com tais falácias,
acreditando nelas com o verdades. Mais do que isto, cada um a
sua m aneira é portador destas ideologias.
Obviam ente, os hom ens gostam de ideologias m achistas, sem
sequer ter noção do que seja um a ideologia. Mas eles não estão
sozinhos. Entre as m ulheres, socializadas todas na ordem patr iar cal d e gên er o, qu e atr ibu i qu alid ad es positivas aos h om ens e negativas, em bora nem sem pre, às m ulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias dom inantes
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de gênero, ou seja, poucas m ulheres questionam sua inferioridade social. Desta sorte, tam bém há um n úm ero in calculável
de m ulheres m achistas. E o sexism o não é som ente um a ideologia, reflete, tam bém , um a estrutura de poder, cuja distribuição é m uito desigual, em detrim ento das m ulheres. Então, poder-se-ia perguntar: o m achism o favorece sem pre os hom ens?
Par a fazer ju stiça, o sexism o pr eju dica h om en s, m u lh er es e
suas relações. O saldo n egativo m aior é das m ulheres, o que
n ão deve obn ubilar a in teligên cia daqueles que se in teressam
pelo assu n to da dem ocr acia. As m u lh er es são “am pu tadas”,
sobretudo n o desen volvim en to e uso da razão e n o exercício
do poder . Elas são socializadas par a desen volver com por tam en tos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os hom en s, ao con t r ár io, são est im u lad os a d esen volver con d u t as agr essivas,
perigosas, que revelem força e coragem . Isto con stitui a raiz
de m uitos fenôm enos, dentre os quais se pode realçar o fato de
seguros de autom óveis exclusivam en te dirigidos por m ulh eres custarem m enos, porque, em geral, elas não usam o carro
com o arm a, correm m enos e são m ais prudentes.
Mas há um sem -núm ero de fatores prejudiciais aos hom ens.
Para ilustrar, tom a-se a situação em pregatícia no Brasil atual,
sob pena de reiteração. Há cidades, com o São Paulo, em que a
taxa de desem prego já ultrapassou, em certo m om ento, os 20 %
da força de trabalho. Além de se tratar de um a proporção insusten tável, há m uito desem prego de lon ga duração. Isto repercute em toda a população, de form a negativa. Os hom ens,
contudo, são os m ais afetados, na m edida em que sem pre lhes
coube prover as necessidades m ateriais da fam ília. E este papel de provedor constitui o elem ento de m aior peso na definição da virilidade. H om en s que experim en tam o desem prego
por m uito tem po são tom ados por um profundo sentim ento de
im potên cia, pois n ão h á o que eles possam fazer. Além de o
sen tim en to de im potên cia ser gerador de violên cia, pode resu ltar tam bém em im p otên cia sexu al. H á h om en s qu e ver balizam preferir m orrer a ficar sexualm ente im potentes. Nem
n este caso se perm ite ao h om em ch orar. Isto con siste n um a
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“am pu tação”, pois h á em oções e sen tim en tos capazes d e se
exp r essar som en t e p elo ch or o. Pesqu isas já d em on st r ar am
(CH OMBART DE LAUWE , 1964) que glân dulas lacrim ais de hom ens sofrem o processo de atrofia, por desuso.
Se um a m ulher for abordada por um hom em seja para sair,
seja para dançar, ela pode recusar, pois o jogo é o da caça e do
caçad or . Se, en tr etan to, u m h om em for abor d ad o p or u m a
m ulher com as m esm as intenções, e ele não se interessar por
ela, recusando o convite, im ediatam ente é alcunhado de “m aricas”. Pensando num a situação m ais séria, m as não incom um ,
rapaz e m oça num m otel, e ele, por estar estressado, excessivam en te can sado, triste em virtude de um even to qualquer,
não conseguir ter um a ereção duradoura, sente-se coberto de
ver gon h a. Mesm o qu e a m oça seja com pr een siva e lh e diga
qu e ist o ocor r e com t od os os h om en s, o abor r ecim en t o d o
rapaz é en orm e. Por quê? Porque h om em n ão falh a, ou m elhor, não tem o direito de falhar num a situação com o a figurada, já que representa a força, quase a perfeição. Não é fácil ser
hom em . Se há um a tarefa perigosa a ser realizada, por um grupo sexualm ente m isto, é sem pre um hom em o escolhido para
fazê-la. Se tiver bom gosto seja para se vestir, seja para decorar sua casa, não é verdadeiram ente hom em , fica no lim bo dos
prováveis hom ossexuais. Se é sen sível, é efem in ado.
Esta situação não é conveniente nem para hom ens nem para
m ulheres. Segundo J ung (1992), tanto hom ens quanto m ulheres são dotados de anim us e anim a, sendo o prim eiro o princípio m asculino e a segunda, o princípio fem inino. O ideal seria
que am bos fossem igualm en te desen volvidos, pois isto resultaria em seres hum anos bem equilibrados. Todavia, a sociedade estim ula o hom em a desen volver seu an im us, desen corajando-o a desenvolver sua anim a, procedendo de m aneira exatam ente inversa com a m ulher. Disto decorrem , de um a parte,
hom ens prontos a transform ar a agressividade em agressão; e
m ulheres, de outra parte, sensíveis, m as frágeis para enfrentar
a vid a com p etitiva. O d esequ ilíbr io r esid e ju stam en te n u m
anim us atrofiado nas m ulheres e num a anim a igualm ente pouco
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desenvolvida nos hom ens. Sendo o núcleo central de anim us o
poder, tem -se, n o terren o político, h om en s aptos ao seu desem pen ho, e m ulheres n ão-trein adas para exercê-lo. Ou seja,
o patriarcado, quando se trata da coletividade, apoia-se neste
desequilíbrio resultan te de um desen volvim en to desigual de
anim us e de anim a e, sim ultaneam ente, o produz. Com o todas
as pessoas são a história de suas relações sociais, pode-se afirm ar, da perspectiva sociológica, que a im plantação lenta e grad u al d a p r im azia m ascu lin a p r od u ziu o d esequ ilíbr io en tr e
anim us e anim a em hom ens e em m ulheres, assim com o resultou deste desequilíbrio.
Ora, a dem ocracia exige igualdade social. Isto n ão sign ifica
que todos os socii, m em bros da sociedade, devam ser iguais.
Há um a grande confusão entre conceitos com o: igualdade, diferença, desigualdade, identidade. Habitualm ente, à diferença
con t r ap õe-se a igu ald ad e. Con sid er a-se, aqu i, er r ôn ea est a
concepção. O par da diferença é a identidade. J á a igualdade,
con ceito d e or d em política, faz par com a d esigu ald ad e. As
id en t id ad es, com o t am bém as d ifer en ças, são bem -vin d as.
Num a sociedade m ulticultural, n em deveria ser de outra form a. Lam entavelm ente, porém , em função de não se haver alcançado o desejável grau de dem ocracia, há um a intolerância
m uito gran de em relação às diferen ças. O m ais preocupan te
são as gerações m ais jovens, cujos atos de crueldade para com
ín dios, sem teto, h om ossexuais revelam m ais do que in tolerân cia; dem on stram rejeição profun da dos n ão-idên ticos. As
desigualdades constituem fontes de conflitos, em especial quand o tão abissais com o n o Br asil. Em casos com o este, e eles
existem tam bém em outras sociedades, as desigualdades traduzem verdadeiras contradições, cuja superação só é possível
quando a sociedade alcança um outro estado, negando, de facto e de jure, o status quo. Neste estágio superior, não haverá
m ais as contradições presentes no m om ento atual. No entanto, podem surgir outras no processo do devir histórico. Num a
sociedade com o a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças/ etnias em interação e de classes sociais, o pensa37
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m en to, refletin do estas subestruturas an tagôn icas, é sem pre
parcial. O próxim o capítulo focalizará exatam en te o con hecim en to, em su a con d ição d e social. Em ou tr os ter m os, tod o
con h ecim en to é social.
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2. Descobertas
da área
das perfumarias
H á vár ias taxion om ias d as ciên cias. Or a são classificad as
em ciên cias n aturais, ciên cias biológicas e ciên cias hum an as;
ora se reduzem a ciên cias da n atureza e ciên cias do espírito;
ora, ain da, se dividem em ciên cias n aturais e exatas, de um
lado, e ciên cias sociais, de outro; ou, en tão, em ciên cias duras e hum an idades. Os cien tistas que acreditam n a n eutralidade das ciên cias duras e n o com prom etim en to político-ideológico das ciên cias h u m an as e sociais ain da n ão com pr een deram o que é ciên cia. Por esta razão, se referem às ciên cias
hum an as e sociais, pejorativam en te, com o perfum arias. Tais
estudiosos podem receber vários n om es: bon s cien tistas, verd a d eir os cien t ist a s, m a u s cien t ist a s, cien t ist a s p r econ ceituosos. Parece que um a m an eira n ão-agressiva de den om in álos poder ia ser cien tistas sem visão plan etár ia ou cien tistas
d e p ou cas leitu r as, a fim d e evitar o ter m o ign or an te, p ois
n en hum a pessoa, por m ais culta que seja, dom in a o acervo de
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d escob er t a s e in ven ções, com o t a m b ém d e h ip ót eses e d e
den ún cias, acum ulado por acadêm icos e n ão-acadêm icos, ao
lon go d e sécu los d o exer cício d o p en sar , d o exp er im en t ar ,
do observar, en fim , do pesquisar.
A própria Física, ciên cia dura por excelên cia, por m eio de
Capra 10 (1982; 1983), está contribuindo, e m uito, para pôr em
questão os fundam entos da ciência clássica, oficial, de caráter
restrito. A história, sobretudo da Segunda Guerra Mundial, está
repleta de exem plos con cretos do en gajam en to político-ideológico das cham adas ciências duras. O diálogo entre Bohr, físico dinam arquês, e Heisenberg, físico alem ão, em Copenhague,
durante a guerra, em plena corrida para a construção da bom ba atôm ica, e as atitudes an típodas de cada um em face do
outro revelam o com prom etim en to político-ideológico da Física, considerada ciência neutra, portanto oposta às perfum arias. Não há neutralidade em nenhum a ciência, seja dura, seja
perfum aria. Todas, absolutam ente todas, são fruto de um m om en to h istór ico, con ten d o n u m er osas con ju n tu r as, cu ja in tervenção, em qualquer cam po do conhecim ento, é cristalina.
Não o é, certam ente, para qualquer olhar; só para o olhar crítico. Na Din am arca ocupada pelos n azistas, Bohr aliou-se ao
grupo de Los Álam os, nos Estados Unidos, que trabalhava inten sam en te para con struir a bom ba atôm ica em tem po hábil
de m atar cerca de 150 m il pessoas no J apão e deixar o am biente con tam in ado com radioatividade. H eisen berg, trabalhan do
n um projeto sem elh an te, n as barbas da Gestapo, verdadeiro
“Fritjof Capra recebeu seu Ph.D. na Universidade de Viena e realizou
pesquisas sobre Física de alta energia em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos. [...] Ele é o autor de O tao da física, um bestseller internacional que vendeu meio milhão de exemplares e foi traduzido
em muitas línguas.” “O futuro de Capra ainda não começou. Ao divulgar
uma mescla de ciência no seu sentido mais restrito e de pesquisa ‘alternativa’, ele obriga os cientistas a fazerem com que ele aconteça, isto é,
a subverter a ciência mecânica, reducionista e dura numa visão de
sistemas científicos suaves e orgânicos” (publicado por Los Angeles
Times.) Ambos os excertos estão publicados na primeira página de O
ponto de mutação.
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panóptico 11, utilizava-se de técnicas dilatórias, a fim de atrasar
a construção da bom ba, não a tornando disponível em tem po
hábil. Bohr ganhou a briga e a guerra, colaborando para a carnificina. A Heisenberg coube a autoria da form ulação do princípio da in certeza, que tan ta utilidade tem dem on strado em
todos os cam pos do con hecim en to.
Bem an tes de H eisen berg, n o século XIX, Karl Marx (1946;
19 51; 19 53; 19 57; 19 6 3a ; 19 6 3b ; 19 70 ) h a via for m u la d o o
m esm o p r in cíp io, m ostr an d o ten d ên cias, m as d eixan d o esp aço p ar a o im p on d er ável. Est e even t o n ão t eve r ep er cu ssão quan to à in certeza que preside o desen rolar dos acon tecim e n t o s . Ao co n t r á r io , M a r x é , a in d a h o je , t a ch a d o d e
d et er m in ist a p or a q u eles q u e ler a m su a ob r a com ca t egorias cartesian as (com a fin alidade de situar o leitor, Descart es viveu d e 1596 a 1650 , t en d o sid o, p or con segu in t e, u m
p en sad or d o sécu lo XVII ). Ad em ais, p or qu e se d ever ia alim en t ar qu alqu er p er sp ect iva d e r ep er cu ssão p osit iva, se o
que in teressava ao status quo era atacá-lo, a fim de preserva r a s d e s igu a ld a d e s s o cio e co n ô m ica s , q u e m a n t in h a m
in tactos os lu gar es sociais d e cad a u m ? Os p r ivilégios, afin al, n ão iam ceder espaço aos con h ecim en tos revelados por
um a obra da área das perfum arias.
Estudando a história da violência nas prisões, em Vigiar e punir (1977),
p.173-199, Foucault vale-se da imagem do panóptico. Na Ilha da Juventude, em Cuba, foi preservado um presídio do governo de Fulgencio
Baptista, anterior à vitória da revolução, em 1959, para que todos pudessem observar o panóptico. Trata-se de um edifício circular, mais
estreito na sua parte superior, quase em forma de cone, com uma única
porta para o exterior. As portas de todas as celas dão para o interior do
prédio e, no alto, um único guarda é suficiente para vigiar um grande
número de prisioneiros, sem que estes possam saber em que momento
são observados. Esta imagem adequa-se à descrição da vigilância
exercida sobre as mulheres ou sobre trabalhadores ou, ainda, sobre
negros. As categorias sociais contra as quais pesam discriminações
vivem, imageticamente falando, no interior de um enorme panóptico – a
sociedade – na medida em que sua conduta é vigiada sem cessar, sem
que elas o saibam. Isto é um controle social poderoso, pois a introjeção
das normas sociais por mulheres funcionam como um panóptico. Desta
sorte, os maridos não têm com que se preocupar.
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Capr a, n a Física, m as extr apolan do-a, tem desem pen h ado
papel sem elhante ao de algum as fem inistas, cujo com bate incan sável à razão cartesian a tem produzido efeitos positivos.
Evelyn Fox Keller , bióloga n or te-am er ican a, descr eveu um a
trajetória profissional bastante inusual e interessante. Na instituição em que trabalhava com o bióloga, fazia pesquisas em
colaboração com um colega. Seu m arido, professor un iversitário, teve seu an o sabático, decidin do aproveitá-lo para trabalhar em Berkeley, em pesquisas de seu cam po. Com o costum a
acontecer, a m ulher acom panhou o m arido, levando os filhos.
Lá se foi a fam ília viver durante um ano no centro nervoso, em
perm anente ebulição, do fem inism o. Não dem orou nada para
qu e Keller en tr asse em con tato com fem in istas m ilitan tes e
com a literatura fem inista, toda da área das perfum arias. Tratava-se de obras de Antropologia, de Ciência Política, de Filosofia , d e P sicologia , d e Sociologia e d a s d em a is ciên cia s
hum an as e sociais. Um a bióloga, que con tin uava a trabalh ar
em sua profissão com os resultados dos experim en tos en viados por seu colega, len do obras fem in istas opostas ao cartesian ism o – e o atacan do – , com eça a question ar os alicerces
da ciên cia que praticava. Daí veio o passo que a levaria a question ar as bases de todas as ciên cias cartesian as 12 . A obra dest a b ió lo ga fe m in is t a é m u it o e xt e n s a , h a ve n d o - s e , a q u i,
realçado o que pareceu m ais in teressan te ao leitor. Ela con tin ua trabalhan do em biologia, m as in corporan do o que a socied a d e colocou n os gen es d os in d ivíd u os. Rigor osa m en t e,
qu an d o escr eve sobr e biologia, situ a-se n a in ter seção en tr e
est e cam p o d o con h ecim en t o e as ciên cias sociais: “[...] os
gen es car r egam u m a en or m e ‘bagagem h istór ica’” (KELLER ,
20 0 2, p. 136), o que, de certo m odo, iron iza o estar dalh aço
r ealizado em vir tu de do sequ en ciam en to do gen om a h u m an o, p ois as com bin ações gen ét icas são aleat ór ias e, obvia-
A trajetória de Keller foi sumariada por ela própria, estando publicada
na revista Daedalus, presente nas referências.
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m en te, depen dem da história de vida de cada in divíduo. Toda
e qu alqu er ciên cia é, p or con segu in te, con h ecim en to social
(LONGINO , 1996). Sejam den om in adas ciên cias duras, sejam n o perfum arias, o con h ecim en to cien tífico reflete o m om en to h istór ico, social, político de sua pr odução.
A mulher brasileira nos espaços público e privado
Foi n esta perspectiva que a Fun dação Perseu Abram o, valendo-se de dados secundários, sobretudo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( FIBGE ), tam bém fez
trabalho de cam po, em 20 0 1, coligin do in form ações em todo
o país e, assim , descrevendo o perfil das brasileiras, com o tam bém detectan do as atividades desem pen hadas e sofridas por
elas, por m eio de entrevistas. Trata-se, pois, de um a investigação, p r ed om in an tem en te, sobr e v iolên cia con tr a m u lher es.
Às in form ações coletadas pela Fun dação deu-se o título de A
m ulher brasileira nos espaços público e privado. A perspectiva aqui adotada foi explanada no início deste capítulo. Aliás, o
p r óp r io in t er esse p ela t em át ica já r evela u m com p r om isso
político-ideológico com ela. Na verdade, a história de vida de
cada pessoa en con tra-se com fen ôm en os a ela exteriores, fenôm eno denom inado sincronicidade por J ung, e que perm ite
afirm ar: n in guém escolh e seu tem a de pesquisa; é escolh ido
por ele. Se, porventura, for necessário utilizar dados de outras
fon tes, m en cion ar-se-ão as origen s das in form ações. Não haverá referência sem pre que as inform ações utilizadas forem da
Fun dação Perseu Abram o.
As brasileiras valorizam bastan te a liberdade con quistada,
porquan to em resposta à pergun ta “Com o é ser m ulher hoje?”
39 % r essalt ar am su a in ser ção n o m er cad o d e t r abalh o e a
in d ep en d ên cia q u e ist o lh es con fer e; 3 3 % r efer ir a m -se à
liber d ad e d e agir segu n d o seu d esejo e, d est a sor t e, p od er
tom ar decisões; apen as 8 % m en cion aram a con quista de direitos políticos, o que é verdadeiro desde a Con stituição Feder al de 198 8 , e a igualdade de dir eitos em r elação aos h o43
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m en s. Esta resposta n ão foi n uan çada, pois, segun do a Carta
Magn a, assim com o de acor do com a legislação in fr acon stitu cion al, a igu ald ad e existe. O p r oblem a r esid e n a p r ática,
in stân cia n a qual a igualdade legal se tran sform a em desigualdade, con tra a qual tem sido sem trégua a luta fem in ista. Na
caracterização do ser m ulher tam bém são apon tadas tarefas
tr ad icion ais, estan d o 17% n a valor ização d estes d ever es e a
m esm a proporção (17%) em sua depreciação. A especificação
dos papéis tr adicion ais, en tr etan to, apon tar am tão-som en te
o lad o n egativo d o ser m u lher , 4% r eclam an d o d o p eso d a
r espon sabilid ad e n a cr iação d os filh os e 3% d en u n cian d o a
falta d e au ton om ia em vir tu d e d as r estr ições im p ostas p or
seu s m ar idos. A du pla jor n ada, som an do-se os ser viços dom ésticos com o trabalho assalariado, é den un ciada com o n egativa por 11% das in vestigadas. Se este últim o percen tual já
den ota baixo n ível de in satisfação, pior ain da ocorre quan do
apen as 7% das in terrogadas m an ifestam seu desagrado com o
desn ível de salários en tre hom en s e m ulheres, 5%, com relação a su a in fer ior id ad e d ian te d os elem en tos m ascu lin os, e
tão-som en te 2% p er cebem qu e são m ais vu ln er áveis à violên cia qu e os m ach os. Ist o r evela a n ecessid ad e d e t or n ar
ain da m ais visíveis as várias m odalidades de violên cias praticadas con tra m ulh eres, em especial a violên cia dom éstica.
O conceito de gênero
A exp r essão violên cia d om ést ica cost u m a ser em p r egad a
com o sinônim o de violência fam iliar e, não tão raram ente, tam bém de violência de gênero. Esta, teoricam ente, engloba tanto
a violência de hom ens contra m ulheres quanto a de m ulheres
con tra h om en s, um a vez que o con ceito de gên ero é aberto,
sen d o este o gr an d e ar gu m en to d as cr íticas d o con ceito d e
patriarcado, que, com o o próprio nom e indica, é o regim e da
dom in ação-explor ação das m ulh er es pelos h om en s. Par a situar o leitor, talvez convenha tecer algum as considerações sobre gên ero. Este con ceito n ão se resum e a um a categoria de
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an álise, com o m uitas estudiosas pen sam , n ão obstan te apresen tar m uita utilidade en quan to tal. Gên ero tam bém diz respeito a um a categoria histórica, cuja investigação tem dem andado m uito in vestim en to in telectual. En quan to categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias: com o
apar elh o sem iótico (LAURETIS , 198 7); com o sím bolos cu ltu rais evocadores de representações, conceitos norm ativos com o
grade de in terpretação de sign ificados, organ izações e in stituições sociais, iden tidade subjetiva (SCOTT, 198 8 ); com o divisões e atr ibu ições assim étr icas de car acter ísticos e poten cialidades (F LAX, 1987); com o, num a certa instância, um a gram ática sexual, regulando não apenas relações hom em – m ulher,
m as t am bém r elações h om em – h om em e r elações m u lh er –
m u lh er (S AFFI OTI , 19 9 2, 19 9 7b; S AFFI OTI e ALMEI DA, 19 9 5)
etc. Cada fem in ista en fatiza determ in ado aspecto do gên ero,
havendo um cam po, ainda que lim itado, de consenso: o gênero é a construção social do m asculino e do fem inino.
O con ceito de gên ero n ão explicita, n ecessariam en te, desigualdades en tre h om en s e m ulh eres. Muitas vezes, a h ierarquia é apen as presum ida. H á, porém , fem in istas que veem a
referida hierarquia, in depen den tem en te do período histórico
com o qual lidam . Aí reside o grande problem a teórico, im ped in d o u m a in ter locu ção ad equ ad a e esclar eced or a en tr e as
adeptas do conceito de patriarcado, as fanáticas pelo de gênero e as que trabalham , con sideran do a história com o processo, adm itin do a utilização do con ceito de gên ero para toda a
h istór ia, com o categor ia ger al, e o con ceito d e p a tr ia r ca d o
com o categor ia específica d e d eter m in ad o per íod o, ou seja,
para os seis ou sete m ilênios m ais recentes da história da hum an id ad e (LERNER , 198 6; J OH NSON , 1997; S AFFIOTI , 20 0 1).
Em geral, pensa-se ter havido prim azia m asculina no passado
rem oto, o que sign ifica, e isto é verbalizado oralm en te e por
escrito, que as desigualdades atuais entre hom ens e m ulheres
são resquícios de um patriarcado n ão m ais existen te ou em
seus últim os estertores. De fato, com o os dem ais fen ôm en os
sociais, tam bém o patriarcado está em perm an en te tran sfor45
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m ação. Se, na Rom a antiga, o patriarca detinha poder de vida e
m orte sobre sua esposa e seus filhos, hoje tal poder não m ais
existe, n o plan o de jure. En tretan to, hom en s con tin uam m atan d o su as par ceir as, às vezes com r equ in tes d e cr u eld ad e,
esquartejan do-as, atean do-lhes fogo, n elas atiran do e as deixan do tetraplégicas etc. O julgam en to destes crim in osos sofr e, é óbvio, a in fluên cia do sexism o r ein an te n a sociedade,
que determ ina o levantam ento de falsas acusações – devassa é
a m ais com um – contra a assassinada. A vítim a é transform ada
rapidam en te em ré, procedim en to este que con segue, m uitas
vezes, absolver o verdadeiro réu. Durante longo período, usava-se, com êxito, o ar gum en to da legítim a defesa da h on r a,
com o se esta não fosse algo pessoal e, desta form a, pudesse ser
m an chada por outrem . Graças a m uitos protestos fem in istas,
tal tese, sem fundam ento jurídico ou de qualquer outra espécie, deixou de ser utilizada. O percentual de condenações, contudo, situa-se aquém do desejável. O cum pr im en to da pen a
con stitui assun to de pior im plem en tação. O bom com portam en to n a prisão pode reduzir o cum prim en to da pen a a um
terço, até a um sexto do estabelecido, o que não é adm issível
para quem deseja ver esta prática extirpada da sociedade ou,
pelo m en os, drasticam en te reduzida.
Apresen tan do baixa cultura geral e ín fim a capacidade crítica, a m aioria das brasileiras pode ser en quadrada n a categor ia con ser v a d or a s, ain d a sep ar an d o m u lh er es fem in in as
de m ulheres fem in istas, com o se estas qualidades fossem m utuam en te exclusivas. Isto dificulta a dissem in ação das teses
fem in istas, cu jo con teú d o pod e ser r esu m id o em igu ald ad e
social para am bas as categorias de sexo. Por con seguin te, a
m aior parte das m ulheres m an tém atitudes con trárias a ações
afir m ativas gover n am en tais, qu e pod er iam con tr ibu ir gr an dem en te para o avan ço das tran sform ações sociais desejadas
pelos defen sores dos direitos hum an os, n eles in clusa a m etade fem in in a da população. A h istór ia r evela que as gr an des
cau sas, ben éficas esp ecialm en te aos con tin gen tes d iscr im in ados e a quase todos os dem ais, obtiveram sucesso, apesar
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de terem sido con duzidas por pequen as m in orias. E as brasileiras têm razões de sobra para se opor ao m achism o rein an te em tod as as in stitu ições sociais, p ois o p a t r ia r ca d o n ão
abr an ge ap en as a fam ília, m as atr avessa a socied ad e com o
um todo. Não obstan te o desân im o abater certas fem in istas
lu t ad or as, qu an d o assist em a d et er m in ad os com p or t am en t os d e m u lh er es alh eias ao sexism o, vale a p en a levar est a
luta às últim as con sequên cias, a fim de se poder desfrutar de
u m a ver d ad eir a d em ocr acia.
Violência contra as mulheres
Os dados de campo demonstram que 19% das mulheres declararam, espontaneamente, haver sofrido algum tipo de violência
da parte de homens, 16% relatando casos de violência física, 2%
de violência psicológica, e 1% de assédio sexual. Quando estimuladas, no entanto, 43% das investigadas admitem ter sofrido
violência sexista, um terço delas relatando ter sido vítim as de
violên cia física, 27% revelan do ter vivido situações de violên cia psíquica, e 11% haver experim entado o sofrim ento causado
por assédio sexual. Trata-se, pois, de quase a metade das brasileiras. Os 57% restantes devem também ter sofrido alguma modalidade de violên cia, n ão as con sideran do, porém , com o tal.
Uma mulher pode sair feliz de um posto público de saúde, tendo
esperado quatro horas na fila, estado dois minutos na presença
do m édico e “gan ho” a receita de um m edicam en to, que seu
poder aquisitivo não lhe perm ite adquirir. Outra poderá considerar este fenôm eno um a verdadeira violência. Assim , o m esmo fato pode ser considerado normal por uma mulher e agressivo por outra. Eis por que a autora deste livro raramente adota o
conceito de violência com o ruptura de integridades: física, psicológica, sexual, moral. Definida nestes termos, a violência não
encontra lugar ontológico 13 . É preferível, por esta razão, sobre-
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Mais adiante esclarecer-se-á este conceito.
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tudo quando a modalidade de violência mantém limites tênues
com a chamada normalidade, usar o conceito de direitos hum anos. Ainda que seja recente sua defesa, mormente para mulheres, já se consolidou um pequeno corpo de direitos universais,
ou seja, internacionalmente aceitos, em nome dos quais as mulheres podem ser defendidas das agressões m achistas. Evidentemente, este corpo de direitos humanos é ainda insatisfatório,
desejando-se seu crescimento, do mesmo modo que se almeja a
eliminação de certas práticas comuns em cerca de 30 países da
África e da Ásia.
Trata-se, de um a parte, das denom inadas m utilações genitais
(é preferível am pliar para sexuais) e, de outra parte, de fem icídios da esposa para, em se casan do n ovam en te, gan har um
novo dote. Dada a força das palavras, é interessante dissem inar o uso de fem icídio, já que hom icídio carrega o prefixo de
hom em . Fem in istas in glesas vêm difun din do este term o, em bora ele ainda não conste de The Concise Oxford Dictionary ,
edição de 1990 . Com o a língua é um fenôm eno social, e, portan to, sujeito per m an en tem en te a m udan ças, é in ter essan te
criar novas palavras, que expurguem o sexism o. O idiom a francês, por exem plo, é extrem am en te m achista. Basta dizer que
m aîtresse significa, sim ultaneam ente, professora de escola elem entar, dona de casa e am ante. Para a professora universitária n ão existe um a palavra, usan do-se M adam e le professeur
(senhora o professor). Fem inistas do Canadá francês com eçar am a acr escen t ar a vogal e às p alavr as m ascu lin as, fem inilizando-as. Atualm ente, já se diz la professeure (a professora) para designar a professora universitária. As fem inistas francesas acom panharam as canadenses e, de fato, o idiom a francês
está evoluin do para a elim in ação do sexism o.
Entre as mutilações genitais, há a cliteridectom ia, que consiste n a ablação, n o corte, n a extirpação do clitóris, órgão que
desempenha importante papel na relação sexual, sendo responsável pela m aior parte do prazer. A cliteridectom ia vem acom panhada, muitas vezes, da ablação dos lábios internos da vulva,
o que reduz, ainda mais, o prazer obtido na relação sexual. Fi48
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nalm ente, há outro tipo de m utilação, conhecida com o infibulação, que consiste na sutura dos lábios maiores da vulva, deixando-se um pequeno orifício para a passagem do sangue menstrual e de outros fluidos. Cada vez que um a m ulher infibulada
tem um filho, ou se corta a costura anteriorm ente feita, ou os
lábios maiores da vulva são dilacerados pela passagem do bebê.
Em am bos os casos, esta m ulher será n ovam en te in fibulada.
Não raramente, as três mutilações são realizadas em uma única
m ulher, ain da n a in fân cia, visan do, cada um a a seu m odo, a
diminuir o prazer proporcionado pelo sexo e, ao mesmo tempo,
torn ar a relação sexual um verdadeiro suplício. Um dos elem en tos n ucleares do patriarcado reside exatam en te n o con trole da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da
esposa a seu m arido. Tais m utilações podem , atualm ente, ser
realizadas em hospitais com satisfatórias condições de assepsia,
m as não é isto que ocorre na m aioria delas. Nas zonas rurais,
nas vilas, enfim, nas regiões mais longínquas do poder central,
em geral, são feitas com uma lâmina de barbear, no Brasil gilete,
sem nenhum cuidado higiênico, decorrendo daí m uitas m ortes
por infecção. Há povos cujo costume exige que as meninas dancem, mesmo sangrando e sofrendo dores atrozes, imediatamente
após a(s) mutilação(ções). J á de pronto, morrem 15% das mutiladas. Muitas pequenas publicações, sobretudo norte-am ericanas, relatam os fatos e suas con sequên cias 14 . Em quase todos
os con gressos in tern acion ais fazem -se den ún cias desta violação dos direitos hum anos das m ulheres. Nunca se chega, contudo, a um consenso, persistindo o costum e em nom e do respeito devido às especificidades culturais. Mais grave ainda foi
a realização de um a cliteridectom ia, num hospital paulistano 15,
Tendo doado parte de minha biblioteca, não mais disponho das revistas, ocorrendo-me o título de apenas uma: WIN News, da Women’s Internacional Network.
15
Infelizmente, não se pode oferecer o nome do médico que presenciou
a operação, pois ele entrou com uma ação judicial contra o profissional
da medicina que a realizou.
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por um m édico m uçulm an o n um a garota m uçulm an a. Neste
caso, n ão se susten ta o argum en to da especificidade cultural,
já que quem é im igrante num país com o o Brasil, no qual qualquer m utilação é proibida, deve obedecer às leis e aos costum es da nação de acolhida.
De outra parte, na Índia, país no qual se leva m uito a sério o
regim e dotal de casam ento (no Brasil, o Código Civil que vigorou de 1917 a 20 0 3 continha o regim e dotal, já em desuso na
prática [N AZZARI , 1991] e, felizm en te, abolido n o atual código), constitui-se num costum e de o hom em m atar sua esposa,
dan do ao fem icídio aparên cia de aciden te, para, em seguida,
casar-se com outra e, assim , receber um outro dote. Em bora a
dominação inglesa na Índia tenha contribuído muito para a abolição da lei que exigia a im olação da viúva na m esm a pira em
que fora crem ado seu m arido, o costum e continuou existindo.
Nas pequenas cidades a obrigação da viúva, independentem ente de sua idade (com o se casam ainda m eninas, um a viúva pode
ter n ão m ais que 15 an os), era, e talvez ain da o seja, tom ada
com tal seriedade e, ao m esm o tem po, com o m áxim o de desprezo pelas m ulheres, que, há poucos anos, um a adolescente,
tendo enviuvado, resolveu fugir da com unidade, a fim de preservar sua vida. A com unidade deliberou, então, que a prim eira jovem que lá chegasse cum priria a pena da fugitiva. E assim
foi feito com um a adolescente que se m udou para lá. Observese que a fidelidade da m ulh er a seu esposo deve ser etern a.
Continuar viva não garante este absurdo costum e. Logo, a im olação da jovem é con siderada im prescin dível.
Em bora brasileiras e brasileiros se assustem com tais atrocidades, aqui ocorrem outras não m enos graves. Há pouco m ais
de duas décadas, um nordestino m arcou, com o ferro em brasa
u tilizad o par a m ar car gad o, su a com pan h eir a com as letr as
MGSM , iniciais da expressão m ulher galheira só m orta, m eram ente porque suspeitava estar sua esposa com etendo infidelidade con jugal. H á outro caso do uso, n a esposa, do ferro de
m arcar gado, recentem ente noticiado pelos jornais e pela televisão. O caso de Maria Celsa é m uito conhecido e deve ter ocor50
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rido por volta de duas décadas atrás. Seu nam orado jogou álcool em seu corpo e ateou-lhe fogo. A m oça teve queim aduras
de sum a gravidade, ficando deform ada. A solidariedade de fem in istas e de m édicos per m itiu qu e ela passasse por vár ias
cirurgias plásticas, que m elhoraram sua aparência, sem restituir-lhe o an tigo rosto.
A belíssim a Ângela Diniz foi assassinada por Doca Street, que
descar r egou seu r evólver especialm en te em seu r osto e cr ânio, im pedindo-a de conservar sua beleza, pelo m enos, até seu
en terro. Atirar n um lin do rosto deve ter tido um sign ificado,
talvez o fato de aquela grande beleza tê-lo fascinado, aprisionando-o a ela, im potente para abandoná-la. Este crim e de clam or público foi perpetrado em 30 de dezem bro de 1976, n a
residên cia de Ân gela, n a Praia dos Ossos, m un icípio de Cabo
Frio, estado do Rio de J aneiro. Com o Ângela Maria Fernandes
Diniz havia decidido rom per definitivam ente sua relação am orosa com Raul Fernando do Am aral Street, este, inconform ado
com a separação e com seu insucesso na tentativa de persuadila a reconsiderar a decisão, m atou-a. O poder, com o já foi escrito (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995), tem duas faces: a da potência e a da im potên cia. As m ulheres estão fam iliarizadas com
esta últim a, m as este não é o caso dos hom ens, acreditando-se
que, quan do eles per petr am violên cia, estão sob o efeito da
im potência. Em seu prim eiro julgam ento pelo Tribunal do J úri
de Cabo Frio, em 198 0 , o fam oso crim inalista Evandro Lins e
Silva ressuscitou a an tiquíssim a tese, em desuso havia m uito
tem po, da legítim a defesa da hon ra (BARSTED , 1995). Doca
Street foi condenado a apenas dois anos de detenção, com direito a sursis 16 , um a vez que o conselho de sentença aceitou a
Quando a pena é fixada em até dois anos de detenção, o juiz pode
conceder ao réu o direito de sursis, isto é, o réu foi condenado, mas não
cumpre a pena de privação de liberdade. A função do conselho de
sentença consiste em responder aos quesitos elaborados pelo juiz.
Como, neste caso, os jurados aceitaram a tese defendida por Lins e
Silva, o juiz fixou uma pena simbólica para Doca Street, concedendo-lhe,
ainda, o direito de sursis.
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tese do excesso culposo no estado de legítim a defesa. Dado o
brilh an tism o do crim in alista, foi aplaudido pela assistên cia,
quando da enunciação do resultado. Doca Street declarara que
m atara por am or. Um grupo de fem inistas do estado do Rio de
J an eiro organ izou-se para con scien tizar a população de Cabo
Frio, de cujo seio sairiam os jurados que integrariam o conselho de sentença, pois o réu seria levado novam ente ao Tribun al do J úri, já que o prim eiro julgam en to fora an ulado pelo
Tribunal de J ustiça do Estado de Rio de J aneiro. Aproveitando-se do que dissera o réu, fem in istas se m obilizaram com o
slogan “Quem am a não m ata”. Doca Street, desta vez, foi conden ado a 15 an os de reclusão. Logo con seguiu o ben efício de
trabalhar duran te o dia (justo um play boy que jam ais h avia
trabalhado), voltando para a prisão para dorm ir. Fingia trabalhar n um a con cession ária de autom óveis. Não tardou a con quista da liberdade total.
Eliane de Grammont foi morta por seu ex-marido – de quem
se tinha separado havia cerca de dois anos – em público, enquanto cantava, numa boate. A filha de Glória Peres foi brutalmente assassinada por um casal, parece que em virtude do ciúm e m anifesto pela esposa. Am bos cum priram parcela curta da
pena e gozam de plena liberdade. A jornalista Sandra Gomide foi
assassinada, com prem editação, o que constitui agravante pen al, pelo tam bém jorn alista Pim en ta (talvez m alagueta), que
responde ao processo em liberdade. Todos estes foram crim es
de clam or público e, por isto, gravados na m em ória de grande
parte da população. H á um caso que foge ao clam or público,
valendo a pena mencioná-lo. O relato deste triste caso foi feito
por um a ex-aluna e atual am iga da autora deste livro. Ela era
garota de seus 8, 9 anos, quando da ocorrência do crime. Uma
de suas tias paternas, casada, sofria violência de toda ordem da
parte de seu marido. Depois de muitos anos de verdadeira tortura, tomou uma deliberação, a fim de ver-se livre daquele homem. Na época, uma mulher separada ou desquitada gozava de
má reputação. O casal tinha um bar e, para auxiliar no trabalho
deste pequeno negócio, haviam contratado um empregado. Em
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geral, a mulher não tem coragem de matar. Quando deseja fazêlo, contrata alguém para realizar o serviço sujo, guardando para
si o planejam ento. No m om ento com binado, o em pregado com eçou a desem penhar sua função. Incom petente, precisou da
ajuda de sua patroa. Ambos foram presos, pois houve flagrante,
julgados e condenados. O irmão da ré, morador de uma cidadezinha do interior, vinha a São Paulo, quando podia, visitar sua
irmã prisioneira. Numa destas viagens, sua filha, já com 10 , 12
anos, também veio visitar a tia. Na prisão, o irmão da presidiária
pôs-se a chorar, tendo ele e sua pequena filha ouvido o seguinte
da prisioneira: “Não chore por minha causa; foi aqui na prisão
que conheci a liberdade”. Quanto deve haver sofrido esta m ulh er n as garras de seu m arido para con h ecer a liberdade n a
clausura! Então, a democracia não começa em casa? Alguns estudiosos citam Hannah Arendt para legitimar suas ideias de que
o espaço doméstico é o espaço da privação. Não levam em conta as condições em que viviam os judeus no gueto de Varsóvia.
O gueto era sim o espaço da privação. Hoje, estão presentes no
espaço dom éstico o rádio, a televisão, os jorn ais, a in tern et.
Logo, o dom éstico não é, necessariam ente, o espaço da privação. Isto dependerá das posses da fam ília, de sua religião, enfim, de uma série de fatores.
O conceito de patriarcado
Neste ponto da discussão, convém fazer uma incursão na vertente sexual, crescentem ente apêndice, da teoria/ doutrina política do contrato. Para tanto, recorrer-se-á a Patem an (1993).
“A dom in ação dos hom en s sobre as m ulheres e o direit o m a scu lin o d e a cesso sexu a l r egu la r a ela s est ã o em
questão n a for m ulação do pacto or igin al. O con tr ato social é um a história de liberdade; o con trato sexual é um a
h ist ór ia d e su jeiçã o. O con t r a t o or igin a l cr ia a m b a s, a
liberdade e a dom in ação. A liberdade do h om em e a sujeição da m ulh er derivam do con trato origin al e o sen ti-
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d o d a liber d ad e civil n ão p od e ser com p r een d id o sem a
m et a d e p er d id a d a h ist ór ia , q u e r evela com o o d ir eit o
p at r iar cal d os h om en s sobr e as m u lh er es é cr iad o p elo
con tr ato. A liber d ad e civil n ão é u n iver sal – é u m atr ibuto m asculin o e depen de do direito patriarcal. Os filhos
su b ver t em o r egim e p a t er n o n ã o a p en a s p a r a con q u ist a r su a lib er d a d e, m a s t a m b ém p a r a a ssegu r a r a s m u lh er es p a r a si p r óp r ios. Seu su cesso n esse em p r een d im en to é n arrado n a h istória do con trato sexual. O pacto
or igin al é tan to u m con tr ato sexu al qu an to social: é social n o sen t id o d e p at r iar cal – ist o é, o con t r at o cr ia o
direito político dos h om en s sobre as m ulh eres – , e tam bém sexual n o sen tido do estabelecim en to de um acesso
sistem ático d os h om en s ao cor p o d as m u lh er es. O con t r a t o or igin a l cr ia o q u e ch a m a r ei, segu in d o Ad r ien n e
Rich, de ‘lei do direito sexual m asculin o’. O con trato está
lon ge d e se con tr ap or ao p atr iar cad o: ele é o m eio p elo
qu al se con st it u i o p at r iar cad o m od er n o” (p . 16 -17).
In tegra a ideologia de gên ero, especificam en te patriarcal, a
ideia, defendida por m uitos, de que o contrato social é distinto
do contrato sexual, restringindo-se este últim o à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao
m u n d o pú blico ou , pelo m en os, n ão tem par a ele n en h u m a
relevância. Do m esm o m odo com o as relações patriarcais, suas
hierarquias, sua estrutura de poder contam inam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, m as im pregn a tam bém o Estado. Ain da que n ão se possa
negar o predom ínio de atividades privadas ou íntim as na esfera da fam ília e a prevalência de atividades públicas no espaço
do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes espaços profundam en te ligados e parcialm en te m esclados. Para fin s an alíticos, trata-se de esferas distin tas; são, con tudo, in separáveis
para a com preensão do todo social. “A liberdade civil depende
do direito patriarcal” (p. 19).
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Raciocin an do n a m esm a direção de J oh n son (1997), Patem an m ostra o caráter m asculino do contrato original, ou seja,
é um con trato en tre hom en s, cujo objeto são as m ulheres. A
diferen ça sexual é con vertida em diferen ça política, passan do
a se exprim ir ou em liberdade ou em sujeição. Sendo o patriarcado um a form a de expressão do poder político, esta abordagem vai ao en con tro da m áxim a legada pelo fem in ism o radical: “o pessoal é político”. Entre outras alegações, a polissem ia
do con ceito de patriarcado, aliás, existen te ain da com m ais
força n o de gên ero, con stitui um argum en to con tra seu uso.
Aban d on á-lo
“[...] r ep r esen t ar ia, n a m in h a m an eir a d e en t en d er , a
p er d a, p ela t eor ia p olít ica fem in ist a, d o ú n ico con ceit o
que se refere especificam en te à sujeição da m ulher, e que
sin gu lar iza a for m a d e d ir eito p olítico qu e tod os os h om en s exercem pelo fato de serem hom en s. Se o problem a
n ão for n om ead o, o p at r iar cad o p od er á m u it o bem ser
habilm en te jogado n a obscuridade, por debaixo das categorias con ven cion ais da an álise política. [...] Gran de parte da con fusão surge porque ‘patriarcado’ ain da está por
ser d esven cilh ad o d as in t er p r et ações p at r iar cais d e seu
significado. Até as discussões fem inistas tendem a perm an ecer den tro das fron teiras dos debates patriarcais sobre
o patr iar cad o. É u r gen te qu e se faça u m a h istór ia fem in ista d o con ceito d e p atr iar cad o. Aban d on ar o con ceito
significaria a perda de um a história política que ainda está
p ar a ser m ap ead a” (P ATEMAN , p . 39 -4 0 ).
Não apenas se endossa o pensam ento de Patem an, com o tam bém se reforça sua preocupação com o abandono do conceito
de patriarcado, evocando-se um a autora hoje contrária ao uso
deste con structo m en tal17.
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O constructo mental pode ser um conceito ou uma categoria analítica,
esta de menor grau de abstração que o primeiro.
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“As ca t egor ia s a n a lít ica s fem in ist a s d evem ser in st á veis – t eor ia s con sist en t es e coer en t es em u m m u n d o
instável e incoerente são obstáculos tanto para nossa com preen são quan to para n ossas práticas sociais” (H ARDING,
19 8 6 , p . 6 4 9 ) .
Efetivam ente, quanto m ais avançar a teoria fem inista, m aiores serão as probabilidades de que suas form uladoras se libert em d as cat egor ias p at r iar cais d e p en sam en t o. Ou m elh or ,
quanto m ais as(os) fem inistas se distanciarem do esquem a patriarcal de pen sam en to, m elhores serão suas teorias. Colocar
o nom e da dom inação m asculina – patriarcado – na som bra
significa operar segundo a ideologia patriarcal, que torna n at u r a l es s a d om in a çã o- exp lor a çã o. Ain d a q u e m u it a s ( os )
teóricas(os) adeptas(os) do uso exclusivo do con ceito de gên ero den un ciem a n aturalização do dom ín io dos hom en s sob r e a s m u lh er es, m u it a s vezes, in con scien t em en t e, in visibilizam este processo por m eio, por exem plo, da apresentação
de dados. À m edida que as(os) teóricas(os) fem inistas forem se
desven cilhan do das categorias patriarcais, n ão apen as adquir ir ão p od er p ar a n om ear d e p a tr ia r ca d o o r egim e atu al d e
r e la çõ e s h o m e m – m u lh e r , co m o t a m b é m a b a n d o n a r ã o a
acepção de poder patern o do direito patriarcal e o en ten der ão com o d ir eito sexu al. Isto equ ivale a d izer qu e o agen te
social m arido se con stitui an tes que a figura do pai. Esta se
en con t r a at en u ad a n as socied ad es com p lexas con t em p or ân eas, m as ain da é legítim o afirm ar-se que se vive sob a lei do
pai. Tod avia, a figu r a for te é a d o m ar id o, pois é ela qu e o
con trato sexual dá à luz. O patria potestas cedeu espaço, n ão
à m ulher, m as aos filhos. O patriarca que n ele estava em butid o con t in u a vivo com o t it u la r d o d ir eit o sexu a l. O p en sa m en t o d e P a t em a n , n est e sen t id o, va i a o en con t r o d o d e
H ardin g, expresso n o artigo de 198 6, referido.
“A in t e r p r e t a çã o p a t r ia r ca l d o ‘p a t r ia r ca d o ’ co m o
d ir e it o p a t e r n o p r o vo co u , p a r a d o xa lm e n t e , o o cu lt a -
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m en t o d a or igem d a fa m ília n a r ela çã o en t r e m a r id o e
esposa. O fato d e qu e os h om en s e m u lh er es fazem par t e d e u m con t r a t o d e ca sa m en t o – u m con t r a t o or igin a l q u e in s t it u iu o ca s a m en t o e a fa m ília – e d e q u e
eles são m ar id os e esposas a n tes d e ser em pais e m ães é
esq u ecid o. O d ir eit o con ju ga l est á , a ssim , su b su m id o
sob o d ir eito p ater n o e as d iscu ssões sobr e o p atr iar cad o gir am em t or n o d o p od er (fam iliar ) d as m ães e d os
p a is , ocu lt a n d o, p or t a n t o, a q u es t ã o s ocia l m a is a m p la r efer en t e a o ca r á t er d a s r ela ções en t r e h om en s e
m u lh e r e s e à a b r a n gê n cia d o d ir e it o s e xu a l m a s cu lin o ” ( P ATE M AN , p . 4 9 ) .
Muitas an álises em term os de patriarcado pecam por n ão
terem dado conta de que os vínculos fam iliares de parentesco
são atr ibuídos e par ticular es, en quan to os vín culos con ven cion a d os e u n iver sa is d o con t r a t o est r u t u r a m a socied a d e
m odern a. Caberia, en tão, n ovam en te, a pergun ta: por que se
m anter o nom e patriarcado?
Sistem atizan do e sin tetizan do o acim a exposto, porque:
1 – não se trata de um a relação privada, m as civil;
2 – dá direitos sexuais aos hom ens sobre as m ulheres, praticam ente sem restrição. Haja vista o débito conjugal explícito
nos códigos civis inspirados no Código Napoleônico e a ausência sistem ática do tipo penal estupro no interior do casam ento nos códigos penais. Há apenas um a década, e depois de m uita
luta, as francesas conseguiram capitular este crim e no Código
Penal, não se tendo conhecim ento de se, efetivam ente, há den ún cias con tra m aridos que violen tam suas esposas. No Brasil, felizm ente, não há especificação do estuprador. Neste caso,
pode ser qualquer h om em , até m esm o o m arido, pois o que
im porta é contrariar a vontade da m ulher, m ediante o uso de
violên cia ou grave am eaça;
3 – con figu r a u m tipo h ier ár qu ico d e r elação, qu e in vad e
todos os espaços da sociedade;
4 – tem um a base m aterial;
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5 – corporifica-se;
6 – representa um a estrutura de poder baseada tanto na ideologia quan to n a violên cia.
Depois de extenso exam e de dados de dezenas de nações situadas n os cin co con tin en tes, in form ações estas expostas n as
páginas 169-285, Castells (1999) conclui: “[...] o patriarcalism o
[sic] dá sinais no m undo inteiro de que ainda está vivo e passando bem [...]” (p. 278 ).
En ten dido com o im agen s que as sociedades con stroem do
m asculin o e do fem in in o, n ão pode h aver um a só sociedade
sem gên ero. A eles correspon de um a certa divisão social do
trabalho, con hecida com o divisão sexual do trabalho, n a m edida em que ela se faz obedecendo ao critério de sexo. Isto não
im plica, todavia, que as atividades socialm en te atribuídas às
m ulheres sejam desvalorizadas em relação às dos hom ens. Nas
sociedades de caça e coleta, por exem plo, a prim eira atividade
cabe aos hom ens e a segunda às m ulheres. Em bora proteínas
anim ais sejam necessárias ao organism o hum ano (nunca, entretanto, se ouviu falar da m orte de um vegetariano por carência de proteína anim al), em tais sociedades as m ulheres eram
responsáveis por m ais de 60 % da provisão dos víveres necessár ios ao gr u po (LERNER , 198 6). En qu an to a coleta é cer ta,
acon tecen do cotidian am en te, a caça é in certa. Um grupo de
hom en s pode voltar da caçada com um an im al de gran de ou
m édio por te, pr oven do as n ecessidades de seu gr upo, com o
pode voltar sem nada. Logo, a atividade dos hom ens, realizada
um a ou duas vezes por sem ana, não é confiável em term os de
produto. J á a das m ulheres lhes perm ite voltar a sua com unidade sem pre com algum as raízes, folhas e frutos. A rigor, então, a sobrevivên cia da h um an idade, felizm en te varian do n o
tem po e n o espaço, com esta divisão sexual do trabalho (n ão
se pode afirm ar que todos os povos hajam passado pelo estágio da caça e coleta), foi assegurada pelo trabalho das m ulheres. J ohnson atribui a dois fatores históricos a lenta transição
d est a socied ad e igu alit ár ia às socied ad es qu e se con h ecem
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hoje 18 : 1) a produção de excedente econôm ico, cerca de 11 m il
anos atrás; 2) a descoberta de que o hom em era im prescindível para engendrar um a nova vida, o que se deu logo depois.
Baseada em resultados de pesquisas paleontológicas, arqueológicas e ou tr as evid ên cias, Ler n er apr esen ta ou tr o sistem a
de datação. Desprezan do a produção de exceden te econ ôm ico, p a r t e d o con h ecim en t o d a p a r t icip a çã o m a scu lin a n a
a n t r op op r od u çã o 19 (B E RTAUX , 19 77), o q u e d á m a is p od er
aos hom en s, perm itin do-lhes a im plan tação de um regim e de
dom in ação-exploração das m ulheres. Estas, em bora n ão fossem deten toras de m ais poder que os hom en s, n as sociedades
de caça e coleta, eram con sideradas seres poderosos, fortes,
verdadeiros seres m ágicos, em virtude de sua capacidade de
con ceber e dar à luz, presum ivelm en te sozin has. Com o a caça
Maurice Godelier (1982), antropólogo francês, estudou, durante mais de
uma década, o povo Baruia, da Nova Guiné, tendo-o conhecido em 1967,
quando de sua primeira viagem. Vivem numa ilha, ao norte da Austrália,
tendo tido seu primeiro contato com brancos em 1951. Em 1960, a Austrália estabeleceu seu domínio sobre os Baruia. Portanto, até 1960, este
povo “se governava sem classe dirigente, sem Estado, o que não quer
dizer sem desigualdades. Uma parte da sociedade, os homens, dirigia a
outra, as mulheres; eles regiam a sociedade não sem as mulheres, mas
contra elas” (p. 10). Como os homens davam gigantesca importância ao
sêmen, instituiu-se o fellatio como prática sexual rotineira dos casais,
sendo esta prática também incluída em ritos de passagem da idade infantil
à fase adulta da vida. Como os meninos não produziam sêmen, era necessário que eles o bebessem, a fim de poderem ser considerados homens,
ou seja, superiores às meninas e mulheres de mais idade. Isto tudo, na
verdade muito mais, resultou de uma importância exagerada atribuída ao
sêmen, que era o único responsável pela geração de uma nova vida, pela
produção dos nutrientes para o desenvolvimento do feto e pela fabricação de leite, com o qual alimentar o bebê. Este livro, La production de
grands hommes, foi publicado em 1982. Este fato tem alta relevância, pois
o leitor poderia imaginar que esta sociedade na qual a inferiorização das
mulheres era enorme tivesse existido há milênios, quando, na verdade,
sua organização social, especificamente sua estrutura de poder, foi estudada recentemente. Embora já se tenha chamado a atenção do leitor para
a não-necessidade desta etapa e para sua não-coincidência no tempo e
no espaço, este exemplo é muito esclarecedor, porque, em termos históricos, esta sociedade existiu ontem.
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Antropoprodução consiste na produção de seres humanos, ou seja,
na sua reprodução não apenas biológica, mas também social.
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n ão é um a atividade diária, aos hom en s sobrava m uito tem po
livr e, im p r escin d ível p ar a o exer cício d a cr iat ivid ad e. Foi,
por con seguin te, n a cham ada “som bra e água fresca” que os
h om en s cr iar am sistem as sim bólicos da m aior eficácia par a
d est r on a r su a s p a r ceir a s. Est e p r ocesso foi ext r em a m en t e
len to, graças à resistên cia das m ulheres. Segun do esta histor iad or a au st r íaca, viven d o n os Est ad os Un id os d esd e a ascen são do n azism o, o processo de in stauração do patriarcado teve in ício n o an o 310 0 a.C. e só se con solidou n o an o 60 0
a.C. A forte resistên cia oposta pelas m ulh eres ao n ovo regim e exigiu qu e os m ach os lu tassem d u r an te d ois m ilên ios e
m eio para chegar a sua con solidação. Se a con tagem for realizada a partir do com eço do processo de m udan ça, pode-se
dizer que o patriarcado con ta com a idade de 5.20 3-4 an os.
Se, todavia, se preferir fazer o cálculo a partir do fim do processo de tran sform ação das relações h om em – m ulh er, a idade desta estrutura hierárquica é de tão-som en te 2.60 3-4 an os.
Trata-se, a rigor, de um recém -n ascido em face da idade da
h um an idade, estim ada en tre 250 m il e 30 0 m il an os. Logo,
n ão se vivem sobrevivên cias de um p atriarcado rem oto; ao
con trário, o patriarcado é m uito jovem e pujan te, ten do sucedido às sociedades igualitárias.
De m aneira nenhum a se nega a utilidade do conceito de gên ero. Em bor a o con ceito n ão existisse, o gên ero, con cebido
com o o significado do m asculino e do fem inino produzido pela
vida gregária, sem pre esteve presente. A divisão sexual do trabalho nas sociedades de caça e coleta não se explica pela m aior
força física do hom em , pois há sociedades n as quais cabe às
m ulheres a caça da foca. Não se trata de pequeno anim al, há de
se agregar. Além disto, a foca é tão lisa quanto alguns políticos
brasileiros e estran geiros. Ela é caçada, in clusive por m ulheres grávidas, quan do tom a sol n as roch as que circun dam os
oceanos e m ares. Com o m ovim ento das águas, pedras e focas
ficam con stan tem en te m olh adas. Tais circun stân cias dificultam ainda m ais sua caça, um a vez que elas se tornam excessivam ente escorregadias. Não obstante, são caçadas por m ulhe60
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res. Logo, o argum ento da força física não se sustenta. A hipótese m ais con vin cen te para justificar a divisão sexual do trabalho n as sociedades de caça e coleta parece ser a que se segue. Com o não havia Nestlé, era obrigatório o aleitam ento do
bebê ao seio. Desta sorte, o trabalh o fem in in o era realizado
com a m ulher carregan do seu bebê am arrado ao peito ou às
costas. Os bebês er am , assim , aleitados facilm en te toda vez
que sentissem fom e. Com o bebê não fala, sua m aneira de expressar suas necessidades é o choro. Daí vem a sabedoria popular, inclusive em sentido figurado, dizendo: “quem não chora não m am a”. Presum a-se que às m ulheres fosse atribuída a
tarefa da caça. O m enor sussurro do bebê espantaria o anim al
destin ado à m orte e as caçadoras voltariam , in variavelm en te,
para seu grupo, sem nenhum alim ento. J á as plantas, desde as
raízes, passando pelas folhas e chegando aos frutos, perm anecem im perturbáveis ouvin do o ch oro das crian ças. Pelo m enos era assim que se com portavam , antes de serem habituadas
a produzir m ais frutos ao som do “Adágio”, de Albinoni, tocado pelo flautista J ean-Pierre Ram pal. Esta brincadeira constitui um a paráfrase do uso da m úsica clássica para elevar a produção de ovos ou de leite, evidentem ente por galinhas e vacas
de bom gosto. Mas, por outro lado, se o gen e, de fato, sofre
in fluên cia das con dições históricas vividas, por que n ão pen sar que tais condutas em granjas e estábulos auxiliam os argum entos de Keller?
En quan to an im ais ditos irracion ais com em , dorm em , produzem ao som de um a bela m úsica, m ulheres são espan cadas,
hum ilhadas, estupradas e, m uitas vezes, assassin adas por seus
próprios com pan heiros e, com frequên cia, por ex-com pan heir os, ex-n am or ados, ex-am an tes. Sobr etudo quan do a in iciativa d o r om pim en to d a r elação é d a m u lh er , esta per segu içã o, est a im p or t u n a çã o, est e m olest a m en t o p od em ch ega r
ao fem icíd io. Vár ias m u lh er es n estas con d ições solicitar am
proteção policial. Com o a seguran ça das m ulheres é con sider ada questão secun dár ia, o pedido n ão foi aten dido, daí r esultan do a m or te das am eaçadas. Em bor a a violên cia ten h a
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seu ciclo, especialm en te a dom éstica, isto é m eram en te descritivo, n ão in duzin do sequer a atitudes preven tivas. É m ais
ad equ ad a a p er cep ção d e qu e a violên cia con t r a m u lh er es
desen volve-se em escalada. Isto sim pode m ostrar a prem ên cia da form ulação e da im plem en tação de políticas públicas
que visem a sua extin ção.
A sociedade assem elha-se a um galin heiro, sen do, con tudo,
o galinheiro hum ano m uito m ais cruel que o galináceo. Quando se abre um a fresta na tela do galinheiro e um a galinha escapa, o galo con tin ua dom in an do as galin has que restaram em
seu território geográfico. Com o o território hum ano não é m eram en te físico, m as tam bém sim bólico, o hom em , con siderado todo-poderoso, não se conform a em ter sido preterido por
outro por sua m ulher, nem se conform a quando sua m ulher o
aban don a por n ão m ais suportar seus m aus-tratos. Qualquer
que seja a razão do rom pim ento da relação, quando a iniciativa é da m ulher, isto constitui um a afronta para ele. Na condição d e m ach o d om in ad or , n ão pod e ad m itir tal ocor r ên cia,
poden do chegar a extrem os de crueldade. A sociedade, sim ilarm ente ao galinheiro, tam bém apresenta um a ordem das bicadas, assunto a ser tratado, se possível, m ais adiante.
Lesão Corporal Dolosa
O trabalh o de cam po da Fun dação Perseu Abram o produziu dados que m ostram que 20 % das m ulh eres sofrem lesão
corporal dolosa ( LCD ) con siderada leve, o crim e m ais com etido por h om en s con tra m ulh eres, em particular quan do vivem n o m esm o d om icílio. Não é n ecessár io qu e se tr ate d e
casais; as brigas podem ocorrer en tre irm ãos, em detrim en to
da m ulher. Geralm en te, porém , são m esm o os com pan heiros
os agen tes destas violên cias. Pouco m en os de um quin to (18 %)
das in ter r ogadas sofr e violên cia psicológica, sen do fr equen tes as ofen sas à con duta m oral das vítim as. O crim e de am eaça costum a acom pan h ar outras m odalidades de violên cia ou
substituir a violên cia física. A pesquisa Violên cia dom éstica:
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qu est ã o d e p olícia e d a socied a d e r evelou u m a t en d ên cia
de queda da LCD e, em substituição, um a elevação do crim e
de am eaça. Lem bra-se que tal pesquisa coligiu dados dos an os
de 198 8 e 1992, quan do a m aioria dos crim es com etidos con tra m ulheres eram julgados pelo Código Pen al, um a vez que a
legislação agora em vigor – a Lei 9.0 99 – en trou em vigên cia
em n ovem bro de 1995. Em bora n ão seja agradável viver sob
am eaça, certam en te é m en os m au que sofrer espan cam en tos
e outros m aus-tratos. Lam en tavelm en te, esta ten dên cia, con siderada positiva, em virtude do m edo in fun dido pela autoridade policial – a delegada – n o hom em (este se con tin ha n a
LCD , con t en t a n d o-se com a m ea ça r su a com p a n h eir a ), foi
a b r u p t a m en t e in t er r om p id a p ela a p r ova çã o d a Lei 9 .0 9 9 ,
qu e, segu n do r evelou a pesqu isa Violên cia dom éstica sob a
Lei 9.0 99/ 95 (S AFFIOTI , 20 0 3), legalizou pelo m en os a violên cia dom éstica, en quadrada n os tipos pen ais apen ados com
até um an o de deten ção.
Retom ando o fruto do trabalho de cam po, 15% das entrevistadas afirm aram sofrer um tipo de violência dos m ais trágicos,
em term os de abertura de ch agas n a alm a. Trata-se de um a
conduta inaceitável do hom em – quebrar objetos e rasgar roupas da com panheira – em virtude de tentar destruir, às vezes
conseguindo, a identidade desta m ulher. Os resultados destas
agressões n ão são feridas n o corpo, m as n a alm a. Vale dizer
feridas de difícil cura. Nas cerca de 30 0 entrevistas feitas com
vítim as na pesquisa Violência dom éstica: questão de polícia e
da sociedade, é frequente as m ulheres se pronunciarem a respeito da m aior facilidade de superar um a violência física, com o
em purrões, tapas, pon tapés, do que hum ilhações. De acordo
com elas, a hum ilhação provoca um a dor m uito profunda. Propor ção n ão n egligen ciável d e m u lh er es (12%) r elatou h aver
sofrido, com certa frequên cia, violên cias verbais desrespeitosas e desqualificadoras de seu trabalho, seja fora do lar, seja
n este, LCD , provocan do cortes, m arcas ou fraturas, foi n arrada por 11% das en trevistadas. Este tipo de LCD é con siderado
de n atureza grave (art. 129 do Código Pen al) e, depen den do
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das sequelas que deixar na vítim a, é apenado com m ais de um
ano de reclusão (cinco anos), sendo julgado, portanto, de acordo com o Código Pen al. Duvida-se, con tudo, que os réus ten ham sido con den ados, porque, já n a delegacia de polícia, o
crim e é classificado com o LCD leve, cuja pena é de detenção 20
de três m eses a um ano, sendo julgado segundo os dispositivos
da Lei 9.0 99, nos J uizados Especiais Crim inais ( J ECrim ). O cárcere privado foi sofrido por 9% das investigadas, que, um a vez
trancadas em suas casas, foram obrigadas a faltar ao trabalho;
8% foram am eaçadas com arm as de fogo; e 6% foram forçadas
a realizar determ in adas práticas sexuais que n ão as agradavam . Con sideran do-se apen as m ulh er es que têm ou tiver am
filh os (18 %), 10 % for am vítim as de acu sações r eiter adas de
que n ão eram boas m ães. Dada a valorização da m ãe n as culturas cristãs, estas críticas in fun dem m uita culpa n a acusada.
Aliás, as m ulheres são culpabilizadas por quase tudo que n ão
dá certo. Se ela é estuprada, a culpa é dela, porque sua saia
er a m u ito cu r ta ou seu d ecote, ou sad o. Em bor a isto n ão se
susten te, um a vez que bebês e outras crian ças ain da pequen as sofrem abusos sexuais que podem dilacerá-las, a vítim a
ad u lt a sen t e-se cu lp ad a. Se a ed u cação d os filh os d o casal
resulta positivam en te, o pai é form idável; se algo dá errado, a
m ãe n ão soube educá-los. Mais um a vez, a vítim a sabe, racion alm en te, n ão ter culpa algum a, m as, em ocion alm en te, é in evitável que se culpabilize.
Benedict tem m esm o razão: pelo m enos para as m ulheres, a
civilização ocidental é a civilização da culpa. Eis por que é fácil
as m ulheres assum irem o papel de vítim as. Pior ainda é o fato
de m uitas cientistas entrarem neste jogo, assum indo a posição
vitim ista. Ora, nem sem pre as m ulheres são vítim as. Há as que
provocam o parceiro, a fim de criar um a situação de violência;
outras den igrem o n om e de seus com pan h eiros, in ven tan do
fatos que eles teriam com etido, m as não o fez. As m ulheres são
A detenção é mais leve do que a reclusão. Os detentos podem alcançar benefícios interditados aos reclusos.
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gran des espan cadoras de crian ças, em geral de seus próprios
filhos. É verdade que, m esm o trabalhan do fora do lar, a m ulher perm anece m ais tem po com seus filhos, o que lhe possibilita ver certas atitudes destas crianças que m erecem correção.
Não se defen de, aqui, a pedagogia da violên cia. En tr etan to,
quem convive m uito com os filhos e os proíbe de fazer certas
coisas, depois de 20 reprim en das verbais sem êxito, perde a
paciência, ou m elhor, sente-se im potente e dá um as palm adas
n o(a) autor (a) das tr avessur as. Tal fen ôm en o pode tam bém
ser cham ado de síndrom e do pequeno poder (SAFFIOTI , 1989),
à qual estão sujeitas am bas as categorias de sexo. É verdade
que o hom em entra em síndrom e do pequeno poder com m ais
facilidade e fr equên cia que a m ulh er . Pode-se até dizer que
quando a m ãe dá palm adas em seus filhos está, rigorosam ente,
exercendo o poder patriarcal, que lhe foi delegado pelo pai das
crian ças. Isto se expressa, de m an eira cristalin a, n a própria
fala da m ãe ao filho punido: “Isto é só o aperitivo. Você levará
aquela surra quando seu pai chegar e eu lhe contar o que você
fez”. A autoridade m áxim a é o pai, a quem a m ãe evoca, n o
m om en to da im potên cia, exatam en te com este papel. Assim ,
em bora as m ulheres não sejam cúm plices dos patriarcas, cooperam com eles, m uitas vezes inconscientem ente, para a perp et u a çã o d est e r egim e. As p r ojeções d a Fu n d a çã o P er seu
Abr am o, p ar t in d o d os d ad os coligid os, são: Com o 11% d as
in vestigadas relataram vivên cias de espan cam en to ( LCD ) n um
un iverso de 61,5 m ilhões, estim a-se que, en tre as brasileiras
vivas, pelo m enos 6,8 m ilhões delas tiveram , ainda que um a só
vez, esta exp er iên cia. J á qu e as casad as com esp an cad or es
contum azes relataram que a últim a violência deste tipo havia
ocorrido n o período dos 12 m eses an teriores ao trabalh o de
cam po, pr ojetou-se, por baixo, cer ca de 2,1 m ilh ões de vítim as de LCD ao ano, 175 m il ao m ês, 5,8 m il ao dia, 243 a cada
hora, o que significa quatro vítim as por m inuto ou um a a cada
15 segun dos. Esta realidade estava bem escon dida. E foi descober ta pela ár ea das per fum ar ias. E h á m uitas outr as que,
in felizm en te, n ão con quistarão espaço n este pequen o livro.
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é, sem dúvida, o crim e prevalente contra m ulheres. Entre suas vítim as, 32% afirm aram ter este fato ocorrido apenas
um a vez, enquanto outros 20 % delas apontaram para duas ou
três vezes. En tre as vítim as de LCD , 11% adm itiram sua ocorr ên cia por m ais de dez vezes. H á, ain da, aquelas (15%) que
certam en te perderam a con ta do n úm ero de espan cam en tos
que sofreram , preferindo m encionar o tem po em que ficaram
expostas a este tipo de violência: m ais de dez anos foi com um ,
havendo 4% que se referiram a m ais de dez anos e durante toda
a vida. O m arido agressor com parece com 53% n os casos de
am eaça à in tegridade física da com pan h eira com arm as, subindo sua presença para 70 % quando se tom am todas as m odalidades de violên cia in vestigadas, exceto o assédio sexual.
Se aos com pan heiros se som arem os ex-m aridos, ex-n am orad os, ex-com pan h eir os, os h om en s am ad os con stitu em a esm agadora m aioria dos agressores.
Talvez pelo fato de serem encarregadas da educação dos filhos, as m ulheres, em geral, sejam tão onipotentes. J ulgam -se
capazes de m udar o com pan heiro, quan do, a rigor, n in guém
m uda outr em . A pessoa pode decidir tr an sfor m ar -se e, com
auxílio de um bom profissional psi, ter êxito. Tal sucesso pode
tam bém ser obtido sem ajuda de ninguém , sendo, entretanto,
m ais penoso, m ais lento e de duvidoso êxito. Os seres hum an os s ã o con d icion a d os a t r ein a r s u a s h a b ilid a d es e
potencialidades num a certa direção. Por assim dizer, especializam -se. Isto n ão ocorre apen as n o âm bito do trabalho, m as
em tod as as ativid ad es por ele(a) d esem pen h ad as. Especializam -se até nas m anias, tornando-se com pulsivas certas condutas. Não se está aderindo à m aneira sim plória de resolver o
p r oblem a d a violên cia con t r a m u lh er es, ou seja, à p at ologização, m as am plian do o leque de perspectivas, em bora n ão
se tr ate de um a adesão acr ítica àquilo que Bour dieu (198 9)
cham ou de habitus. “[...] o habitus, com o in dica a palavra, é
um con hecim en to adquirido e tam bém um hav er, um capital
de um agente em ação [...]” (p. 61). Trata-se, pois, de dispositivos que operam “sem necessidade de o agente raciocinar para
LCD
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se orien tar e se situar de m an eira racion al n um espaço” (p.
62). O habitus nasce justam ente da interação entre o processo
de socialização e o equipam ento genético de que é portador o
agente social. Este conceito tem utilidade, m as incom oda por
sua quase absoluta perm anência, ou seja, quase im possibilidade de m udar. Se assim n ão fora, Bourdieu n ão teria escrito,
com a colaboração de Passeron , um livro sobre a reprodução
ao qual atribuiu exatam ente este título (BOURDIEU e P ASSERON ,
1970 ). O ha bitu s m ais for te em Bou r d ieu er a exatam en te o
m ecan ism o da per m an ên cia (por esta r azão, quase todos os
seus con ceitos são fech ados), em detrim en to da tran sform ação. Tod avia, estan d o aler ta p ar a isto, os cien tistas sociais
podem utilizá-los todos. Parece, n o en tan to, m uito m en os ou
nada problem ático o uso, quando cabível, do conceito de conservação-dissolução, form ulado por Bettelheim (1969), in spirado em Marx. Este, fazendo a crítica da econom ia burguesa,
m ostra a n ecessidade de se com eçar pelo com plexo, a fim de
poder com preender o sim ples. Desta sorte, é preciso analisar a
socied ad e bu r gu esa p ar a se en ten d er as qu e a p r eced er am ,
m esm o porque aquela con tém , ain da que de form a estiolada,
travestida, a sociedade antiga e a sociedade feudal.
“Um a for m a çã o socia l ja m a is d esa p a r ece a n t es q u e
estejam desen volvidas todas as forças produtivas que ela
pode conter, jam ais relações de produção novas e superior es su bstitu em as an tigas an tes qu e as con d ições m ater iais d e existên cia d estas r elações d esabr och em n o p r ópr io seio da velh a sociedade. Eis por qu e a h u m an idade
jam ais levanta problem as que ela não pode resolver, pois,
olhando-a de m ais perto, saber-se-á que o próprio problem a n ã o su r ge sen ã o on d e a s con d ições m a t er ia is p a r a
r esolvê-lo já exist am ou , p elo m en os, est ão em vias d e
em er gir ” (Ma r x, 19 57, p r efá cio, p . 5).
Assim , o n ovo e o velho coexistem até que prevaleça o prim eiro, sem , contudo, desaparecer com pletam ente o velho, que
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se apresen ta de outras form as. Na fam ília, coexistem n ovas e
velhas relações até que as prim eiras venham a ser prevalentes.
As relações violen tas devem ser trabalhadas n o sen tido de se
tor n ar em igu alitár ias, d em ocr áticas, n a pr esen ça, por tan to,
ain da que con tidas, auto-reprim idas, das an tigas. As pessoas
envolvidas na relação violenta devem ter o desejo de m udar. É
por esta razão que n ão se acredita n um a m udan ça radical de
um a relação violenta, quando se trabalha exclusivam ente com
a vítim a. Sofren do esta algum as m udan ças, en quan to a outra
parte perm an ece o que sem pre foi, m an ten do seus habitus, a
relação pode, in clusive, torn ar-se ain da m ais violen ta. Todos
p er cebem qu e a vítim a p r ecisa d e aju d a, m as p ou cos veem
esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de auxílio para prom over um a verdadeira transform ação da relação
violenta. Em m uitos países, esta necessidade foi apreendida há
décadas, dan do oportun idade para a em ergên cia de serviços
de ajuda aos agressores. Algun s países latin o-am erican os os
têm . No Brasil, existem algum as ONGs, com o o PAPAI , em Recife, e o NOOS, talvez o m ais antigo, que opera na cidade do Rio
de J aneiro e em m ais dois ou três m unicípios da região m etropolitana. Em São Paulo, o Pró Mulher trabalha com a vítim a e
com o agressor. Em bora não se possa fazer um a avaliação de
todos(as) os(as) profissionais destas organizações, conhecem se algu n s en tr e os qu e pr estam seu s ser viços n o PAPAI e n o
NOOS . Em am bos, h á profission ais de alto n ível, m as n ão se
con h ecem todos. No Pró Mulh er pode h aver excelen tes profissionais. Com o só se conhece a coordenadora, o que se pode
afirm ar é que sua especialidade era patologizar os agressores.
No en tan to, o próprio serviço e as relações com a equipe podem ter produzido seu deslocam en to para outra perspectiva.
Desta form a, é m elhor suspender o juízo até que se obtenham
inform ações precisas e atuais a este respeito.
É chegado o m om ento de se esclarecer, com a precisão possível, as sobreposições e diferen ças en tre várias m odalidades
de violên cia, o que será realizado n o próxim o capítulo.
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3. Para além da violência urbana
Há, no Brasil, um a enorm e confusão sobre os tipos de violência. Usa-se a categoria v iolência contra m ulheres com o sinônim o de v iolência de gênero. Tam bém se confunde v iolência dom éstica com violência intrafam iliar. Far-se-á, aqui, um
esforço para dem onstrar as sobreposições parciais entre estes
con ceitos e, m esm o assim , suas especificidades. Sem con ceitos precisos, pode-se pen sar estar falan do de um fen ôm en o,
en quan to se fala de outr o. Mais gr ave, ain da, é in iciar um a
p esqu isa com este em ar an h ad o d e con str u ctos m en ta is, n a
m edida em que isto com prom eteria até m esm o a elaboração
do roteiro de en trevista ou question ário, levan do o pesquisador a deixar de obter as r espostas que ele busca par a obter
inform ações que não dizem respeito direto a sua pesquisa.
A violência de gênero é, sem dúvida, a categoria m ais geral.
En tr etan to, cau sa u m cer to m al-estar qu an do se pen sa este
con ceito com o aquele que en globa os dem ais, cada um apre69
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sentando tão-som ente nuanças distintas. Não se trata propriam en te disto, pois tam bém apresen tam características específicas. É exatam ente para estas especificidades que se pretende
ch am ar a aten ção do leitor. Por estas razões, estim a-se prudente m ostrar estes fatos em suas peculiaridades, a fim de se
trabalhar com um quadro teórico de referência, capaz de orientar o investigador, em vez de confundi-lo. Não se pretende, por
ora, voltar a discorrer sobre o conceito de gênero, pois o leitor
já conhece o fundam ental sobre ele para acom panhar o raciocín io deste capítulo. Recorrer-se-á a ele n o próxim o capítulo
para aprofundar o que já foi expresso. No presente capítulo, ele
será evocado som en te quan do n ecessário.
O uso deste conceito pode, segundo Scott (1988), revelar sua
neutralidade, na m edida em que não inclui, em certa instância,
desigualdades e poder com o n ecessários. Aparen tem en te um
d etalh e, esta exp licitação p er m ite con sid er ar o con ceito d e
gên ero com o m uito m ais am plo que a n oção de patriarcado
ou, se se preferir, viriarcado, androcentrism o, falocracia, falologo-cen trism o. Para a discussão con ceitual, este pon to é ext r em am en t e r elevan t e, u m a vez qu e g ên er o d eixa aber t a a
p ossibilid ad e d o vetor d a d om in ação-exp lor ação, en qu an to
os d em ais term os m arcam a presen ça m asculin a n este pólo.
Neste livro, con siderar-se-á gên ero in depen den tem en te de a
quem perten ça a prim azia: aos hom en s ou às m ulheres. Que,
entretanto, isto não seja tomado como adesão ao caráter supostam ente m ais neutro do conceito de gênero, pois, de certo ângulo, pode-se afirm ar exatam ente o oposto (J OH NSON , 1997).
Em bora aqui se interprete gênero tam bém com o um conjunto de n orm as m odeladoras dos seres hum an os em hom en s e
em m ulheres, norm as estas expressas nas relações destas duas
categorias sociais, ressalta-se a n ecessidade de am pliar este
con ceito para as relações hom em – hom em e m ulher– m ulher,
com o, aliás, já se m encionou. Obviam ente, privilegia-se o prim eiro tipo de relação, posto que existe n a realidade objetiva
com a qual todo ser hum an o se depara ao n ascer. Ain da que
histórica, esta realidade é previam ente dada para cada ser hu70
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m an o que passa a con viver socialm en te. A desigualdade, lon ge de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agen tes en volvidos n a tram a de relações
sociais. Nas relações en tre hom en s e en tre m ulheres, a desigualdade de gênero não é dada, m as pode ser construída, e o é,
com frequên cia. O fato, porém , de n ão ser dada previam en te
ao estabelecim ento da relação a diferencia da relação hom em –
m ulh er. Nestes term os, gên ero con cern e, preferen cialm en te,
às relações hom em – m ulher. Isto n ão sign ifica que um a relação de violên cia en tr e dois h om en s ou en tr e duas m ulh er es
não possa figurar sob a rubrica de violência de gênero. A disputa por um a fêm ea pode levar dois hom ens à violência, o m esm o poden do ocorrer en tre duas m ulheres n a com petição por
um m acho. Com o se trata de relações regidas pela gram ática
sexu al, pod em ser com pr een d id as pela violên cia d e gên er o.
Mais do que isto, tais violên cias podem caracterizar-se com o
v iolên cia d om ést ica , d ep en d en d o d as cir cu n st ân cias. Fica,
assim , paten teado que a violên cia de gên ero pode ser perpetr ada por u m h om em con tr a ou tr o, por u m a m u lh er con tr a
outra. Todavia, o vetor m ais am plam ente difundido da violência de gênero cam inha no sentido hom em contra m ulher, tendo a falocracia com o caldo de cultura.
Não h á m aiores dificuldades em se com preen der a violên cia fam iliar, ou seja, a que en volve m em bros de um a m esm a
fam ília exten sa ou n uclear, levan do-se em con ta a con san guin idade e a afin idade. Com preen dida n a v iolência de gênero, a
v iolên cia fam iliar pode ocor r er n o in ter ior do dom icílio ou
fora dele, em bora seja m ais frequen te o prim eiro caso. A violên cia in trafam iliar extrapola os lim ites do dom icílio. Um avô,
cu jo d om icílio é separ ad o d o d e seu (su a) n eto(a), pod e com eter violên cia, em n om e da sagrada fam ília, con tra este(a)
p eq u en o( a ) p a r en t e( a ) . A violên cia d om és t ica a p r es en t a
pon tos de sobreposição com a fam iliar. Atin ge, porém , tam bém pessoas que, n ão perten cen do à fam ília, vivem , parcial
ou in tegralm en te, n o dom icílio do agressor, com o é o caso de
agregadas(os) e em pregadas(os) dom ésticas(os). Estabelecido
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o dom ín io de um território, o chefe, via de regra um hom em ,
passa a r ein ar quase in con dicion alm en te sobr e seus dem ais
ocupan tes. O processo de territorialização do dom ín io n ão é
p u r a m en t e geogr á fico, m a s t a m b ém sim b ólico (S AF F I OTI ,
1997a). Assim , um elem en to hum an o perten cen te àquele território pode sofrer violên cia, ain da que n ão se en con tre n ele
in stalado. Um a m ulher que, para fugir de m aus-tratos, se m uda
da casa de seu m arido pode ser perseguida por ele até a con sum ação do fem icídio, fem in ilizan do-se a palavra h om icídio
(R ADFORD e R USSELL, 1992). Este fen ôm en o n ão é tão r ar o
q u a n t o o sen so com u m in d ica . A violên cia d om ést ica t em
lu gar , p r ed om in an t em en t e, n o in t er ior d o d om icílio. Nad a
im p ed e o h om em , con t u d o, d e esp er ar su a com p an h eir a à
p or ta d e seu tr abalh o e su r r á-la exem p lar m en te, d ian te d e
todos os seus colegas, por se sen tir ultrajado com sua atividade extralar, com o pode ocorrer de a m ulh er queim ar com
ferro de passar a cam isa preferida de seu com pan heiro, porqu e d escobr iu qu e ele tem u m a am an te ou tom ou con h ecim en t o d e qu e a p eça d o vest u ár io foi p r esen t e “d a ou t r a”.
Poder-se-ia pergun tar, n este m om en to, se a violên cia de gên ero, em geral, ou a in trafam iliar ou, ain da, a dom éstica esp ecificam en te são sem p r e r ecíp r ocas. Mesm o ad m itin d o-se
que pudesse ser sem pre assim , o que n ão é o caso, a m ulher
levaria desvan tagem . No plan o da força física, resguardadas
as difer en ças in dividu ais, a der r ota fem in in a é pr evisível, o
m esm o se passan do n o terren o sexual, em estreita vin culação
com o poder dos m úsculos. É voz corren te que a m ulher ven ce n o cam p o ver bal. En t r et an t o, en t r evist as com m u lh er es
vítim as de violên cia dom éstica têm revelado que o hom em é,
m u itas vezes, ir r em ed iavelm en te fer in o (S AFFIOTI , in éd ito).
Isto n ão sign ifica que a m ulher sofra passivam en te as violên cias com etidas por seu parceiro. De um a form a ou de outra,
sem p r e r eage. Qu an d o o faz violen tam en te, su a violên cia é
r eativa. Isto n ão im p ed e qu e h aja m u lh er es violen tas. São,
todavia, m uito raras, dada a suprem acia m asculin a e sua socialização par a a docilidade.
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O fem icídio com etido por parceiro acontece, num erosas vezes, sem prem editação, diferentem ente do hom icídio nas m esm as cir cu n stân cias, qu e exige plan ejam en to. Este der iva de
um a der r ota pr esum ível da m ulh er n o con fr on to com o h om em . No Brasil, não há pesquisas neste sentido. Na Inglaterra,
as pen as para as m ulheres que com etem hom icídios de seus
m aridos são m aiores que as sentenciadas aos hom ens que perpetram fem icídio de suas esposas, ou uxoricídios, exatam ente
em razão da prem editação, que constitui agravante penal. Não
obstante os m aus-tratos de que podem ter sido vítim as durante toda a vigência da sociedade conjugal, a punição é m aior em
virtude da m enor força física da m ulher, que exige o planejam en to do hom icídio, ou seja, sua prem editação.
Resta discutir uma questão sobre a qual tampouco há consenso. A violência praticada por pai e mãe contra a prole pode ser
con sider ada violên cia de gên er o, in tr afam iliar e dom éstica?
Indubitavelm ente, sua natureza é fam iliar. Para quem define a
violência dom éstica em term os do estabelecim ento de um domínio sobre os seres humanos situados no território do patriarca con siderado, n ão resta dúvida de que a hierarquia com eça
no chefe e termina no mais frágil dos seus filhos, provavelmente
filhas. Cabe debater o papel da mulher que, tendo seus direitos
hum anos violados por seu com panheiro, m altrata seus filhos.
Apesar de que “as m ulheres figuram em n úm ero im portan te
dentre as vítimas de violência e em número reduzido dentre os
autores de violência” (COLLIN , 1976), há m uitas m ulheres que
m altratam seus filhos, elem entos inferiores na hierarquia doméstica. Não apenas o homem, mas também a mulher está sujeita à síndrome do pequeno poder, sendo uma frequente autora de m aus-tratos con tra crian ças. Com o afirm a Welzer-Lan g
(1991), a violência dom éstica é m asculina, sendo exercida pela
m ulher por delegação do chefe do grupo dom iciliar. Com o ela
“é o prim eiro m odo de regulação das relações sociais entre os
sexos” (W ELZER -LANG, p. 23), é desde crian ça que se experimen ta a dom in ação-exploração do patriarca, seja diretam en te, seja usan do a m ulher adulta. A fun ção de en quadram en to
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(BERTAUX, 1977) é desempenhada pelo chefe ou seus prepostos.
A mulher, ou por síndrome do pequeno poder ou por delegação
do macho, acaba exercendo, não raro, a tirania contra crianças,
último elo da cadeia de assimetrias. Assim, o gênero, a família e
o território domiciliar contêm hierarquias, nas quais os homens
figuram com o dom in adores-exploradores e as crian ças com o
os elem en t os m a is d om in a d os-exp lor a d os. Nos t er m os d e
Welzer-Lang, “a violência doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/ da dom inante” (p. 278).
Desta sorte, a mulher é violenta no exercício da função patriarcal ou viriarcal. No grupo dom iciliar e n a fam ília n ão im pera
necessariam ente a harm onia, porquanto estão presentes, com
frequência, a com petição, a trapaça, a violência. Há, entretanto, um a ideologia de defesa da fam ília, que chega a im pedir a
den ún cia, por parte de m ães, de abusos sexuais perpetrados
por pais contra seus (suas) próprios(as) filhos(as), para não mencionar a tolerância, durante anos seguidos, de violências físicas
e sexuais contra si m esm as. No que tange a abusos sexuais de
crian ças, a gram ática portuguesa im põe o uso do m asculin o,
embora internacionalmente seja de cerca de apenas 10 % a proporção de meninos afetados por este fenômeno. Contudo, mesmo que se tratasse de um só garoto, valeria a pena lutar contra
esta violên cia.
O significado da violência
No que con cern e à precisão de con ceitos, é im portan te que
se aborde, ain da que ligeiram en te, o sign ificado da violên cia
nas m odalidades aqui focalizadas. É óbvio que a sociedade considera norm al e natural que hom ens m altratem suas m ulheres,
assim com o que pais e m ães m altratem seus filhos, ratificando,
deste m odo, a pedagogia da violên cia. Trata-se da ordem social das bicadas (SAFFIOTI , 1997a).
“[...] a cr im in a lid a d e, a violên cia p ú b lica é u m a violên cia m asculin a, isto é, um fen ôm en o sexuado. A dispa-
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r id a d e m u scu la r , et er n o a r gu m en t o d a d ifer en ça , d eve
ser in ter pelad a em d ifer en tes n íveis. [...] Nós con fu n d im os fr eq u en t em en t e: for ça -p ot ên cia -d om in a çã o e vir ilid a d e” (W E LZE R -L AN G , 19 9 1, p . 59 ).
Efetivam ente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que os hom en s exerçam sua força-potência-dom inação contra as m ulheres, em detrim ento de um a
virilidade doce e sensível, portanto m ais adequada ao desfrute
do prazer. O con sen tim en to social para que os h om en s con vertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte, apenas as m ulheres, m as tam bém a eles próprios. A
organização social de gênero, baseada na virilidade com o força-potên cia-dom in ação, perm ite prever que há um desen con tro am oroso m arcado en tre hom en s e m ulheres.
As violências física, sexual, em ocional e m oral não ocorrem
isoladam ente. Qualquer que seja a form a assum ida pela agressão, a violência em ocional está sem pre presente. Certam ente,
se pode afirm ar o m esm o para a m oral. O que se m ostra de
d ifícil u tilização é o con ceito d e violên cia com o r u p tu r a d e
diferentes tipos de integridade: física, sexual, em ocional, m oral. Sobretudo em se tratan do de violên cia de gên ero, e m ais
especificam en te in trafam iliar e dom éstica, são m uito tên ues
os lim ites entre quebra de integridade e obrigação de suportar
o destin o de gên er o tr açado par a as m u lh er es: su jeição aos
hom en s, sejam pais ou m aridos. Desta m an eira, cada m ulher
colocará o lim ite em um pon to distin to do con tin uum en tre
agressão e direito dos hom ens sobre as m ulheres. Mais do que
isto, a m era existên cia desta ten uidade represen ta violên cia.
Com efeito, paira sobre a cabeça de todas as m ulheres a am eaça de agressões m asculin as, fun cion an do isto com o m ecan ism o de sujeição aos hom en s, in scrito n as relações de gên ero.
Em bora se trate de m ecanism o de ordem social, cada m ulher o
in terpretará sin gularm en te. Isto posto, a ruptura de in tegrid ad es com o cr it ér io d e avaliação d e u m at o com o violen t o
situa-se n o terren o da in dividualidade. Isto equivale a dizer
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qu e a violên cia, en ten d id a d esta for m a, n ão en con tr a lu gar
on tológico 21, com o já se m en cion ou.
Fundam entalm ente por esta razão, prefere-se trabalhar com
o con ceito de direitos hum an os, en ten den do-se por violên cia
todo agenciam ento capaz de violá-los. É bem verdade que isto
exige um a releitura dos direitos hum anos. J á desde a Revolução Francesa os direitos hum anos foram pensados no m asculin o: Declaração Un iversal dos Direitos do H om em e do Cidadão. Por haver escrito a versão fem inina dos direitos hum anos
(Declaração Un iversal dos Direitos da Mulh er e da Cidadã),
Olym pe de Gouges foi sentenciada à m orte na guilhotina, em
1792. Com o o hom em sem pre foi tom ado com o o protótipo de
h u m an id ad e (F ACI O , 19 9 1), bast ar ia m en cion ar os d ir eit os
daquele para con tem plar esta. Rigorosam en te, é ain da m uito
in cip ien te a con sid er ação d os d ir eitos h u m an os com o tam bém fem ininos. Tudo, ou quase tudo, ainda é feito sob m edida
para o hom em . Os equipam entos fabris estão neste caso, não
obstan te as m u lh er es ter em pen etr ado n as fábr icas desde a
Revolução Industrial. Claro que a m áquina de costura, inclusive a industrial, é feita para o corpo da m ulher, a fim de m antêla em suas fun ções tradicion ais. Nos países em que bordar à
m áquina constitui tarefa m asculina, com o o Senegal, o equipam en to é adaptado ao corpo m asculin o. Nem sequer se pen sa
na adequação de outras m áquinas ao corpo fem inino. Mulheres que passaram a trabalhar em equipam entos planejados para
21
Se não existe uma percepção unânime da violência, cada socius
definindo-a como a sente, não se pode fazer ciência sobre a violência
caracterizada como ruptura de integridades, uma vez que não há ciência do individual. Se as integridades e, por conseguinte, suas rupturas
integrassem o ser social, fossem a ele inerentes, haveria uma mesma
concepção destes fenômenos. Ao contrário, como se mostrou atrás,
será possível construir uma sociedade igualitária, porque outras muitas
deste gênero ocorreram no passado. A desigualdade, a violência, a
intolerância não são inerentes ao ser social. Ao contrário, o são a identidade e a diferença. Estas sim têm, por via de consequência, lugar
ontológico assegurado. Decompondo o vocábulo, lógico ou
logia = estudo, ciência. do ser.
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hom en s tiveram que a eles se adaptar, com prejuízo, m uitas
vezes, da própria saúde.
Entender que as diferenças pertencem ao reino da natureza,
por m ais tran sform ada que esta ten ha sido pelo ser hum an o,
en quan to a igualdade n asceu n o dom ín io do político, parece
fora do horizonte de um a ideologia de gênero, que naturaliza
atribuições sociais, baseando-se nas diferenças sexuais. O próprio tabu do incesto, fato fundante da vida em sociedade (LÉVI S TRAUSS , 1976), é ap r esen tad o aos socii com o se estivessse
an corado em razões de ordem biológica. A n aturalização do
fem inino com o pertencente a um a suposta fragilidade do corpo da m ulher e a naturalização da m asculinidade com o estando in scrita n o corpo forte do hom em fazem parte das tecn ologias de gên ero (LAURETIS, 198 7), que n orm atizam con dutas
d e m u lh er es e d e h om en s. A r igor , t od a via , os cor p os sã o
gendrados 22 , recebem um im print do gênero. Donde ser neces22
O vocábulo gendrado, oriundo de gender (palavra inglesa para gênero),
tem sido utilizado por feministas, na falta de um adjetivo correspondente
ao substantivo gênero. Trata-se de um neologismo, incorporado do inglês
(gendered) e ainda não dicionarizado. Pode-se falar em corpo gendrado
para designar não o corpo sexuado, mas o corpo formatado segundo as
normas do ser mulher ou do ser homem. Estatisticamente, a socialização
do bebê ancora-se no sexo, mas não é tão raro que famílias com cinco
filhas, e desejando um filho, socializem a sexta filha como homem. Na
literatura brasileira, pode ser lembrada a figura de Diadorim, nascida da
imaginação de Guimarães Rosa, mas existente, por vezes, na realidade
concreta da vida. George Sand não constitui um bom exemplo, mas lembra
este fato. Em aldeias agrárias da ex-Iugoslávia, na ex-República de
Montenegro, ocorria este fenômeno, embora não se possa dizer com que
frequência, em decorrência da crença de que famílias sem nenhum filho,
só com filhas, sofreriam desgraças em razão do mau tempo, das más
colheitas, da fome, das doenças. Quem se interessar pelo assunto, pode
assistir ao filme Vírgina, disponível em grandes locadoras, que mostra
dois casos reais numa mesma família extensa. Obviamente, não se tratava de escapar das adversidades, mas de enganar a comunidade, numa
clara desmistificação da referida crença. Pode-se também dizer que o pai
da filha socializada como filho fazia um pacto com São Jorge, padroeiro de
Montenegro. A desmistificação reside no fato de: se a comunidade acreditasse que aquela criança era do sexo masculino, a família se livraria dos
males, porque, afinal, se tratava apenas de uma crença, nada mais. Vírgina
era do sexo feminino, mas seu corpo era gendrado como masculino.
Logo, a palavra sexuado não substitui gendrado.
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sária um a especial releitura dos direitos hum anos, de m odo a
con tem plar as diferen ças en tre hom en s e m ulheres, sem perder de vista a aspiração à igualdade social e a luta para a obtenção de sua com pletude (F ACIO , 1991). A con sideração das diferenças só faz sentido no cam po da igualdade. Neste sentido,
o par da diferença é a identidade, enquanto o da igualdade é a
desigualdade, sendo esta que se precisa elim inar.
Poder-se-ia argum en tar que tam pouco a com preen são dos
direitos hum anos é hom ogênea, pois varia segundo as classes
sociais, segun do as raças/ etn ias, de acordo com os gên eros.
No seio m esm o de cada um a destas categorias en con tram -se
d istin ções d e en ten d im en to. Gr osso m od o, en tr etan to, elas
servem com o balizas, evitando-se que se resvale para o individual. Por outro lado, há um a con sciên cia avan çada da situação, capaz de definir os direitos hum anos no fem inino, com o,
aliás, vem sen do feito n os cam pos da saúde, da educação, da
violên cia, n o terren o jurídico etc. Os portadores desta con sciência lutam por sua difusão, assim com o pela concretização
de um a cidadania am pliada, isto é, de direitos hum anos tam bém para pobres, negros, m ulheres. O respeito ao outro constitui o ponto nuclear desta nova concepção da vida em sociedade. Com o afirm a Saram ago, enquanto a religião exige que os
seres hum anos se am em uns aos outros, o que depende de convivência, um a vez que nem m esm o o am or m aterno é instintivo (BADINTER , 198 0 ), a com p r een são d os d ir eitos h u m an os
im põe que cada um respeite os dem ais. Am ar o outro não constitui um a obrigação, m esm o porque o am or não nasce da im posição. Respeitar o outro, sim , con stitui um dever do cidadão, seja este outro m ulher, n egro, pobre.
Ademais, o gênero, a raça/ etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturan tes da sociedade. Estas con tradições,
tom ad as isolad am en te, apr esen tam car acter ísticas d istin tas
daquelas que se pode detectar no nó que formaram ao longo da
história (SAFFIOTI , 1997b). Este contém uma condensação, uma
exacerbação, um a potenciação de contradições. Com o tal, m erece e exige tratam ento específico, m esm o porque é no nó que
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atuam, de forma imbricada, cada uma das contradições mencionadas. Além disto, esta concepção é extrem am ente im portante
p a r a se en t en d er o su jeit o m ú lt ip lo (L AURE TI S , 19 8 7) e a
m otilidade entre suas facetas. Efetivam ente, o sujeito, constituído em gênero, classe e raça/ etnia, não apresenta homogeneidade. Depen den do das con dições históricas viven ciadas, um a
destas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda que
vivas, colocam-se à sombra da primeira. Em outras circunstâncias, será uma outra faceta a tornar-se dominante. Esta mobilidade do sujeito múltiplo acompanha a instabilidade dos processos sociais, sem pre em ebulição.
Pontos de referência
Em face deste quadro teórico de referência, exposto ainda que sum ariam en te, pode-se ressaltar certos pon tos, fruto
de reflexão em basada em dados em píricos.
1. A violência dom éstica ocorre num a relação afetiva, cuja
ruptura dem anda, via de regra, intervenção externa. Raram ente um a m ulher consegue desvincular-se de um hom em violent o sem au xílio ext er n o. At é qu e est e ocor r a, d escr eve u m a
trajetória oscilante, com m ovim entos de saída da relação e de
retorno a ela. Este é o cham ado ciclo da violência, cuja utilidade é m er am en te descr itiva. Mesm o quan do per m an ecem n a
relação por décadas, as m ulheres reagem à violên cia, varian do m uito as estratégias. A com preensão deste fenôm eno é im portante, porquanto há quem as considere não-sujeitos e, por
via de con sequên cia, passivas (CH AUI , 198 5; GREGORI , 198 9).
Mulheres em geral, e especialm ente quando são vítim as de violên cia, r ecebem tr atam en to de n ão-su jeitos. Isto, todavia, é
difer en te de ser n ão-su jeito, o qu e, n o con texto deste livr o,
con stitui um a con tradictio in subjecto (con tradição n os term os). Com o afirm a Linda Gordon,
“tem sid o n ecessár io m ostr ar qu e a v iolên cia fam iliar
n ão é a exp r essão u n ilat er al d o t em p er am en t o violen t o
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d e u m a p essoa, m as é tr am ad a con ju n tam en te – em bor a n ão igu alm en te – p or vár ios in d ivíd u os n o cald eir ão
d a fa m ília . N ã o h á ob jet os, a p en a s su jeit os...” (19 8 9 ,
p . 2 9 1) .
Isto n ão sign ifica que as m ulheres sejam cúm plices de seus
agressores, com o defen dem Chaui e Gregori. Para que pudess e m s e r cú m p lice s , d a r s e u co n s e n t im e n t o à s a gr e s s õ e s
m asculin as, precisariam desfrutar de igual poder que os h om en s. Sen d o d eten tor as d e par celas in fin itam en te m en or es
de poder que os h om en s, as m ulh er es só podem ceder , n ão
con sen tir (M ATH IEU , 198 5). Tr ata-se d e caso sim ilar à r elação patrão– em pregado. Este últim o n ão con sen te com as con dições do con trato, tam pouco com o salário, m as cede, pois
qu ase sem p r e é abu n d an t e a ofer t a d e for ça d e t r abalh o e
escassa a oferta de postos de trabalho, particularm en te n este
m om en t o h ist ór ico.
2 . As m ulheres lidam , via de regra, m uito bem com m icrop od er es. Não d et êm sa v oir fa ir e n o t er r en o d os m acr op od er es, em vir tu d e d e, h istor icam en te, ter em sid o d eles alijadas. Mais do que isto, n ão con hecem sua história e a histór ia d e su as lu tas, acr ed itan d o-se in cap azes d e se m over n o
seio da m acropolítica (LERNER , 198 6). En tretan to, quan do se
a p er ceb em d e q u e h á u m a p r ofu n d a in t er -r ela çã o en t r e a
m icr op olítica e a m acr op olítica, elas p od em p en etr ar n esta
últim a com gran de grau de sucesso. Na verdade, trata-se de
p r ocessos m icr o e p r ocessos m acr o, at r avessan d o a m alh a
social. Não há um plan o m acro e um plan o m icro, com o creem
cer t os in t elect u a is (G U ATTAR I , 19 8 1; G UATTAR I e R OLN I K ,
198 6). Eviden tem en te, há um a m alha grossa e um a m alha fin a,
um a sen do o avesso da outra, e n ão n íveis diferen tes. A rigor,
poder -se-ia dizer qu e os pr ocessos sociais apr esen tam du as
faces: um a m icro e outra m acro, sobressain do-se um a ou outr a, d ep en d en d o d as cir cu n stân cias. Tr an sm itin d o as p alavras plan o e n ível a ideia de hierarquia, as pessoas põem logo
o m acro acim a do m icro. Esta nova term inologia pretende evi80
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tar esta hierarquização, além de m ostrar o em aran hado destes processos. E as m ulh eres sabem com o tecer a m alh a social, op er an d o em p r ocessos m acr o e em p r ocessos m icr o.
Con ver ter a con sciên cia dom in ada das m u lh er es (M ATH IEU ,
1985) em detentoras deste conhecim ento, certam ente, aum entaria seu n úm ero n a política in stitucion al e em outras in stân cias de decision m akin g.
3 . Violência de gênero, inclusive em suas m odalidades fam iliar e dom éstica, não ocorre aleatoriam ente, m as deriva de
um a organização social de gênero, que privilegia o m asculino.
Diferen tem en te da taxion om ia que divide os diferen tes tipos
de espaço-tem po em dom éstico, da produção e da cidadan ia
(SANTOS, 1995), propõe-se, aqui, um a nova m aneira de se conceber em est es fen ôm en os. O esp aço-t em p o d om ést ico ser á
substituído pelo espaço-tem po do dom icílio. Este se subdivid e em esp aço-tem p o d om éstico, esp aço-tem p o d o tr abalh o
resultante da produção antroponôm ica (BERTAUX, 1977), em inentem ente, para não dizer exclusivam ente, fem inino, e espaço-tem po privado, do ócio, da in tim idade, quase totalm en te
restrito aos hom ens. Quantas são as m ulheres com privacidade, se a sociedade inteira considera dever da m ulher cum prir
o que no Código Civil de 1917, recém -reform ado, era cham ado
de débito conjugal (felizm ente abolido no novo Código Civil),
ou seja, ceder a um a relação sexual contra sua vontade, a fim
de satisfazer o desejo do com panheiro? De que privacidade se
pode falar se m ilhões de m ulheres são literalm ente estupradas
n o seio do casam en to todos os dias, duas vezes por sem an a
etc.? O espaço-tem po da produção é m uito restrito. Propõe-se
sua substituição por espaço-tem po público. Fin alm en te, o espaço-tem po da cidadan ia n ão pode ser con cebido separadam en te com o se a cidadan ia só pudesse ser exercida n a aren a
da política in stitucion al. Deve, ao con trário, pen etrar os dem ais espaços-tem pos para que, de fato, o ser hum an o possa
desfrutar de sua con dição de cidadão em todas as suas relações sociais. Pelo m enos é esta a luta da perspectiva fem inista,
que busca ser o m ais holística possível.
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4 . Não h á d u as esfer as: u m a d as r elações in t er p essoais
(relations sociales) e outra das relações estruturais (rapports
sociaux), com o querem certas fem inistas francesas e algum as
brasileiras. Não existe a classe social com o entidade abstrata.
Um a classe social negocia com outra por m eio de seus representantes, que tam pouco são entidades abstratas, m as pessoas.
Todas as relações hum an as são in terpessoais, n a m edida em
que são agen ciadas por pessoas, cada qual com sua h istória
singular de contatos sociais. Por m ais que desejem desvincularse desta história para representar sua classe, seu passado e sua
singularidade pesam tanto que se cham am alguns de bons negociadores e outros de m aus negociadores. O m esm o se passa
com as categorias n egros e bran cos. Afirm ar que as relações
de gên ero são relações in terpessoais sign ifica sin gularizar os
casais, perden do de vista a estrutura social e torn an do cada
hom em in im igo das m ulheres (D ELPH Y, 1998 ). Nesta con cepção, o en con tr o am or oso ser ia im p ossível. E ele é p ossível,
apesar de os destinos de gênero – traçados pelas estruturas de
poder – apresentarem m uita força. Em outros term os, nunca é
dem ais realçar, o gênero é tam bém estruturante da sociedade,
do m esm o m odo que a classe social e a raça/ etnia. Percorrendo a literatura sobre violên cia con tra crian ças e adolescen tes
no Brasil, verificou-se que só as classes sociais eram tom adas
com o categor ia h istór ica fu n dan te, passan do-se ao lar go da
raça/ etnia e do gênero. Ora, são palpáveis as diferenças entre
as form as de violên cia que atin gem bran cos e n egros, assim
com o m eninos e m eninas (SAFFIOTI , 1997b). O privilegiam ento
da classe social obscurece as dem ais clivagen s existen tes n a
socied ad e.
5 . Tam bém obscurece a com preensão do fenôm eno da violência de gênero o raciocínio que patologiza os agressores. Intern acion alm en te falan do, apen as 2% dos agressores sexuais,
por exem plo, são doen tes m en tais, haven do outro tan to com
passagem pela psiquiatria. Ainda que estes também sejam considerados doen tes m en tais, para fazer um a con cessão, perfazem, no total, 4%, o que é irrisório. O mecanismo da patologização
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ignora as hierarquias e as contradições sociais, funcionando de
form a sem elhante à culpabilização dos pobres pelo espantoso
n ível de violên cia de diversos tipos. Im putar aos pobres um a
cultura violenta significa pré-conceito e não conceito. A violência de gênero, especialmente em suas modalidades doméstica e
fam iliar, ignora fronteiras de classes sociais, de grau de industrialização, de ren da per capita, de distin tos tipos de cultura
(ocidental X oriental) etc. Aliás, é m ais fácil entender relações
incestuosas quando, às vezes, nem m esm o um cobertor separa
os corpos do que nas residências em que cada um tem seu próprio dorm itório. Esta questão da pobreza relacionada à violência não tem sido posta em term os adequados. Pode-se interrogar a realidade, a fim de se ten tar descobrir se as con dições
materiais que caracterizam a pobreza têm um peso significativo
na produção da violência. Com o desencadeadoras da violência,
acredita-se que tenham uma função, como, aliás, tem o álcool. É
necessário testar se o ser hum ano se habitua às circunstâncias
da m iséria ou se elas lhe causam estresse. Se confirm ada esta
últim a hipótese, os pobres seriam agen tes de m ais violên cias
que os ricos, não por possuírem uma cultura da violência, mas
por vivenciarem, mais amiúde, situações de estresse. Ainda que
esta mudança de ângulo de observação tenha um peso extraordinário, convém sublinhar que há formas de violência só possíveis entre os ricos. Haja vista o uso do patrimônio, que homens
fazem para subjugar suas m ulheres. A am eaça perm anente de
em pobrecim en to in duz m uitas m ulheres a suportar hum ilhações e outras form as de violên cia. Cabe, agora, a pergun ta: o
poder do hom em rico, no uso do patrim ônio com o m ecanism o
de sujeição e/ ou in tim idação da m ulher para fazer valer sua
vontade, não com pensa a eventual m aior violência perpetrada
pelo hom em pobre, vivendo em condições m ateriais precárias?
Cabe interrogar a realidade, a fim de se poder tomar posição a
respeito desta questão.
6 . Com o a m aior parte da violên cia de gên ero tem lugar
em relações afetivas – fam ília extensa e unidade dom éstica –
acredita-se ser útil o con ceito de codepen dên cia.
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“Um a p essoa cod ep en d en t e é algu ém qu e, p ar a m an ter u m a sen sação d e segu r an ça on tológica, r equ er ou tr o
in d ivíd u o, ou u m con ju n t o d e in d ivíd u os, p a r a d efin ir
as suas carências; ela ou ele não pode sentir autoconfiança
sem estar dedicado às n ecessidades dos outros. Um relacion a m en t o cod ep en d en t e é a q u ele em q u e u m in d ivíd u o est á liga d o p sicologica m en t e a u m p a r ceir o, cu ja s
atividades são dirigidas por algum tipo de com pulsividade
[sic]. Ch am arei de relacion am en to fixado aquele em que
o p r óp r io r ela cion a m en t o é ob jet o d o vício” (G I DDENS ,
19 9 2 , p . 10 1- 10 2 ) .
Sem dúvida, m ulheres que suportam violência de seus com panheiros, durante anos a fio, são codependentes da com pulsão
do m acho e o relacion am en to de am bos é fixado, n a m edida
em que se torna necessário. Neste sentido, é a própria violência, in separável da relação, que é n ecessária. É verdade, por
ou t r o la d o, q u e h á m u lh er es r es ilien t es ( K OTLI AR E N CO ,
CÁCERES , F ONTECILLA, 1997), qu e n ão se d eixam abater por
con d ições ad ver sas.
7 . O poder apresenta duas faces: a da potência e a da im potência. As m ulheres são socializadas para conviver com a im potência; os hom ens – sem pre vinculados à força – são prepar a d os p a r a o exer cício d o p od er . Con vivem m a l com a
im potência. Acredita-se ser no m om ento da vivência da im potên cia que os hom en s praticam atos violen tos, estabelecen do
relações deste tipo (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995). Há num erosas
evidências nesta direção. Por esta razão, form ula-se a hipótese, baseada em dados parciais, de que a violên cia dom éstica
aum en ta em fun ção do desem prego. Todos os estudiosos de
violên cia u r ban a sabem o qu ão d ifícil, se n ão im possível, é
descobrir associações entre este fenôm eno, de um lado, e desigualdade, pauperização, desem prego, de outro. A violên cia
dom éstica constitui um caso especial. O papel de provedor das
n ecessid a d es m a t er ia is d a fa m ília é, sem d ú vid a , o m a is
defin idor da m asculin idade. Perdido este status, o hom em se
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sente atingido em sua própria virilidade, assistindo à subversão da hierarquia dom éstica. Talvez seja esta sua m ais im portante experiência de im potência. A im potência sexual, m uitas
vezes, con stitu i apen as u m por m en or deste pr ofu n do sen tim en to de im potên cia, que destron a o hom em de sua posição
m ais im portan te.
Violência doméstica
A violên cia dom éstica apresen ta características específicas.
Um a das m ais relevan tes é sua rotin ização (SAFFIOTI , 1997c),
o qu e con tr ibu i, tr em en d am en te, par a a cod epen d ên cia e o
estabelecim en to da relação fixada. Rigorosam en te, a relação
violen ta se con stitui em ver dadeir a pr isão. Neste sen tido, o
próprio gên ero acaba por se revelar um a cam isa de força: o
hom em deve agredir, porque o m acho deve dom in ar a qualqu er cu sto; e a m u lh er deve su por tar agr essões de toda or dem , porque seu “destino” assim o determ ina.
Nã o se p od e n ega r a im p or t â n cia d a ch a m a d a violên cia
urbana, que atinge hom ens e m ulheres, em bora de m odos distintos. De acordo com as estatísticas de m ortalidade (M ORTALIDADE BRASIL, 1997), havia diferen ças gigan tescas en tre hom ens e m ulheres no que tange aos óbitos por causas externas,
que incluem hom icídio. No total, em 1994, m orreram , por causas extern as, quase cin co vezes m ais h om en s que m ulh eres.
Na faixa etária de 15 a 19 anos, as m ulheres m ortas desta m an eira represen taram apen as 20 % dos hom en s. En tre 20 e 29
anos, m orreram 7,7 vezes m ais hom ens que m ulheres por causas externas, atingindo esta proporção 6,9 vezes na faixa etária
de 30 a 39 an os. O espaço público é ain da m uito m asculin o,
estan do os hom en s m ais sujeitos a atropelam en tos, passan do
p or acid en t es d e t r ân sit o e ch egan d o at é ao h om icíd io. As
m ulheres ain da têm um a vida m ais reclusa, estan do in fin itam en te m ais expostas à violên cia dom éstica. Difer en tem en te
da violência urbana, a dom éstica incide sem pre sobre as m esm as vítim as, torn an do-se habitual.
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O país carece de estudos n esta área. Realizou-se o m apeam ento deste fenôm eno em quase todas as capitais de estados,
n o Distrito Federal e em 20 cidades do in terior do estado de
São Paulo (SAFFIOTI , in édito). Esta pesquisa, que con tou com
o apoio do Fundo de Desenvolvim ento das Nações Unidas para
a Mulher ( UNIFEM ), do Fundo das Nações Unidas para a Infância ( UNICEF ), da Organização Pan-Am ericana de Saúde ( OPAS),
da Fun dação Ford, da Fun dação MacArthur, da Fun dação de
Am paro à Pesquisa do Estado de São Paulo ( FAPESP ) e do Conselh o Nacion al de Desen volvim en to Cien tífico e Tecn ológico
( CNP q), desenvolveu-se durante m uitos anos, enfrentando toda
sorte de dificuldades. É extrem am en te difícil coorden ar um a
in vestigação deste por te n um país com o o Br asil, n o qual a
consciência profissional é precária, m as se espera que, dentro
em breve, se tenha um relatório contendo todos os dados. Por
ora, conta-se com dados parciais, um a vez que não houve tem po para inform atizar todos os coligidos. Em parte, a m orosidade resulta do caráter artesanal da pesquisa. Não se trata de um
surv ey da população, que seria ideal, m as de um estudo bastan te exaustivo da violên cia den un ciada. Foram exam in ados
todos os boletin s de ocorrên cia ( BO ) lavrados n as Delegacias
de Defesa da Mulher ( DDM ), todos os BOs de 10 % dos distritos
policiais ( DP ) e todos os BOs de delegacias de hom icídios, quando existem , anotando-se m anualm ente (à falta de laptops) os
dados do agressor e da vítim a, inform ações estas que, posteriorm en te, foram in troduzidas n o com putador. Logo, realizouse o m esm o tr abalh o duas vezes. Acom pan h ou-se o BO , que
podia ter sido arquivado ou con vertido em in quérito policial
( IP ). Neste prim eiro passo, já existia um gran de fun il. Outro
gargalo existia entre o IP e o processo crim inal. A m aioria dos
IP s era arquivada ou por falta de provas ou por falta de vontade de prosseguir. Com o já se ouviu de um procurador, responden do a um a pergun ta do porquê de a justiça ser len ta: “Os
juízes perdem m uito tem po cuidando da surra que o Sr. J osé
deu na Dona Maria e, enquanto isto, os problem as im portantes
se avolum am , retardan do as decisões” (citação de m em ór ia).
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Não é apen as este procurador que tem este en ten dim en to. Na
ver d ad e, ele apen as r eflete a com placên cia qu e a socied ad e
tem para com a violên cia dom éstica. E, en tretan to, ela talvez
seja o fen ôm en o m ais “dem ocrático”: quase todas as m ulheres recebem seu quin hão. Poucos são, en tão, os IP s tran sform ados em processos-crim e. Destes, m uito poucos term in am
em con den ação. Dados parciais de 198 8 revelam que a proporção de réus con den ados era de 11%, ten do crescido para
12,5%, em 1992, par a LCD ; 7% par a estupr o e abuso sexual,
n os dois m om en tos; ten do aum en tado de 5% para 7%, para o
crim e de am eaça, m uitas vezes de m orte, que acaba se con sum a n d o.
A solu ção n ão con siste em agr avam en to d e p en a, m as n a
certeza da pun ição. De 198 8 para 1992, an os escolhidos para
a in vestigação, com a difusão de DDM s, houve um a m udan ça
sign ificativa n os tipos de crim es com etidos: LCD , que represen tava cerca de 8 5% da violên cia dom éstica, caiu para 68 %.
Em com pen sação, o crim e de am eaça aum en tou de 4% para
21% n o in tervalo m en cion ado. Na m aioria das vezes, quan do
a m u lh er p r ocu r ava u m a DDM , n a ver d ad e, esp er ava qu e a
delegada desse um a “pren sa” em seu m arido agressor, a fim
de que a relação pudesse se estabelecer em n ovas bases (leiase harm on iosas). A am biguidade da con duta fem in in a é m uito gran de e com preen de-se o porquê disto. Em prim eiro lugar , tr ata-se d e u m a r elação afetiva, com m ú ltip las d ep en dên cias recíprocas. Em segun do lugar, raras são as m ulheres
que con stroem sua própria in depen dên cia ou que perten cem
a gr u pos d om in an tes. Segu r am en te, o gên er o fem in in o n ão
con stitu i u m a categor ia social d om in an te. In d ep en d ên cia é
d ifer en t e d e au t on om ia. As p essoas, sobr et u d o vin cu lad as
por laços afetivos, depen dem um as das outras. Não há, pois,
para n in guém , total in depen dên cia.
“Gr u p os d om in a n t es s ã o ger a lm en t e a u t ôn om os n o
sen tido de que n ão são respon sáveis por aqueles que lhes
estão abaixo e n ão têm que pedir perm issão para fazer o
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que desejam . En tretan to, isto n ão torn a os grupos dom in an tes in d ep en d en t es. [...] p or ém , eles têm a van tagem
de ter m uito m ais controle sobre o m odo com o a realidade
é defin ida e podem usar isto para m ascarar os acon tecim en t os (J OH N SON , 19 9 7, p . 14 7).
Em terceiro lugar, na m aioria das vezes, o hom em é o único
provedor do grupo dom iciliar. Um a vez preso, deixa de sê-lo,
configurando-se um problem a sem solução, quando a m ulher
tem m uitos filhos pequenos, ficando im pedida de trabalhar fora.
Entre outras m uitas razões, cabe m encionar, em quarto lugar,
a pressão que fazem a fam ília extensa, os am igos, a Igreja etc.,
no sentido da preservação da sagrada fam ília. Im porta m enos
o que se passa em seu seio do que sua preservação com o instituição. Há, pois, razões suficientes para justificar a am biguidade da m ulher, que num dia apresentava a queixa e, no seguinte, solicitava sua retirada. Isto para n ão m en cion ar as am eaças de n ovas agressões e até de m orte que as m ulheres recebiam de com panheiros violentos. Em bora nunca haja existido
a figura da retirada da queixa no ordenam ento jurídico da naçã o, ela er a en ga vet a d a . Logo q u e se in st a lou a p r im eir a
DDM brasileira, em São Paulo, em agosto de 198 5, a delegada
Rosm ary Corrêa, con hecida com o delegada Rose, atualm en te
deputada estadual, n o segun do ou terceiro m an dato, ten tou
abolir este pr ocedim en to, con sider ado m asculin o, quer en do
isto dizer que prosseguir com o processo era secundário para
os hom en s.
BOs referentes a crim es frequentes contra m ulheres, m as que
n ão se con figu r avam com o violên cia d om ést ica, er am , n ão
propriam en te an otados, m as tabulados n um form ulário especial, a fim de que se pudesse calcular quanto, por exem plo, os
estu p r os d om ésticos r ep r esen tavam d o m on tan te n u m ér ico
total deste crim e. Assim , em bora o fulcro da pesquisa ten h a
sido violência dom éstica, a não-dom éstica tam bém era com putada para efeito de com paração, evitando-se, assim , que a prim eira viesse a con stituir um un iverso fechado.
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Os processos crim inais foram acom panhados em fóruns, anotando-se os fatos principais da ocorrência, assim com o depoim en tos e provas m ateriais, com o laudos do In stituto Médico
Legal ( IML), arm as etc., chegando-se à sentença prolatada por
juiz sin gular ou à decisão do Tr ibun al do J úr i, em casos de
crim es contra a vida. Esta fase da investigação ficou prejudicada em alguns estados, em que não se conseguiu perm issão para
exam in ar processos-crim e. Outros organ ism os de den ún cia –
SOS CRIANÇA, conselhos tutelares – foram procurados, na tentativa de se detectar a m ãe agressora, que raram ente aparece
em r egistr os d e d elegacias d e polícia. A pesqu isa en volveu ,
ain d a, en t r evist as com vít im as d e violên cia d om ést ica qu e
apresentaram queixas em DDM s, assim com o com policiais dest as d elegacias esp ecializad as. O objet ivo d est as en t r evist as
consistia, de um a parte, em aprofundar o conhecim ento qualitativo sobre a violência dom éstica e, de outra, avaliar os serviços prestados pelas DDM s.
Delegacias de defesa da mulher
A ideia de cr iação de delegacias especializadas n o aten dim ento à m ulher apresenta, inegavelm ente, originalidade e intenção de propiciar às vítim as de violência de gênero em geral
e, em especial, d a m od alid ad e sob en foqu e, u m tr atam en to
diferenciado, exigindo, por esta razão, que as policiais conhecessem a área das relações de gên ero. Sem isto, é im possível
com pr een d er a am bigu id ad e fem in in a. Tod avia, os pod er es
públicos não im plem entaram a ideia original. Em São Paulo, só
em 1998 , h ou ve u m cu r so 23 sobr e violên cia d e gên er o, com
Na época, existiam cerca de 126 DDMs no estado de São Paulo. As do
interior foram trazidas e hospedadas com recursos do erário público. Eu
havia ministrado, com a colaboração de S. S. de Almeida, um curso para
comandantes e subcomandantes da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro
e, portanto, tinha o programa que elaborei e, posteriormente, desenvolvi
em sala de aula. O curso foi ministrado graciosamente, na tentativa de
que se rotinizasse. Nilo Batista era vice-governador do Rio de Janeiro,
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dur ação de 40 h or as, m in istr ado às en tão 126 delegadas de
DDM s do estado. Em bora haja dem anda por m ais cursos, o segun do ain da n ão se realizou. Não se trata de afirm ar que as
delegadas são in com peten tes. Com o policiais, devem ser todas m uito capazes. O problem a reside n o con h ecim en to das
relações de gên ero, que n ão é detido por n en hum a categoria
ocupacion al. Profission ais da saúde, da educação, da m agistratura, do Min istério Público etc., n ecessitam igualm en te e
com urgên cia, desta qualificação.
Adem ais, há que se form ularem diretrizes a serem seguidas
por todas as DDM s, a fim de se assegurar um tratam ento de boa
qu alidade e h om ogên eo a todas as vítim as de violên cia qu e
bu scam este ser viço. Talvez a pr im eir a escu ta n ão d eva ser
realizada na DDM e por policiais. Um a assistente social ou um a
psicóloga poderia, em local separado, m as próxim o da DDM ,
fazer a triagem dos casos e dar a suas protagonistas o encam in ham en to correto: serviço jurídico, de apoio psicológico, policial etc. Por en quan to, a orien tação das DDM s depen de das
boas ou m ás intuições de suas delegadas, estando m uito longe
de ser uniform e. As DDM s constituem apenas um a m edida isolada, sen do de pequen a eficácia sem o apoio de um a rede de
quando apresentei a proposta, e ele teve muita sensibilidade, aderindo à
ideia. Quando o curso foi ministrado, ele era governador. Como eu havia
tido esta experiência, a delegada Dra. Maria Inês Valente, coordenadora
de todas as DDMs do estado, trabalhou, juntamente com Maria Aparecida
de Laia, presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina, junto
ao governo para obter a verba necessária para transportar, hospedar e
alimentar as delegadas do interior. Também conseguiram numerário para
xerografar artigos, capítulos de livros e trabalhos da autoria das professoras sobre o assunto, material este distribuído às delegadas. Numa
reunião com a presença de Dra. M. I. Valente, S. Pimentel, M. Ap. de Laia,
deliberamos ampliar o curso, incorporando direitos humanos, a cargo de
Sílvia Pimentel e suas colaboradoras; comunicação, sob responsabilidade de Fátima Pacheco Jordão; sociologia, a mim atribuída; e uma abordagem psicológica da questão, sob encargo da psicóloga Malvina Muszkat.
Por serem muitas, as delegadas foram divididas em dois grupos e cada
um deles teve o mesmo curso semanal. Em certas oportunidades, encontro-me com algumas ex-alunas destes grupos, sempre prontas a
reivindicar outros cursos.
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serviços. Em bora a figura da retirada da queixa não existisse,
de que outra m aneira poderia se conduzir um a delegada, quando a m ulher voltava à DDM com esta dem anda por estar sendo
am eaçada de m orte por seu com pan h eiro, sen ão “esquecen do” a n otitia crim in is, em vir tude da ausên cia de alber gues
apropriados para acolher esta m ulher? Atualm en te, há cerca
de 80 abrigos para vítim as de violência em todo o país, o que é,
n o m ín im o, r idículo. Um a ver dadeir a política de com bate à
violência dom éstica exige que se opere em rede, englobando a
colaboração de diferen tes áreas: polícia, m agistratura, Min istério Público, defen soria pública, hospitais e profission ais da
saú d e, in clu sive d a ár ea psi, d a ed u cação, d o ser viço social
etc. e grande núm ero de abrigos m uito bem geridos. Cabe ressaltar , um a vez m ais, a n ecessidade ur gen te de qualificação
destes profission ais em relações de gên ero com realce especial da violência dom éstica. Exatam ente em razão do esvaziam ento, em term os de funções, das DDM s, cabe operacionalizar
um a rede de serviços, com todos os seus profissionais qualificados n o assun to relações de gên ero.
Os an os escolh idos para com paração – 198 8 e 1992 – são
anteriores à lei 9.0 99, que entrou em vigor no final de 1995 e
criou os J uizados Especiais, n as áreas cível e crim in al. Esta
n ova legislação alterou o rito processual, para os crim es apen ados com até um an o (a lei pode abran ger crim es apen ados
com m ais de um an o de privação da liberdade, m as, n o que
con cern e à violên cia dom éstica, são os apen ados com até um
ano que interessam ), com extinção da figura do réu, da perda
da prim ariedade, depen den do das circun stân cias, das pen as
de privação de liberdade, substituídas por pen as altern ativas,
em benefício da oralidade, da agilidade, da conciliação. Provavelm en te, fun cion a bem para dirim ir querelas en tre vizin hos,
m as tem se r evelad o u m a lástim a n a r esolu ção d e con flitos
dom ésticos, n a opin ião da m aioria das delegadas de DDM s e
outros profissionais do ram o. Da pesquisa term inada recentem en te (SAFFIOTI , 20 0 3), pode-se con cluir a ur gên cia ur gen tíssim a de, no m ínim o, reform ar a lei 9.0 99, m as seria m uito
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m ais in ter essan te legislar especificam en te sobr e a violên cia
dom éstica. Alguns países latino-am ericanos têm feito isso, entre
eles o Equador. No Brasil, a m ulta irrisória tem sido um a pena
alternativa m uito utilizada, ficando os hom ens legalm ente autorizados a voltar a agredir suas com panheiras. Paga a m ulta e
sem perda da prim ariedade – é verdade que depen den do do
com portam ento do acusado – , os hom ens sentem -se livres para
con tin uar sua “carreira” de violên cias. H á casos de m ulheres
que apresen taram queixas a DDM s, ten do sido elaborados os
term os circunstanciados ( TC), que substituíram os boletins de
ocorrência em crim es de m enor potencial ofensivo, por três e
até sete vezes. Seus com panheiros não apenas voltaram a praticar toda espécie de violên cia, especialm en te a LCD , con tr a
elas, com o assassin aram algum as. Audiên cias são realizadas,
m uitas vezes, nos corredores dos fóruns, por m esárias, sem a
presença de juiz nem de prom otor. De acordo com a lei referida, o juiz é obrigado a nom ear um advogado gratuito para as
vítim as que não constituíram o seu particular, caso de praticam ente todas, já que são as pobres que recorrem ao J ECrim (só
há um em São Paulo, m as todas as varas crim inais de todos os
fóruns são obrigadas a obedecer à lei, de caráter nacional, porque federal). Foram m uitas as audiências assistidas e nunca se
viu um a vítim a en trar com seu advogado, n em dispor de um
nom eado pelo juiz. A lei já não serve para tratar de violência
dom éstica, m as pior ainda é sua im plem entação. Por ter visto
bem de perto com o as coisas funcionam , pode-se repetir que a
Lei 9.0 99/ 95 legalizou a violência contra a m ulher, em especial a violên cia dom éstica.
Na fam ília, n a escola e em outras in stituições en sin am -se as
crian ças a n ão aceitar con vites, doces e outros presen tes de
estr an h os. Rar am en te um a m ulh er , seja cr ian ça, adolescen te, adulta ou idosa, sofre violên cia por parte de estran hos. Os
agressores são ou am igos ou con hecidos ou, ain da, m em bros
da fam ília. Isto é m uito claro em casos de abuso sexual, crim e
n o qual predom in am paren tes. Na violên cia de gên ero, teoricam en te poden do ter com o agressor tan to o h om em quan to
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a m ulher, n a prática a prevalên cia é, com um a predom in ân cia esm agad or a, d e h om en s, p ar en tes, am igos, con h ecid os,
r ar am en te estr an h os. Os tipos m ais difun didos de violên cia
con t r a a m u lh er são d e violên cia d om ést ica e d e violên cia
in tr afam iliar . É, p ois, p r u d en te m an ter o olh ar em d ir eção
aos que habitam o m esm o dom icílio, a fim de n ão se dorm ir
com o in im igo.
Nos anos escolhidos para a investigação sobre violência dom éstica, a legislação en tão vigen te previa pen as de privação
da liberdade m esm o para crim es de baixo poten cial ofen sivo,
m as raram en te um hom em era detido a prim eira vez que espan cava sua m ulh er . Mesm o n a r ein cidên cia, a im pun idade
grassava solta. Os baixos índices de condenação ilustram grosseiram en te este fen ôm en o. A rigor, n ão bastava ser con den ado, m as seria necessário cum prir a pena. Ora, o que ocorria em
m uitos casos era a evasão do sen ten ciado, haven do m ilhares
de m andados de prisão sem cum prim ento. A situação anterior
à Lei 9.0 99, portanto, não era adequada ao com bate da violência dom éstica. Todavia, a nova legislação tornou-a ainda pior,
na opinião da m aioria de profissionais desta área e desta pesquisadora. Com o já se revelou, os operadores do Direito, in clusive o advogado do povo (prom otor), im plem entam -na com
tal desprezo pelas vítim as, com tanto sexism o, que conseguem
torn á-la bem pior. Eis por que tais profission ais carecem de
qualificação em relações de gên ero.
É verdade que há nela pontos positivos. O crim e de LCD, anter ior m en te d e ação p ú blica in con d icion ad a, h oje exige r epresentação da vítim a. Este pode ser considerado um elem ento de tratam en to da vítim a pelo m en os com o pessoa adulta,
r esp on sável p or seu s at os. En t r et an t o, n ão se ofer ecem às
m ulheres os serviços de apoio de que elas necessitam , nem se
im plem en tam políticas de em poderam en to 24 desta parcela da
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Empoderamento é tradução literal do inglês empowerment. Significa
atribuir poder às mulheres, elevando, por exemplo, sua auto estima.
Também se empoderam mulheres por meio de ações afirmativas estatais. Com a Lei 9.099/95, entretanto, operou-se de modo inteiramente
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população. E sem isto a lei é n ão apen as in justa para com as
vítim as de violên cia dom éstica, com o tam bém altam en te in eficaz m esm o em seus aspectos positivos. Seus efeitos revelam
a pouca im portân cia que a sociedade atribui a um fen ôm en o
com con sequên cias m uito n egativas para a saúde orgân ica e
psíquica das m ulheres, para a educação das novas gerações e,
na m edida em que m ilhares de horas de trabalho deixam de ser
pr een ch idas todos os an os, par a o pr ópr io desen volvim en to
da n ação. O patriarcado ou ordem patriarcal de gên ero é dem asiadam ente forte, atravessando todas as instituições, com o
já se afirm ou. Isto posto, por que a J ustiça não seria sexista?
Por que ela deixaria de proteger o status quo, se aos operador es h om en s d o Dir eito isto ser ia tr abalh ar con tr a seu s pr óprios privilégios? E por que as juízas, prom otoras, advogadas,
m esárias são m achistas? Quase todos o são, hom ens e m ulher es, p or qu e am bas as categor ias d e sexo r esp ir am , com em ,
bebem , dorm em etc., n esta ordem patriarcal de gên ero, exatam en te a subordin ação devida ao hom em .
Se todos são socializados para ser m achistas, não poderá esta
sociedade m udar, cam inhando para a dem ocracia plena? Este
processo é lento e gradual e consiste na luta fem inista. Trocar
h om en s por m ulh er es n o com an do dar ia, com toda cer teza,
num a outra hierarquia, m as sem pre um a hierarquia geradora
de desigualdades. As fem inistas não deixam de ser fem ininas,
n em são m al am adas, feias e in vejosas do poder m asculin o.
São seres hum anos sem consciência dom inada, que lutam sem
cessar pela igualdade social en tre h om en s e m ulh eres, en tre
brancos e negros, entre ricos e pobres. Aprofundar-se-á a análise deste assun to n o próxim o capítulo.
oposto ao empoderamento. As mulheres vítimas de violência doméstica
passaram a ser sinônimos de cesta básica. Os juízes, em geral dotados
de um sexismo exacerbado, mas sem imaginação, adoram sentenciar
os acusados com: o pagamento de uma multa, geralmente de 60 reais,
ou a entrega de uma cesta básica a uma instituição de caridade. Ainda
dentro do fórum, o acusado diz à vítima que ela passará a fazer quatro
faxinas por semana em vez de duas, porque ele terá de comprar duas
cestas básicas, já que lhe dará duas surras em lugar de uma.
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4. “Não há
revolução
sem teoria”
(Frase de Lenin)
Na década de 1970 , m as tam bém nos fins da anterior, várias
fem inistas, especialm ente as conhecidas com o radicais, prestaram grande serviço aos então chamados estudos sobre mulher,
utilizan do um con ceito de patriarcado cuja sign ificação raram en te m an tin h a qu alquer relação com o con structo m en tal
w eberiano. Rigorosamente, muitas delas nem conheciam Weber,
exceto de segunda mão, sendo sua intenção bastante política, ou
seja, a de denunciar a dominação masculina e analisar as relações
homem– mulher delas resultantes. Não se mencionava a exploração que, na opinião da autora deste livro, constitui um a das
faces de um m esm o processo: dom inação-exploração ou exploração-dom inação. Quando consta apenas o term o dom inação,
suspeita-se de que a visão da sociedade seja tripartite – política, econôm ica e social – , isto é, de filiação weberiana.
Por este lado, é possível, sim, estabelecer um nexo entre esta
vertente do pensam ento fem inista e Weber. Muito m ais recen95
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temente, feministas francesas cometeram o mesmo erro (COMBES
e H AICAULT, 1984), situando a dom inação no cam po político e
a exploração no terreno econômico. A hierarquia entre homens
e mulheres, com prejuízo para as últimas, era, então, trazida ao
debate, fazen do face à abordagem fun cion alista, que, em bora
enxergasse as discrim inações perpetradas contra as m ulheres,
situava seus papéis dom ésticos e públicos no m esm o patam ar,
atribuindo-lhes igual potencial explicativo. Estudos sobre família 25, notadamente os de Talcott Parsons (1965), cuja leitura de
Weber foi realizada com categorias an alíticas fun cion alistas,
apresentavam este traço, assim como pesquisas incidindo diretamente sobre mulheres. Neste último caso, estavam, entre outros, Chom bart de Lauwe (1964) e dem ais pesquisadores que
colaboraram em sua antologia.
Não foram tão som ente fem inistas radicais que contestaram
esta abordagem hom ogen eizadora dos papéis sociais fem in in os. J uliet Mitch ell, já em 1966, publicava ar tigo, an cor ada
em u m a leitu r a alth u sser ian a de Mar x, atr ibu in do distin tos
relevos às diferen tes fun ções das m ulheres. Em bora, m utatis
m utan dis 26 , reafirm asse velha tese deste pen sador, con testava o que, em seu entendim ento, era representado pelo privilégio d esfr u t a d o p ela p r od u çã o st r ict o sen su , e m esm o la t o
sen su, n o pen sam en to m arxista. Con siderava im prescin dível,
para a liberação das m ulheres, um a profunda m udança de todas as estruturas das quais elas participam , e um a “un ité de
rupture” (p. 30 ), ou seja, a descoberta, pelo m ovim ento revolucion ário, do elo m ais fraco n a com bin ação.
As estruturas por ela discrim inadas – produção, reprodução,
socialização e sexualidade – , contrariam ente ao procedim ento
Uma coletânea apresentando numerosas abordagens foi organizada por Arlene S. SKOLNICK e Jerome H. SKOLNICK. (1971) Family In
Transition – Rethinking Marriage, Sexuality, Child Rearing, and Family
Organization. USA/Canadá: Little, Brown & Company Limited.
26
O primeiro a afirmar que o desenvolvimento de uma sociedade se
mede pela condição da mulher foi o socialista utópico Charles Fourier,
encampado posteriormente por Marx e, sobretudo, por Engels.
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hom ogen eizador, são percebidas com o apresen tan do um desenvolvim ento desigual, cuja im portância é ressaltada, inclusive para a estratégia de luta. Mitchell estabeleceu in stigan tes
in terlocuções com a Psican álise e com distin tas corren tes do
pensam ento m arxista. O prim eiro diálogo continua m uito vivo
até hoje, ten do dado algun s frutos in teressan tes tan to para a
Psicanálise quanto para outras ciências que se debruçam sobre
a questão de gênero. Não se pode afirmar o mesmo com relação
à in terlocução estabelecida com o pen sam en to m arxista. Na
década de 1970 , Hartmann (1979a) publicou artigo em que considerou os conceitos marxistas sex-blind (cegos para o gênero),
opinião que prosperou e calou am pla e profundam ente, fazendo-se presente até os dias atuais. Nenhum(a) feminista interpelou desta form a o positivism o e a Sociologia da com preensão,
de Weber. E, no entanto, os conceitos formulados por estas vertentes da Sociologia não discernem o gênero, ou seja, tam bém
são sex-blind. É bem verdade que o m arxism o adquiriu m uita
evidência, tendo sido um dos pensam entos dom inantes do século XX, ao lado da Psicanálise.
Todavia, não obstante a m isoginia de Freud e de m uitos de
seus seguidores, n ão h ouve este tipo de in terpelação de sua
teoria. Note-se – e isto faz a diferença – que o questionam ento
d as cat egor ias m ar xist as d eu -se n o cam p o ep ist em ológico,
enquanto isto não ocorreu com a Psicanálise. Freud tratou da
filogênese 27, m as jam ais fez qualquer referência à ontogênese 28 .
H á, certam en te, um a com pon en te ideológica im portan te n essas in terlocuções, a m erecer m en ção. O pen sam en to psican alítico foi subversivo e con servador, ao passo que ao m arxista
não se aplica o segundo term o. Neste sentido, havia possibilidade de fin alizar o en quadram en to da Psican álise n o status
Filogênese significa o desenvolvimento, no caso do ser humano.
A ontogênese é exatamente a busca das origens do ser. Para Freud,
do ser humano. A ontologia busca compreender a natureza e a gênese, a origem, para Marx, do ser social, ou seja, da sociedade. É isto
que Freud não faz.
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q u o, p or in t er m éd io d o q u e F ou ca u lt ( 19 76 ) ch a m a d e
edipianização do agente social, ou seja, de sua sujeição à lei do
pai. Um dos grandes m éritos deste últim o autor foi com preend er a h istor icid ad e d a sexu alid ad e. Com efeito, o exer cício
desta não se dá num vácuo social, m as obedece às norm as sociais do m om en to. Isto n ão sign ifica que a sexualidade esteja
sem pre vinculada à lei do pai. Sociedades igualitárias do ângulo do gênero não são presididas por esta lei, o que não equivale
a dizer que n ão h aja regras para o exercício da sexualidade.
Certamente, Freud foi, neste particular, o grande inspirador de
Fou cau lt (1976).
Com o o m arxism o não se presta a cum plicidades com o status
quo, as críticas a ele dirigidas, n o passado e n o presen te, são
superficiais, n ão atin gin do sequer sua epistem ologia. Não se
con h ece n en h u m a abor d agem on tológica d a obr a d e Fr eu d ,
certam ente em razão da ausência de um a ontogênese. É o próprio con teúdo das categorias do pen sam en to m arxian o, resp on sáveis p elo p r ocesso d e con h ecim en t o, qu e é p ost o em
xeque. As assim denom inadas suspeitas, e até m esm o recusas
veem entes, com relação às explicações universais, não justificam a acusação de que os con ceitos m arxistas são in capazes
de perceber o gênero. Weber está na base de porção significativa dos pensadores pós-m odernos, sem que seus porta-vozes
m ais proem inentes, ou nem tanto, se interroguem a que conduzirá tão extrem ado relativism o ou se seus tipos ideais podem ser corretam ente utilizados quando aplicados a situações
distintas daquelas com base nas quais foram form ulados.
Gran de con hecedora da obra de Weber (1964, 1965), Maria
Sylvia d e Ca r va lh o Fr a n co (19 72 ) m ost r a com o o or d en a m en to dos fen ôm en os sociais é feito com prin cípios a priori,
n ão apen as pelo autor em questão com o tam bém por outros
idealistas filiados ao pen sam en to kan tian o. A autora detecta,
n o p en sa d or em p a u t a , a p r esen ça d e u m a “su b jet ivid a d e
in stauradora de sign ificados” com o alicerce do objeto, o que
lh e p er m ite afir m ar , a r esp eito d a tip ologia d a d om in ação,
que o sen tido em pírico específico das relações de dom in ação
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é p r od u zid o p ela ativid ad e em p ír ica d e u m a su bjetivid ad e.
Est e m esm o sen t id o d efin e o objet o e con st it u i a au t oju stificação por m eio da n aturalização das desigualdades. Weber
an alisa, assim , as bases d a legitim id ad e r ecor r en d o a fatos
sem p r e r ed u t íveis à su b jet ivid a d e, in scr even d o-se a a u t ojustificação com o processo pelo qual se erige em lei un iversal o con ceito subjacen te à dom in ação.
A tradição opera com o princípio teórico, constitutivo de um a
das for m as de dom in ação. Tan to o m étodo qu an to o objeto
encontram seu sustentáculo no sentido. O rigor da interpretação é assegurado pela identidade, no que tange à racionalidade,
n o objeto e n o m étod o. Neste sen tid o, a ação r acion al com
relação a fins perm ite a captação da irracionalidade das ações
d ela d iscr ep an tes. Obser vam -se, ao lad o d e u m r elativism o
praticam en te absoluto, outros pecados in aceitáveis até m esm o p ar a aqu eles em cu jo p en sam en to Weber p en etr ou . Na
m ed id a em qu e o m ét od o e o objet o ap r esen t am a m esm a
racion alidade, e a subjetividade in staura sen tido, o prim eiro
ganha prim azia: a razão é coextensiva à sociedade. Isto posto,
não é difícil perceber as dificuldades, ou a im possibilidade, de
se utilizarem con ceitos weberian os em outros con textos. Segundo a autora em pauta, as configurações históricas são únicas
em term os con ceituais e são apreen síveis com o form ações de
sentido fechadas sobre si m esm as. Trata-se de form ações nãopassíveis de fragmentação. Embora a análise exija a decomposição dos fenômenos, é sempre presidida pelo sentido, caracterizado por um prin cípio sin tetizador n o seio do qual se situa a
lógica substantiva do sistem a.
A an álise de Fran co, que in cide sobre o m au em prego dos
con structos m en tais w eberian os pelos teóricos da m odern ização, é, sem dú vida, de alto n ível e totalm en te per tin en te.
Em outros term os, os tipos ideais weberian os n ão se prestam
ao exam e d e ou t r as r ealid ad es d ist in t as d aqu elas qu e lh es
d er a m or igem . Efet iva m en t e, o t ip o id ea l é con st r u íd o d e
m an eira a atá-lo à especificidade do con texto social n o qual
teve su a gên ese. Tr ata-se d e con ceitos gen éticos. O pr ópr io
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Weber defin e seu esquem a de pen sam en to com o um un iverso n ão-con t r ad it ór io d e r elações p en sad as. Com o o p en sam en to op er a u m a acen tu ação u n ilater al d e cer tos asp ectos
d a r ea lid a d e, os con ceit os n ã o cor r esp on d em exa t a m en t e
a e s t a , s e n d o , n e s t e s e n t id o , u m a u t o p ia . O vín cu lo d o
con structo m en tal com a realidade é resum ido pelo próprio
autor com o um a represen tação pragm ática, elaborada segun do a in tuição e a com preen são, da n atureza específica destas
relações de acordo com um tipo ideal.
A máquina do patriarcado
Esta incursão por Franco e por Weber, ainda que ligeira, deixa patente a não-utilização do conceito weberiano de patriarcado por parte de fem inistas 29 , sejam elas radicais (F IRESTONE ,
1972; R EED , 1969; KOEDT , LEVINE , R APONE , 1973; M ILLETT ,
1969, 1970 , 1971) ou m arxistas (M ILLETT , 1971; R EED , 1969;
D AWSON et alii, 1971; E ISENSTEIN , 1979; SARGENT, 198 1). Certam ente, todas as fem inistas que diagnosticaram a dom inação
patriarcal nas sociedades contem porâneas sabiam , não que os
con ceitos gen éticos de Weber são in tran sferíveis, m as que já
não se tratava de com unidades nas quais o poder político estivesse or gan izad o in d epen d en tem en te d o Estad o 30 . Por qu e,
en tão, n ão u sar a exp r essão d om in ação m ascu lin a, com o o
tem feito Bourdieu, ou falocracia ou, ain da, an drocen trism o,
falo-logo-cen tr ism o? Pr ovavelm en te, por n um er osas r azões,
en tre as quais cabe m en cion ar: este con ceito reform ulado de
patriarcado exprim e, de um a só vez, o que é expresso nos ter-
Citam-se apenas algumas. Há feministas que entram em duas categorias. Às vezes, como é o caso de Sargent, organizadora da coletânea
citada, trata-se de várias autoras com posições metodológicas distintas
e, inclusive, opostas. A classificação usada é, portanto, precária. Todas, porém, utilizam o conceito de patriarcado. Dispensa-se, aqui, a
citação de Marx e Engels, cujo uso do referido conceito é notório.
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MEILLASSOUX, Claude (1975), mostra bem este fenômeno, analisando
comunidades domésticas.
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m os logo acim a sugeridos, além de trazer estam pada de form a
m uito clara a força da in stituição, ou seja, de um a m áquin a
bem azeitada, que opera sem cessar e, abrindo m ão de m uito
r igor , q u a se a u t om a t ica m en t e. Com o b em m ost r a Zh a n g
Yim ou, no film e Lanternas verm elhas, nem sequer a presença
do patriarca é im prescin dível para m over a m áquin a do patriarcado, levando à forca a terceira esposa, pela transgressão
com etida con tra a ordem patriarcal de gên ero.
Tã o som en t e r ecor r en d o a o b om sen so, p r esu m e-se q u e
n en hum (a) estudioso(a) sério(a) con sideraria igual o patriarcado rein an te n a Aten as clássica ou n a Rom a an tiga ao que
vige n as sociedades urban o-in dustriais do Ociden te. Mesm o
tom ando só o m om ento atual, o poder de fogo do patriarcado
vigen te en tr e os povos afr ican os e/ ou m u çu lm an os é extr em am en te gran de n o que tan ge à subordin ação das m ulheres
aos hom ens. Observam -se, por conseguinte, diferenças de grau
no dom ínio exercido por hom ens sobre m ulheres. A natureza
do fenôm eno, entretanto, é a m esm a. Apresenta a legitim idade que lhe atribui sua naturalização.
Por outro lado, com o prevalece o pen sam en to dicotôm ico,
pr ocu r a-se d em on str ar a u n iver salid ad e d o patr iar cad o por
m eio da in existên cia de provas de even tuais sociedades m atr iar cais. Neste er r o, aliás, n ão in cor r em apen as as pessoas
com un s. Fem in istas radicais tam bém procederam desta form a. De acordo com a lógica dualista, se há patriarcado, deve
h aver m atr iar cad o. A p er gu n ta cabível n aqu ele m om en to e
ain d a h oje é: h ou ve socied ad es com igu ald ad e social en t r e
h om en s e m u lh er es? Esta in ter r ogação ter ia, m u ito segu r am en te, d ad o ou tr o d estin o à valor ização d a im por tân cia d o
conceito de patriarcado na descrição e na explicação da inferioridade social das m ulheres.
O film e La n ter n a s v er m elha s apr esen ta im agen s e tr am a
reveladoras do acim a expresso. Além de o patriarcado fom entar a guerra en tre as m ulheres, fun cion a com o um a en gren agem quase autom ática, pois pode ser acion ada por qualquer
um , inclusive por m ulheres. Quando a quarta esposa, em esta101
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do etílico, den un cia a terceira, que estava com seu am an te, à
segunda, é esta que faz o flagrante e que tom a as providências
para que se cum pra a tradição: assassin ato da “traidora”. O
patr iar ca n em sequer estava pr esen te n o palácio n o qual se
desen rolaram os fatos. Duran te toda a película, n ão se vê o
rosto deste hom em , revelando este fato que Zhang Yim ou captou corretam en te esta estrutura hierárquica, que con fere aos
hom ens o direito de dom inar as m ulheres, independentem ente da figura hum ana singular investida de poder. Quer se trate
de Pedro, J oão ou Zé Ninguém , a m áquina funciona até m esm o
acion ada por m ulh eres. Aliás, im buídas da ideologia que dá
cobertura ao patriarcado, m ulheres desem penham , com m aior
ou m enor frequência e com m ais ou m enos rudeza, as funções
do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou adolescen tes, segun do a lei do pai. Ain da que n ão sejam cúm plices
deste regim e, colaboram para alim en tá-lo.
Tam bém há categorias profission ais cujo papel con siste em
en qu adr ar (BERTAUX, 1977) seu s su bor din ados n este esqu em a d e p en sa r / sen t ir / a gir . Est es t r ês t er m os r ep r esen t a m
facetas de um a unidade: o ser hum ano. Isto é im portante para
não se reduzir o patriarcado a um m ero adjetivo de um a ideologia. Não que esta não tenha um substrato m aterial. Ela o tem
e ele assu m e en or m e im por tân cia qu an do n ão se oper a por
categorias dicotôm icas, separan do corpo de m en te, n atureza
de cultura, razão de em oção.
Em b or a h a ja p r ofu n d a s d ifer en ça s en t r e a s t r ês esfer a s
on tológicas – a in orgân ica, a orgân ica e o ser social – , um a
n ão pr escin d e d as d em ais. Na pr im eir a, n ão h á vid a e, por
con segu in te, n ão h á r epr od u ção. H á u m pr ocesso d e tr an sform ação de um estado em outro estado, a roch a torn an dose ter r a, por exem plo. Na segu n d a, h á vid a e, por tan to, r eprodução. Um a m an gueira produzirá sem pre m an gas, jam ais
jacas. Na esfer a p r op r iam en te social, a con sciên cia d esem pen h a papel fun dam en tal, perm itin do a pré-ideação das ativid ad es e até, pelo m en os par cialm en te, a pr evisão d e seu s
r esu lt ad os. Na ver d ad e, as t r ês esfer as on t ológicas con st i102
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tuem um a un idade, com o bem m ostra Lukács (1976-8 1), sen do irredutíveis um a(s) à(s) outra(s). O ser social, dotado de
con sciên cia, é respon sável pelas tran sform ações da sociedad e, per m an ecen d o, en tr etan to, u m ser n atu r al. A socied ad e
tem , pois, fun dam en to biológico.
O pen sam en to cartesian o separou radicalm en te o corpo da
psique, a em oção da razão, gerando verdadeiro im passe. Efetivam ente, se a cultura dispõe de um a enorm e capacidade para
m odelar o corpo, este é o próprio veículo da tran sm issão das
tr ad ições. Com o, en tr etan to, r estabelecer a u n id ad e d o ser
hum ano sem recorrer a um a abordagem ontológica? Entre as
fem in istas, é extr em am en te r ar o este tip o d e ap r oxim ação.
Wh itbeck (198 3) ten ta, em in ter essan te ar tigo, apr opr iar -se
do real em term os de um a ontologia fem inista, capaz de conter
– e aí reside sua im portân cia – o diferen te e o an álogo. Não
procede, contudo, em term os de um a ontogênese, a um a análise das relações hom em – m ulher. Duas tentativas de tratar esta
questão n estes m oldes for am r ealizadas, ao que se sabe, n o
Brasil (SAFFIOTI , 1991, 1997b). É preciso, ainda, trabalhar m uito nesta direção, talvez ligeiram ente neste livro, ao analisar o
con ceito de gên ero.
Não se t r at a d e d efen d er a t ese d e qu e os est u d os sobr e
m ulher(es) devam ceder espaço, inteiram ente, aos estudos de
gênero. Há ainda m uita necessidade dos prim eiros, na m edida
em que a atuação das m ulheres sem pre foi pouquíssim o registrada e que, por via de consequência, a maior parte de sua história está por ser estudada. Historiadoras feministas (BRIDENTHAL
e KONNZ, 19 77; CARROLL , 19 76 ; F I GES , 19 70 ; F I SH ER , 19 79 ;
GIMBUTAS, 198 2; H ARTMAN e BANNER , 1974; J ANEWAY, 1971,
198 0 ; LERNER , 1979, 198 6; TH OMPSON , 1964) têm , é verdade,
r ealizad o esfor ços n est a d ir eção. Mas h á, ain d a, u m lon go
caminho a percorrer. E é absolutamente imprescindível que esta
trajetória seja descrita para que haja em poderam ento, não de
mulheres, mas da categoria social por elas constituída. Há uma
ten são en tre a experiên cia histórica con tem porân ea das m ulheres e sua exclusão dos esquemas de pensamento, que permi103
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tem a interpretação desta experiência. A este fenômeno Lerner
(1986) chama de “a dialética da história das mulheres”.
Além de em poderar a categoria m ulheres, e não apenas m ulheres, o conhecim ento de sua história perm ite a apreensão do
caráter histórico do patriarcado. E é im prescin dível o reforço
perm an en te da dim en são h istórica da dom in ação m asculin a
par a que se com pr een da e se dim en sion e adequadam en te o
p atr iar cad o. Con sid er a-se m u ito sim p lista a alegação d e ahistoricidade deste conceito. Prim eiro, porque este constructo
m en tal pode, sim , apr een der a h istor icidade do patr iar cado
com o fen ôm en o social que é, além do fato de o con ceito ser
heurístico. Segundo, porque na base do julgam ento do conceito com o a-histórico reside a n egação da historicidade do fato
social. Isto equivale a afirm ar que por trás desta crítica esconde-se a presun ção de que todas as sociedades do passado rem oto, do passado m ais próxim o e do m om ento atual com portaram / com portam a subordin ação das m ulheres aos hom en s.
Quem enxerga Weber no conceito de patriarcado utilizado por
fem in istas n a verdade in corre, n o m ín im o, em dois erros: 1)
não conhece suficientem ente este autor; 2) im puta a estas intelectuais/ m ilitan tes a ign orân cia total de que este regim e de
relações hom em – m ulher tenha tido um a gênese histórica posterior a um outro dele distinto, m as tam bém hierárquico. Ainda que não se possa aceitar a hipótese de sociedades m atriarcais
nem prévias às patriarcais nem a estas posteriores, por falta de
com provação h istórica, h á evidên cias apreciáveis, sobretudo
de natureza arqueológica, de que existiu outra ordem de gênero, distinta da m antida pela dom inação m asculina. A fim de se
adentrar este difícil terreno, é preciso que se parta, explicitam en te, d e u m con ceito d e patr iar cad o e d e u m con ceito d e
gênero. Apelar-se-á, no m om ento, para Hartm ann (1979), definindo-se patriarcado com o um pacto m asculino para garantir a opressão de m ulheres. As relações hierárquicas en tre os
hom en s, assim com o a solidariedade en tre eles existen te, capacitam a categoria con stituída por hom en s a estabelecer e a
m an ter o con trole sobre as m ulheres.
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Há que se fazerem alguns comentários sobre este conceito de
patriarcado, a fim de aclarar certas nuanças importantes. Seguramente, este regime ancora-se em uma maneira de os homens
assegurarem, para si mesmos e para seus dependentes, os meios
necessários à produção diária e à reprodução da vida. Bastaria,
presume-se, mencionar a produção da vida, na medida em que
ela inclui a produção antroponômica (BERTAUX, 1977). Há, sem
dúvida, um a econ om ia dom éstica, ou dom esticam en te organizada, que sustenta a ordem patriarcal. Dentre os diferentes
m achos há, pelo m enos, um a hierarquia estabelecida com base
nas distintas faixas etárias, cada um a desem penhando suas funções sociais e tendo um certo significado. A hierarquia apoiada na idade, entretanto, não é suficiente para im pedir a em ergên cia e a m an u t en ção d a solid ar ied ad e en t r e os h om en s.
Tam pouco o são, de form a perm an en te, as con tradições presen tes n as classes sociais e n o r acism o. A in ter depen dên cia
gerada por estas duas últim as clivagens e a solidariedade entre
os hom ens autorizam os especialistas a antecipar a determ inação, em m aior ou m enor grau, do destino das m ulheres com o
categor ia social.
Neste regim e, as m ulheres são objetos da satisfação sexual
dos hom ens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e
de novas reprodutoras. Diferentem ente dos hom ens com o categoria social, a sujeição das m ulheres, tam bém com o grupo,
en volve p r est ação d e ser viços sexu ais a seu s d om in ad or es.
Esta som a/ m escla de dom inação e exploração é aqui entendida com o opressão, discussão a ser retom ada m ais adiante. Ou
m elh or , com o n ão se t r at a d e fen ôm en o qu an t it at ivo, m as
qualitativo, ser explorada e dom inada significa um a realidade
n ova. Tam bém parece ser este, aproxim adam en te, o sen tido
atribuído por Hartm ann ao am bíguo term o opressão, em bora
ela afirm e que as m ulheres são dom inadas, exploradas e oprim idas, de form a sistem ática (1979a). Se a palavra oprim idas
pode ser agregada às palavras dom in adas e exploradas, isto
sign ifica que tem sen tido próprio, in depen den te do sign ificado das outras.
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O importante a reter é que a base material do patriarcado não
foi destruída, não obstante os avanços fem ininos, quer na área
profissional, quer na representação no parlam ento brasileiro e
demais postos eletivos políticos. Se na Roma antiga o patriarca
tinha direito de vida e morte sobre sua mulher, hoje o homicídio é crim e capitulado no Código Penal, m as os assassinos gozam de am pla im punidade. Acrescente-se o tradicional m enor
acesso das m ulheres à educação adequada à obten ção de um
posto de trabalho prestigioso e bem remunerado. Este fenômeno marginalizou-as de muitas posições no mercado de trabalho.
A exploração chega ao ponto de os salários m édios das trabalhadoras brasileiras serem cerca de 64% ( IBGE ) dos rendim entos médios dos trabalhadores brasileiros 31, embora, nos dias atuais, o grau de escolaridade das prim eiras seja bem superior ao
dos segundos. A dom inação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação
salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em
sua m arginalização de im portantes papéis econôm icos e político-deliberativos, m as tam bém no controle de sua sexualidade
e, por con seguin te, de sua capacidade reprodutiva. Seja para
in duzir as m ulheres a ter gran de n úm ero de filhos, seja para
convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tem po en tre os filhos, o con trole está sem pre em m ãos
m asculinas, em bora elem entos fem ininos possam interm ediar
e m esm o im plem entar estes projetos.
Ainda que o conceito de Hartmann apresente inegáveis qualidades, é necessário se fazerem certos acréscimos. O patriarcado,
em presença de – na verdade, enovelado com – classes sociais e
racismo (SAFFIOTI , 1996), apresenta não apenas uma hierarquia
Em outubro de 2001, quando foram coligidos os dados, pela Fundação
Perseu Abramo, da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e
privado”, a situação era a seguinte: famílias recebendo até 2 salários
mínimos = 42% (então, 360 reais); mais de 2 a 5 = 34%; mais de 5 a 10
= 12%; mais de 10 a 20 = 6%; e acima de 20 SM (3.600 reais), tãosomente 2%.
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entre as categorias de sexo, mas traz também, em seu bojo, uma
contradição de interesses. Isto é, a preservação do status quo
consulta os interesses dos homens, ao passo que transformações
no sentido da igualdade social entre homens e mulheres respondem às aspirações fem ininas. Não há, pois, possibilidade de se
con siderarem os in teresses das duas categorias com o apen as
conflitantes. São, com efeito, contraditórios. Não basta ampliar o
campo de atuação das mulheres. Em outras palavras, não basta
que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas etc., tradicion alm en te reservadas aos hom en s.
Como já se afirmou, qualquer que seja a profundidade da dom in ação-exploração da categoria m ulheres pela dos hom en s, a
natureza do patriarcado continua a m esm a. A contradição não
encontra solução neste regim e. Ela adm ite a superação, o que
exige transformações radicais no sentido da preservação das diferenças e da eliminação das desigualdades, pelas quais é responsável a sociedade. J á em uma ordem não-patriarcal de gênero a
contradição não está presente. Conflitos podem existir e para
este tipo de fenômeno há solução nas relações sociais de gênero
isentas de hierarquias, sem mudanças cruciais nas relações sociais mais amplas.
As origens do conceito de gênero
Diferentemente do que, com frequência, se pensa, não foi uma
mulher a formuladora do conceito de gênero. O primeiro estudioso a m en cion ar e a con ceituar gên ero foi Robert Stoller 32
(1968). O conceito, todavia, não prosperou logo em seguida. Só
a partir de 1975, com o famoso artigo de Gayle Rubin, mulher,
A rigor, embora não haja formulado o conceito de gênero, Simone de
Beauvoir mostra que só lhe faltava a palavra, pois, em sua famosa frase
– “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” – estão os fundamentos
do conceito de gênero. Lutando contra o essencialismo biológico – “A
anatomia é o destino” –, enveredou pela ação da sociedade na transformação do bebê em mulher ou em homem. Foi, por conseguinte, a precursora do conceito de gênero (SAFFIOTI, 1999b).
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frutificaram estudos de gên ero, dan do origem a um a ên fase
pleon ástica em seu car áter r elacion al e a um a n ova postur a
adjetiva, ou seja, a perspectiva de gênero. Vale a pena retroagir
um quarto de século, a fim de se perceberem certas n uan ças
hoje consideradas fam iliares e, portanto, desconhecidas. Confor m e afir m ou Rubin , em 1975, um sistem a de sexo/ gên er o
consiste numa gramática, segundo a qual a sexualidade biológica é transform ada pela atividade hum ana, gram ática esta que
torna disponíveis os m ecanism os de satisfação das necessidades sexuais transformadas. Embora os elementos históricos recolhidos até o momento da redação do mencionado artigo indicassem a presença sistemática de hierarquia entre as categorias
de sexo, Rubin adm ite, pelo m en os teoricam en te, relações de
gênero igualitárias. Recomenda a manutenção da diferença entre a necessidade e a capacidade humana de organizar de forma
opressiva, em piricam en te, os m un dos sexuais im agin ários ou
reais que cria. Segundo a autora, o patriarcado abrange os dois
significados. Diferentem ente, o sistem a de sexo/ gênero aponta
para a não-inevitabilidade da opressão e para a construção social das relações que criam este ordenam ento. Assim , de acordo com ela, o con ceito de sistem a de sexo/ gên er o é n eutr o,
servindo a objetivos econôm icos e políticos distintos daqueles
aos quais originariam ente atendia.
Com o por ta de en tr ada e cam in h o explor atór io das n ovas
reflexões acerca das representações sociais do m asculino e do
fem inino, o artigo de Rubin revela grande sofisticação. A elaboração social do sexo (SAFFIOTI , 1969a) deve m esm o ser ressaltada, sem , con tudo, gerar a dicotom ia sexo e gên ero, um
situado n a biologia, n a n atureza, outro, n a sociedade, n a cultura. É possível trilhar cam inhos para elim inar esta dualidade.
Algum as poucas teorias já form uladas têm tratado de fugir das
categor ias car tesian as, com cer to êxito. Um gr an d e con tin gente de fem inistas, m ulheres e hom ens, tem com batido o raciocínio dualista, o que já representa algo.
A postura aqui assum ida con siste em con siderar sexo e gên ero um a un idade, um a vez que n ão existe um a sexualidade
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biológica in depen den te do con texto social em que é exercida.
A on togên ese tem -se m ostrado um a via frutífera para a preservação da un idade do in orgân ico, do orgân ico e do social.
Movim en tos sociais recen tes e atuais, com o o ecologista, têm
um a percepção m ais ou m enos aguda desta integração. Guattari
(1990 ), cam inhando por outras trilhas, elaborou sua ecosofia,
ou seja, uma costura ético-política entre os três momentos ecológicos – m eio am bien te, relações sociais e subjetividades – ,
r essalt an d o a im p or t ân cia d os p r ocessos m olecu lar es, n os
quais estão com preen didos a sen sibilidade, a in teligên cia e o
desejo. Com o se pode observar facilm ente, a unidade do sexo/
gên ero foi, de certo m odo, preservada. In cidin do especificam ente sobre as relações de gênero, Guattari propõe, em outra
lin guagem – um a r essin gular ização in dividual e/ ou coletiva
das subjetividades, fugin do da form atação m ediática – , um a
reorgan ização, en tre outras, da ordem de gên ero.
Naquele m om en to, Rubin precisou separar as duas dim en sões subsum idas n o con ceito de patriarcado: o sexo e o gên er o. Em bor a o qu alificat ivo n eu t r o, u sad o p ar a gên er o, n ão
ten ha sido apropriado, ela abriu cam in ho, com ele, para adm itir, ao m en os teoricam en te, um a altern ativa à dom in ação
m asculin a, ou seja, ao patriarcado. Pen a é que ten ha restrin gido dem asiadam en te o uso deste con ceito, n um a con tr adição com sua própria cren ça de que todas ou quase todas as
socied ad es con h ecid as ap r esen t ar am / ap r esen t am a su bor din ação fem in in a. Com o an tropóloga, porém , poderia ter-se
debruçado sobre dados referen tes a sociedades de caça e coleta, a fim de con ferir realidade àquilo que adm itia som en te
n o plan o da teoria. Um dos pon tos im portan tes de seu trabalho con siste em deixar m ais ou m en os livre o em prego sim ultân eo dos dois con ceitos.
O conceito de gênero, no Brasil, alastrou-se rapidam ente na
década de 1990 . J á n o fim dos an os 198 0 , circulava a cópia
xér ox d o ar t igo d e J oan Scot t (19 8 3, 19 8 8 ). Tr ad u zid o em
1990 , no Brasil, difundiu-se rápida e extensam ente. O próprio
título do trabalho em questão ressalta o gênero com o catego109
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r ia a n a lít ica , o q u e t a m b ém ocor r e a o lon go d o a r t igo. A
epígrafe utilizada pela historiadora, retirada de um dicionário,
r efor ça, de m an eir a r adical, o car áter an alítico da categor ia
gên ero. Não obstan te, n em todos os bon s dicion ários seguem
a m esm a lin h a d o escolh id o p or ela . T h e Con cise Ox for d
Dictionary chega a registrar gênero com o o sexo de um a pessoa, em lin guagem coloquial. Para m an ter o rigor con ceitual,
entretanto, pode-se adotar a expressão categorias de sexo para
se fazerem referên cias a h om en s e a m ulh eres com o grupos
diferen ciados, em bora a gram ática os distin ga pelos gên eros
m asculin o e fem in in o e apesar de o gên ero dizer respeito às
im agens que a sociedade constrói destes m esm os m asculino e
fem inino. Neste sentido, o conceito de gênero pode representar um a categoria social, histórica, se tom ado em sua dim en são m eram en te descritiva, ain da que seja preferível voltar à
velh a exp r essão cat egor ia d e sexo (S AFFI OTI , 19 6 9 a, 19 77).
Um a das razões, porém , do recurso ao term o gênero foi, sem
d ú vid a, a r ecu sa d o essen cialism o biológico, a r ep u lsa p ela
im utabilidade im plícita em “a anatom ia é o destino”, assunto
can den te n aquele m om en to h istórico.
Deu-se, in dubitavelm en te, um passo im portan te, ch am an do-se a atenção para as relações hom em – m ulher, que nem sem pre pareciam preocupar (ou ocupar) as(os) cientistas. Era óbvio q u e s e a s m u lh er es er a m , com o ca t egor ia s ocia l,
discrim in adas, o eram por hom en s n a qualidade tam bém de
um a categoria social. Mas, com o quase tudo que é óbvio passa
despercebido, houve van tagem n esta m udan ça con ceitual. No
Brasil, já na década de 1960 , realizou-se estudo sobre m ulheres, pesquisan do-se tam bém seus m aridos (SAFFIOTI , 1969b).
A in t er p r et ação d o car át er r elacion al d o gên er o, t od avia,
deixa, m uitas vezes, a desejar. Com efeito, se para esta vertente do pensam ento fem inista gênero é exclusivam ente social, a
queda no essencialism o social é evidente. E o corpo? Não desem penha ele nenhum a função? O ser hum ano deve ser visto
com o um a totalidade, n a m edida em que é un o e in divisível.
En tre n um erosos exem plos, pode-se lem brar a som atização.
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Há m ulheres que, não obstante jam ais terem sofrido violência
física ou sexual, tiveram suas roupas ou seus objetos de m aquiagem ou seus docum entos rasgados, cortados, inutilizados.
Trata-se de um a violência atroz, um a vez que se trata da destruição da própria iden tidade destas m ulheres. Sua ferida de
alm a m anifesta-se no corpo sob diversas m odalidades. Muitas
passam m al, ch egan do a desfalecer . São levadas ao pr on tosocorro, saindo de lá com um a receita de calm ante. Diagnóstico? Doença dos nervos, quando, a rigor, são as m anifestações
das feridas da alm a. Um profissional psi faria um diagnóstico
inteiram ente distinto, propondo um a psicoterapia, talvez aliada a rem édios, dependendo da situação, na qual certam ente se
descobririam as razões de seu m al-estar.
Voltando ao início do parágrafo anterior, certas(os) estudiosas(os) parecem pen sar que basta fazer a afirm ação, ou seja,
que ela não dem anda um a inflexão do pensam ento. Defendese, neste trabalho, a ideia de que se, de um a parte, gênero não
é tão som ente um a categoria analítica, m as tam bém um a categor ia h istór ica, d e ou tr a, su a d im en são ad jetiva exige, sim ,
um a inflexão do pensam ento, que pode, perfeitam ente, se fazer presen te tam bém n os estudos sobre m ulher. Na verdade,
quando aqui se valorizam esses estudos, pensa-se em enerválos com a perspectiva de gên ero. A história das m ulheres ganha m uito com investigações deste tipo. A própria Scott (1988)
p er cor r eu m ean d r os d o gên er o em su a for m a su bst an t iva,
com o categor ia h istór ica. Com efeito, sua pr im eir a pr oposição estabelece quatro elem en tos substan tivos en laçados, en volvidos pelo gên ero, in do desde sím bolos culturais, passan do por conceitos norm ativos e instituições sociais, até a subjet ivid ad e.
Discorre a autora sobre aspectos substan tivos do gên ero, o
que se pode considerar negativo, já que ela valoriza excessivam en te o discurso (sem sujeito) 33 . Acusa, tam bém , um caráter
33
Afirma Scott, em sua defesa: “Por ‘linguagem’, os pós-estruturalistas
não entendem palavras, mas sistemas de significado – ordens simbóli-
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descr itivo n o con ceito de gên er o, usado com o substituto de
m ulheres: gênero não im plica, necessariam ente, desigualdade
ou poder nem aponta a parte oprim ida. Não seria esta, justam en te, a m aior van tagem do uso do con ceito de gên ero? Ou
seja, deixar aberta a direção do vetor da dom in ação-exploração n ão tor n ar ia, com o par ece tor n ar , o con ceito de gên er o
m ais abr an gen te e capacitado a explicar even tuais tr an sfor m ações, seja no sentido do vetor, seja na abolição da exploração-dom in ação? Com o, n o artigo em pauta, a autora realiza
u m a apr eciação de distin tas cor r en tes de pen sam en to, u m a
certa am biguidade é gerada no que tange às opiniões da própr ia Scott. Assim , cr itican do o con ceito de patr iar cado com
base n a con cepção de qu e este con stru cto m en tal se baseia
nas diferenças de sexo, condena sua a-historicidade, apontando o perigo de se transform ar a história em m ero epifenôm eno.
É verdade que algun s(m as) teóricos(as) en ten dem o gên ero
com o sendo, em qualquer m om ento histórico e área geográfica, baseado em hierarquia entre hom ens e m ulheres na estrutura de poder. Parece ser este, quase exatam en te, o caso de
Scott. Partin do de sua segun da proposição, sin aliza a im portân cia do gên ero com o um a m an eira prim ordial de sign ificar
relações de poder e a recorrência deste elem ento, na tradição
judaico-cristã e n a islâm ica, para tam bém estruturar os m odos de perceber e organizar, concreta e sim bolicam ente, toda
a vida social.
Não se contestam algum as, e grandes, contribuições de Scott,
por várias razões, in clusive por haver ela colocado o fen ôm eno do poder no centro da organização social de gênero. Tam bém se considera m uito expressivo e valioso o fato de ela haver afir m ad o qu e a aten ção d ir igid a ao gên er o é r ar am en te
explícita, sen do, n o en tan to, um pon to fun dam en tal do estacas – que precedem o atual domínio do discurso, da leitura e da escrita”
(p. 37). Esta explanação é dispensável, persistindo a questão, tão bem
abordada por Lerner (1986), do(s) formulador(es) dos sistemas simbólicos responsáveis pela inferiorização social de mulheres, negros e outras
categorias sociais sobre as quais pesam numerosas discriminações.
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belecim ento e da m anutenção da igualdade e da desigualdade.
Pena é que este período está obscurecido por outros argum entos m eio am bíguos e que ela não ressaltou o fato de que o poder pode ser con stelado n a direção da igualdade ou da desigualdade en tre as categorias de sexo. Com o o gên ero é visto
ora com o capaz de colorir toda a gam a de relações sociais, ora
com o um m ero aspecto destas relações, é difícil dim en sion ar
su a im por tân cia, assim com o su a capacid ad e par a ar ticu lar
relações de poder.
Cabe também mencionar que Scott não faz nenhuma restrição
a Foucault, aceitando e adotando seu conceito de poder, qualquer que seja o âmbito em que este ocorre, quaisquer que sejam
a profundidade e o alcance da análise. É sabido que Foucault,
em bora reún a vários m éritos, n un ca elaborou um projeto de
transformação da sociedade. Ora, quem lida com gênero de uma
perspectiva fem in ista con testa a dom in ação-exploração m asculin a. Por via de con sequên cia, estrutura, bem ou m al, um a
estratégia de luta para a construção de uma sociedade igualitária. Sem dúvida, é notável a contribuição de Scott. Todavia, dada
a ambiguidade que perpassa seu texto, assim como certos comprom issos por ela explicitados, seria m ais interessante discutir
suas ideias do que colocá-la em um pedestal.
Gênero e poder
Nin guém con testa que o poder seja cen tral n a discussão de
determ inada fase histórica do gênero, já que este fenôm eno é
cristalino. O que precisa ficar patente é que o poder pode ser
dem ocraticam en te partilhado, geran do liberdade, com o tam b ém exer cid o d iscr icion a r ia m en t e, cr ia n d o d esigu a ld a d es.
Definir gênero com o um a privilegiada instância de articulação
das relações de poder exige a colocação em relevo das duas
m odalidades essenciais de participação nesta tram a de interações, dando-se a m esm a im portância à integração por m eio da
igualdade e à in tegração subordin ada. Faz-se n ecessário verificar se h á evidên cias con vin cen tes, ao lon go da h istór ia da
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h um an idade, da pr im eir a alter n ativa. Adem ais, n a ausên cia
de m odelos, é im portan te averiguar sua existên cia com o form a de em poderam en to das hoje subordin adas, com o categoria social. Em poderar-se equivale, n um n ível bem expressivo
do com bate, a possuir altern ativa(s), sem pre n a con dição de
categoria social. O em poderam ento individual acaba transform ando as em poderadas em m ulheres-álibi, o que joga água no
m oin h o do (n eo)liberalism o: se a m aioria das m ulh eres n ão
con segu iu u m a situ ação p r oem in en te, a r esp on sabilid ad e é
delas, porquanto são pouco inteligentes, não lutaram suficientem ente, não se dispuseram a suportar os sacrifícios que a ascensão social im põe, num m undo a elas hostil.
Dispor de altern ativa(s), con tudo, pressupõe saberes a respeito de si próprio e dos outros com o categorias que partilham /
disputam o poder. Escrevendo sobre um a obra de Thom pson,
Scott 34 percebeu corretam ente que este autor, ao m esm o tem po, não excluía as m ulheres da classe trabalhadora inglesa desde
sua gên ese, m as as m argin alizava do processo de sua form ação. É óbvio que seria im possível negar a presença das m ulheres n as fábricas duran te a Revolução In dustrial e posteriorm en t e. Dest a sor t e, ela s n ã o est ã o a u sen t es d o est u d o d e
Thom pson . En tretan to, o autor n ão revela a participação fem in in a n o próprio processo de con strução desta classe.
Em outros term os, trata-se de m ostrar com o o gênero, historicam en te m ilên ios an terior às classes sociais, se recon strói,
isto é, absorvido pela classe trabalhadora in glesa, n o caso de
Thom pson , se recon strói/ con strói jun tam en te com um a n ova
m an eira de articular relações de poder: as classes sociais. A
gênese destas não é a m esm a, nem se dá da m esm a form a que a
do gên ero. Eviden tem en te, estas duas categor ias têm h istórias distin tas, datan do o gên ero do in ício da hum an idade, há
cerca de 250 -30 0 m il anos, e sendo as classes sociais propria“Women in the Making of the English Working Class” pode ser lido na
mesma coletânea de artigos de Scott, organizada por Heilburn e Miller
(1988, p. 68-90).
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m en te ditas um fen ôm en o in extrin cavelm en te ligado ao capitalism o e, m ais propriam ente, à constituição da determ inação
in dustrial deste m odo de produção, ou seja, à Revolução In dustrial. Se, com o sistem a econôm ico, ele teve início no século XVI , só se torn a um verdadeiro m odo de produção com a
constituição de sua dim ensão industrial, no século XVIII . Quando se consideram os em briões de classe, pode-se retroceder às
sociedades escravocratas an tigas. Mesm o n este caso, as classes sociais têm um a história m uito m ais curta que o gên ero.
Desta form a, as classes sociais são, desde sua gênese, um fenôm eno gendrado. Por sua vez, um a série de transform ações no
g ên er o são in t r od u zid as p ela em er gên cia d as classes. Par a
am arrar m elhor esta questão, precisa-se jun tar o racism o. O
n ó (S AFFIOTI , 198 5, 1996) for m ad o p or estas tr ês con tr ad ições apresenta um a qualidade distinta das determ inações que
o integram . Não se trata de som ar racism o + gênero + classe
social, m as de perceber a realidade com pósita e n ova que resulta desta fusão. Com o afirm a Kergoat (1978 ), o con ceito de
superexploração n ão dá con ta da realidade, um a vez que n ão
exist em ap en as d iscr im in ações qu an t it at ivas, m as t am bém
qualitativas. Um a pessoa n ão é discrim in ada por ser m ulher,
trabalhadora e negra. Efetivam ente, um a m ulher não é duplam ente discrim inada, porque, além de m ulher, é ainda um a trabalhadora assalariada. Ou, ainda, não é triplam ente discrim in ad a. Não se tr ata d e var iáveis qu an titativas, m en su r áveis,
m as sim de determ inações, de qualidades, que tornam a situação destas m ulheres m uito m ais com plexa.
Não seria justo usar um texto antigo de Kergoat, no qual ela
expõe uma ideia ainda válida, mas em que se utiliza de um conceito – patriarcado – que abandonou. Com efeito, grande parte,
talvez a maioria, das(os) feministas francesas(es) usam a expressão relações sociais de sexo em lugar de relações de gênero. Fazem tanta questão disto que algumas usam a expressão relations
sociales de sexe, em lugar de gender relations (relations de genre,
em francês), como fazem as norte-americanas e certas inglesas,
reservando a expressão rapports sociaux para designar a estru115
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tura social expurgada do gênero. Deste m odo, procedem com o
certas brasileiras, colocan do as relações in terpessoais fora da
estrutura social. Que lugar seria este? Da perspectiva aqui assumida, este é o não-lugar. Grande parte das feministas francesas
eram/ são um bastião de resistência contra a penetração, no francês, de uma palavra – gênero – com outro significado que o gramatical. Na tentativa de valorizar a expressão relações sociais de
sexo, Kergoat não considera incompatíveis os conceitos de gênero e patriarcado. Em sua opinião, pensar em termos de relações
sociais de sexo deriva de uma certa visão de mundo, fica praticamente impossível falar, ao mesmo tempo, de relações sociais de
sexo e patriarcado (KERGOAT, 1996). Embora a ambiguidade do
texto seja gritante, vale realçar a adm issão da com patibilidade
dos conceitos referidos.
Este pequeno artigo de Kergoat contém, não apenas nas ideias
utilizadas, vários pensam entos que pedem reflexão. Concordase com ela, certamente não pelas mesmas razões, no que tange
ao uso sim ultân eo dos con ceitos de gên ero e de patriarcado,
com o se deverá deixar claro posteriorm en te. Aparen tem en te,
sua recusa do termo gênero está correta. Entretanto, gênero diz
respeito às representações do m asculino e do fem inino, a im agens construídas pela sociedade a propósito do masculino e do
feminino, estando estas inter-relacionadas. Ou seja, como pensar o m asculin o sem evocar o fem in in o? Par ece im possível,
m esm o quando se projeta um a sociedade não ideologizada por
dicotom ias, por oposições sim ples, m as em que m asculin o e
fem inino são apenas diferentes.
Cabe lem brar, aqui, que diferen te faz par com idên tico. J á
igualdade faz par com desigualdade, e são con ceitos políticos
(SAFFIOTI , 1997a). Assim , as práticas sociais de m ulheres podem ser diferentes das de hom ens da m esm a m aneira que, biologicam ente, elas são diferentes deles. Isto não significa que os
dois tipos de diferen ças perten çam à m esm a in stân cia. A experiên cia histórica das m ulheres tem sido m uito diferen te da
dos hom ens exatam ente porque, não apenas do ponto de vista
quantitativo, m as tam bém em term os de qualidade, a partici116
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pação de um as é distin ta da de outr os. Costum a-se atr ibuir
estas diferenças de história às desigualdades, e estas desem penham im portante papel nesta questão. Sem dúvida, por exem plo, a m arginalização das m ulheres de certos postos de trabalh o e d e cen tr os d e p od er cavou p r ofu n d o fosso en tr e su as
experiências e as dos hom ens. É im portante frisar a natureza
qualitativa deste hiato. Trata-se m esm o da necessidade de um
salto de qualidade para pôr as m ulheres n o m esm o patam ar
que os hom ens, não esquecendo, porém , de hum anizar os hom ens. Certam ente, este não seria o resultado caso as duas categorias de sexo fossem apenas diferentes, m as não desiguais.
O pensam ento de Kergoat revela que seu texto de 1978, citado anteriorm ente, já não reflete seu pensam ento m ais recente,
na m edida em que ela descartou a noção de patriarcado. Quando separa radicalm ente os conceitos relações sociais de sexo e
gênero (aqui já existe um problem a, pois, via de regra, usa-se a
expressão relações de gênero, isto é, relações entre o m asculino e o fem inino, entre hom ens e m ulheres), procede pelo que
considera a presença da relação, no prim eiro caso, e a ausência da relação, no segundo. Se o conceito de gênero não envolve relações sociais e é com patível com a noção de patriarcado,
esta tam pouco o faz. Esta ideia vem im plícita n as con siderações de a-historicidade do patriarcado, porquanto a única possibilidade de esta ordem de gênero m anter-se im utável consiste n a ausên cia de oposições sim ples, dicotôm icas.
Um a vez que n ão se trabalha com o con ceito weberian o de
dom inação 35, com preende-se que o processo de dom inação só
possa se estabelecer num a relação social. Desta form a, há o(s)
d om in a d or (es) e o(s) d om in a d o(s). O(s) p r im eir o(s) n ã o
elim ina(m ) o(s) segundo(s), nem pode ser este seu intento. Para
con tin u ar d om in an d o, d eve(m ) pr eser var seu (s) su bor d in a35
“Por dominação deve entender-se a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo entre pessoas dadas” (WEBER,
1964, p. 43, § 16). “Deve entender-se por ‘dominação’ [...] a probabilidade
de encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos
específicos (ou para toda classe de mandatos)” (p. 170).
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do(s). Em outros term os, dom in ação presum e subordin ação.
Portanto, está dada a presença de, no m ínim o, dois sujeitos. E
sujeito atua sem pre, ainda que situado no polo de dom inado.
Se o esquem a de dom inação patriarcal põe o dom ínio, a capacidade legitim ada de com andar, nas m ãos do patriarca, deixa
livre aos seus subordinados, hom ens e m ulheres, especialm ente estas últim as, a iniciativa de agir, cooperando neste processo, m as tam bém solapando suas bases. Eis aí a contradição que
perpassa as relações hom em – m ulher n a ordem patriarcal de
gênero. Aliás, o conceito de dom inação, em Weber, é distinto
do conceito de poder. Enquanto a prim eira conta com a aquiescên cia dos dom in ados, o poder dispen sa-a, poden do m esm o
ser exercido con tra a von tade dos subordin ados.
Do exposto decorre que se con sidera errôn eo n ão en xergar
no patriarcado uma relação, na qual, obviamente, atuam as duas
partes. Tam pouco se considera correta a interpretação de que
sob a ordem patriarcal de gên ero as m ulheres n ão detêm n enhum poder. Com efeito, a cumplicidade exige consentimento e
este só pode ocorrer numa relação par, nunca díspar, como é o
caso da relação de gên ero sob o regim e patriarcal (M ATH IEU ,
198 5). O consentim ento exige que am bas as partes desfrutem
do mesmo poder. Do ângulo da pedra fundamental do liberalismo, o contrato de casamento deveria ser nulo de pleno direito.
J á que as mulheres estão muito aquém dos homens em matéria
d e p od er , elas n ão p od em con sen tir , m as p u r am en te ced er
(Mathieu). Se um a m ulher é am eaçada de estupro por um homem armado, e resolve, racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem m aior, ou seja, a vida, sua atitude atuará contra ela
perante o Direito brasileiro, cujos fundamentos são positivistas,
ou seja, os mesmos que informam o (neo)liberalismo. O juiz interpretaria a cessão com o consentim ento.
Gênero e patriarcado
O exposto perm ite verificar que o gên ero é aqui en ten dido
com o m uito m ais vasto que o patriarcado, na m edida em que
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n este as relações são hierarquizadas en tre seres socialm en te
desiguais, en quan to o gên er o com pr een de tam bém r elações
igualitárias. Desta forma, o patriarcado é um caso específico de
relações de gênero. Como já se expôs, em capítulo anterior, nas
posições de Lerner e J ohnson, deve ser cristalina a ideia de que
o patriarcado é, em term os históricos, um recém -nascido.
Em bora Lerner não seja m arxista, lida bastante bem com as
in ter-relações en tre o arcabouço m aterial das sociedades e as
realidades im aginárias que criam . Por outro lado, é m uito cuidadosa na análise das evidências históricas, mostrando quando
e p or q u e se p od e t r a b a lh a r com d et er m in a d a s h ip ót eses.
H istoriciza o conceito de patriarcado, já que, com o fenôm eno
social, ele apresenta este caráter. Apresenta uma visão de totalidade, em duplo sen tido. Um deles diz respeito à totalidade
com o conjunto interligado de instituições m ovidas por coletividades. Neste aspecto, faz fascin an te in cursão pelas sociedades de caça e coleta. Contrariando a escola de pensam ento do
m an-the-hunter, revela uma série de exemplos de complementaridade entre as categorias de sexo, assim como o desfrute, por
parte das mulheres, de status relativam ente alto. Esta m aneira
de exprimir os achados já mostra que ela se situa bem longe da
preocupação de encontrar provas de supremacia feminina. Afirma a autora, por outro lado, que independentemente da grande
importância econômica das mulheres e de seu alto status social
nas sociedades de caça e coleta, em todas as sociedades conhecidas as m ulheres, com o categoria social, não têm capacidade
decisória sobre o grupo dos homens, não ditam normas sexuais
nem controlam as trocas m atrim oniais.
Talvez esta seja a razão pela qual Lern er usa sem pre a palavra relativ a para se referir à igualdade en tre h om en s e m ulheres. Adem ais, an alisan do a obra de Mellart, afirm a que com u n idades r elativam en te igu alitár ias, do ân gu lo do gên er o,
n ão sobreviveram . Não oferece, todavia, n en hum a razão para
este perecim en to, o que pode sign ificar ausên cia de qualquer
evidên cia explicativa deste fen ôm en o, já que ela n ada afirm a
sem p r ovas.
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Em bor a m u itas fem in istas, Scott in clu sive e m u ito for tem en te, ten ham horror a qualquer referên cia às diferen ças biológicas en t r e h om en s e m u lh er es, n ão é p ossível esqu ecer
que, sob con dições prim itivas, an tes da em ergên cia de in stituições da sociedade dita civilizada, a un idade m ãe– filho era
absolutam en te fun dam en tal para a perpetuação do grupo. A
crian ça só con tava com o calor do corpo da m ãe para se aquecer, assim com o com o leite m atern o para se alim en tar. Segun do Lern er, a m ãe doadora da vida detin ha poder de vida e
m orte sobre a prole in defesa. Desta sorte, n ão con stitui n en h u m a su r p r esa qu e h om en s e m u lh er es, assist in d o a est e
d r am át ico e m ist er ioso p od er d a m u lh er , se d evot assem à
ven er ação de Mães-Deusas.
Em bora já se haja feito referências a J ohnson, cabe ressaltar
a r elevân cia qu e ele at r ibu i ao con t r ole, in clu sive d o m eio
am biente, pelas sociedades que se sedentarizaram . Obviam ente, o controle é parte integrante de toda sociedade, m as a agricultura perm itiu/ exigiu seu in crem en to. J oh n son vale-se de
um a h ipótese de Fish er (1979) para raciocin ar sobre a n ova
relação estabelecida en tre, de um lado, os seres hum an os, e,
de outro, a vida orgânica e a m atéria inorgânica. Para pôr isto
n a lin guagem que expressa os raciocín ios básicos deste livro,
poder-se-á afirm ar que o ser social, à m edida que se diferencia
e se torna m ais com plexo, m uda sua relação tanto com a esfera
on tológica in orgân ica quan to com a esfera on tológica orgân ica, elevando seu controle sobre am bas. Os seres hum anos, que
tinham um a relação igual e equilibrada entre si e com os anim ais, transform aram -na em controle e dom inação. O patriarcado é um dos exem plos vivos deste fen ôm en o.
Quando se passou a criar anim ais para corte ou tração, sua
reprodução m ostrou-se de gran de valor econ ôm ico. Foi fácil,
en tão, perceber que, quan to m ais filh os um h om em tivesse,
maior seria o número de braços para cultivar áreas mais extensas de terra, o que permitia maior acumulação. Passam, então,
os seres humanos, a se distanciar da natureza e a vê-la simplesm en te com o algo a ser con trolado e dom in ado. Isto tudo foi
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crucial para estabelecer en tre os hom en s e as m ulheres relações de dom inação-exploração. Além disto, a com preensão do
fenôm eno reprodutivo hum ano, observando-se o acasalam ento
d os an im ais, m in ou os p od er es fem in in os. De acor d o com
J ohnson, desacreditado o caráter m ágico da reprodução fem inina e descoberta a possibilidade de este fenôm eno poder ser
controlado com o qualquer outro, estava desfeito o vínculo especial das mulheres com a força da vida universal, podendo os
hom ens se colocar no centro do universo. Com o portadores da
sem ente que espalhavam nos passivos úteros das m ulheres, os
homens passaram a se considerar a fonte da vida.
Este autor foi m uito feliz ao perceber que o patriarcado se
baseia no controle e no m edo, atitude/ sentim ento que form am
um cír culo vicioso. H á m uito tem po, afir m ou-se que os h om ens ignoram o altíssim o preço, inclusive em ocional (m as não
só), que pagam pela am putação de facetas de suas person alidades, da explor ação-dom in ação que exer cem sobr e as m ulheres (SAFFIOTI , 1985,1987). Desta form a, não se trata de uns
serem m elh ores que outros, m as de disputa pelo poder, que
com por ta, n ecessar iam en te, con tr ole e m edo. Efetivam en te,
os hom ens convertem sua agressividade em agressão m ais frequentem ente que as m ulheres. Segundo Daly e Wilson, que estudaram 35 am ostras de estatísticas de 14 países, incluindo-se
aí socied ad es pr é-letr ad as e a In glater r a d o sécu lo XIII , em
m édia, hom ens m atam hom ens com um a frequência 26 vezes
m aior do que m ulheres m atam m ulheres (apud P INKER, 1999).
O outro sentido da concepção de totalidade de Lerner é represen tado pela con sideração da história da hum an idade até
quan do os registros e achados arqueológicos perm item . Trata-se, portan to, de obra da m aior seriedade. Con tudo, um só
in telectual n ão pode realizar um a tarefa cum ulativa, n ecessariam en te de m uitos. Desta m an eira, ain da que certam en te se
pr ecisar á voltar à obr a de Ler n er , con tin uar -se-á a r ecor r er
tam bém a outros autores.
Se a m aior parte da história da hum an idade foi vivida n um a
ou tr a or gan ização social, esp ecialm en te d e gên er o, é p er ti121
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n en te r aciocin ar , com o J oh n son , em ter m os d a em er gên cia
d e fa t os – d escob er t a s, in ven ções – a p a r en t em en t e d esvin cu lad os d as r elações h om em – m u lh er e qu e, n o en tan to,
fu n cion ar am com o p r econ d ições d a con st r u ção d o p at r iar cado, há, aproxim adam en te, 7 m il an os. Em bora o patriarcado diga respeito, em term os específicos, à ordem de gên ero,
exp an d e-se p or t od o o cor p o social. Ist o n ão sign ifica qu e
n ão existam violên cias praticadas em , por exem plo, sociedades coletoras. Mas o valor cen tral da cultura gerada pela dom in a çã o - e xp lo r a çã o p a t r ia r ca l é o co n t r o le , va lo r q u e
p er p assa tod as as ár eas d a con vivên cia social. Ain d a qu e a
m aior ia das defin ições de gên er o im pliqu e h ier ar qu ia en tr e
as categorias de sexo, n ão visibiliza os perpetradores do con tr ole/ violên cia. Descon sid er an d o o p atr iar cad o, en tr etan to,
o fem in ism o liberal tran sform a o privilégio m asculin o n um a
qu estão in d ivid u al apen as r em otam en te vin cu lad a a esqu em as d e exp lor ação-d om in ação m ais am p los, qu e o p r om ovem e o p r otegem (J OH NSON , 1997).
O r epar o qu e se pode fazer ao pen sam en to exposto é qu e
n un ca alguém m en cion ou a n ão-existên cia de sistem as m ais
am plos qu e o patr iar cad o. Pessoas pod em se situ ar for a d o
esq u em a d e d om in a çã o-exp lor a çã o d a s cla sses socia is ou
do de raça/ etn ia. Nin guém , n em m esm o hom ossexuais m asculin os e fem in in os, travestis e tran sgên eros, fica fora do esquem a de gên ero patriarcal. Do ân gulo quan titativo, portan to, que é o indicado pela palavra usada por J ohnson (larger), o
patriarcado é, n as sociedades ociden tais urban o-in dustriaisin form acion ais, o m ais abran gen te. Da perspectiva qualitativa, a in vasão por parte desta organ ização social de gên ero é
total. Tom em -se, por exem plo, as religiões. Estão inteiram ente perpassadas pela estrutura de poder patriarcal. A recusa da
utilização do conceito de patriarcado perm ite que este esquem a de exploração-dom inação grasse e encontre form as e m eios
m ais insidiosos de se expressar. Enfim , ganha terreno e se torn a in visível. Mais do que isto: é veem en tem en te n egado, levan do a aten ção de seus participan tes para outras direções.
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Cum pre, pois, um desserviço a am bas as categorias de sexo,
m as, seguram ente, m ais ainda à das m ulheres.
Gênero e ideologia
As fem inistas radicais revelam as bases m aterial e social do
patriarcado. Muita discussão foi travada a propósito dos serviços gratuitos – dom ésticos e sexuais – que as m ulheres prestam aos hom en s: a seus com pan heiros e aos patrões de seus
com pan heiros. Muito se escreveu sobre os privilégios m asculinos em geral e as discrim inações praticadas contra as m ulheres. Convém lem brar que o patriarcado serve a interesses dos
gr u p os/ classes d om in an t es (S AFFI OTI , 19 6 9 , 19 8 7) e qu e o
sexism o n ão é m er am en t e u m p r econ ceit o, sen d o t am bém
o poder de agir de acordo com ele (J ohnson). No que tange ao
sexism o, o p or tad or d e p r econ ceito está, p ois, in vestid o d e
poder, ou seja, habilitado pela sociedade a tratar legitim am ente as pessoas sobre quem recai o preconceito da m aneira com o
este as r etr ata. Em ou tr as palavr as, os pr econ ceitu osos – e
este fenôm eno não é individual, m as social – estão autorizados
a discrim in ar categorias sociais, m argin alizan do-as do con vívio social com um , só lhes perm itin do um a in tegração subordinada, seja em certos grupos, seja na sociedade com o um todo.
Não é esta, porém , a interpretação cotidiana de preconceito e
de sexism o, tam bém um precon ceito. Mesm o in telectuais de
nom eada consideram o m achism o um a m era ideologia, adm itindo apenas o term o patriarcal, isto é, o adjetivo. Com o quase nunca se pensa na dim ensão m aterial das ideias, a ideologia
é interpretada com o pairando acim a da m atéria.
O pon to de vista aqui assum ido perm ite ver a ideologia se
corporifican do em sen tido literal e em sen tido figurado. Com
efeito, este fenômeno atinge materialmente o corpo de seus portadores e daqueles sobre quem recai. A postura corporal das
mulheres enquanto categoria social não tem uma expressão altiva. Evidentemente, há mulheres que escapam a este destino de
gênero (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995), m as se trata de casos indi123
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viduais, jam ais podendo ser tom ados com o expressão da categoria m ulheres, extrem am en te diversificada. Via de regra, as
mulheres falam baixo ou se calam em discussões de grupos sexualm ente m istos. Nas reuniões festivas, o com um é se form arem dois grupos: o da Luluzinha e o do Bolinha. Como este último está em poderado e, portanto, dita as regras, o primeiro sujeita-se ao jogo socialm en te estabelecido. A ideologia sexista
corporifica-se nos agentes sociais tanto de um polo quanto de
outro da relação de dom inação-subordinação. O sentido figurado da corporificação das ideologias em geral e da sexista em
especial reside n o vín culo arbitrariam en te estabelecido en tre
fenôm enos: voz grave significa poder, ainda que a pessoa fale
baixo. O porquê disto en con tra-se n a posição social dos h om ens com o categoria social em relação à das m ulheres. A voz
grave do assalariado não o em podera diante de seu patrão, pois
o código na estrutura de classes é outro.
Não se pode prosseguir sem , pelo m enos, dar um a pincelada
n um a questão bastan te séria e pouco m en cion ada. Sexism o e
racism o são irm ãos gêm eos. Na gên ese do escrav ism o con stava um tratam ento distinto dispensado a hom ens e a m ulheres. Eis por que o racism o, base do escrav ism o, independent em en t e d a s ca r a ct er ís t ica s fís ica s ou cu lt u r a is d o p ovo
con qu istad o, n asceu n o m esm o m om en to h istór ico em qu e
n asceu o sexism o. Quan do um povo con quistava outro, subm etia-o a seus desejos e a suas necessidades. Os hom ens eram
tem idos, em virtude de represen tarem gran de risco de revolta, já que dispõem , em m édia, de m ais força física que as m ulheres, sendo, ainda, treinados para enfrentar perigos. Assim ,
er am su m ar iam en te elim in ad os, assassin ad os. As m u lh er es
eram preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam
força de trabalho, im portan te fator de produção em sociedades sem tecnologia ou possuidoras de tecnologias rudim entares; eram reprodutoras desta força de trabalho, assegurando a
con tin uidade da produção e da própria sociedade; prestavam
(cediam ) ser viços sexuais aos h om en s do povo vitor ioso. Aí
estão as raízes do sexism o, ou seja, tão velho quanto o racis124
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m o. Esta constitui um prova cabal de que o gênero não é tãosom ente social, dele participando tam bém o corpo, quer com o
m ão d e obr a, qu er com o objet o sexu al, qu er , ain d a, com o
reprodutor de seres hum anos, cujo destino, se fossem hom ens,
seria participar ativam ente da produção, e, quando m ulheres,
entrar com três funções na engrenagem descrita.
Retom an d o o n ó (SAFFIOTI , 198 5), d ifícil é lid ar com esta
n ova r ealid ad e, for m ad a p elas t r ês su best r u t u r as: g ên er o,
classe social, raça/ etn ia, já que é pr esidida por um a lógica
con t r ad it ór ia, d ist in t a d as qu e r egem cad a con t r ad ição em
sep ar ad o. Um a voz m en os gr ave ou m esm o agu d a d e u m a
m u lh er é r elevan te em su a atu ação, segu n d o o p r econ ceito
étn ico-racial, e, m ais seguram en te, n a relação de gên ero e n a
de classes sociais. O im portan te é an alisar estas con tradições
n a con dição de fun didas ou en oveladas ou en laçadas em um
nó. Não se trata da figura do n ó górdio n em apertado, m as do
n ó frouxo, deixan do m obilidade para cada um a de suas com pon en tes (SAFFIOTI , 1998 ). Não que cada um a destas con tradições atue livre e isoladam en te. No n ó, elas passam a apresen t a r u m a d in â m ica esp ecia l, p r óp r ia d o n ó. Ou seja , a
din âm ica de cada um a con dicion a-se à n ova realidade, presidida por um a lógica con traditória (SAFFIOTI , 198 8 ). De acordo com as circun stân cias h istóricas, cada um a das con tradições in t egr a n t es d o n ó a d q u ir e r elevos d is t in t os . E es t a
m otilid ad e é im p or tan te r eter , a fim d e n ão se tom ar n ad a
com o fixo, aí in clusa a or gan ização destas subestr utur as n a
estrutura global, ou seja, destas con tradições n o seio da n ova
r e a lid a d e – n o v elo p a t r ia r ca d o - r a cis m o - ca p it a lis m o
(S AFFIOTI , 198 7) – h istor icam en te con stitu íd a.
A im agem do nó não consiste em m era m etáfora; é tam bém
um a m etáfora. Há um a estrutura de poder que unifica as três
ordens – de gênero, de raça/ etnia e de classe social – , em bora
as an álises ten dam a separá-las. Aliás, o prejuízo cien tífico e
político não advém da separação para fins analíticos, m as sim
da ausên cia do cam in ho in verso: a sín tese. Com o já se m ostrou, o patriarcado, com a cultura especial que gera e sua cor125
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respondente estrutura de poder, penetrou em todas as esferas
da vida social, n ão correspon den do, h á m uito tem po, ao supor te m ater ial d a econ om ia d e oik os (d om éstica). De ou tr a
parte, o capitalism o tam bém m ercan tilizou todas as relações
sociais, nelas incluídas as cham adas específicas de gênero, lingu agem aqu i con sid er ad a in ad equ ad a. Da m esm a for m a, a
raça/ etn ia, com tudo que im plica em term os de discrim in açã o e, p or con segu in t e, est r u t u r a d e p od er , im p r im iu su a
m arca n o corpo social por in teiro. A an álise das relações de
gênero não pode, assim , prescindir, de um lado, da análise das
dem ais, e, de outro, da recom posição da totalidade de acordo
com a posição que, nesta nova realidade, ocupam as três contradições sociais básicas.
Par afr asean d o Mar x (19 57) 36 , p od e-se afir m ar qu e é est e
n ovo ar r an jo que per m ite com pr een der sociedades igualitárias, não baseadas no controle, na dom inação, na com petição.
A or gan ização d as categor ias h istór icas n o in ter ior d e cad a
tipo varia n ecessariam en te. Assim , da m esm a form a com o a
anatom ia do hom em é a chave para a com preensão da anatom ia do sím io, a sociedade burguesa con stitui a chave para o
entendim ento das sociedades m ais sim ples. Cabe ressaltar tam bém , seguindo-se este m étodo, que a análise das form as m ais
sim ples de or gan ização social só é possível quan do a for m a
m ais desen volvida de sociedade se debr u ça sobr e si m esm a
com o tem a de pesquisa e com preen são.
Neste ponto da discussão, seria interessante aprofundar a análise de Patem an . Todavia, em n ão h aven do espaço para isto,
apenas se registra que é importante reter o seguinte: O contrato
não se contrapõe ao patriarcado; ao contrário, ele é a base do
patriarcado m oderno. Integra a ideologia de gênero, especifi“Assim, a economia burguesa nos dá a chave da economia antiga etc.
[...] Mas, é preciso não identificá-las. Como, além disso, a própria sociedade burguesa não é senão uma forma antitética do desenvolvimento
histórico, são relações pertencentes a formas anteriores de sociedade
que não se podem reencontrar nela senão inteiramente estioladas ou
mesmo travestidas” (p. 169-170).
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camente patriarcal, a ideia, defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este
últim o à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado
n ão diz respeito ao m un do público ou, pelo m en os, n ão tem
para ele nenhum a relevância. Do m esm o m odo com o as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contam in am toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa n ão
apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Ainda que não se possa negar o predomínio de atividades privadas
ou ín tim as n a esfera da fam ília e a prevalên cia de atividades
públicas no espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e,
portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes
espaços profundamente ligados e parcialmente mesclados. Para
fin s an alít icos, t r at a-se d e esfer as d ist in t as; são, con t u d o,
in separáveis para a com preen são do todo social. A liberdade
civil deriva do direito patriarcal e é por ele limitada.
Raciocinando na mesma direção de J ohnson, Pateman mostra
o caráter m asculino do contrato original, ou seja, um contrato
entre homens, cujo objeto são as mulheres. A diferença sexual é
convertida em diferença política, passando a se exprimir ou em
liberdade ou em sujeição. Sendo o patriarcado uma forma de expressão do poder político, esta abordagem vai ao encontro da
m áxim a legada pelo fem inism o radical: “o pessoal é político”.
Entre outras alegações, a polissemia do conceito de patriarcado,
aliás existente tam bém no de gênero, constitui um argum ento
con tr a seu u so. Aban d on á-lo sign ificar ia, n a per spectiva d e
Pateman, a perda, pela teoria política feminista, do único conceito que marca nitidamente a subordinação das mulheres, especificando o direito político conferido aos homens pelo fato de serem
homens. Um sério problema a ser sanado neste campo é constituído pelas interpretações patriarcais do patriarcado.
Interpretação patriarcal do patriarcado
O patria potestas cedeu espaço, n ão à m ulher, m as aos filhos. O patriarca que n ele estava em butido con tin ua vivo co127
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m o titular do direito sexual. O pensam ento de Patem an, neste
sentido, vai ao encontro do de Harding. Com efeito, Patem an
m ostra com o a in terpretação patriarcal do patriarcado com o
direito do pai causou o obscurecim en to da relação en tre m arido e esposa n a origem da fam ília. Esquece-se o fato de que
an t es d e ser em p ais e m ães, os h om en s e as m u lh er es são
m aridos e esposas. O con ceito de patriarcado, com preen dido
por m eio da h istór ia do con tr ato sexual, per m ite a ver ificação da estrutura patriarcal do capitalism o e de toda a socied ad e civil.
Focalizar o con tr ato sexu al, colocan d o em r elevo a figu r a
d o m ar id o, per m ite m ostr ar o car áter d esigu al d este pacto,
n o qual se troca obediên cia por proteção. E proteção, com o
é n otór io, sign ifica, n o m ín im o a m édio e lon go pr azos, explor ação-dom in ação. Isto r evela que as m ulh er es jam ais alcan çaram a categoria de in divíduos, com poder de con tratar
de igual para igual. E esta categoria é de sum a relevân cia n a
sociedade burguesa, n a qual o in dividualism o é levado ao ext r em o. O con ceit o d e cid ad ão, r igor osam en t e, con st it u i-se
pelo in d ivíd u o. O casam en to, capaz d e estabelecer r elações
igualitárias, ter-se-ia que dar en tre in divíduos. Ora, n ão é isto
qu e ocor r e, p ois ele u n e u m in d ivíd u o a u m a su bor d in ad a.
Aquilo que é trocado n o casam en to n ão é propriam en te propriedade ou, pelo m en os, n ão é n ecessário que assim o seja.
Eviden tem en te, n as cam adas abastadas, há um a ten dên cia à
adição de fortun as, m as esta n ão é a regra n a sociedade em
geral, m esm o porque a gran de m aioria da população n ão detém ben s de m on ta ou é com pletam en te despossuída. O con trato represen ta um a troca de prom essas por m eio da fala ou
de assin aturas. Firm ado o con trato, estabelece-se um a n ova
relação n a qual cada parte se posicion a em face da outra. A
parte que oferece proteção é autorizada a determ in ar a for m a com o a outra cum prirá sua fun ção n o con trato. A patern id ad e im p õe a m at er n id ad e. O d ir eit o sexu al ou con ju gal
estabelece-se an tes do direito de patern idade. O poder político d o h om em assen ta-se n o d ir eito sexu al ou con ju gal. As128
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sim , a au tor idade política do h om em já está gar an tida bem
an tes de ele se tran sform ar em pai.
Tem r azão Pat em an , p ois o st a t u s d e in d ivíd u o con st it u i
precondição para a constituição do sujeito em cidadão. A Revolução Fr an cesa foi um m ar co im por tan te desta tr an sição,
caben do lem brar que as m ulheres foram deixadas à m argem
da Declaração Universal dos Direitos do Hom em e do Cidadão.
O con tr ato sexu al é con su bstan cial à socied ad e civil, estr u turando tam bém o espaço do trabalho. Na estrutura patriarcal
capitalista das ocupações, as m ulheres não figuram com o trabalh ad or as, m as t ão som en t e com o m u lh er es. Os h om en s,
com o trabalh adores, são sujeitos à autoridade de seu ch efe.
En tretan to, esta subordin ação é diferen te da das trabalhadoras, porquanto o hom em é um “senhor prisioneiro” (Patem an).
Talvez se possa traduzir esta expressão por: quem é rei nunca
perde a m ajestade, m esm o que seja subordinado nas relações
de trabalh o.
Ca b e r essa lt a r a con ver gên cia d a a n á lise sociológica d e
Kergoat (1978 ) e a abordagem política, via teoria do contrato,
de Patem an , dez an os depois (a edição origin al do livro é de
198 8 ). Desde seus inícios, a exploração econôm ica da m ulher
faz-se conjuntam ente com o controle de sua sexualidade. J á se
analisou, ainda que ligeiram ente, a unicidade do racism o e do
sexism o. É óbvio que este fato preexistiu, de longe, à em ergência do capitalism o; m as este se apropriou desta desvan tagem
fem inina, procedendo com todas as dem ais da m esm a form a.
Tir ou , p or t an t o, p r oveit o d as d iscr im in ações qu e p esavam
contra a m ulher (SAFFIOTI , 1969), e assim continua procedendo. Com o se pode verificar facilm en te n as cadeias produtivas
nacionais e internacionais, as m ulheres predom inam nos estágios m ais degradados da terceirização ou quarterização. A Nike,
por exem plo, usa m ão de obra fem inina oriental, trabalhando
em dom icílio e recebendo quantias m iseráveis. Todos os estudos sobre força de trabalho fem in in a n o m un do de econ om ia
globalizad a r evelam su a m ais acen tu ad a su bor d in ação. Isto
equivale a dizer que, quanto m ais sofisticado o m étodo de ex129
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ploração praticado pelo capital, m ais profun dam en te se vale
da dom inação de gênero de que as m ulheres já eram , e contin uam sen do, vítim as.
O p er igo d este tip o d e an álise r esid e em r esvalar -se p elo
dualism o. Não h á, de um lado, a dom in ação patriarcal e, de
outro, a exploração capitalista. Para com eçar, n ão existe um
processo de dom inação separado de outro de exploração. Por
esta razão, usa-se, aqui e em outros textos, a expressão dom in ação-explor ação ou explor ação-dom in ação. Alter n am -se os
term os, para evitar a m á interpretação da precedência de um
processo e, por via de consequência, da sucessão do outro. De
r igor , n ão h á dois pr ocessos, m as duas faces de um m esm o
processo. Daí ter-se criado a m etáfora do nó para dar conta da
realidade da fusão patriarcado– racism o– capitalism o. Mitchell
(1966, 1971, 1974) e H artm an n , (1979a, 1979b), n ão obstan te
suas grandes contribuições, laboraram / laboram na direção da
teoria dos sistem as duais (YOUNG, 198 1; J ÓNASDÓTTIR , 1993).
E isto significa operar na lógica binária, própria do pensam ento cartesian o, de um lado, e, de outro, dos con structos m en tais im pingidos pelas ideologias e dem ais tecnologias de gênero, raça/ etn ia e classe social, elaboradas pelas categorias sociais poderosas ou a seu serviço. Todas as categorias sociais e
classes dispõem de seus intelectuais orgânicos (GAMSCI , 1967;
P ORTELLI , 1973), a fim de terem seus objetivos e m étodos para
alcan çá-los legitim ados. O h om em é visto com o essen cial, a
m ulh er, com o in essen cial. O prim eiro é con siderado sujeito,
a m ulher, o outro. O fato de o patriarcado ser um pacto entre
os hom en s n ão sign ifica que a ele as m ulheres n ão opon ham
resistência. Com o já se patenteou, sem pre que há relações de
d om in ação-explor ação, h á r esistên cia, h á lu ta, h á con flitos,
que se expressam pela vingança, pela sabotagem , pelo boicote
ou pela luta de classes.
Efetivam ente, a análise de Patem an revela a dim ensão m ais
profun da, essen cial, do patriarcado, atribuin do-lhe um sign ificado que a m aioria de suas(seus) utilizadoras(es) ign oram .
Além disto, esta autora ressignifica outras questões, presum i130
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velm en te apen as circun dan tes. Im puta-se, via de regra, um a
respon sabilidade quase exclusiva à socialização sofrida pelas
m ulheres à subm issão destas. Patem an dispõe de outro argum en to. Diferen tem en te de m uitas explicações, a con sciên cia
que as m ulheres têm de si m esm as não deriva da socialização
que receberam , m as de sua inserção com o m ulheres e esposas
n a estrutura social.
Obviam en te, a socialização faz par te d este pr ocesso d e se
torn ar m ulh er/ esposa. Mas n ão se trata apen as daquilo que
as m u lh er es in t r ojet ar am em seu in con scien t e/ con scien t e.
Trata-se de vivên cias con cretas n a relação com hom en s/ m aridos. Tan to assim é que n as sociedades ociden tais m odern as
a m ulher perde direitos civis ao casar. Data de 27 de agosto
de 1962, n o Brasil, a Lei 4.121, tam bém con hecida com o estatuto da m ulher casada. Até a prom ulgação desta lei, a m ulher
n ã o p od ia d esen volver a t ivid a d e r em u n er a d a for a d e ca sa
sem o con sen tim en to de seu m arido, en tre outras lim itações.
Era, literal e legalm en te, tutelada por seu côn juge, figuran do
ao lad o d os pr ód igos e d os silvícolas, qu an to a su a r elativa
in capacidade civil. A pr opósito desta qu estão, evoca-se o já
citado texto de Math ieu, n o qual ela tr abalh a, am pla e pr ofun dam en te, a “con sciên cia dom in ada” das m ulheres. Sim ultan eam en te, as m u lh er es in tegr am e n ão in tegr am a or dem
civil, um a vez que são in cor por adas com o m ulh er es, subor din adas, e n ão com o in divíduos. A subm issão das m ulh er es
n a sociedade civil assegura o recon h ecim en to do direito patriarcal dos h om en s.
Com o tão-som en te o con tr ato ger a r elações livr es, pr esu m in do igualdade de con dições das partes, é n ecessário in corporar as m ulheres à sociedade civil por m eio de um con trato.
En tretan to, sim ultan eam en te, é preciso que este con trato recon heça e reafirm e o direito patriarcal. Assim , n o pen sam en t o p olít ico con t em p or â n eo, a su b or d in a çã o civil ga n h ou o
n om e de liberdade por m eio da n egação da in terdepen dên cia
en tre liberdade civil e direito patriarcal. Tem razão a autora
em pauta, quan do en un cia que o patriarcado con tratual m o131
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d er n o p r esu m e a liber d ad e d as m u lh er es, n ão fu n cion an d o
sem este pressuposto. Por outro lado, tam bém n ega liberdade às m ulheres. Para se elim in ar a dom in ação m asculin a, substituin do-a pela auton om ia de am bas as categorias de sexo, a
liber d ad e in d ivid u al d eve en con tr ar lim ite n a estr u tu r a d as
r elações sociais.
Gênero X patriarcado
O argum ento final aqui desenvolvido em favor das ideias até
agora defen didas girará em torn o da recusa do uso exclusiv o
do conceito de gênero. Por que este conceito teve am pla, profunda e rápida penetração não apenas no pensam ento acadêm ico, m as tam bém n o das(os) m ilitan tes fem in istas e, ain da,
em organ ism os in tern acion ais? Efetivam en te, o Ban co Mun dial só con cede verbas a projetos que apresen tem recorte de
gên ero. Residiria a resposta tão som en te n a n ecessidade percebida de alterar as relações sociais desiguais entre hom ens e
m ulheres? Mas o conceito de patriarcado já não revelava este
fenôm eno, m uito antes de o conceito de gênero ser cunhado?
Não estaria a rápida difusão deste con ceito vin culada ao fato
de ele ser infinitam ente m ais palatável que o de patriarcado e,
por conseguinte, poder ser considerado neutro? Estas perguntas apontam para um a resposta: o conceito de gênero, ao contrário do que afirm aram m uitas(os), é m ais ideológico do que
o de patriarcado. Neutro, não existe nada em sociedade.
Com o n ão se é a favor de jogar fora o bebê com a água do
ban ho, defen de-se:
1. a utilidade do con ceito de gên ero, m esm o porque ele é
m uito m ais am plo do que o de patriarcado, levando-se em conta os 250 m il anos, no m ínim o, da hum anidade;
2 . o uso sim ultân eo dos con ceitos de gên ero e de patriarca d o, já q u e u m é gen ér ico e o ou t r o esp ecífico d os ú lt im os seis ou sete m ilên ios, o prim eiro cobrin do toda a histór ia e o segu n d o qu alifican d o o p r im eir o ou , p or econ om ia,
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sim p lesm en t e a exp r essão p at r iar cad o m it igad o ou , ain d a,
m er am en t e p at r iar cad o;
3 . a im possibilidade de aceitar, m an ten do-se a coerên cia
teórica, a redutora substituição de um con ceito por outro, o
que tem ocorrido n essa torren te bastan te ideológica dos últim os dois decên ios, quase três.
Nem sequer abstratam ente se pode conceber sociedades sem
r epr esen tação do fem in in o e do m ascu lin o. Descober tas r ecen tes sobre a capacidade de apren der dos an im ais in dicam
que se pode levantar a hipótese de que os hom inídeos já fossem capazes de criar cultura. Não se precisa, no entanto, ir tão
longe, podendo-se exam inar, em bora ligeiram ente, o processo
de diferenciação que está na base da terceira esfera ontológica:
o ser social. A esfera ontológica inorgânica constitui condição
sine qua non do nascim ento da vida. Um a proteína, provavelm en te, deu origem à esfera on tológica orgân ica. Diferen ciações n esta esfera geraram seres sexuados. O sexo, desta form a, per ten ceu , or igin ar iam en te, apen as à esfer a on tológica
orgân ica. À m edida que a vida orgân ica ia se torn an do m ais
com p lexa , ia , s im u lt a n ea m en t e, s u r gin d o a cu lt u r a . Os
hom inídeos desceram das árvores, houve m utações e a cultura foi se desen volven do. É pertin en te supor-se que, desde o
início deste processo, foram sendo construídas representações
do fem in in o e do m asculin o. Con stitui-se, assim , o gên ero: a
diferen ça sexual, an tes apen as existen te n a esfera on tológica
orgânica, passa a ganhar um significado, passa a constituir um a
im portan te referên cia para a articulação das relações de poder. A vida da natureza (esferas ontológicas inorgânica e orgân ica), que, n o m áxim o, se reproduz, é m uito distin ta do ser
social, que cria sem pre fen ôm en os n ovos.
A on tologia lukacsian a perm ite ver, com n itidez, que os seres hum anos, não obstante terem construído e continuarem a
con struir um a esfera on tológica irredutível à n atureza, con tin u am a per ten cer a esta u n id ad e, qu e in clu i as tr ês esfer as
on tológicas. Mais do que isto, Lukács distin gue dois tipos de
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posições teleológicas 37: as posições que incidem sobre a natureza, visando à satisfação das necessidades, por exem plo, econôm icas; e as posições cujo alvo é a consciência dos outros, na
tentativa de m odelar-lhes a conduta. Está aqui, sem dúvida, a
“consciência dom inada” das m ulheres (Mathieu) e, ao m esm o
tem po, sua possibilidade de escapar de seu destino de gênero,
via tran sgressão, que perm ite a criação de n ovas m atrizes de
gên ero, cada um a lutan do por destron ar a m atriz dom in an te
de sua posição hegem ônica. Com efeito, para Lukács, não existe igualdade entre as intenções de um agente social e seu resultado, exatam ente porque outros socii atuam sobre o prim eiro.
Enfim , não há coincidência exata entre a intenção e o resultado que produz, em virtude da pluralidade de intenções/ ações
presen tes n o processo in terativo. Situado n um terren o m uito
distinto do de Weber, o Lukács da Ontologia enfatiza o fato de
o resultado das in ten ções in dividuais ultrapassá-las, in screvendo-se na instância causal e não teleológica, o que abre espaço para as contingências do cotidiano. O ser social, na interpretação que Tertulian (1996) faz de Lukács, con siste n um a
in teração de com plexos h eterogên eos, perm an en tem en te em
m ovim en to e devir, apresen tan do um a m escla de con tin uidad e e d escon t in u id ad e, d e for m a a p r od u zir sem p r e o n ovo
irreversível. É chegada a hora de alertar o leitor para a natureza
das categorias históricas gênero e patriarcado. Gênero constitui um a categoria on tológica, en quan to o m esm o n ão ocorre
com a categoria ordem patriarcal de gênero. Ainda que m uito
rapidam ente, pode-se afirm ar, com veem ência, que é possível
transformar o patriarcado em muito menos tempo do que o que
foi exigido para sua implantação e consolidação. Lembra-se que
este últim o processo durou 2.50 0 anos!
Teleológicas são as ações dos agentes sociais, isto é, têm uma finalidade, dirigem-se a um alvo. Embora as ações humanas sejam teleológicas,
a História não o é. O erro de muitos, na interpretação da obra de Marx,
consiste em considerar teleológica a História, quando Marx situou as
ações humanas como tal. Que teleologia não seja confundida com
ontologia e nem esta com antologia, isto é, uma coletânea de textos.
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Quando a consciência hum ana se projetou sobre a natureza,
introduzindo a m arca do nexo final nas cadeias causais objetivas, teve origem o ato intencional, teleológico, finalista. Desta
sorte, a teleologia é um a categoria histórica e, portan to, irredutível à natureza. Deste ângulo, o gênero inscreve-se no plano
da história, embora não possa jamais ser visto de forma definitivamente separada do sexo, na medida em que também está inscrito na natureza. Am bos fazem parte desta totalidade aberta,
que engloba natureza e ser social. Corpo e psique, por conseguinte, constituem um a unidade. Com o praticam ente a totalidade das teorias feministas não ultrapassa a gnosiologia, a teoria do conhecim ento, perm anecendo no terreno das categorias
meramente lógicas ou epistemológicas, não dá conta da riqueza
e da diversidade do real. Revelam-se, por isso, incapazes de juntar aquilo que o cartesianism o sistem atizou com o separado. O
gênero independe do sexo apenas no sentido de que não se apoia
necessariamente no sexo para proceder à formatação do agente
social. Há, no entanto, um vínculo orgânico entre gênero e sexo,
ou seja, o vínculo orgânico que torna as três esferas ontológicas
uma só unidade, ainda que cada uma delas não possa ser reduzida à outra. Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, da mesma forma como é impensável o sexo como fenômeno puramente biológico. Não seria o gênero exatam ente aquela dim ensão
da cultura por meio da qual o sexo se expressa? Não é precisamente por meio do gênero que o sexo aparece sempre vinculado ao poder? O estupro não é um ato de poder, independentemente da idade e da beleza da mulher, não estando esta livre de
sofrê-lo mesmo aos 98 anos de idade? Não são todos os abusos
sexuais atos de poder?
As evidências históricas, com o já se m ostrou, cam inham no
sen tido da existên cia de um poder com partilhado de: papéis
sociais diferentes, m as não desiguais. Ainda que isto cause engulhos nas(os) teóricas(os) posicionadas(os) contra a diferença
sexual, n a gên ese, ela teve extrem a im portân cia. Esta, aliás,
con stitui um a das razões pelas quais se im põe a abordagem
ontológica. Ao longo do desenvolvim ento do ser social, as m e135
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diações culturais foram crescendo e se diferenciando, portanto
deixando cada vez mais remota e menos importante a diferença
sexual. Com o, porém , o ser social n ão poderia existir sem as
outras duas esferas ontológicas, não se pode ignorá-las. Mais do
que isto, o ser humano consiste na unidade destas três esferas,
donde não se poder separar natureza de cultura, corpo de mente, emoção de razão etc. É por isso que o gênero, embora construído socialmente, caminha junto com o sexo. Isto não significa atentar som ente para o contrato heterossexual. O exercício
da sexualidade é muito variado; isto, contudo, não impede que
con tin uem existin do im agen s diferen ciadas do fem in in o e do
m asculino. O patriarcado refere-se a m ilênios da história m ais
próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens
e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em
term os exclusivam en te do con ceito de gên ero distrai a aten ção do poder do patriarca, em especial com o hom em / m arido,
“n eu t r alizan d o” a exp lor ação-d om in ação m ascu lin a. Nest e
sen t id o, e con t r ar iam en t e ao qu e afir m a a m aior ia d as(os)
teóricas(os), o con ceito de gên ero carrega um a dose apreciável de ideologia. E qual é esta ideologia? Exatam ente a patriarcal, forjada especialm ente para dar cobertura a um a estrutura
de poder que situa as m ulheres m uito abaixo dos hom ens em
todas as áreas da con vivên cia hum an a. É a esta estrutura de
poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito
de patriarcado diz respeito. Desta sorte, trata-se de con ceito
crescen tem en te preciso, que prescin de das n um erosas con fusões de que tem sido alvo.
Chegou-se a um a situação paradoxal: teóricas fem inistas atacan do o con ceito de patr iar cado e teór icos fem in istas advogan do seu uso. A título de ilustração, veja-se o que afirm am
J ohn son e Kurz. Para J ohn son , o patriarcado é paradoxal. O
paradoxo com eça na própria existência do patriarcado, resultante de um pacto entre os hom ens e a nutrição perm anente da
com petição, da agressão e da opressão. A dinâm ica entre controle e m edo rege o patriarcado. Em bora sem pre referido às
r elações en tr e h om en s e m u lh er es, o p atr iar cad o está m ais
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profun dam en te vin culado às relações en tre os h om en s. Para
Ku r z (20 0 0 ), n em todas as sociedades são estr u tu r adas em
term os patriarcais. A história registra sociedades igualitárias
do ân gulo do gên ero. Assim , “a desvalorização da m ulher n a
m odern idade deriva das próprias relações sociais m odern as”.
Da perspectiva aqui assum ida, o gênero é constitutivo das relações sociais, com o afirm a Scott (1983, 1988), da m esm a form a que a violência é constitutiva das relações entre hom ens e
m u lh er es, n a fase h ist ór ica d a or d em p at r iar cal d e gên er o
(SAFFIOTI , 20 0 1), ainda em curso. Na ordem falocrática, o gên er o, in for m a d o p ela s d es igu a ld a d es s ocia is , p ela
hierarquização entre as duas categorias de sexo e até pela lógica da com plem en taridade (BADINTER , 198 6), traz a violên cia
em seu cerne.
“A popularidade do slogan e sua força para fem in istas
em er gem d a com plexid ad e d a posição d as m u lh er es n as
socied ad es liber al-p atr iar cais con tem p or ân eas. O p r ivado ou pessoal e o público ou político são sustentados com o
separados e irrelevan tes um em relação ao outro; a exper iên cia cot id ian a d as m u lh er es ain d a con fir m a est a sep ar ação e, sim u ltan eam en te, a n ega e afir m a a con exão
in t egr al en t r e as d u as esfer as. A sep ar ação en t r e o p r ivado e o público é, ao m esm o tem po, parte de n ossas vid a s a t u a is e u m a m ist ifica çã o id eológica d a r ea lid a d e
lib er a l-p a t r ia r ca l. A sep a r a çã o en t r e a vid a d om ést ica
p r iva d a d a s m u lh er es e o m u n d o p ú b lico d os h om en s
tem sido con stitutiva do liberalism o patriarcal desde sua
gên ese e, desde m eados do século XIX, a esposa econ om icam en t e d ep en d en t e t em est ad o p r esen t e com o o id eal
de todas as classes sociais da sociedade” (P ATEMAN , 198 9,
p . 13 1- 2 ) .
Com o a teoria é m uito im portante para que se possa operar
tran sform ações profun das n a sociedade, con stitui tarefa urgente que as teóricas fem inistas se indaguem : a quem serve a
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teoria do gênero utilizada em substituição à do patriarcado? A
urgên cia desta resposta pode ser aquilatada pela prem ên cia
de situar as m ulheres em igualdade de con dições com os hom en s. É evid en te qu e esta lu ta n ão pod e (n em d ever ia) ser
levada a cabo exclusivam en te por m ulh eres. O con curso dos
hom ens é fundam ental, um a vez que se trata de m udar a relação entre hom ens e m ulheres. Todavia, é a categoria dom inada-explorada que conhece m inuciosam ente a engrenagem patriarcal, no que ela tem de m ais perverso. Tem , pois, obrigação
de liderar o processo de m udança. Recusando-se, no entanto,
a enxergar o patriarcado ou recusando-se a adm iti-lo, a m aioria das teóricas fem inistas dá dois passos para trás:
1. n ão atacan do o coração da en gren agem de exploraçãodom in ação, alim en ta-a;
2 . perm ite que pelo m enos alguns hom ens encarnem a vanguarda do processo de den ún cia das in iquidades perpetradas
con tra m ulheres e m ostrem o essen cial para a form ulação de
um a estratégia de luta m ais adequada.
Ainda que as teóricas fem inistas tam bém desejem construir
um a sociedade igualitária do ân gulo do gên ero (será possível
restringir as transform ações apenas a este dom ínio?), o resultado da interação de todos esses agentes sociais será eventualm en te diverso de suas in ten ções, lem bran do Luckács. É n ecessário precaver-se no sentido de im pedir que a resultante da
ação coletiva fique aquém , ou m uito aquém , do fim posto. E a
teoria desem penha papel fundam ental neste processo. Não se
trata de abolir o uso do con ceito de gên ero, m as de elim in ar
su a u tilização exclu siva. Gên er o é u m con ceit o p or d em ais
palatável, porque é excessivam ente geral, a-histórico, apolítico
e pretensam ente neutro. Exatam ente em função de sua gener alidade excessiva, apr esen ta gr an de gr au de exten são, m as
baixo nível de com preensão. O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrário, com o vem explícito em seu nom e,
só se aplica a um a fase h istór ica, n ão ten do a pr eten são da
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gen er alidade n em da n eutr alidade, e deixan do pr opositadam en te explícito o vetor d a d om in ação-explor ação. Per d e-se
em exten são, porém se gan ha em com preen são. En tra-se, assim , n o r ein o d a H ist ór ia. Tr at a-se, p ois, d a falocr acia, d o
an drocen trism o, da prim azia m asculin a. É, por con seguin te,
um conceito de ordem política. E poderia ser de outra ordem
se o objetivo das(os) fem inistas consiste em transform ar a socied a d e, elim in a n d o a s d es igu a ld a d es , a s in ju s t iça s , a s
in iquidades, e in stauran do a igualdade? (SAFFIOTI , 1997a).
A id eologia con stitu i u m r elevan te elem en to d e r eificação, de alien ação, de coisificação. Tam bém con stitui um a
poderosa tecn ologia de gên ero (LAURETIS, 198 7), assim com o
“cin em a, d iscu r sos in stitu cion ais, epistem ologias e pr áticas
críticas” (p. IX), estas últim as entendidas com o as m ais am plas
pr áticas sociais e cultur ais. A alien ação, em sua acepção de
cisão, é alim entada pelas tecnologias de gênero, aí inclusas as
ideologias. É m uito útil a con cepção de sujeito, de Lauretis,
pois ele é constituído em gênero, em raça/ etnia, em classe social; não se trata de um sujeito unificado, m as m últiplo; “não
tão d ivid id o qu an to qu estion ad or ” (p . 2). Im p or ta r eter n a
m em ória que não apenas as ideologias atuam sobre os agentes
sociais subjugados, m as tam bém outras m últiplas tecn ologias
sociais de gênero, de raça/ etnia e de classe social. Não obstante
a força e a eficácia política de todas as tecnologias sociais, especialm en te as de gên er o, e, em seu seio, das ideologias de
gên er o, a violên cia ain da é n ecessár ia par a m an ter o status
quo. Isto n ão sign ifica adesão ao uso da violên cia, m as um a
d olor osa con statação.
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