www.fgks.org   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MARCO VINICIO CARVAJAL ALDAZ ALFREDO GANGOTENA, POETA EM TRÂNSITO CURITIBA 2017 MARCO VINICIO CARVAJAL ALDAZ ALFREDO GANGOTENA, POETA EM TRÂNSITO Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários, no Programa de Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná UFPR. Orientadora: Profa. Dra. Isabel Jasinski CURITIBA 2017 Catalogação na publicação Mariluci Zanela – CRB 9/1233 Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR Carvajal Aldaz, Marco Vinicio. Alfredo Gangotena, poeta em trânsito / Marco Vinicio Carvajal Aldaz – Curitiba, 2017. 119f.; 29 cm. Orientadora: Isabel Jasinski Dissertação (Mestrado em Letras) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. 1.Gangotena, Alfredo, 1904-1944. 2. Literatura equatoriana. 3.Literatura francesa – Crítica e interpretação. 4.Poesia hispanoamericana. I.Título. CDD 861 AGRADECIMENTOS Me permito escribir en español para agradecer a mis profesores Álvaro Alemán, Cristina Burneo e Ileana Viteri, que han sido importantes en mi formación académica desde mis estudios de pregrado, en la Universidad San Francisco de Quito. El conocimiento, la amistad y la experiencia compartidos han impulsado el deseo de seguir preparándome. Sin duda, guardo una profunda gratitud y respeto hacia ustedes. Agradezco también a la profesora Isabel Jasinski, tutora de la presente disertación, porque hizo posible que realizara mis estudios de maestría en la Universidade Federal do Paraná. Gracias por haber mostrado interés en mi tema de investigación desde el primer correo electrónico enviado desde Quito, y por la orientación durante estos dos años. RESUMO Alfredo Gangotena (1904-1944), poeta equatoriano da tradição hispanoamericana e francesa, escreveu em francês e espanhol devido ao deslocamento. A estadia em Paris (1921-1928), iniciada com o propósito de realizar seus estudos, marcou o bilinguismo e o uso do francês como língua de empréstimo para a expressão lírica. No começo do século XX, a literatura global era dominada pela francofilia universal. Escritores e poetas de vários lugares se congregavam em Paris, a capital mundial das letras, com o desejo de se consagrarem no sistema literário central. Gangotena ganhou um espaço dentro dele, graças ao caráter transnacional de Paris, que acolhia os estrangeiros. No entanto, no Equador, sua figura tomou a conotação de «afrancesada», devido ao discurso da América Hispânica, que formulava uma identidade literária, questionando a francofilia universal. Esta interpretação dominou longamente sobre a crítica de sua obra, desmerecendo a qualidade de seus versos e esvanecendo a influência da literatura francesa sobre seus contemporâneos equatorianos. Este trabalho tem como propósito uma contextualização dos mecanismos de operação e de assimilação da França dentro dos circuitos literários equatorianos. A escrita em francês sentenciou a obra de Gangotena como a máxima expressão de evasão da literatura nacional. Porém, o «deseo de mundo» − a ambição por manter uma contemporaneidade estética com a Europa, sobretudo a França − dominava a produção de vários poetas e escritores, fazendo com que possuíssem «articulações de francesismo» ‒ fixações sobre a língua, cultura e literatura francesas. Os capítulos deste trabalho abordam diversos aspectos, como o questionamento do uso da língua francesa como único parâmetro de francesismo; uma nova interpretação do surgimento do antifrancesismo que se executava para receber Gangotena no seu retorno; e a comparação com seu amigo poeta Jules Supervielle (1884-1960), no contexto uruguaio. A finalidade é resgatar a obra gangoteneana da estranheza, propondo novas interpretações. Seus versos não pertenceram contundentemente às estéticas da vanguarda da França, nem ao compromisso com a localidade da América Hispânica. Frente ao deslocamento, os poetas e escritores têm uma multiplicidade de opções e decisões frente aos discursos da literatura global. A não aderência faz parte de uma dessas possibilidades, deixando o trânsito como ponto de partida para qualquer valorização de Gangotena, habitando o cosmopolitismo parisiense e a marginalidade provincial de Quito, mas sem construir um lar literário. Palavras-chave: Alfredo Gangotena, francesismo, cosmopolitismo, bilinguismo, trânsito, literatura equatoriana, literatura francesa, poesia hispano-americana. ABSTRACT Alfredo Gangotena (1904-1944), Ecuadorian poet of the Spanish American and French traditions, wrote in French and Spanish due to the displacement. The prolonged stay in Paris (1921-1928), which began with the purpose to initiate his studies, marked the bilingualism and the use of French as a borrowing language for lyrical expression. At the beginning of the twentieth century, global literature was dominated by universal Francophilia. Writers and poets from various places gathered in Paris, the literary world capital, with the desire to be enshrined in the central literary system. Gangotena gained space within it, thanks to the transnational character of Paris, which welcomed foreigners. However, in Ecuador, his figure took the connotation of "afrancesado", due to the speech of Hispanic America, which formulated a local literary identity, questioning the universal Francophilia. This interpretation loomed large over the criticism about his work, detracting the quality of his verses, and vanishing the influence of French literature on his Ecuadorian contemporaries. This work seeks to contextualize Gangotena with the French mechanisms of operation and assimilation within Ecuadorian literary circuits. Writing in French sentenced Gangotena's work as the maximum expression of evasion from national literature. However, the "deseo de mundo" −the ambition to maintain an aesthetic contemporaneity with Europe− dominated the production of several poets and writers, causing them to possess "articulations of francophilia" −fixations on French language, culture and literature. The chapters in this work address several aspects such as the questioning of the use of the French language as the only parameter of francophilia; a new interpretation of the appearance of the anti-francophilia that was executed to receive Gangotena in his return; and the comparison with his friend poet Jules Supervielle (1884-1960), in the Uruguayan context. This work pretends to rescue his work from strangeness, proposing new interpretations. His verses did not adhere strongly to the aesthetics of the French avant-garde, nor to the commitment to locality of Hispanic America. Regarding displacement, poets and writers have a multiplicity of choices and decisions to face the discourses of global literature. Non-adherence is part of one of these possibilities, leaving the transit as the starting point for any appreciation of Gangotena, inhabiting Parisian cosmopolitanism and the provincial marginality of Quito, but without building a literary home. Keywords: Alfredo Gangotena, francophilia, cosmopolitanism, bilingualism, transit, Ecuadorian literature, French literature, Hispanic poetry. SUMÁRIO PREFÁCIO ..................................................................................................................... 9 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13 1 GÊNESE DO ANTIFRANCECISMO NA LITERATURA EQUATORIANA ... 21 1.1 GANGOTENA NOS CONTEXTOS SOCIAL E LITERÁRIO EQUATORIANOS ..................................................................................................... 25 1.2 O ANTIFRANCESISMO FRENTE AO MODERNISMO HISPANO- AMERICANO E AO MODERNISMO EQUATORIANO ......................................... 32 1.3 SURGIMENTO DO ANTI-FRANCESISMO ...................................................... 40 2 ARTICULAÇÕES DE FRANCESISMO E TRÂNSITO TRANSATLÂNTICO 46 2.1 FRANCESISMO DA GENERACIÓN DECAPITADA, DE MEDARDO ÁNGEL SILVA E DE ALFREDO GANGOTENA ................................................................. 52 2.2 REALISMO SOCIAL E POSMODERNISMO ..................................................... 64 2.3 JORGE CARRERA ANDRADE E ALFREDO GANGOTENA: O TRÂNSITO ENTRE LÍNGUAS E ESTÉTICAS ........................................................................... 71 3 JULES SUPERVIELLE E AS ARTICULAÇÕES DE FRANCESISMO NO URUGUAI ..................................................................................................................... 83 3.1 SUPERVIELLE NO CONTEXTO URUGUAIO ................................................ 88 3.2 SUPERVIELLE E GANGOTENA NOS SISTEMAS LITERÁRIOS ................. 93 4 OUTRAS CONSIDERAÇÕES ............................................................................... 103 4.1 TENTATIVAS DE TERRITORIALIZAÇÃO DE GANGOTENA .................. 103 4.2 PUBLICAÇÕES E REJEIÇÕES NO EQUADOR ............................................. 109 CONCLUSÕES........................................................................................................... 113 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 116 9 PREFÁCIO Para um leitor da obra do poeta equatoriano Alfredo Gangotena, chama a atenção, principalmente, o uso do francês como língua de empréstimo a fim de deixar versos de misterioso conteúdo. A crítica debate sobre o equatoriano que escrevia em francês, a sua decisão de se expressar em outra língua e sua poesia caracterizada pela difícil penetrabilidade que não se inseria nos moldes da literatura equatoriana do século XX, nem completamente das vanguardas europeias. Estes fatores afastaram Gangotena das antologias nacionais, mas, ao mesmo tempo, são uma fonte de intriga. Chegar a Gangotena, muitas vezes, é um azar para quem decide abordá-lo, porque não é muito estudado pela crítica literária. Eu o encontrei, sem a menor intenção, nos meus anos de graduação na biblioteca da Universidad San Francisco de Quito, procurando um livro de Émile Zola. Chamou-me a atenção um sobrenome hispano dentro de uma estante de literatura francófona. As informações principais diziam que o autor era equatoriano, mas a estranheza de não ter escutado aquele sobrenome no ensino médio ou na universidade me fez imaginar que tinha desenterrado uma obra esquecida. A leitura ao acaso do poema «La voix», e seus versos «Je pleure, ah! d’une veine plus triste et plus poignante / que l’aile des morts frôlant le lamentable airain, / le solitaire et lamantable airain des cloches1» (1991, p. 87) transmitiram-me um abatimento, que se assomava carregado de hermetismo, o qual me provocou fascínio, apesar da incompreensão. Posteriormente, motivado pelo encontro inicial, procurei sua obra na biblioteca da Alliance française2 de Quito, onde ele se encontrava na estante de Littérature équatorienne [Literatura equatoriana]. Desconcertou-me ver sua produção em francês junto com romances equatorianos em espanhol. Pensei que o encontraria na seção de Poésie française, já que os dois volumes compilados de Claude Couffon levam o título de Poèmes français. No entanto, entendia a complexidade de não poder ser considerado 1 Choro, ah! de uma veia mais triste e mais comovente / que a asa dos mortos roçando o lamentável bronze, / o solitário e lamentável bronze dos sinos. 2 Centro de ensino de língua francesa. 10 francês pela origem equatoriana, mas tampouco equatoriano por escrever em francês. É como se não existisse uma estante adequada para categorizar seus poemas. Estas primeiras impressões, como leitor, agrupam o foco de estudo da crítica atual de Gangotena, que analisa sua figura para entender a invisibilidade de sua obra nas letras equatorianas, as implicações de escrever em francês, o hermetismo de seus versos e a conflituosa atribuição de uma identidade. Abordar este poeta requer passar pelos desafios de todas estas problemáticas. A categorização dentro de uma estante representa a dificuldade por considerar seus versos como equatorianos ou franceses, já que a identidade linguística perseguiu o poeta por longo tempo. Os sistemas literários de cada língua tencionaram a ansiedade por encontrar rastros de cada um em sua produção, procurando princípios que guiassem a hermenêutica de sua obra. Porém, a extrema intimidade de sua escrita tornaram ainda mais difícil as tentativas de inseri-lo dentro de um cânone, estética ou corrente literária. O estudo do poeta implica se aventurar a formular hipóteses sobre a recepção de sua obra no Equador, colocando seu caso como uma atipicidade, separado de seus contemporâneos. A interpretação de seu retorno e a coincidência com o realismo social, que propunha construir um nacionalismo literário afastado de influências, é fundamental para entender sua rejeição. O entendimento do porquê o chamaram de afrancesado pelo fervor de defender a localidade concede uma melhor aproximação do poeta, mas não tem considerado a influência da literatura francesa no Equador, já que vários de seus contemporâneos dialogaram com a francofilia universal, sem escrever em francês necessariamente. Este trabalho representa o esforço por abordar um tema ainda não analisado em relação a Gangotena: a contextualização dos mecanismos de operação e assimilação da França dentro dos circuitos e movimentos literários equatorianos. O propósito será partir da dependência do modernismo hispano-americano3 com o parnasianismo e o simbolismo franceses, com a finalidade de entender os começos das tensões nas relações estéticas transatlânticas. Esta primeira vontade da marginalidade hispânica por se equiparar com o modelo central europeu marcou a geração de poetas das duas primeiras décadas do século XX, caracterizando-se pela ansiedade de cosmopolitismo. Portanto, contrastar Gangotena, que experimentou o centro, frente aos modernistas, que o ambicionavam, estabelecerá a importância do passo pelas letras francesas. O objetivo 3 Este movimento não deve ser confundido com o modernismo brasileiro, o qual se compara com as vanguardas hispano-americanas. Para evitar esta confusão, o termo permanecerá em itálico. 11 disto será o de empreender um melhor entendimento da carga acusatória de afrancesado, mostrando que a ênfase na raridade outorgada ao poeta tem sido excedida. Seguindo esta linha de pensamento, se mostrará a tensão que existiu, do centro e da periferia, por julgar o uso do francês como língua de empréstimo, e não o espanhol, a língua materna. Isto compromete um diálogo com a crítica e o exame de diversos termos como assimilado, colonizado, estrangeirista, transplantado ou alheio à cultura nacional. Todos eles carregavam uma carga acusatória que afastou Gangotena da possibilidade de pertencer a um espaço literário. Por esta razão, um aporte fundamental deste trabalho propõe a consideração das «articulações de francesismo» para se liberar destas conotações, e também para possibilitar o contraste de Gangotena com seus contemporâneos, que também foram em direção à literatura francesa, questionando as maniqueístas interpretações da influência. Posteriormente, pretende-se analisar as posições e decisões que os poetas têm frente ao trânsito transatlântico, já que o deslocamento, de Quito a Paris, não pertenceu somente a Gangotena. Foram vários os poetas hispano-americanos e equatorianos que se aventuraram à capital mundial das letras do começo do século XX, em busca do cosmopolitismo e da irradiação artística. A convivência com as correntes literárias do centro e da periferia formulavam dentro dos poetas e escritores a possibilidade de tomar diferentes caminhos estéticos. Analisar como opera este processo de deslocamento em Gangotena e em seu contemporâneo Jorge Carrera Andrade (19024-1978), que também experimentou a França, permitirá entender o trânsito em relação à multiplicidade de estéticas, do centro e da periferia. O deslocamento implica um processo de adaptação linguística, o qual também é um cenário de possiblidades. O sistema literário que cada língua carrega cria uma dupla consciência nos escritores e poetas bilíngues, tendo como resultado um diálogo entre estéticas. Jules Supervielle (1884-1960), poeta e escritor franco-uruguaio e amigo do poeta em Paris, que também experimentou o bilinguismo, escreveu a Gangotena: Je pense à toi sur ton plateau de haute géologie, Toi qui te fraies un chemin parmi les Indiens, les volcans Chevauchant au pied des Andes où les espaces Sont bien plus spacieux qu’ailleurs. […] Mais que se passe-t-il, Gango, sur l’américaine montagne Et pourquoi ne viens-tu à l’appel de nos désirs, 4 Como afirma Martínez (2002-2003, p. 113-114), existe uma controvérsia ao encontrar alguns textos que afirmam que Carrera Andrade nasceu em 1903, mas, conforme a ata de nascimento do Registro oficial, ele nasceu em 1902. 12 Penses-tu que l’on t’oublie De ce côté de la mer? [...].5 (SUPERVIELLE, «Message de Jules Supervielle à Gangotena», apud GANGOTENA, 1992, p. 165-166) Alfredo Supervielle situa seu colega no continente americano a partir do olhar francês, fazendo dos «índios» [indiens], os «vulcões» [volcans] e os «Andes» um espaço exótico; e pede que retorne à França, onde não foi esquecido. Chama a atenção que a origem uruguaia deste poeta deixe se levar pela estranheza europeia de representar o entorno andino. Por esta razão, a amizade e as semelhanças que dividem estes poetas − bilinguismo, deslocamento e escrita em francês − geraram um ponto de partida para compreender que a adoção de uma língua responde a diversos fatores individuais, que não podem ser generalizados. O francês primou sobre a condição bilíngue de Supervielle, mas, diferente de Gangotena, não sofreu uma contundente rejeição porque a temática do pampa e do gaucho6 abundaram em sua obra. Isto levou ao interesse por analisar os limites da assimilação para se apropriar da identidade dos poetas. Dentro do hispanoamericanismo, a região andina e a rio-platense colocavam em funcionamento projetos nacionalistas, que estabeleciam as fronteiras de recepção dos que experimentavam Paris. Desta maneira, comparar as demandas poéticas e narrativas do Equador e do Uruguai, na primeira metade do século XX, junto com as relações literárias estabelecidas com a França pelos poetas mencionados, faz parte deste trabalho, que analisa como as condições externas e as decisões dos poetas favoreceram ou prejudicaram a apreciação em seus países de origem. O interesse deste trabalho se fixou em abordar a compreensão da obra de Gangotena em torno das relações com a literatura francesa nos circuitos literários e seus contemporâneos. O propósito disto tem como finalidade resgatar, em parte, sua obra da estranheza, permitindo que os preconceitos que a marcaram tomem outras valorizações. 5 Eu penso em você sobre a tua planície de alta geologia, / Você que abre um caminho entre os Índios, os vulcões / Cavalgando aos pés dos Andes onde os espaços / São bem maiores que em outros lugares / [...] / Mas o que acontece, Gango, na montanha americana / E por que você não atende ao chamado de nossos desejos, / Você pensa que te esquecemos / Deste lado do mar? / [...]. 6 No Brasil, existe a cultura gaúcha na Região Sul. Gaucho permanecerá em itálico e sem acento, para deixar claro que se refere ao termo em espanhol da região rio-platense do continente. 13 INTRODUÇÃO Para a crítica, a dificuldade de abordar a obra do poeta equatoriano Alfredo Gangotena atravessa diversos problemas devido ao uso do francês como língua de empréstimo em sua produção lírica, à não aderência às vanguardas europeias ou hispano-americanas e à complexa hermenêutica de seus versos. Certamente, Gangotena não é o primeiro caso de habitar em Paris ou recorrer a outra língua diferente da materna para escrever, já que ele pertenceu a uma geração de escritores hispano-americanos – como o chileno Vicente Huidobro (1893-1948), o peruano César Moro (1903-1956), o boliviano Alfonso Costa du Rels (1891-1980) e o equatoriano Jorge Carrera Andrade, entre outros − que se instalaram nesta cidade para publicar, onde as expressões literárias emergiam continuamente, no século XIX e na primeira metade do século XX. No entanto, diferente destes poetas e escritores, ele não entrou no jogo do intercâmbio estético transatlântico que procurava construir um discurso regional a partir da América Hispânica em contraposição à hierarquia europeia. Por este motivo, a valorização de Gangotena se dificulta quando se força a territorialização de sua poesia dentro do centro ou da periferia, já que não se entregou decididamente às vanguardas como seus contemporâneos parisienses, nem ao posmodernismo7, como seus colegas equatorianos. A isto se agregam a complexidade linguística e semântica de sua escrita, a extrema intimidade e o diálogo com leituras humanísticas, que vão desde correntes filosóficas e o estudo de Hegel até as teorias físicas de Einstein. Nascido em 1904, Gangotena, de uma família da aristocracia quiteña criolla8, viajou à França em 1920 com dezesseis anos para terminar o ensino médio e realizar seus estudos universitários, retornando ao Equador em 1928. Paris era a capital literária mundial, onde se respirava a liberdade política, a elegância e a intelectualidade, o que permitia inventar ou perpetuar a liberdade da arte e dos artistas (CASANOVA, 2002, p. 7 O posmodernismo no Equador corresponde à geração de poetas nascidos no começo do século XX. Por esta razão, este termo permanecrá em itálico neste trabalho, para não causar confusão com outras interpretações. 8 Criollo quer dizer filho de espanhóis nascidos na América Hispânica. 14 41). Isto levou o poeta a se entregar ao novo ambiente social, linguístico e artístico. Ao terminar a escola secundária, como assinala Castillo de Berchenko (2013, p. 38-39), decidiu mostrar seus poemas a Gonzalo Zaldumbide (1884-1965), escritor e diplomata equatoriano na França e na Inglaterra, que reconheceria a qualidade de sua escrita e o apresentaria a outros escritores hispano-americanos como Ventura García Calderón, seu irmão Francisco García Calderón, Alfonso Reyes e Ricardo Güiraldes, entre outros, e intelectuais franceses como Ernest Martinenche, Marius André, Francis de Miomandre e Valéry Laurbaud, além do escritor e poeta franco-uruguaio Jules Supervielle, com quem estabeleceria uma estreita amizade. Conseguiu publicar os poemas «Carta» e «Paisaje» na revista costa-riquense Repertorio americano em 1922, que logo seriam traduzidas pelo crítico Georges Pillement na Revue de l’Amérique latine no mesmo ano. Em 1923, Gangotena entrou no circuito literário parisiense escrevendo em francês e publicando em outras revistas como Intentions, Philosophies, Sagesse, Cahiers du Sud, La ligne de Cœur, Chroniques, Le roseau d’or, Sélection (da Bélgica), entre outras (CASTILLO DE BERCHENKO, 2013, p. 44-45). O poeta, apesar de estar rodeado de grandes nomes da literatura francesa e dos círculos literários de Max Jacob (1876-1944) e de Jean Cocteau (1889-1963), não aderiu às vanguardas francesas decididamente. Posteriormente, seus cadernos de poesia foram publicados na seguinte ordem: Orogénie (1928) e Absence (1932), publicados em Paris; Nuit (1938), em Bruxelas; e Tempestad secreta (1940), em Quito9. Gangotena se tornou um bilíngue, mas os contextos político e artístico parisienses exerceram um efeito de diglossia nele. O francês representava a alta cultura, com mais prestígio e associada às funções artísticas do século XX. A pouca idade na época da viagem permitiu que ele se introduzisse com facilidade na língua e a adquirisse e a dominasse como se fosse a materna. Mas, o uso do francês como língua de empréstimo para sua expressão lírica fez com que Gangotena escrevesse como um «assimilado», que recusou o destino de escritor nacional e se apropriou clandestinamente do patrimônio literário central (CASANOVA, 2002, p. 255), e um «falso parisiense» (CASANOVA, 2002, p. 263) por escrever como um cosmopolita, quando, na verdade, sua origem esteve na marginalidade do Equador e de Quito, cidade pequena naquele momento. Indubitavelmente, o patrimônio linguístico fortemente associado à identidade dos indivíduos e à escolha por se expressar em outra língua, 9 A isto se agregam as recompilações post mortem Poesía (1956), Antologia (2005) e a recente reedição de Poesía em 2015. 15 alheia à materna, provocou a problemática de vinculação dele à literatura equatoriana, hispano-americana ou francesa. O esforço da periferia hispano-americana no início do século XX para se inserir na contemporaneidade do centro, da Europa, marcou as relações transatlânticas no intercâmbio literário. O período de modernização da América Latina (1870-1920) é denominado, por Rama, na literatura como cultura modernizada internacionalista, que se divide em três períodos: a cultura ilustrada, a cultura democratizada e a cultura prénacionalista. No primeiro, as estéticas e modelos europeus foram importados como princípio regulador das letras, «saqueando las filosofias europeas en boga10» (1994, p. 36) e combinando «la omnímoda influencia victorhughuiana con el rigor parnasiano 11» (1994, p. 37). No segundo, iniciado na década de 1880 e onde surgiu o modernismo, configurou os filhos da modernidade que liam «mayoritariamente lo que se produce en su tiempo12» (1994, p. 41). Desde o romantismo até o modernismo, em grande medida, a literatura europeia era o modelo a ser seguido para a América Hispânica até o advento do terceiro período, onde se articularam os discursos regionais, apesar de ainda estarem afiliados ao internacionalismo e francesismo. Este último período de enfrentamento, onde escritores e poetas hispanoamericanos pretenderam tecer uma independência do arquétipo europeu, cairia fortemente sobre Gangotena em seu retorno ao Equador em 1928, quando tinha desvanecido a cultura democratizada do modernismo e se desenvolvia o prénacionalismo e nacionalismo do realismo social, na prosa, e do posmodernismo, no verso. A obra dele passou invisível para a crítica equatoriana que a qualificou como afrancesada, estrangeirista e afastada da realidade nacional. Ao pertencer à classe social aristocrática contra a qual os liberais tinham lutado, os intelectuais surgidos das classes médias e de esquerda sentiam um preconceito contra o poeta. Poderia se dizer que o retorno se tornou um verdadeiro exílio para ele. Saiu de Paris, que tinha lhe oferecido um caminho literário com as suas primeiras publicações, já adaptado e vivendo como um cosmopolita, para encontrar um lugar que lhe parecia distinto e alheio à sua partida. Este jogo de termos emitidos, a passagem de assimilado a afrancesado, mostra a dificuldade de territorializar a obra de Gangotena dentro da literatura equatoriana pela tensão dos sistemas literários do centro e da periferia. A crítica atual sobre Gangotena 10 Saqueando as filosofias em voga. A onímoda influência victorhuguiana com os rigores do parnasianismo. 12 Principalmente o que se produz em seu tempo. 11 16 deixou atrás os adjetivos pejorativos dos contemporâneos dele para deixar claro que o poeta pertence à literatura em trânsito, fora dos parâmetros tradicionais, e assim resgatar sua singularidade. Além de analisar o conteúdo da obra de Gangotena, Adriana Castillo de Berchenko13 tem estudado seu trajeto lírico de Quito até Paris, estruturando os circuitos literários que frequentava, as publicações e a refutação no retorno a Quito, propondo um entendimento do poeta que «vive-entre-dos», e destacando a necessidade do trânsito como ponto de partida para entender a obra. Cristina Burneo14 tem estudado o bilinguismo e o processo de tradução de suas obras no Equador, evidenciando que conviver com duas línguas enriqueceu seus versos e que a qualidade lírica não perdeu virtude nem desmerecimento ao mudar de língua. Iván Carvajal15 e Virginia Pérez16 penetraram o hermetismo dos versos para esboçar interpretações. O primeiro analisa a experiência religiosa agnóstica do poeta por meio da angustia pascalina, o conteúdo filosófico, o barroco e o misticismo, enquanto a segunda estuda Tempestad secreta a partir da experiência corporal e da condição física do poeta em seus versos, além do diálogo filosófico do poeta com leituras de Heidegger, Poe, Kafka e Sartre, entre outros. Estes críticos, que são os mais importantes sobre a obra do poeta, têm ajudado a posicionar sua merecida obra dentro da literatura equatoriana como um caso singular. Este conjunto de estudos sobre Gangotena tem abordado significativamente e, ao mesmo tempo, minado as principais temáticas. Por esse motivo, este trabalho se fixou em aprofundar a rejeição a partir do francesismo dentro da literatura equatoriana, apontando, assim, uma nova interpretação. A importância de entender melhor como operava a dependência com a literatura francesa se tornou fundamental para contextualizar o retorno de Gangotena e, também, estabelecer possíveis comparações com seus contemporâneos. Muitos deles falavam francês, ansiavam experimentar o cosmopolitismo e se aproximar da hegemonia que representava a literatura francesa naquele período. A finalidade não é harmonizar a obra do poeta na literatura equatoriana 13 O principal é seu estudo doutoral de 1991: Alfredo Gangotena. Poète équatorien (1904-1944) ou l’Écriture Partagée. 14 Sua dissertação de mestrado Alfredo Gangotena y la traducción: una mirada, de 2005; sua tese doutoral Gramática de un pensamiento solitario. Lenguaje y poesía de Alfredo Gangotena, de 2011; e o livro Amistad y traducción en la construcción biográfica de Alfredo Gangotena, de 2012. A isto se agrega seu trabalho como tradutora da tese doutoral de Castillo de Berchenko ao espanhol, publicada com o título Alfredo Gangotena o la escritura escendida, de 2013. 15 Em seu livro A la zaga del animal imposible. Lecturas de la poesía ecuatoriana del siglo XX (2005) constam dois artigos sobre Gangotena: «Alfredo Gangotena, poeta del extrañamiento» e «Confines». 16 O livro Huesped de sangre, 2004. 17 junto com os seus contemporâneos, mas equilibrar a balança que o exiliou como destoante e contrário. No primeiro capítulo, a proposta será contrastar Gangotena com seus contemporâneos líricos desde o modernismo. Por um lado, os poetas se iniciaram com a influência do parnasianismo e do simbolismo franceses, passaram a ser seduzidos pelo modernismo inaugurado por Rubén Dario, com uma frutífera produção nas décadas de 1910 e 1920, e continuaram na década seguinte com o posmodernismo e a vanguarda dispostos a defender a cor local; por outro lado, os escritores experimentaram o realismo iniciado por A la costa17 (1904) de Luis A. Martínez (1869-1909), que permaneceu em sigilo até o aparecimento de Plata y Bronce18 (1927) de Fernando Chaves (1902-1999), que cultivou o esplendor da narrativa equatoriana com o avassalador caudal de escritores do realismo social a partir da década de 1930. Começando pelas duas primeiras décadas do século XX com os poetas modernistas e a Generación decapitada − grupo de quatro poetas, três quiteños e um guayaquileño −, o estudo se centrará no que prefiro chamar «articulações de francesismo», para deixar de lado as cargas pejorativas dos termos assimilado, falso parisiense, afrancesado ou estrangeirista, já que as tensões exercidas pelo centro, que recebe o estrangeiro que tenta se apropriar do novo sistema literário, e da periferia, que não acolhe o compatriota por não se comprometer com a literatura nacional, não permitem valorizar o poeta com imparcialidade. As articulações de francesismo liberam estas cargas acusatórias e estabelecem relações com a influência da literatura francesa e os precursores franceses na produção destes poetas, sem alimentar os julgamentos de cada lado. A transição do modernismo ao realismo social e ao posmodernismo marca o princípio do debate do antifrancesismo. A ênfase para desenvolver um nacionalismo literário ia se tecendo quando Gangotena se encontrava em Paris. O retorno dele coincidiu com o já conformado aparato intelectual que defendia a localidade. Os modernistas recebiam críticas por terem se refugiado na literatura francesa, o que era visto como antipatriótico. Em comparação com o poeta Medardo Ángel Silva (18981919), um dos mais importantes modernistas, a análise estabelece as articulações do francesismo em contraposição a Gangotena, questionando se a escrita em francês de Gangotena deveria ser o único parâmetro de francesismo que exiliou sua obra. 17 O romance A la costa retrata a migração dos Andes ao litoral equatoriano devido ao boom do cacau no final do século XIX, abordando as situações de exploração laboral, regionalismo e instabilidade política. 18 O romance Plata e Bronce aborda a precariedade e exploração da população indígena, resultando no enfrentamento com os patrões brancos. 18 Posteriormente, a análise se centrará no contraste com o poeta, escritor e crítico Jorge Carrera Andrade, do posmodernismo e da vanguarda a partir das articulações do francesismo, mas também do processo de articulação do «trânsito transatlântico». Os dois poetas habitaram no centro e experimentaram o cosmopolitismo, mas se entregaram diferentemente às vanguardas que emergiam a cada lado do oceano. As tensões que emergiram, devido à pugna da literatura hispano-americana por entrar na contemporaneidade da literatura europeia como autêntica, marcaram posições frente ao discurso universalista francês e ao regional. Por esta razão, analisar o processo de deslocamento e bilinguismo destes poetas permitirá entender o significado da não aderência de Gangotena aos movimentos estéticos do centro ou da periferia. Este repasse de Gangotena dentro da literatura equatoriana e o contraste com alguns de seus contemporâneos estabelecerão que ele não deveria ser visto como totalmente alheio, diferente ou afastado de seus contemporâneos ao compartilhar similaridades. A crítica sobre ele responde ao hermetismo do contexto social, político e literário andino, que não permitiu aos escritores saírem das normas estabelecidas pelo senso comum do realismo social. O terceiro capítulo propõe uma comparação com o contexto rio-platense e o caso de Jules Supervielle, poeta e escritor franco-uruguaio e amigo íntimo de Gangotena desde Paris. O contraste com ele e não com outros escritores como Vallejo, Huidobro ou Costa du Rels se deve não só à estreita amizade, mas ao compartilhamento do bilinguismo, à viagem e à estadia prolongada em Paris, fenômenos que também o colocaram como um caso singular dentro da literatura uruguaia, mas que, diferentemente de Gangotena, permitiram conquistar o respeito dos uruguaios além de ter ganhado um espaço na literatura francesa. Nele, a indefinição de sua identidade, embora fosse controversa, não prejudicou tanto sua recepção como no caso do equatoriano. Filho de pais franceses e nascido em 1884, Supervielle cresceu em Montevidéu com a língua francesa em casa e em sua educação, e com a língua espanhola em seu cotidiano. Em 1894, com dez anos de idade, viajou com sua família à França e terminou seus estudos secundários. O espanhol e o francês foram suas línguas maternas e, apesar de seu forte laço e interesse com a literatura hispano-americana, escreveria todas as suas obras em francês. As viagens entre o Uruguai e a França foram constantes em sua juventude, menos no período de 1939-1946, já que, de volta ao Uruguai, chegaram os 19 ecos da declaração de guerra da Alemanha contra a França, o que, junto com seus problemas financeiros e de saúde, fizeram com que ficasse no Uruguai por sete anos. Por meio das comparações dos contextos social, político e literário rio-platenses e andinos, se tentará entender como estes fatores influenciaram na recepção destes poetas de duas regiões hispano-americanas. Para consegui-lo, a análise da conformação social dos países, a intensa migração europeia no cone sul e o mestizaje [miscigenação] na região andina, mostrará como o diálogo transatlântico se diferenciou nestas regiões. Este mesmo cenário também determinou um percurso político diferente. Enquanto o Equador continuava lutando pelas reformas liberais e compensando a repressão histórica contra os indígenas e os sistemas de exploração deixados pela colônia, o Uruguai passava por um governo bicéfalo, devido à rivalidade entre os conservadores blancos e os liberais colorados, que definiria o impulso liberal reformista do batllismo19 e a intervenção do Estado na economia nacional, segurança social e educação. Estas construções políticas e sociais retratariam a localidade das literaturas com correntes diferentes, a denúncia da realidade equatoriana frente à exaltação dos símbolos nacionais uruguaios − o gaucho, o pampa, a vida no campo, o sotaque do espanhol rioplatense e o desenvolvimento urbano das cidades. Evidentemente, os requerimentos de afiliação às literaturas nacionais destes poetas definiram a assimilação de suas obras. Isto servirá para demonstrar que a resistência de territorializar Gangotena na literatura equatoriana responde aos intransigentes impedimentos de assimilação dados pela conjectura política e social, mais do que pela qualidade de sua obra. Também se associarão em Supervielle as questões analisadas nos contemporâneos equatorianos nas articulações de francesismo, o trânsito transatlântico e a assimilação. O início lírico de Supervielle apela abertamente à influência do simbolismo francês e a Baudelaire como precursor, o qual se configuraria na maturidade ao incorporar e desenvolver uma sensibilidade própria dentro do trânsito transatlântico. Diferente de Gangotena, que não aderiu à nenhuma corrente estética, e de Carrera Andrade, que se afiliou à vanguarda hispano-americana, Supervielle enfrentou a tensão transitando e aderindo aos movimentos franceses e hispano-americanos. Esta condição permitiu dar uma apreciação diferente de Lautréamont e Laforgue, escritores também de origem francesa e nascidos no Uruguai. Portanto, longe da acusação de afrancesado que recebeu Gangotena, Supervielle foi considerado como um poeta francês nascido por 19 Devido a José Batlle, presidente do Uruguai nos períodos de 1903-1907 e 1911-1915. 20 equívoco em Montevidéu, um franco-uruguaio ou um uruguaio por escrever sobre temas de essência uruguaia. O acolhimento de Supervielle, tanto no centro como na periferia, ocupa considerações que viabilizarão um entendimento de Gangotena como destinado irremediavelmente ao exílio pelo contexto andino. Igualmente à crítica atual que se esforça para dar o valor que Gangotena merece, este trabalho propõe uma compreensão nova de Gangotena no contexto literário equatoriano ao aproximá-lo com seus contemporâneos e compará-lo com o caso de Jules Supervielle no contexto rio-platense. No entanto, sempre fica a dúvida de como territorializar Gangotena, além de ressaltar sua particularidade e atipicidade. As conclusões reveem as tentativas feitas por apreciar seus versos como vanguardista hispano-americano, posmodernista equatoriano ou telurista, mas que, no fundo, não atingiram a intenção de encaixá-lo dentro de uma corrente estética nacional. Visto a tensão que exerceram o centro e a periferia por categorizar o poeta e a impossibilidade de se apropriar completamente de seus versos, pretendo ressaltar a condição em trânsito de Gangotena. Desta maneira, livrar Gangotena dos juízos de valor do centro ou da periferia faria com que o status de particularidade e atipicidade não seja uma vicissitude, mas uma virtude. Devido ao ambiente acadêmico brasileiro, esta dissertação foi escrita em português, mas tomando certas decisões. As fontes bibliográficas hispanas e francófonas, os poemas e as referências se conservarão na língua original, mas figurarão as respetivas traduções próprias ao português nas notas de rodapé para a justa adequação ao leitor brasileiro. Isto se deve à importância de manter a voz dos poetas e o jogo de línguas, e não confundir o português como se fosse uma língua usada pelos poetas deste estudo. Na delimitação das obras a serem usadas para respaldar este estudo, estarão presentes todas as obras de Gangotena, tanto em francês como em espanhol, na necessidade de abordá-las segundo o surgimento dos temas, relembrando que este trabalho responde a temas de análise de crítica, mais do que à análise das próprias obras. Do mesmo jeito, serão citados poemas dos decapitados, Jorge Carrera Andrade e Supervielle, quando for necessário demonstrar as articulações do francesismo, a posição em relação ao trânsito transatlântico e as ideologias que representavam suas aderências estéticas. 21 1 GÊNESE DO ANTIFRANCECISMO NA LITERATURA EQUATORIANA Claude Couffon (1926-2013), poeta francês e hispanista, que servia de ponte para os escritores e poetas hispano-americanos dentro dos circuitos literários parisienses, editou a obra de Gangotena em dois volumes: Poèmes français (1991) e Poème français II (1992). Na apresentação do primeiro, escreveu sobre Gangotena o seguinte: Dans nos conversations de l’époque une question revenait sans cesse : Fallait-il classer Alfredo Gangotena parmi les poètes équatoriens, puisqu’il était né et mort à Quito ? Ou devait-on le considérer comme un poète français, étant donné qu’il avait écrit la plus grande partie de son œuvre dans la langue de Rimbaud et d’Apollinaire ? Je crois pouvoir affirmer aujourd’hui que plus qu’un poète français, ou équatorien ou franco-équatorien, Alfredo Gangotena fut essentiellement ceci : un poète universel. Pourtant, et on le regrette, l’auteur d’Orogénie ne jouit pas, dans nos pays, de la renommée qu’il mérite20 (COUFFON, «Alfredo Gangotena dans la vie littéraire française», p. 7-8). As conversas que Couffon menciona se referem àquelas mantidas com os poetas equatorianos Jorge Carrera Andrade, A. Darío Lara, Filoteo Samaniego e Gonzalo Escudero. Os dois últimos apresentaram a tradução ao espanhol das obras de Gangotena em Poesías (1956), publicado pela Casa de la Cultura Ecuatoriana (CCE)21. Todos eles debatiam sobre o problema da categorização dele dentro das antologias nacionais, ainda décadas depois de sua morte em 1944. Os gentílicos do poeta como francês, equatoriano ou franco-equatoriano mostram as contradições da atribuição de uma identidade pelos fenômenos de deslocamento, de Quito a Paris, do bilinguismo e da adoção do francês como língua de empréstimo. A universalidade que Couffon afirma, por um lado, devese à capacidade de Gangotena de dominar a língua francesa e alcançar uma formidável 20 Em nossas conversas da época uma questão voltava sem cessar: Fazia falta classificar Alfredo Gangotena entre os poetas equatorianos, pois ele tinha nascido e morrido em Quito? Ou devia ser considerado como um poeta francês, dado que ele tinha escrito a maior parte de sua obra na língua de Rimbaud e Apollinaire? Eu acredito poder afirmar agora que mais do que um poeta francês, ou equatoriano ou franco-equatoriano, Alfredo Gangotena foi essencialmente isto: um poeta universal. Portanto, e lamentamos, o autor de Orogénie não alcança, em nosso país, o renome que merece. 21 A Casa de la Cultura Ecuatoriana é uma instituição cultural com sua sede principal em Quito. Ela está encarregada de dirigir eventos culturais, fortalecer e impulsar o pensamento, e também estimular a investigação científica. 22 qualidade poética e estética22; mas, por outro lado, também se deve à indefinição de correntes literárias em seus versos, tornando difícil atribuir decididas aderências às vanguardas francesas ou hispano-americanas. Em um dos seus primeiros poemas, dedicado a Gonzalo Zaldumbide, Gangotena escreveu: «J’apprends la grammaire / de ma pensée solitaire23» («Poèmes», 1991, p. 29). O poeta se dedicou a desvelar sua privacidade a partir da solidão, tornando imprescindível a tentativa de penetrar o hermetismo de sua linguagem. Em outro poema, ele mostra esta posição de procurar uma essência privada: Que les branches battent le bouillon de la tempête ! Et si même la fronde de l’éclair pète : Image de l’antilope, Je grave aux souches mon soliloque.24 (GANGOTENA, «Voleur», 1991, p. 38) Incluso na «tempestade» [tempête], no estouro do «relâmpago» [éclair], ele fixa sua vontade de escrever sobre os «troncos» seu «solilóquio» [aux souches mon soliloque]. Trata-se de um discurso ou reflexão própria sem a necessidade de um interlocutor. A segregação e o diálogo interno da escrita de Gangotena se apresenta sempre como um desafio por interpretar sua hermética angústia pessoal. Devido a esta relação intimista com seus versos, característica principal de seu corpus lírico, o poeta careceu de uma filiação estética ou ideológica. Habitar em Paris e escrever em francês não lhe induziram a se inscrever em uma vanguarda europeia; retornar à Quito e à sua língua materna tampouco lhe estimulou a se expressar a partir de uma vanguarda hispano-americana. Portanto, a apropriação e a territorialização dele como equatoriano ou francês foram o principal foco de atenção da crítica, frustrado ao tentar fixar uma identidade literária a suas obras. Esta aproximação de Couffon, que declarou a universalidade de Gangotena sem atentar à identidade nacional, está longe da crítica equatoriana de seus contemporâneos nos Andes, onde foi marcado com o adjetivo difamatório de afrancesado, que compreendia o poeta como um equatoriano alienado de seu país e contaminado pela França. Não escrever na língua materna e sem uma evidente vontade de compromisso 22 Sobre o domínio do francês de Gangotena, encontra-se a carta de Max Jacob, onde lhe disse: «D’après mon ami Jourdain, vous ignoriez tout du français il y a trois ans, et voilà que vous écrivez des vers que nos meilleurs poètes ne désavoueraient pas» (LASSUS, 2014, 118). [Segundo meu amigo Jourdain, você ignorava por completo o francês faz três anos, e eis aqui que você escreve versos que nossos melhores poetas não desaprovariam]. 23 Eu aprendo a gramática / do meu pensamento solitário. 24 Que os ramos golpeiem o caldo da tempestade! / E se incluso a revolta do relâmpago estoura: / Imagem do antílope, / gravo nos troncos meu solilóquio. 23 político o sentenciou ao exílio literário. Predominou sobre ele a consideração de um descendente aristocrático desligado da realidade nacional, educado fora do país e isolado de seus colegas. Ainda, desde a década de 1990, quando começou a existir uma melhor compreensão sobre sua vida e obra, territorializá-lo dentro da literatura equatoriana se complica pela atipicidade de seu caso. Passar pelo debate de afrancesado é recorrente para quem decide estudá-lo. A crítica atual relata com melhor entendimento que seu retorno ao Equador em 1928 coincidiu com a eclosão do realismo social equatoriano, movimento de denúncia e compromisso que se desenvolveu junto com os processos sociológicos, econômicos e políticos do país. A luta por mudar a herança do sistema colonial, que continuava dominando o Equador em inícios do século XX, era o cenário de rivalidades entre terratenentes contra camponeses e trabalhadores, apesar da Revolución liberal em 1895. Para derrotar tal sistema, os intelectuais e escritores, principalmente a partir da década de 1920, envolveram-se na política e encontraram a possibilidade de expor a realidade nacional na literatura para reclamar trocas e criar uma consciência. Com o passar do tempo, eles construíram um aparato regulador e crítico da produção literária nacional, afeiçoando-se à ideologia que defendiam. A obrigação de estarem comprometidos com a mudança nacional antagonizava qualquer influência estrangeira nos escritores. Assim, a denominação de afrancesado orbita sobre a obra de Gangotena como um adjetivo acusatório. Embora isto responda a um processo ideológico de independência da literatura europeia, é necessário rever sua gênese para entender melhor a refutação da obra de Gangotena por ser afrancesado. Antes dele, os modernistas equatorianos já eram vistos como excêntricos por terem tomado o parnasianismo e o simbolismo franceses para seu projeto literário. Eles mostraram iniciativas de entrar na literatura global através da francofilia universal e por empreenderem a renovação do espanhol hispano-americano, segundo os mecanismos inovadores da língua francesa; mas se encontraram com a oposição de uma nova crítica que experimentou internamente o Masacre25 de 1922, a Revolución Juliana26 de 1925, e, externamente, a Revolução mexicana de 1910 e a Revolução soviética de 1917. Surgiu, 25 O acontecimento se deu em 15 de novembro, quando os protestos e greves foram reprimidos, deixando cadáveres que foram lançados ao rio Guayas. Sobre este evento, menciona-se o romance Las cruces sobre el agua (1946), de Joaquín Gallegos Lara. 26 A Revolución Juliana ocorreu em 9 de julho de 1925, reagindo contra o liberalismo plutocrático que vinha se desenvolvendo desde a Revolución liberal. 24 assim, uma oposição não só no Equador, mas no continente americano, contra o modernismo hispano-americano iniciado pelo nicaraguense Rubén Dario. O projeto de Dario afrontava a crítica do uruguaio José Enrique Rodó, que publicou Ariel em 1910. O Arielismo motivava as novas gerações hispano-americanas a se afastarem da escravidão material propagada pelo utilitarismo, materialismo e consumismo estadunidenses, possibilitando «salvar la libertad interior: la de la razón y el sentimiento27» (RODÓ, 1914, p. 33), e compreender que a universalidade do modelo francês se devia ao «genio de la propaganda28» e sua «superioridad de difusión29» (RODÓ, 1914, p. 46). Estas ideias orientaram os intelectuais do continente a desenvolverem um espírito hispano-americano, descartando as relações transatlânticas com a Europa e os Estados Unidos. Dario e os modernistas eram considerados antihispanistas, pseudo-herdeiros do simbolismo francês e transgressores da identidade por desejarem implantar modelos alheios. Este violento menosprezo dos modernistas encobriu o propósito deles de aderir à contemporaneidade europeia, assumindo a necessidade de escrever a partir da periferia – marginalidade, que representava a América Hispânica −, passando pela francofilia universal, o centro que dominava a literatura global nos séculos XIX e XX. Não se tratava de ser francês, mas expressar o que Mariano Siskind denomina como o «deseo de mundo» (2014), a ansiedade de ser cosmopolita a partir da periferia. O modernismo, apesar da acusação de se fixar na literatura francesa, gerou as redes de fraternização por ser hispano-americano, e a disputa e a recusa sentenciaram a importância que tiveram. Portanto, através do estudo de Siskind, Cosmopolitan desires: Global modernity and World Literature in Latin America (2014)30, se mostrará que o debate de Dario contra Rodó e outros críticos teve similaridades com as polêmicas que enfrentaram os modernistas equatorianos frente aos críticos – em sua maioria precursores do realismo social31. 27 Salvar a liberdade interior: a da razão e do sentimento. Gênio da propaganda. 29 Superioridade de difusão. 30 O acadêmico argentino é professor em Harvard University. Seu trabalho sobre teorias da globalização e cosmopolitismo tem sido amplamente reconhecido. 31 O deseo de mundo elaborado por Siskind aborda o âmbito latino-americano desde o ponto de vista rioplatense. Vale a pena ressaltar que o contexto periférico da região andina considera uma marginalização ainda mais afastada, por estar longe do centro hispano-americano – do México ou da Argentina – e da Europa. No entanto, através de seu estudo se estabeleceram relações aplicáveis à dupla marginalidade da região andina. 28 25 Deve-se entender que o antifrancesismo, além de ser uma posição surgida da consciência nacionalista, investiu-se de soberba, oprimindo e desqualificando outras possíveis considerações sobre os escritores e poetas que fizeram de Paris seu lar intelectual. Por este motivo, analisa-se também o pensamento de Ángel Felicísimo Rojas − realista social, autor do romance El exódo del Yangana32 (1949) e crítico literário − sobre os escritores que experimentaram a França. Suas ideias sobre os afrancesados e os transplantados em La novela ecuatoriana (1948) resumem nitidamente a prevalecente aversão, não só contra as influências estrangeiras, mas contra a classe aristocrática. Couffon lamentou que Gangotena não tivesse alcançado o reconhecimento que merece, tanto no Equador como na França; no entanto, foi no Equador onde mais conflito ocasionou a recepção de sua obra. Portanto, a intenção deste capítulo, de aprofundamento na crítica literária sobre os modernismos hispano-americano e equatoriano, vê a necessidade de entender o antifrancesismo a partir de sua origem para se aproximar melhor de Gangotena, reduzindo a carga acusatória de afrancesado que o perseguiu, e desvanecendo sua condição de raro, estranho e atípico dentro da literatura equatoriana. 1.1 GANGOTENA NOS CONTEXTOS SOCIAL E LITERÁRIO EQUATORIANOS Desde o início da vida republicana do Equador em 1830 até inícios do século XX, a herança do colonialismo espanhol dominava a sociedade. A Igreja intervinha no Estado e tinha amplos benefícios; e a classe latifundiária-terratenente dirigia a vida econômica do país na produção agrícola por meio do concertaje e a sembraduría. Nos Andes, o campesino − majoritariamente indígena − «se concertaba» [comprometia] a trabalhar na fazenda por um salário que, na prática, não conseguia ser pago nunca porque o concierto devia pedir adiantamentos ao patrão (AYALA, 2002, p. 15), fazendo com que a dívida chegasse a ser herdada de pais para filhos. No litoral, existiam os sembradores [semeadores], além de peões conciertos, que, pela escassez de mão de obra, recebiam porções de terra para produzir cacau por um salário baixo. Dado que precisavam de dinheiro para ferramentas, pediam adiantamentos que se acumulavam e descontavam na colheita do cacau, dez anos depois (AYALA, 2002, p. 38-39). As 32 O romance El éxodo del Yangana conta a saída dos yanganeses dos Andes à Amazônia equatoriana devido à confrontação física e legal contra os latifundiários que se apropriaram de suas terras. 26 tentativas por mudar o sistema latifundiário marcariam não só o processo sociológico e político do país, mas também a literatura nacional. Devido ao boom de cacau a partir da década de 1880 – o Equador passou a ser o primeiro exportador mundial na década de 1890 −, surgiram uma classe burguesa bancária, mercantil, de pequenos e médios proprietários, e uma classe trabalhadora que desestabilizariam o poder político das elites aristocratas e oligárquicas. Em Guayaquil, cidade portuária onde aconteceram estas mudanças, se originaram partidos políticos de frente liberal em contraposição ao conservadorismo de Quito. Com a intenção de terminar com o domínio conservador terratenente e latifundiário, aconteceu a Revolución liberal em 5 de junho de 1895 em Guayaquil, comandada pelo general Eloy Alfaro. Nela se congregaram camponeses, artesãos, peões e certos grupos da burguesia. Posteriormente, em 4 de setembro do mesmo ano, entraria triunfante em Quito para se posicionar como presidente. Os objetivos desta revolução eram favorecer o sistema financeiro que se desenvolvia no litoral, separar a Igreja do Estado, entrar em um processo de modernização e melhorar as condições das classes trabalhadoras. Em maio de 1896 se realizaram eleições para a Assembleia nacional constituinte. Nela se excluíram os membros da classe clerical e se permitiu a participação de militares. Na nova constituição, reconheceu-se a religião católica como pertencente ao país, mas também se proclamou a liberdade de cultos (AYALA, 2002, p. 112-113). Também se proibiu a imigração de comunidades religiosas e foi permitida a participação de religiosos nascidos no Equador na política, somente. Seu mandato iria além nas reformas e mudanças do país, construindo o Instituto Nacional Mejía, primeiro estabelecimento de educação laica; propondo a construção da estrada de ferro transandina, que conectaria os Andes com o Litoral; e reduzindo ainda mais o poder eclesiástico ao retirar a obrigação de estudos religiosos nas universidades e ao secularizar os impostos que substituíam os diezmos33 (AYALA, 2002, p. 120). Assim, o Equador entrou no século XX no longo caminho do domínio liberal até 1925. A febre reformista da revolução continuava. Em 1906, conseguiu-se separar completamente a Igreja do poder estatal e apenas em 1923 se estabeleceu a reforma agrária, repartindo de uma maneira equitativa as terras a favor dos camponeses e dos indígenas. Na assembleia onde se aprovou esta lei, foi pronunciado: El partido, que ha redimido al indio al romper las fórmulas jurídicas del concertaje, debe laborar sin descanso por la rehabilitación espiritual de esa 33 O diezmo constituía a décima parte do produzido a favor da Igreja. 27 raza, proveyéndola de la capacidad técnica especialmente agrícola, y defendiéndola del alcoholismo y de la explotación religiosa 34 (PAZ Y MIÑO, 2002, p. 40). Considerando a data desta lei e o pronunciamento, entende-se a revalorização da cultura indígena que ocorreu na década de 1920, o que afervorou o nascente realismo social e o indigenismo. Com estas fortes tensões políticas, entre conservadores e liberais, e o regionalismo entre costeños e serranos35, o Equador se esforçava para entrar no capitalismo mundial. Esta situação sociopolítica se deslocou às letras, mas de uma maneira predominante na prosa, mais do que no verso. Detendo-nos ao panorama literário equatoriano do começo do século XX, observam-se caminhos estéticos bifurcados da lírica e da narrativa. Enquanto a poesia tomou a tocha do modernismo desde 1910 até inícios da próxima década, a prosa cultivou o realismo encabeçado pelo romance A la costa de Luis A. Martínez em 1904, que se manteve em sigilo até a aparição de Plata y Bronce em 1927, de Fernando Chaves, que determinou o esplendor do realismo social posterior. Em 1930 se publicou Los que se van36, contos de Joaquín Gallegos Lara, Enrique Gil Gilbert e Demetrio Aguilera Malta, que conformaram a sociedade literária do Grupo de Guayaquil37 junto com Alfredo Pareja Diezcanseco (1908-1933) e José de la Cuadra (1903-1941), que aderiram ao grupo posteriormente. A máxima expressão do indigenismo se deu com Huasipungo38 (1934), de Jorge Icaza. Embora o modernismo não tivesse sobressaído na 34 O partido, que tem redimido o índio ao romper as fórmulas jurídicas do concertaje, deve trabalhar sem descanso pela reabilitação espiritual dessa raça, lhe oferecendo a capacidade técnica especialmente agrícola, e a defendendo do alcoolismo e da exploração religiosa. 35 O Equador está dividido em quatro regiões, insular, litoral, sierra e amazonía. Costeño se refere à pessoa natural do litoral, enquanto serrano, dos Andes. A maioria da população se encontrava nestas duas regiões, e suas cidades Guayaquil, do litoral, e Quito, da sierra, representavam a rivalidade entre o pensamento liberal e conservador, respectivamente. 36 O romance Los que se van reúne relatos sobre a vida do montuvio, camponês do litoral equatoriano. 37 Os integrantes deste grupo publicaram prolificamente até a década de 1940 com as seguintes obras: La casa de los locos (1929), Río Arriba (1931), El muelle (1933), La Beldaca (1935), Baldomera (1938), Hechos y hazañas de Don Balón de Baba y de su amigo Inocente Cruz (1939), Hombres sin tiempo (1941), Las tres ratas (1944), e outros romances até a década 1990, de Alfredo Pareja Diezcanseco; Las cruces sobre el agua (1946) de Joaquín Gallegos Lara; El amor que dormía (1930), Repisas (1931), Horno (1932), Los Sangurimas (1934), Guásington (1938), de José de la Cuadra; Don Goyo (1933), Canal Zone: los yanquis en Panamá (1935), Madrid: reportaje novelado de una retaguardia heroica (1937), La isla virgen (1942), e outros romances até a década de 1980, de Demetrio Aguilera Malta; Yunga (1933), Relatos de Emmanuel (1939) e Nuestro pan (1941) de Enrique Gil Gilbert. Estas obras e autores, além de outros, marcaram profundamente o realismo social equatoriano desde a década de 1930. Na seguinte década continuariam publicando, mas sem o mesmo vigor. 38 Huasipungo, escrita por Jorge Icaza, é uma das obras mais representativas da literatura equatoriana e do indigenismo. Nela, denunciam-se as relações de poder do terratenente sobre o indígena. Também publicou En las calles (1935), Cholos (1937), Media vida deslumbrados (1942), Huairapamushcas (1948), El Chulla Romero y Flores (1958) e En la casa chola (1959). 28 prosa39, merece esclarecimento, já que foi tardio comparado com outras latitudes da América Hispânica. A literatura modernista mais representativa se deu com a Generación decapitada, conformada pelos poetas Humberto Fierro (1890-1929), Ernesto Noboa y Camaño (1891-1927) e Arturo Borja (1892-1912), de Quito, e Medardo Ángel Silva (1898-1919), de Guayaquil − Borja foi o mais representativo enquanto Silva o que alcançou mais fama. A denominação de decapitados se deve a Raúl Andrade40 e seu ensaio «Retablo de una generación decapitada»41, onde interpreta a melancolia dos poetas e a prematura morte deles. Como assinala Araujo, costuma-se apontar o ano de 1888, com a publicação de Azul de Rubén Darío, como o início do modernismo hispano-americano, o qual se estende até 1910. Embora ele concorde com Handelsman sobre a existência de obras simultâneas com conteúdo modernista neste período no Equador, as obras mais importantes foram publicadas depois de 1910 (2002, p. 64-65)42. As obras poéticas publicadas se deram na seguinte ordem cronológica: - El árbol del bien y del mal (1918), de Medardo Ángel Silva; - El laúd en el valle (1919), de Humberto Fierro; - La flauta del ónix (1920), de Arturo Borja; - Romanza de las horas (1922), de Ernesto Noboa y Camaño; - Velada palatina (1949), de Humberto Fierro; - Trompetas de oro e Poesía escogida (1965), de Medardo Ángel Silva. Neles opera, do mesmo jeito que em Rubén Darío, o que Mariano Siskind (2014) define dentro dos discursos cosmopolitas como o deseo de mundo, a francofilia universal, e a ambição de entrar na contemporaneidade, não só da França, mas da literatura global. Duas interpretações opostas cabem aos modernistas, uma que permite pensar a inserção da América Hispânica dentro da literatura global, uma «toma de 39 Houve duas obras, Égloga trágica (1956) de Gonzalo Zaldumbide, e Para matar un gusano (1915). A primeira foi modernista, mas apareceu fragmentariamente em 1916 na Revista de la Sociedad Jurídica Literaria (Quito), sendo publicada tardiamente. A segunda foi um antecedente do realismo social, mas não em estado «puro» por conter elementos românticos e modernistas. Rojas (1948, p. 104) afirma que estas duas obras não pertencem ao modernismo, por mais que o crítico Isaac J. Barrera as categorize neste movimento. 40 Raúl Andrade foi um ensaísta, periodista e dramaturgo. Sua figura como crítico literário era amplamente reconhecida no período. 41 Ver ANDRADE, R. «Retablo de una generación decapitada». El perfil de la quimera. Siete ensayos literarios. Quito: Talleres gráficos de educación, 1943, p. 63-96. 42 Araujo acrescenta os pensamentos de Isaac J. Barrrera e Guillermo de Torre para entender o fenômeno de assincronia. Segundo o primeiro, deve-se à convulsão política do país nas últimas quatro décadas do século XIX, que não permitiu que os jovens tivessem outras preocupações; já para o segundo, deve-se à relação com o ritmo díspar de evolução social e diversidade de tempos históricos nos países da América Latina (2002, p. 65). 29 conciencia43» para se libertar do passado colonial (GULLÓN apud HANDELSMAN, 2002, p. 57), e outra, como Rodó, que qualificou o movimento como «enteramente antiamericanista44» (apud SISKIND, 2014, p. 186) devido à falta de anexação à localidade e à interpretação do movimento como uma imitação do sistema literário francês. Analisar o conflito destas posturas discordantes sobre o modernismo hispanoamericano e o equatoriano em relação aos términos de Siskind servem para interpretar que o objetivo do movimento consistia em ser moderno, e que o deseo de mundo operava de um modo diferente em Gangotena, já que ele habitou o cosmopolitismo e escreveu a partir do centro. Portanto, mais do que desejar o mundo, este lhe pertenceu e formou parte dele. Afrontar uma interpretação do modernismo equatoriano a partir destas posições apoia a tese de Valencia em seu trabalho El círculo modernista: crítica y poesía (2007), onde argumenta, por meio do estudo da produção de revistas literárias equatorianas, que o modernismo foi transcendente com a capacidade de formular uma crítica literária e cultural no país, longe da posição de Raúl Andrade, que afirmava que os modernistas não souberam ser originais, que imitavam e ambicionavam um movimento literário em um país carente de elementos de modernização. Eu defendo a ideia de que a nova classe intelectual surgida pelo realismo social, com críticos como Ángel Felicísimo Rojas, Manuel J. Calle e Joaquín Gallegos Lara, além de Andrade, ao mesmo tempo em que direcionou a literatura equatoriana a uma das mais altas conquistas da literatura local com este movimento, também guardou austeridade contra outras vozes, muitas vezes silenciadas por não corresponderem ao compromisso político de mudança do país. A Revolución liberal deixou um sistema malogrado e inacabado, a favor dos interesses econômicos das classes altas de Guayaquil, apesar de separar o Estado da igreja e sentar as bases para uma nova sociedade no Equador a favor do comércio, da educação e das reformas laborais. Os bancos do litoral dominavam e submetiam o poder governamental ao seu proveito lucrativo, sem se interessar pelas necessidades dos habitantes. A insatisfação da classe trabalhadora provocou manifestações e aconteceu o Masacre de 1922, e a crise econômica das exportações de cacau ocasionou a Revolución Juliana em 1925, que tentou «quitar la hegemonía económica a los bancos, especialmente al Banco Comercial y Agrícola de Guayaquil, y entregar el poder a Isidro 43 44 Tomada de consciência. Inteiramente antiamericanista. 30 Ayora45» (CARRIÓN DE FIERRO, 2002, p. 127), que logo criaria o Banco Central del Ecuador para controlar a economia. Estes dois fatos históricos, somados à influência das revoluções mexicana e russa, marcariam a literatura e fomentaria o realismo social como um movimento que se prolongaria até a década de 1950. Os escritores se envolveram no compromisso político-social de denunciar as desigualdades, devido ao período turbulento que afrontavam. Gangotena retornou em 1928 com seu corpus lírico maioritariamente escrito em francês até esse momento. Ele continuou filiado ao francês, e publicou em Bruxelas quatro anos depois. Demorariam doze anos para que ele voltasse ao espanhol com Tempestad secreta (1940). Na chegada dele no Equador, o verso modernista tinha esvanecido com as lembranças deixadas pelas publicações dos decapitados frente à revigorante narrativa realista de denúncia social, que também se sobrepunha à lírica posmodernista. Com o fim do modernismo equatoriano, os poetas posmodernistas e vanguardistas entraram no cenário lírico. Sobre o primeiro, como explica Encalada (2007, p. 51), são os poetas nascidos no começo do século XX, e uns poucos no final do anterior. A lista é longa, mas certos nomes como Gonzalo Escudero, Augusto Arias, Alejandro Carrión, Jorge Carrera Andrade e Hugo Mayo, entre outros, representaram este movimento. Os dois últimos também configuraram a posterior geração de poetas vanguardistas que produziram desde 1944, que coincidiu com a morte de Gangotena e a criação da Casa de la cultura Ecuatoriana. Neles se configurou também uma preocupação social e a vontade de construir uma identidade equatoriana, como no realismo social, mas, ao mesmo tempo, guardaram a ambição de internacionalismo e cosmopolitismo dos modernistas. Os posmodernistas e os vanguardistas foram influenciados pelos «ismos» europeus e americanos: o cubismo, o dadaísmo, o futurismo, o creacionismo, o ultraísmo e o expressionismo, e participaram da criação de grupos literários como Madrugada, Presencia46, Elan, Umbral, Caminos e Club 7. Dentro destes grupos figuraram os principais tradutores de Gangotena, Filoteo Samaniego e Gonzalo Escudero; Jorge Carrera Andrade, que considerou a qualidade de sua obra apesar da difícil categorização; e Alejandro Carrión, que desmereceu sua produção dentro das letras equatorianas. O retorno de Gangotena não mostrou rastros de 45 Liberar a hegemonia econômica aos bancos, especialmente ao Banco Comercial y Agrícola de Guayaquil, e entregar o poder a Isidro Ayora. 46 Moscoso (2007, p. 91) afirma que Alfredo Gangotena foi a maior influência do grupo Presencia sem maiores explicações. Valeria a pena confirmar esta afirmação em um estudo posterior. 31 querer se associar a um movimento literário, ou colaborar em uma revista. Por exemplo, na revista América, entre os colaboradores, constaram Gonzalo Zaldumbide, Jorge Carrera Andrade e Gonzalo Escudero. Todos eles com noções e apreciação pelo poeta, Zaldumbide como amigo na França que o introduziu nos círculos parisienses, Gonzalo Escudero, como amigo da infância e tradutor dele, e Carrera Andrade, que não o conheceu pessoalmente, mas valorizou sua obra. Permanece como um mistério a não participação de Gangotena em grupos que poderiam ter lhe dado acolhimento; a necessidade de escrever com um compromisso político se tornou quase uma regra para um escritor ou poeta no Equador desde a década de 1920, tanto no realismo social como no posmodernismo. Sobre a situação social e política do Equador, Gangotena não deixou nenhum texto citando uma posição. Sabe-se que ele dedicou uma poesia à França, no período de guerra, desejando a paz e o reequilíbrio dela, o que fez com que ganhasse uma condecoração honorífica pela embaixada francesa. Ademais, é uma incógnita saber se ele concordava com os aristocratas conservadores de sua época, se ele apoiava os processos de democratização, já que voltou da França, a terra que preconizava a liberdade e a igualdade, ou se ele não se importava com a realidade nacional. As interpretações que podem ser atribuídas à posição política de Gangotena são variadas. Por um lado, pensa-se que, por pertencer à aristocracia, os escritores equatorianos não o acolheram, mas, ao comparar a sua situação com outros do mesmo período, a comodidade econômica não era inerente somente a Gangotena. Apesar de as literaturas exigirem um compromisso político e social, os escritores provinham principalmente de classes aristocráticas, burguesas e da classe média. Por outro lado, fala-se do escritor afrancesado, mas a própria Generación decapitada tinha os rastros da influência francesa do simbolismo e parnasianismo na poesia, do mesmo modo que os poetas posmodernistas que, apesar da consciência nacional, encontravam inspiração na literatura francesa. Finalmente, considera-se o silêncio e a omissão de Gangotena sobre a política equatoriana como indiferença pela instabilidade social e o desprezo ao compromisso com as classes baixas. Todas estas presunções não podem ser verificadas. O que pode ser admitido é que o meio literário equatoriano se mostrava circunspecto frente a Gangotena por todas estas interpretações. Na chegada, a leitura de sua poesia era outorgada somente aos francófilos. Pode ter acontecido que o círculo literário e intelectual do país não tivesse se interessado, mas também não existem rastros das intenções de Gangotena de ser traduzido ou inserido na literatura nacional na chegada. 32 Doze anos depois do retorno ao Equador, ele publicou Tempestad secreta (1940), seu primeiro caderno de poesias em espanhol, o que poderia ser analisado como a tentativa de se encaixar no mundo das letras equatorianas, mas a morte se adiantou antes de ver um resoluto projeto em língua espanhola47. O Equador se encontrava, por um lado, em uma atmosfera política e socialmente instável e, por outro, em uma transição entre o legado dos poetas modernistas e o traço por desenvolver dos realistas sociais e posmodernistas. A intenção de contrastar Gangotena com os seus contemporâneos neste trabalho − da Generación decapitada e dos posmodernistas, além de outros escritores −, procura analisar a condição de afrancesado, comparar o conteúdo poético, considerar o hermético círculo literário, e socavar similaridades com outros escritores (des)considerados pela crítica. Normalmente, Gangotena é colocado como o escritor que, pelos processos de deslocamento e bilinguismo experimentados na estadia parisiense, não foi compreendido, nem considerado como um nacional, mas a influência das letras francesas governou sobre as plumas de vários escritores equatorianos. Uma possível interpretação da obra gangoteneana propõe outras estimações que contrabalançam julgamentos prévios. Por esta razão, o que denota o adjetivo afrancesado em Gangotena deve ser analisado junto com outros escritores, que também receberam esta influência. 1.2 O ANTIFRANCESISMO FRENTE AO MODERNISMO HISPANO-AMERICANO E AO MODERNISMO EQUATORIANO Partindo do modernismo como movimento literário, considera-se este como uma extensão do simbolismo francês, mas como a primeira ruptura que a América Hispânica fez com a literatura europeia. Mais do que uma fórmula, o modernismo se propôs como um ideal onde existisse uma abertura às correntes artísticas para entrar na contemporaneidade do arquétipo europeu. Nele, continuaram os rastros da beleza da forma e o ataviado vocabulário do parnasianismo, a sondagem do mistério e do subconsciente através da imagem do simbolismo, a ansiedade de cosmopolitismo e internacionalismo dados pela entrada desigual no capitalismo e a ambição de conformar a literatura global. Portanto, para ser modernista era quase um requisito a possessão de uma biblioteca pessoal com autores como Leconte de Lisle, Sully Prudhomme e José María de Heredia, do parnasianismo, assim como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e 47 Sobre isto, Burneo diz que não se pode saber se ele tivesse voltado ao francês, ou continuado em espanhol, impossibilitando situá-lo dentro de uma geografia específica (2005, p. 66). 33 Mallarmé, do simbolismo. Todo poeta modernista experimentava a França de alguma maneira, habitando nela, falando francês ou se declarando abertamente seguidor de algum poeta francês. Estas articulações de francesismo dos poetas ocasionaram que o movimento recebesse avaliações como um modelo de implantação sem originalidade. O modernismo hispano-americano concentrava um eixo burguês e elitista, já que o acesso ao francês e a experimentação da França e sua literatura pertenceram às classes altas. Os poetas do modernismo fixaram suas ambições estéticas em se igualar à Europa, imaginando que suas próprias urbes passavam por processos de modernização que permitiam respirar o cosmopolitismo. Tratava-se do «desejo de ser parte da universalidade da modernidade cultural» (SISKIND, 2014, p. 106-107, tradução nossa), assumindo subjetivamente que a modernidade lhes pertencia, e omitindo os processos internos de seus países. Por esta razão, o movimento enfrentou contradições frente às novas formulações da literatura hispano-americana que procuravam um ser regional e nacional, representando as classes médias e oprimidas. Enquanto o modernismo equatoriano se propôs à «la expansión de la sociedad burguesa por sobre la sociedad arcaica de la hacienda48» (VALENCIA, 2007, p. 60), o realismo social mostrava a denúncia da opressão do sistema latifundiário e a rivalidade de classes. Para entender a rejeição de Gangotena deve-se analisar o modernismo, já que ali se encontram os primeiros registros de refutação dos afrancesados, escritores e poetas que se refugiaram nas letras francesas para produzir. O contraste entre o modernismo hispano-americano de Rubén Darío com o modernismo equatoriano encontra as mesmas vicissitudes provocadas pelas vozes locais, que julgavam seu projeto cosmopolita e internacionalista como alheio. Por esta razão, pretende-se analisar estas tensões no modernismo para entender melhor o nascimento do antifrancesismo que se perfilava para receber Gangotena. Primeiro, revendo a defesa do projeto modernista e a contradição que encontravam nele seus adversários, segundo, expondo a assimilação do francesismo dos modernistas, e terceiro, evidenciando o avassalador caudal de críticos e escritores do realismo social que tomariam o controle da literatura equatoriana. O modernismo hispano-americano iniciado por Rubén Dario com a publicação de Azul em 1888 enfrentou a desaprovação de críticos como Juan Varela, José María Rodó e Paul Groussac, que qualificaram seu projeto a partir uma visão de submissão neocolonial, sem caráter nacional e imitativo do simbolismo francês. No Equador, estas 48 A expansão da sociedade burguesa sobre a sociedade arcaica do mundo da fazenda. 34 posições também estiveram presentes com os juízos reprovatórios de Raúl Andrade, Alfredo Pareja Diezcanseco, Joaquín Gallegos Lara e Manuel J. Calle. Pouco poderia fazer Francisco Guarderas, contemporâneo dos poetas e amigo de muitos deles, para defender o meritório valor dos modernistas na literatura equatoriana. O primeiro questionamento que teve Rubén Dario se estabeleceu em sua fixação na literatura francesa. Isto se devia ao deseo de mundo, à francofilia universal e à experimentação da modernidade. Para Darío não existia um «universo plural de diferença multiplicada, mas sim uma formação uniformemente francesa», um «mundo visto através do espelho francês» (SISKIND, 2014, p. 185, tradução nossa). Em grande medida, a França personificava o ideal de literatura no século XIX e XX e a humanidade encontrava a universalidade em Paris. O sonho de qualquer escritor deste período era habitar as ruas parisienses e se deslumbrar com a suntuosidade cultural e artística da cidade. A posição de Darío, de assumir a hegemonia da literatura francesa no globo, encontrava os modelos de Victor Hugo e Verlaine como necessários para seu projeto que compreenderia a América Hispânica, e implicando, por sua vez, ser moderno. Isto fazia com que a França fosse «o horizonte para qualquer [itálico do autor] tentativa de modernização» (SISKIND, 2014, p. 194, tradução nossa), e fosse um modelo a ser seguido em várias áreas, não só na literatura. Assim, as cidades hispanoamericanas se propunham a implantar modelos franceses − urbanos, educativos e políticos, entre outros − sobre as sociedades. Verlaine publicou Les poétes maudits (1884) com a intenção de impugnar os cânones e dar a conhecer a poesia marginalizada. Isto influenciou Rubén Dario para tomar uma posição e introduzir a América Latina no olhar europeu e publicar Los raros49 (1896). Embora se refugiar na literatura francesa fosse necessário para ele, o aporte significou a primeira ruptura que fez a América Hispânica com o centro, e que abriu, posteriormente, o caminho às vanguardas para se propor como diferentes e próprias, desligadas da imitação de modelos europeus. Mais do que imitar Verlaine, tratava-se de absorver o espírito de mudança e rebeldia que este estabelecia na literatura francesa. No entanto, sobre esta aproximação, primaram as opiniões a partir de uma visão neocolonialista. 49 Em Los raros, Darío apresenta escritores e poetas que considerava mestres e modelos para o projeto modernista. No livro figuram Edgar Allan Poe, Leconte de L’Isle, Paul Verlaine, El conde Matias Augusto de Villiers de L’Isle Adam, Leon Bloy, Jean Richepin, Jean Moreas, Laurent Tailhade, Eduardo Dubus, Theodore Hannon, El conde de Lautréamont, Paul Adam, Max Nordau, Ibsen, José Marti e Eugenio de Castro. 35 O livro Ariel (1900) do uruguaio José Enrique Rodó foi proclamado «o evangelho intelectual da juventude hispano-americana» (MORA, s.d., p. 24). Ele expunha sua inquietação frente ao crescente materialismo estadunidense e aos processos de industrialização, que absorviam o homem e o desvirtuavam, e propunha uma América Hispânica que encontrasse um espírito unificador que a definisse, sem a imitação de modelos de implantação de fora. Por este motivo, ele qualificou Darío como «enteramente antiamericanista50» (apud SISKIND, 2014, p. 186) devido à suposição de um explícito fenômeno de transplantação que dominava seus versos. Isto apoiou a crítica que fez o espanhol Juan Varela em 1889 sobre Azul, argumentando que Darío sofria de uma exacerbada francofilia e que, portanto, «no tiene carácter nacional51» (apud SISKIND, 2014, p. 189). Adicionalmente, Paul Groussac, um francês que residia na Argentina e era um agente cultural bem considerado, caracterizou Darío como «heraldo de pseudo-talentos decadentes, simbólicos, estetas52» (apud SISKIND, 2014, p. 205) em seus comentários sobre Los raros (1896). Evidencia-se que a proposta de Darío de experimentar a contemporaneidade europeia era rejeitada pela indisposição dos críticos, que questionavam a necessidade de apelar à produção literária do outro lado do atlântico. Os modernistas equatorianos receberam similares críticas pela influência da literatura francesa. O deseo de mundo que caracterizou Darío se perturbava ainda mais nos equatorianos, já que eram «provincialmente cosmopolitas53». Darío tomava a liderança do movimento englobando o mundo hispano-americano, enquanto o desejo dos equatorianos se encontrava ainda mais remoto, ao estarem mais afastados dos centros hispanos como a Argentina e o México. Pressupor processos de modernização e ser moderno em um país onde ainda existia um sistema latifundiário gerava contradições. O ambiente provinciano era a realidade do país todo, inclusive nas principais cidades como Quito e Guayaquil onde as populações eram pequenas e onde apenas em 1918 foi eliminado o concertaje. O que fazia os modernistas se pensarem modernos eram certas mudanças como a inauguração da estrada de ferro em 1908 que unia o litoral com os Andes – que permitiu uma melhor comunicação entre as cidades e a rápida chegada de produtos, não só mercantis, mas também o consumo cultural −, a 50 Inteiramente antiamericano. Não tem caráter nacional. 52 Heraldo de pseudotalentos decadentes, simbólicos, estetas. 53 Término tomado de BÁEZ, M. «Pictura et poiesis: la transcodificación en la poesía de Medardo Ángel Silva». Kipus: revista andina de letras. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, Corporación Editora Nacional, n. 20, 2006, p. 177-188. 51 36 cobertura de serviços básicos, certa modernização e estruturação das instituições públicas e as reformas educativas iniciadas pelo liberalismo. Estes fatores os faziam se imaginar cosmopolitas em um ambiente predominantemente aldeão. A partir desta posição provincial dos modernistas equatorianos, o objetivo era entrar na contemporaneidade em dois aspectos, o europeu e o hispano-americano, que denotam uma dupla marginalidade periférica. A frágil entrada do país em processos de modernização inacabados ou inconclusos constituiu uma argumentação forte contra os modernistas equatorianos por mascararem seu entorno aldeão por uma ambição cosmopolita e internacionalista. Valencia ressalta em seu estudo o debate entre as figuras de Raúl Andrade – jornalista, dramaturgo e ensaísta − e de Francisco Guarderas – poeta, ensaísta e diplomático. O primeiro questionou o paradoxo da modernização terratenente quiteña em um meio arcaico (2007, p. 57), onde a parcial reestruturação em certas esferas da sociedade e da cidade permitiu aceder a um cosmopolitismo artificial, que não representava o cotidiano majoritário dos equatorianos que experimentavam a relação com a fazenda e o trabalho nela. Para Andrade, os modernistas eram aristocratas e burgueses que se deixaram seduzir pela novidade. O segundo defendia o caráter inovador dos modernistas, afastando-se da cultura aristocrática imposta pela sociedade quiteña (2007, p. 40). Os modernistas provinham das elites e aquilo era uma fonte de reprovação, apesar da defesa de Guarderas, onde argumenta que eles cultivaram uma sensibilidade criativa e se dedicaram à «pura literatura», sem se misturar com outros campos – a política ou a burocracia (VALENCIA, 2007, p. 41). Em artigo sobre os modernistas, Alfredo Pareja Diezcanseco – do Grupo de Guayaquil − escreveu: ¿Por qué no hablaron estos poetas de su tierra? Pues porque no veían en ella consistencia nacional [...] Los señores hacían sembrar papas o cosechaban cacao, olían en el viento las lluvias para las siembras, y se marchaban con los sacos llenos a vivir en París54 (PAREJA DIEZCANSECO apud CUEVA, 1992, p. 50). Além da evasão da realidade nacional, Diezcanseco também mostrou uma rivalidade de classes. Trata-se do menosprezo surgido pelas repercussões políticas e culturais na América Latina da revolução mexicana e da revolução soviética, que modificaram as novas gerações com as doutrinas do comunismo e do socialismo. Quase todo escritor, poeta e pensador posterior aos modernistas teve uma participação política 54 Por que não falaram estes poetas de sua terra? Porque não viam nela consistência nacional [...] Os senhores faziam semear batatas ou colhiam cacau, cheiravam no vento as chuvas para as semeaduras, e partiam com os sacos cheios para viver em Paris. 37 ativa no país, e, de modo geral, afiliaram-se a movimentos de esquerda. Os modernistas eram considerados como a queda da burguesia com altos rastros de aristocracia. Dois dos poetas modernistas da Generación decapitada passaram por períodos na Europa e em Paris. Noboa y Caamaño foi à Europa, na juventude, para se fortalecer de suas neuroses e adição à morfina; Arturo Borja viajou à Paris quando era uma criança para se tratar de uma doença ocular. Em um país controlado pelas classes terratenentes e que enfrentava fricções desde a Revolución liberal, o menosprezo se relacionaria também com uma origem de classe. Aquele status de burguês e aristocrata, que permitiu que falassem francês pela alta educação e que viajassem à Europa e à Paris para absorver a irradiação artística, tornou os poetas alheios à realidade nacional por imitarem modelos europeus que só sua classe consumia. Em resposta aos comentários de Groussac sobre os comentários do caráter imitativo da literatura francesa, onde afirmou que a escrita de Darío não se diferenciava de um francês, este escreveu: [...] Cuando leía Groussac no sabía que fuera un francés que escribiese en castellano, pero él me enseñó a pensar en francés: después, mi alma gozosa y joven conquistó la ciudadanía de Galia… Al penetrar en ciertos secretos de armonía, de matiz, de sugestión que hay en la lengua de Francia, fue mi pensamiento descubrirlos en el español, o aplicarlos… Y he aquí como, pensando en francés y escribiendo en castellano que alabaran por castizo académicos de la Española, publiqué el pequeño libro que iniciaría el actual movimiento Americano… […] En el aparecen la adjetivación francesa, el giro galo injertado en el párrafo castellano… Qui pourrais-je imiter pour être original? […]55 (DARÍO apud SISKIND, 2014, p. 212). A ironia de Darío aponta ao reconhecimento do universalismo francês como ponto de partida para revitalizar o espanhol como projeto literário. O traslado dos fenômenos e recursos do francês ao espanhol delatavam seu deseo de mundo, a possibilidade de ser moderno passando pela França. A pergunta «Qui pourrais-je imiter pour être original?» [Quem eu poderia imitar para ser original?] questiona a necessidade de recorrer à hegemonia da literatura francesa para se pensar diferente e propor um caminho. 55 Quando lia Groussac não sabia que era um francês que escrevesse em espanhol, mas ele me ensinou a pensar em francês: depois, minha alma prazerosa e jovem conquistou a cidadania de Gália.... Ao penetrar em certos segredos de harmonia, de matiz, de sugestão que há na língua da França, foi meu pensamento descobri-los em espanhol, ou aplicá-los... E eis aqui como, pensando em francês e escrevendo em espanhol que louvaram os puros da Academia Espanhola, publiquei o pequeno livro que iniciaria o atual movimento Americano [Hispano-América]... [...] Nele aparecem a adjetivação francesa, o giro gaulês enxertado no parágrafo espanhol... Qui pourrais-je imiter pour être original? 38 Medardo Ángel Silva também teve que defender seu grupo da acusação de carecer de originalidade quando a melancolia de seus versos foi comparada com aquela de Verlaine e Samain: […] Diremos, a propósito, algo que creo explica este problema de la Originalidad y la Influencia, tan discutido y del que se ha hecho uso para atacar a nuestros poetas: es innegable el principio de similitudes psíquicas. En tal o cual situación, un hombre piensa y traduce su pensamiento por escrito o palabras a los demás; pero, he aquí que antes de terminar su exposición, otro la completa y la llena de detalles minuciosos que el primero no pudo dar y que vienen a explicar completamente su idea; […] Nada más natural que dos almas, separadas por tiempo y distancia o contemporáneas, se parezcan; que se busquen, por lo mismo, que gusten de entenderse.56 (SILVA apud VALENCIA, 2007, p. 84) A aberta admiração dos modernistas equatorianos pelos simbolistas franceses provocou uma dicotomia entre a originalidade e a influência, como denota Silva. A leitura dos versos dos modernistas sempre vai levar a referentes e precursores com facilidade, mas eles, «En vez de señalar la necesidad de ser modernos, [...] hacen su literatura desde el supuesto que ya son modernos57» (GONZÁLEZ apud SISKIND, 2007, p. 103). Poderia-se dizer, que, mais do que ser original, o modernismo se propôs como objetivo ser moderno. Este projeto, no qual se aventuraram os poetas da Generación decapitada, tomou o francês para transformar o espanhol hispanoamericano e revitalizá-lo. Portanto, a convivência de «duas almas que querem se entender», seja por tempo ou por distância, tal como Silva afirma em sua apologia à originalidade, deveria ser entendida como uma ambição que serviu para implantar a primeira consciência de hispano-americanismo, apesar de provir da aristocracia e da burguesia. No entanto, a revitalização do espanhol que compreendia o movimento modernista também foi um cenário de rejeições ao ser considerado por Manuel J. Calle – crítico, jornalista, historiador e escritor − como uma «invasión» que «trae consigo un neologismo inútil y bárbaro [...] reduciéndole a una especie de argot para uso exclusivo 56 [...] Diremos, a propósito, algo que acredito que explica este problema da Originalidade e da Influência, tão discutido e sobre o que se tem feito uso para atacar nossos poetas: é inegável o princípio das similitudes psíquicas. Em tal ou qual situação, um homem pensa e traduz seu pensamento por escrito ou palavras ao demais; mas, eis aqui, que antes de terminar sua exposição, outra a completa e a preenche de detalhes minuciosos que o primeiro não pôde dar e que vêm explicar completamente sua ideia; [...] Nada mais natural que duas almas, separadas pelo tempo e distância ou contemporâneas, se pareçam; que se procurem, por isso mesmo, que gostem de se entender. 57 Em vez de apontar a necessidade de serem modernos, [...] fazem sua literatura a partir do suposto de que já são modernos. 39 de la canallada literária58» (apud VALENCIA, 2007, p. 43). Este comentário, por um lado desqualificou o empréstimo do francês e seu traslado ao espanhol, e, por outro lado, do mesmo jeito que Andrade e Pareja Diezcanseco, aclarou que tal propósito só pertenceu ao reduzido grupo de «canalhas», traidores que não viam a realidade do Equador enquanto se imaginam modernos. A realidade que compreendiam os modernistas se expressava na ansiedade de cosmopolitismo que os fazia se imaginarem modernos a partir de suas urbes, Quito e Guayaquil. Estas aproximações sobre as contrariedades do modernismo hispano-americano e equatoriano servem para entender, dentro de um contexto mais agudo, como o cenário literário do país começa a ser dominado pelos intelectuais de esquerda e o realismo social, o que também encerrava um antagonismo de classes sociais. Ao ver que os modernismos hispano-americano e equatoriano caíram no desdém, entende-se porquê Gangotena, chegado da França, com um corpus lírico publicado maioritariamente em francês e sem comprometimentos, recebeu a indiferença de seus compatriotas, apesar de vários falarem também o francês, possibilitando a leitura de seus versos. Qualquer vestígio de estrangeirismos marcados seria considerado como uma transgressão à identidade literária em construção. Os modernismos hispano-americano e equatoriano se destacam pela ampla dependência da literatura francesa que se prezava como centro regulador do pensamento artístico global no início do século XX. Tratava-se de ser hispano-americano passando pela imagem disciplinar da França para se retratar analogamente. Este movimento expressou a acentuada vontade de entrar na literatura global, configurando os mecanismos da língua francesa no espanhol. Isto torna importante a ênfase em que as opiniões acusatórias de afrancesado ou estrangeirista surgiram com a alta consciência do continente sobre a capacidade de propor um projeto literário próprio, desligado do centro unificador parisiense, e também meticulosamente respeitando os fenômenos sociológicos internos, que permitiam a eclosão de novas classes médias e baixas nos cenáculos intelectuais dos países, proclamando as ideologias de esquerda. Certamente, o modernismo serviu como antecedente incentivador para estas formulações de identidade literária em seu projeto literário, no entanto, o movimento foi sentenciado como pseudofrancês. 58 Invasão que traz consigo um neologismo inútil e bárbaro [...] o reduzindo a uma espécie de gíria para uso exclusivo da canalhada literária. 40 Normalmente, ao abordar Gangotena, ergue-se o principal comentário de, em sua chegada, ter encontrado um panorama literário decidido a retratar a localidade, tanto na prosa como no verso, que desfavoreceu a recepção de sua obra. Porém, o propósito de rever o surgimento do antifrancesismo frente aos modernistas serve para aproximá-lo de seus contemporâneos, que também experimentaram a literatura francesa, e para entender melhor as dicotomias que compreendiam o devir ideológico na literatura equatoriana. Nos argumentos que serão colocados neste estudo, se evidenciará que os modernistas possuíam um francesismo mais alto do que Gangotena, inclusive ao escreverem em espanhol. Mas, dado que a escrita em uma língua remete indubitavelmente a uma identidade linguística, a expressão de Gangotena em francês foi considerada ainda mais afrancesada do que os modernistas. 1.3 SURGIMENTO DO ANTI-FRANCESISMO O panorama literário equatoriano nas duas primeiras décadas do século XX se exibia como uma contenda não só de tendências literárias, mas de conjunturas sociais, políticas e ideológicas. O modernismo e seu projeto de internacionalização, de cosmopolitismo e de ambição de contemporaneidade com a Europa importunava a inovação de se manifestar a partir da voz local do realismo social. O avassalador caudal de escritores, pensadores e críticos, defensores da localidade e afiliados a pensamentos de esquerda, vencia no espaço literário equatoriano, e desde finais da década de 1920, seria este conglomerado majoritário que encabeçaria a orientação do pensamento nacional até a década de 1950. Ao controlar a vida literária do país, eles fixavam os limites de assimilação, os quais refutavam os afrancesados, adjetivo que carregava outras conotações como conservador, elitista e aristocrata. O pensamento de Ángel Felicísimo Rojas − escritor, crítico literário e vinculado ao Grupo de Guayaquil − resumiu a visão pejorativa geral que existia sobre os que habitaram em Paris e voltaram ao país com a influência. Sobre os afrancesados, ele se expressou da seguinte maneira: Los hijos de terratenientes adinerados siguieron saliendo a conocer el mundo, que, para ellos, era en aquel tiempo, la capital de Francia. La novela Fermina Marquez, de Valery Larbaud proporciona una visión un tanto aproximada del modo como esas gentes se educaban en «Lutecia», nombre que gustaban de dar a París. Si bien predominada el monigote que iba solamente a aprender el culto de la bohemia en el barrio latino y unas cuantas malas costumbres, a título de refinado, no faltó quién volviera trayendo impulsos literarios y modas a su regreso a la tierra. 41 Y aun cuando por lo general pertenecían a la clase adinerada que dominaba el país, tales impulsos y modas salían del círculo que frecuentaban. Y entraban, con el estruendo de la novedad, en los cenáculos y peñas literarias de Quito y Guayaquil59. (ROJAS, 1948, p. 95-96) Ser afrancesado correspondia às classes altas e ricas da sociedade equatoriana, aquelas que enviavam seus filhos à França para se educarem, e o retorno deles significava um fenômeno de influência estrangeira sobre os circuitos literários do país. Rojas critica a importação e implantação de modas literárias do minoritário grupo terratenente que tinha a possibilidade de habitar o cosmopolitismo parisiense. Trata-se de uma pugna contra o elitismo que, a seu ver, não afeiçoava a realidade equatoriana das classes baixas, nem considerava as diferenças sociológicas do Equador com a Europa. Para Rojas, o ato de sobrepor sistemas literários alheios no Equador adicionou o qualificativo de transplantados, e colocou como exemplo a figura de Gonzalo Zaldumbide: Entre los cultivadores del realismo y el naturalismo en el relato, a principios de siglo, y los adeptos de la escuela modernista, encontramos un grupo heterogéneo de escritores ecuatorianos que hicieron literatura en el extranjero, en Francia generalmente. Y que influyeron desde lejos, en especial, en los jóvenes modernistas de su patria. A la cabeza de aquéllos estaba Gonzalo Zaldumbide, gran señor terratenente, de educación francesa, cultura europea y diplomático profesional, al propio tiempo que crítico notable. Traducía, para las revistas ecuatorianas, a Leconte de L’Isle y a Verlaine. Y dedicaba lo mejor de su talento a escribir sobre Gabriel D’Annunzio y Barbusse, el de la primera época. Un poco después, acerca de Rodó, entonces en el apogeo de su fama. Hablar sobre su propio país parecía estarle vedado, hasta que se creyó obligado a escribir una novela, la novela del retorno.60 (ROJAS, 1948, p. 103-104) Previamente, mencionou-se a importância de Zaldumbide para introduzir Gangotena na atmosfera literária parisiense. Aquela marca de status da aristocracia de 59 Os filhos de terratenentes ricos seguiram saindo a conhecer o mundo, que, para eles, era naquele tempo, a capital da França. O romance Fermina Marquez, de Valery Larbaud proporciona uma visão um tanto aproximada do modo como essas pessoas se educavam em «Lutecia», nome que gostavam de dar a Paris. Embora predominasse a marionete que ia somente aprender o culto da boemia no bairro latino e uns tantos maus hábitos, a título de refinado, não faltou quem voltasse e trouxesse impulsos literários e modas no retorno à sua terra. E ainda quando em geral pertenciam à classe rica que dominava o país, aqueles impulsos e modas saíam do círculo que frequentavam. E entravam, com o estrondo de novidade, nos cenáculos e penhascos literários de Quito e Guayaquil. 60 Entre os cultivadores do realismo e o naturismo na prosa, no início do século, e os adeptos à escola modernista, encontramos um grupo heterogêneo de escritores equatorianos que fizeram literatura no estrangeiro, na França geralmente. E que influenciaram desde longe, em especial, os jovens modernistas de sua pátria. À frente daqueles estava Gonzalo Zaldumbide, grande senhor terratenente, de educação francesa, cultura europeia e diplomático profissional, ao mesmo tempo que crítico notável. Traduzia, para as revistas equatorianas, Leconte de L’Isle e Verlaine. E dedicava o melhor de seu talento a escrever sobre Gabriel D’Annunzio y Barbusse, o da primeira época. Um pouco depois, sobre Rodó, naquele momento no auge de sua fama. Falar sobre seu próprio país parecia estar vetado para ele, até quando foi forçado a escrever um romance, o romance do seu retorno. 42 quem se educava e habitava em Paris perseguiria vastamente todo escritor que quisesse se envolver na literatura nacional a partir da década de 1920. A figura de Zaldumbide serve para ressaltar a transição entre dois momentos que apontam a citação de Rojas, aqueles prévio e posterior ao modernismo, em relação aos períodos da cultura ilustrada, da cultura democratizada e da cultura pré-nacionalista, previamente analisados sobre Rama. Na análise de Araujo Sánchez sobre a transição ao modernismo equatoriano, menciona o quiteño César Borja (1852-1910) e o guayaquileño Fálquez Ampuero (1877-1947) como os precursores dos modernistas, que representaram a cultura ilustrada. Neles, seus trabalhos como tradutores de obras francesas repercutiram em suas produções poéticas. No primeiro, refletiram-se o parnasianismo e o simbolismo de Baudelaire, Leconte de Liste, Paul Verlaine, Sully Prodhomme e José María de Heredia; no segundo, além dos autores de Borja, outros como Gauthier, Víctor Hugo e Musset (2002, p. 63). Eles permitiram que a língua e a cultura francesas chegadas pelo porto guayaquileño se espalhassem nas elites como uma marca de status. Zaldumbide, como herdeiro da cultura ilustrada e circunscrito na cultura democratizada, cumpria com a função de gestor e responsável do empreendimento de levar as influências pelo que era apreciado no Equador. No entanto, tal apreço se reverteu com o pré-nacionalismo que reprovava os escritores e poetas da cultura democratizada por fazer de Paris seu lar intelectual (RAMA, 1994, p. 49). Posteriormente, esta transição de aceitar o que vem de fora a questioná-lo terminou por vencer na cultura pré-nacionalista e nacionalista, que refutava categoricamente as evidências de influência francesa ou europeia. A tradução que Zaldumbide fez de autores franceses como Le Conte de L’Isle e de Verlaine foi muito bem recebida em seu momento, quando os escritores e poetas concordavam no deseo de mundo modernista para conceber um projeto literário hispano-americano internacionalista, que não considerava a dependência da literatura francesa como uma vontade de imitação, mas de orientação. No entanto, como assinala Rojas, a chegada de Rodó e o Arielismo vetou Zaldumbide de falar sobre a cultura prénacionalista ou nacionalista, apesar de ter escrito sobre estas. Provir da aristocracia contradizia a adoção do liberalismo e socialismo dos novos escritores. A partir da década de 1920, quase todo escritor e poeta participava ativamente da vida política aderindo a um partido. Os modernistas reconheciam a importância da Revolución liberal, associando o espírito revolucionário liberal com o espírito literário 43 (VALENCIA, 2005, p. 82-83), o qual se traduzia na reformulação do espanhol hispanoamericano. Portanto, embora seu projeto tivesse tido um ideal de identidade continental, primou sobre eles a origem familiar aristocrática por se deixarem influenciar pelo molde francês e pelo ar de sofisticação que este impunha. Os modernistas da Generación decapitada, como mostra o estudo de Valencia (2007, p. 119-121), colaboravam em revistas como Letras, de Quito, criada em 1912, com a participação de Francisco Guarderas, Ernesto Noboa y Caamaño, Arturo Borja e Humberto Fierro, entre outros; Renacimiento, de Guayaquil, criada em 1916, com Medardo Ángel Silva como chefe de redação; Patria, de Guayaquil, criada em 1918, com Medardo Ángel Silva como redator e encarregado da direção; Frivolidades, de Quito, criada em 1919, com Humberto Fierro e Jorge Carrera Andrade, entre outros; América, de Quito, criada em 1925, com as figuras de Gonzalo Zaldumbide, Jorge Carrera Andrade e Gonzalo Escudero, entre outros. As contribuições que eles faziam nestas revistas iam além da contemplação idolátrica por modas literárias europeias, como poderia se imaginar pela profusa crítica que os colocou como imitadores do simbolismo francês. Humberto Fierro se caracterizou por seu «espíritu neurótico cercano al de Baudelaire y de Poe61» que se expunha no entorno histórico colonial e se acrescentava por meio de suas leituras dos simbolistas (VALENCIA, 2007, p. 67). Arturo Borja dialogava com a literatura espanhola e francesa e se comprometeu com o projeto cosmopolita do continente ao «innovar el español como lengua latina y no como una tradición peninsular intocable62» (VALENCIA, 2007, p. 85), e também ao escrever em Letras a seção «Las Revistas» e escrever críticas sobre as novidades literárias que se realizavam na Espanha, na França e na América Latina. Ernesto Noboa y Caamaño foi o poeta da «frivolidade», tema recorrente dos modernistas, e em especial de Ventura García Calderón63, ao situar a necessidade de se afastar das emoções para criar uma nova sensibilidade lírica. A isto se agrega a crítica que fez de Vida criolla64 (1912), do boliviano Alcides Arguedas, reconhecendo o valor da prosa do realismo social (apud 61 Espírito neurótico próximo a Baudelaire e Poe. Inovar o espanhol como língua latina e não como uma tradição peninsular intocável. 63 Ventura García Calderón foi um escritor, crítico e diplomata peruano nascido na França. Ele pertenceu ao modernismo hispano-americano. Em 1908 publicou Frivolidades. 64 O romance Vida criolla constitui uma crítica da sociedade de La Paz, expondo o problema boliviano entre o orgulho de classe terratenente frente à ascensão social do cholo. 62 44 VALENCIA, 2007, p. 99-100). Deve-se lembrar que a obra Raza de bronce65 (1919) de Alcides Arguedas influenciou e dialogou com a obra Plata y bronce (1927) do equatoriano Fernando Chaves. Portanto, vale muito a pena destacar que os modernistas equatorianos, além de seu deseo de mundo em sua posição provincialmente cosmopolita, tentaram compassar não só a literatura europeia, mas a literatura hispanoamericana dentro da literatura global como projeto nacional, e que eles não eram totalmente alheios às outras expressões que se desenvolviam na prosa, contrariamente ao que a crítica pronunciou sobre eles. Este levantamento bibliográfico de Valencia compreende uma revalorização da Generación decapitada, já que, normalmente, ao se referir a estes poetas, aponta-se a seus versos publicados entre 1918 e 1922, que delatam a influência francesa, mas não estes diálogos que mantinham a favor da internacionalização e a forte identificação com a América Hispânica nas revistas. Primou sobre eles serem afrancesados, do mesmo jeito que em Zaldumbide, quando entrou em decadência, sua função de agente portador das influências ao Equador. Todas estas condições e julgamentos que se impuseram sobre os modernistas se fortaleceram a partir da década de 1920 e foram colocados sobre Gangotena quando retornou ao Equador em 1928. Os escritores aristocratas que faziam literatura no estrangeiro seriam vistos como totalmente alheios. Rojas sentenciou os afrancesados como «gente que pensaba en Lutecia y en el barrio latino» e que «se encuentra de pronto con el latifundio y con el indio66» (ROJAS, 1948, p. 99). Ele não considerou que «los poetas modernistas conforman una suerte de ‹región cultural› de alcance nacional» e que «partieron de una tradición simbolista, europea, pero fueron capaces de percibir lo vívido de la poética de los modernistas latinoamericanos67» (BALSECA, 2003, p. 28). Por terem uma posição cosmopolita, seu projeto se orientava a retratar as urbes, se afastando da fazenda e do indígena, e não considerar estes últimos dois temas terminou excluindo-os. O antifrancesismo e a oposição a qualquer influência estrangeira devem ser vistos, portanto, como um fenômeno político, social e ideológico que dominou a literatura equatoriana a partir da década de 1920. Os impulsos da cultura pré65 O romance Raza de bronce é considerado um dos pioneiros do realismo social. Nela, contam-se os abusos dos terratenentes brancos sobre os povos indígenas, que se revelam manifestando seu desprezo pelo trato, mas terminam sendo punidos com retaliações ainda mais brutais. 66 Gente que pensava em Lutécia e no bairro latino e que se encontra de repente com o latifúndio e com o índio. 67 Os poetas modernistas conformam uma série de «regiões culturais» de alcance nacional [e que] partiram de uma tradição simbolista, europeia, mas foram capazes de perceber o vívido da poética dos modernistas latino-americanos. 45 nacionalista e nacionalista precisaram se opor rotundamente ao diálogo literário transatlântico e desestimar qualquer dependência em literaturas estrangeiras. O realismo social se propôs a falar de seus próprios países sem aplicar as teorias e pensamentos europeus, já que consideravam que não correspondiam aos mesmos processos culturais e distorciam as interpretações das questões sociais internas. Por esta razão, deve-se compreender que as adjetivações pejorativas contra os escritores, seduzidos pelas letras francesas, sentenciaram um profundo desprezo, muitas vezes silenciando possíveis méritos. As articulações de francesismo vão além do uso da língua, do refúgio em escritores e poetas franceses como precursores e do acolhimento de movimentos estéticos importados. Por esta razão, é fundamental compreender melhor como os mecanismos de operação destas articulações operaram no cenário literário hispanoamericano e equatoriano. O encontro entre a aceitação da influência e a apologia do que deveria ser nacional estabeleceu um processo de debates e desentendimentos que precisa ser refletido. 46 2 ARTICULAÇÕES DE FRANCESISMO E TRÂNSITO TRANSATLÂNTICO Pelas apreciações que se fizeram sobre Gangotena, pareceria que ele escondeu sua origem quando assumiu o cosmopolitismo parisiense. Abandonar sua língua materna e adotar o francês como língua de expressão lírica significou para ele perder a identidade linguística, e, portanto, sua nacionalidade literária equatoriana. No entanto, em seus primeiros poemas publicados em Paris na revista Philosophies, em 1924, encontram-se versos com alusões ao continente. No poema «Le solitaire» [O solitário] se menciona a rota das Índias e dos Andes: Est-ce la route des Indes ? Dans ma poitrine grince l’équipage Le zodiaque soudain émeut son engrenage Sur l’impondérable coupole des Andes. En haut : La sinistre horloge des astres Et l’amorce de l’aube ; l’avalanche des cimes68 (GANGOTENA, «Le solitaire», 1991, p. 55) O que ressalta, mais que as alusões ao continente, é sua individualidade psicológica e poética quando diz: «Dans la poitrine grince l’équipage» [No meu peito range a equipagem]. Este véu melancólico do infortúnio pessoal governou sobre ele até o fim de suas obras. Por isso, ele olha com aflição «l’impondérable coupole des Andes» [a imponderável cúpula dos Andes], e teme pela sensação de ser consumido pelo «sinistre horloge des astres» [sinistro relógio dos astros], «l’amorce de l’aube» [o anzol da aurora] e «l’avalanche des cimes» [a avalanche dos cumes]. A extrema intimidade que ele guardou com seus versos fizeram com que ele escrevesse a partir de seu âmago, comprometendo-se a desenvolver uma complexa linguagem interna. Sua poesia guarda seus segredos, e a difícil penetrabilidade neles leva ao interesse por descobri-los, mas, frente à incompreensão, resta a imagem de um poeta abatido. Outros poemas como «L’homme de Truxillo», onde exclama «Ô pourpre éclosion du vide, ô plaines d’Amérique !69» (1991, p. 43), mais uma vez se referindo ao continente americano; «Poème», onde menciona o condor, ave andina e símbolo do 68 É a rota das Índias? / No meu peito range a equipagem / De repente, o zodíaco amotina sua engrenagem / Sobre a imponderável cúpula dos Andes. / No alto: / O sinistro relógio dos astros, / E o anzol da aurora; avalanche dos cumes. 69 Ô roxa eclosão do vazio, ô planícies da América! 47 escudo da bandeira equatoriana: «Condor ballotté aux paumes de l’hiver70» (1992, 20); e o fragmento «XI» de Absence (1932), onde menciona o governante inca Túpac Yupanqui (1992, p. 135), passaram desapercebidos pela crítica no retorno. Embora ele tivesse adotado o francês impecavelmente e publicado no centro, seus versos eram provavelmente lidos como exóticos no meio literário parisiense. Os fragmentos e versos não mostram um modelo de retratar a Hispano América, nem com o exotismo dos franceses − nos conhecidos relatos de viagens, tão populares nos séculos XIX e XX − nem como os hispano-americanos da década de 1920 que começavam a ressaltar a localidade. Se esta tensão de pertencer e não pertencer ao centro ou à periferia fez com que ele fosse considerado um afrancesado no Equador, na França, ele era, em termos de Casanova, um «assimilado», por recursar o destino do escritor nacional e se apropriar clandestinamente do património literário central (2002, p. 255), e um «falso parisiense» (2002, p. 263), do mesmo jeito que o belga Henri Michaux71 (1889-1984)72, poeta e amigo de Gangotena, por escrever como cosmopolita de suas origens provinciais, marginais. Poderia-se dizer que o deseo de mundo dos modernistas, o afã de aceder à globalidade literária assumindo a francofilia universal, sendo provincialmente cosmopolitas avança com os assimilados, já que estes cumprem com o desejo, não só de conqusitar e experimentar a capital mundial das letras, mas, de alguma maneira, pertencer a ela. No entanto, este pertencimento nunca atingiu a plenitude porque sair das marginalidades do Equador e da Bélgica significou um processo de transformação, onde o poeta, visto a partir do centro, era um outro que terminou se encaixando dentro da lei soberana da literatura. Portanto, o abandono de sua pátria literária para se hospedar em outra os perseguiria, tanto da crítica do centro, por se apropriarem clandestinamente de seu patrimônio literário, como da crítica de seus países de origem, por desertarem da identidade literária que deveriam ter defendido. 70 Condor sacudido nas palmas do inverno. Henri Michaux retornou com Gangotena em 1928 ao Equador. Posteriormente publicou Ecuador : Journal de Voyage (1929). 72 Sobre estes termos usados por Casanova, assimilado e falso parisiense, vale a pena questionar se a condição de Michaux é comparável a aquela de Gangotena. Por um lado, o lugar social de Gangotena foi outro, já que pertencia à classe alta e diplomática de latino-americanos instalados em Paris; e, por outro lado, embora os dois fossem estrangeiros em Paris, o poeta equatoriano adquiriu a língua, enquanto Michaux não. Portanto, houve diferenças na adaptação e na inserção no sistema literário francês. 71 48 Paris, em geral, acolhia os estrangeiros73 e lhes outorgava o direito de escrever porque era «a capital dessa República sem fronteiras ou limites, pátria universal isenta de qualquer patriotismo [...] lugar transnacional cujos únicos imperativos são os da arte e da literatura: a República Universal das Letras» (CASANOVA, 2002, p. 47). Mas, apesar do ar «transnacional» que se respirava na cidade, isto não desaparecia na identidade marginal daqueles artistas que se descolocavam com a intenção de obter reconhecimento. Assim, enquanto o termo «assimilado» leva consigo uma carga acusatória sobre os poetas marginais que escrevem no centro, a denominação «falso parisiense» alcança quase, ou a mesma, reprovação que afrancesado. Os fenômenos de deslocamento e bilinguismo viajavam com os artistas e se impunham como requisitos avaliadores das críticas, importunando a apreciação das produções artísticas. Observa-se que as duas posições críticas, do centro e da periferia, geram tensões que não permitem a poetas como Michaux e Gangotena habitarem em um espaço literário. Ao mesmo tempo que reconhecem suas existências, também os afastam por suas atipicidades. Eles não podem ser considerados próprios por não continuarem com a herança de seu patrimônio de origem, e também não podem alcançar a plenitude no centro por não serem originários dele. Estas constantes forças que atraem e expulsam estes poetas se volatizam e terminam criando debates. Castillo de Berchenko (2011, p. 125) coloca Gangotena como o poeta que «vive-entre-dos74» para dar um espaço a esta poesia marcada pela tensão do sentimento de pertencimento a um sistema literário. Isto libera aquela pressão do centro e da periferia e permite que habite no «entre», quitando a obrigação de se apropriar dele como equatoriano ou francês, e concedendo o direito de ser, por instantes, de um lugar, e, em outros momentos, de outro. Seguindo a linha de pensamento de Castillo de Berchenko, propõe-se abordar a influência da literatura francesa nos poetas como articulações de francesismo para, desta maneira, não cair na armadilha de uma apreciação que se deixa levar pelos extremos. Enquanto afrancesado determina que o poeta se contaminou pela literatura francesa ao ponto de querer escrever em espanhol como se fosse um francês, ou transgredindo o patrimônio literário nacional por implantar modelos alheios; assimilado e falso 73 A afirmação de Casanova sobre o direito de escrita dos estrangeiros em Paris tinha certas restrições e condicionantes. Não todos eram acolhidos do mesmo jeito. Sobre os latino-americanos, por exemplo, os «rastacueros» como Darío, que não pertenciam a uma classe alta e diplomática, eram considerados poetas de segunda classe. 74 Relacionado a este termo, existem vários termos e conceitos, como «entre-lugar», de Silviano Santiago; «fronteira», de Ana Pizarro; «in between», de Mignolo e Gruzinski; e «caminho do meio», de Bern, entre outros. Vou me limitar ao uso de «vivir-entre-dos», de Castillo de Berchenko. 49 parisiense estabelecem que o poeta deixou sua identidade para trás por habitar no centro e se assemelhar aos cosmopolitas. As articulações de francesismo procuram liberar estas tensões, concedendo o direito ao poeta, a partir do espaço do «entre», de se aproximar livremente ao centro e tomar dele o que ache imprescindível para se estabelecer nele ou formular sua periferia. Portanto, as articulações de francesismo justificam uma posição imparcial, isenta do maniqueísmo entre os dois extremos, aquele que defende entrar na contemporaneidade europeia dominando a francofilia universal, e aquele que considera qualquer estrangeirismo como uma invasão transgressora da identidade nacional. As articulações de francesismo se propõe a relatar os mecanismos de operação da literatura francesa nos movimentos literários e poetas. O diálogo de estéticas entre o centro e as periferias desde o modernismo hispano-americano e equatoriano até as vanguardas ofereceu uma multiplicidade de posições. Através disto, pode-se resgatar Gangotena da condição de afrancesado já que se demostrará que os poetas da Generación decapitada, através do exemplo de Medardo Ángel Silva e escrevendo em espanhol, apresentaram uma articulação de francesismo igual ou maior do que Gangotena. A Generación decapitada apresentou articulações de francesismo pela dependência com a literatura francesa, em especial com o simbolismo. A isto se agrega seus poetas que absorviam e se referenciavam a precursores franceses como modelos para o projeto literário que se espalhou pela América Hispânica. Por esta razão, pretende-se abordar este movimento e a figura de Medardo Ángel Silva para contrastar com as articulações de francesismo de Gangotena, que se expressam na adoção da língua francesa e da experiência cosmopolita. Apesar de que Gangotena, nas tentativas de territorialização na literatura equatoriana, é colocado como um posmodernista ou um vanguardista, partir dos modernistas é necessário porque com eles, como foi visto, iniciou-se o antifrancesismo com o retorno do poeta à Quito, e também porque com eles compartilha o véu melancólico da existência e algumas temáticas como o espírito cético, a angústia e o sofrimento. Como afirma Carvajal, «el nihilismo y la crisis espiritual de la época, con su consiguiente carga de la angustia existencial y agonía, empiezan a vislumbrarse en los modernistas ecuatorianos, pero dominarán ya la escritura de Gangotena75» (2005, p. 45). Estas temáticas podem ser consideradas como universais na poesia do mesmo modo como a paixão, a mulher ou o deleite, mas o modo 75 O niilismo e a crise espiritual da época, com sua conseguinte carga de angústia existencial e agonia, começam a se vislumbrar nos modernistas equatorianos, mas dominarão já a escritura de Gangotena. 50 com que os modernistas e Gangotena trataram estes temas a partir de seus colóquios interiores merecem ser considerados. Como se evidenciará, Gangotena e Medardo Ángel Silva, apesar da diferença de idade – o primeiro é seis anos mais velho do que o segundo − que fez com que se refugiassem no verso livre e no metrificado, respectivamente, compartilharam no ser lírico a oportunidade para plasmar a individualidade e a intimidade da posição do abatimento. Em primeira instância se demonstrará que as articulações de francesismo de Medardo Ángel Silva são maiores do que em Gangotena, apesar de este ter escrito em francês. Em segunda instância, isto servirá para questionar o qualificativo de afrancesado que se impôs sobre ele em seu retorno. Quando Gangotena voltou à Quito, o panorama literário tinha mudado. Como se explicou anteriormente, a prosa do realismo social se implantava dominantemente sobre os cenáculos literários, mas o verso configurava um diálogo estético diferente entre o centro e a periferia. O posmodernismo entra em cena com a consciência nacional, mas, ao mesmo tempo, herda o deseo de mundo dos modernistas. O afã de se mostrar cosmopolita a partir da marginalidade e retratar a localidade adquiriram importância com a eclosão das vanguardas hispano-americanas. Já não era necessário ser um assimilado ou um falso parisiense para ser consagrado no centro. O hispano-americano irrompeu na contemporaneidade do arquétipo europeu, mantendo sua origem e sua localidade, articulando o que se produzia no centro e propondo ismos do mesmo jeito. Assim, surgiu em Paris o creacionismo liderado pelo chileno Vicente Huidobro desde 1912, que propunha o jogo com a invenção de palavras e o uso sem bases lógicas das metáforas, chegando à irracionalidade, o ultraísmo em 1918 em Madri, que agrupava poetas espanhois e hispano-americanos, sendo o argentino Jorge Luís Borges um deles, e que insurgia contra o modernismo se afastando da objetividade em favor da subjetividade do artista, e o estridentismo, na cidade de México, iniciado por Manuel Maples Arce em 1921, que promovia as expressões da cultura popular e de massas. O posmodernismo equatoriano, como foi visto, reúne os poetas que descobriram a realidade nacional, do mesmo jeito que os realistas sociais na prosa, mas também entraram em diálogo com os vanguardismos hispano-americanos e europeus. Alguns poetas mostravam a mesma preocupação pela denúncia e pelo indigenismo, mas também trabalharam com o telurismo, que se fixava no «descubrimiento o 51 redescubrimiento de la realidad geográfica ecuatoriana y latino-americana76», e o ruralismo, que se apresentou como «el canto y la descripción de los ambientes campesinos serranos77» (ENCALADA, 2007, p. 53). Desta maneira, os posmodernistas eram seduzidos pelo impulso internacionalista e cosmopolita das vanguardas hispanoamericanas, permitindo partir da localidade e cumprir com a obrigação estabelecida pela nova tendência que dominava a prosa e, ao mesmo tempo, continuar com deseo de mundo dos modernistas, mas empreendendo uma transgressão contra a francofilia universal. O mais representativo deste movimento foi o quiteño Jorge Carrera Andrade, não só como poeta, mas como pensador e ensaísta. Seu trabalho goza de alto reconhecimento nas letras equatorianas como posmodernista e vanguardista. Ele formou uma geração que pôde enxergar os avanços e falhas do liberalismo desde a Revolución liberal, mas, apesar de viver a Masacre de 1922 e ter promovido a fundação do Partido Socialista em 1926, a política não atravessou sua obra como os realistas sociais. Sua autonomia literária não deixou que o discurso da agitação social tocasse sua produção poética. Assim, em 1922, publicou Estanque inefable e, em 1926, Guirnaldas del silencio. Nestas obras ele mostra uma articulação de francesismo expressado na influência de André Gide e de Francis Jammes. A posterior produção deste poeta seria feita do estrangeiro, já que, em 1928 − ano em que Gangotena voltou ao Equador −, ele partiu à Europa, onde cumpriria cargos diplomáticos durante vários anos78. Existe, desta maneira, um ponto de ruptura entre os Andes e o deslocamento à Europa. Do mesmo jeito que Gangotena, experimentou o cosmopolitismo, mas, uma vez no centro, Carrera Andrade criou, desde Boletines de mar y tierra (1930), uma «sensación de universalismo79», onde «la ‹ecuatorianidad› está presente en ese proceso de ‹mirar› el mundo en la plenitud de sus dimensiones modernas80» (BALSECA, 20022003, p. 30). Sua poesia se circunscreveu nos vanguardismos hispano-americanos, unindo-se a tarefa de colocar a literatura hispana dentro do radar do centro partindo de uma localidade com vontade de ser universal. 76 Descobrimento ou redescobrimento da realidade geográfica equatoriana e latino-americana. O canto e a descrição dos ambientes camponeses andinos. 78 Ele partiu para participar do Congresso Internacional Socialista em Moscou, mas não conseguiu, já que ficou sem fundos e o dinheiro oferecido nunca chegou. No entanto, ele ficou na Europa (BALSECA, 2002-2003, p. 31). 79 Sensação de universalismo. 80 A «equatorianidade» está presente nesse processo de «olhar» o mundo na plenitude de suas dimensões modernas. 77 52 O contraste deste trânsito transatlântico de Gangotena e de Carrera Andrade se propõe a analisar como eles afrontaram o deseo de mundo que se mostrava como indispensável em suas articulações de francesismo, como assumiram o cosmopolitismo e a experiência parisienses, e como balançaram a francofilia universal e o ser hispanoamericano ou equatoriano em suas obras. Assim, pretende-se mostrar que a categorização e territorialização de Gangotena está em constante mudança já que estes elementos tocam e se afastam da necessidade de pertencer. Os rastros que aludem ao continente ou à sua origem equatoriana se entregaram à sua linguagem interior, mas não à vontade de configurar uma «ecuatorianidad» [equatorianidade]. No poema «L’homme de Truxillo», Gangotena escreveu: Ô pourpre éclosion du vide, ô plaines d’Amérique ! Mon front blêmit ; et suis-je las de l’attente lyrique ! L’édifice s’écroule à l’ombre de ma foi. Purifiez ce qu’il y a de permutable en moi ; Eclairez, ô frères, amis, les savanes, les corridors Pour que mieux je connaise le volume de ma mort !81 (GANGOTENA, «L’homme de Truxillo», 1991, p. 43) Neste fragmento figuram as «plaines d’Amérique» [planícies da América], que não evocaram uma imperativa localidade ou equatorianidade que se entregasse ao vanguardismo hispano-americano. Gangotena registrava sua intimidade abatida que se exteriorizava na observação de seu entorno, expressando a angústia que habitava nele, em sua «front blêmit» [frente pálida], e descrevendo o colapso que devora «l’ombre» [a sombra] de sua «foi» [fé]. O pedido de purificação por ter uma melhor lucidez é para conhecer melhor a morte. Evidentemente, o poeta não era alheio a colocar seu olhar na América ou nos Andes, mas era alheio à obrigação de se situar nas leis e princípios institucionalizados do hispano-americanismo que se instaurava. Em outras palavras, os versos de Gangotena não lhe outorgavam o direito de pertencer a uma comunidade literária. 2.1 FRANCESISMO DA GENERACIÓN DECAPITADA, DE MEDARDO ÁNGEL SILVA E DE ALFREDO GANGOTENA O deseo de mundo foi o principal motor das articulações de francesismo que dominou os modernistas hispano-americanos e equatorianos, partindo da francofilia universal de Darío. A língua e a cultura francesas regiam sobre os campos da arte, 81 Oh roxa eclosão do vazio, oh planícies da América! / Minha fronte pálida; e estou cansado da expectativa lírica! / O prédio se derruba sob a sombra de minha fé. / Purificai o que tem de permutável em mim; / Iluminai, oh irmãos, amigos, as savanas, os corredores / para que eu conheça melhor o volume de minha morte! 53 fazendo com que os escritores fossem conscientes da necessidade de serem consagrados no centro (CASANOVA, 2002, p. 35). Os modernistas pretendiam alcançar a partir da periferia a possibilidade de pertencer ao centro, e, para consegui-lo, tomaram a suntuária soberania da literatura francesa para instalá-la no espanhol: Si se consideran las necesidades que hay de romper la atmósfera de desaliento que circunda á toda obra nacional, de dar a conocer a nuestro público la actuación artística de las repúblicas hermanas y de fijar también á su consideración las dos literaturas que, por hoy, influyen más en la formación de nuestros escritores: la española que, con excepción de los pocos mantenedores, que restan del orgullo de esa Nación de pasado sabio y heroico, se halla á su vez influenciadas por la literatura francesa, y ésta que, hasta que el mundo cambie de principios estéticos y de concepciones de belleza, será el ideal que busquen los que sacrifican en aras del Arte 82. (BARRERA apud VALENCIA, 2005, p. 23) Esta declaração de Isaac Barrera, diretor da revista Letras, conferiu o pensamento e a diretriz dos modernistas equatorianos, fixando suas metas na vontade de escreverem segundo os «princípios estéticos» e «concepções de beleza» regidos pela literatura francesa. Os modernistas assumiam a liderança da França e abraçavam sua produção artística como guia a seguir a partir de sua posição de marginalidade. Portanto, este deliberado e explícito objetivo baseado no arquétipo do centro serviu para fazer uso de seus recursos literários, marcando uma alta articulação de francesismo que se resumia no cosmopolitismo, na francofilia universal como referência e nos escritores e poetas franceses como precursores. No entanto, esta ansiedade de pertencer ao centro traçou uma frágil interpretação entre a originalidade e a imitação ou a transplantação. O modernismo também considerava uma postura que compreendia bem as motivações de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé por criar uma nova estética que procurasse o estímulo do imaginário e o desenvolvimento de uma nova sensibilidade, rompendo com a tradição do naturalismo e positivismo. O deseo de mundo concentrava o entendimento destes aspectos, que iam além do exercício da apropriação ou imitação do sistema literário do centro. Ao mesmo tempo que pretendiam pertencer a ele, o modernismo interpretava os recursos e os mecanismos dele para formulá-los dentro da América Hispânica, que se pensava moderna na artificialidade criada pelas novas estruturas sociais e econômicas. Estes signos de 82 Se são consideradas as necessidades de romper a atmosfera do desalento que circunda toda obra nacional, de dar a conhecer a nosso público a atuação artística das repúblicas irmãs e de fixar também à sua consideração as duas literaturas que, atualmente, influenciam mais na formação de nossos escritores: a espanhola que, com exceção dos poucos mantedores, que restam do orgulho dessa Nação de passado sábio e heroico, encontram-se por sua vez influenciadas pela francesa, e esta que, até o mundo mudar de princípios estéticos e conceitos de beleza, será o ideal que buscam os que sacrificam para o bem da Arte. 54 dependência do modernismo com o parnasianismo e o simbolismo franceses criaram as tensões frente à literatura pré-nacionalista e nacionalista, que chegariam para se impor. Handelsman resume esta tensão ao assegurar que «el único discurso que sabían manejar era elitista y europeizante, en un medio que más tarde se iba a despertar paulatinamente ante la necesidad de crear un discurso nacional y popular83» (2002, p. 52). O discurso elitista e europeizante respondia a uma ansiedade de cosmopolitismo e contemporaneidade, mas também enfrentava o desejo de articulação dele para forjar uma rede hispânica interessada em construir uma comunidade literária própria ao continente. Primou sobre os modernistas o critério da proveniência da classe social como uma ominosa sentença e condenação, que deixava sua produção literária como um refinamento de status pouco interessado na realidade nacional. Na década de 1920, o discurso nacional e popular apagaria as vozes do modernismo, e com isto também se estendia a oposição à qualquer rastro de francesismo ou influência estrangeira que pudesse afetar a construção da voz local. Gangotena voltou ao Equador em 1928. Borja, Silva e Noboa Caamaño já haviam falecido, e Fierro se suicidaria um ano depois. A última publicação desta geração foi Romanza de las horas, em 1922, de Noboa Caamaño, e com ela se esvanecia o modernismo equatoriano. Os critérios reprobatórios da Generación decapitada caíram sobre Gangotena com mais força. Primeiro, porque o discurso da voz local ganhava amplo espaço no cenário literário; segundo, porque escrever em francês era interpretado como a maior manifestação de alienação da identidade nacional; e, terceiro, porque a chegada da França representava um status aristocrático. A figura de Gangotena era interpretada como um extremo ainda mais europeizante e elitista que os modernistas. O hermético pensamento da nova voz local repelia rapidamente poetas como ele, muitas vezes, como se viu no pensamento de Raúl Andrade, Manuel J. Calle e Joaquín Gallegos Lara, sem considerar o conteúdo e qualidade poéticos de suas produções, e sem valorizar o aporte literário que fizeram. Aparentemente, a articulação de francesismo de Gangotena foi mais alto do que os modernistas equatorianos por ter escrito em francês, mas, ao contrastar o conteúdo e a dependência da literatura francesa nestes poetas, a balança se inclina sobre a Generación decapitada, o que questiona a identidade linguística dos versos como 83 O único discurso que sabiam controlar era elitista e europeizante, em um meio que mais tarde despertaria paulatinamente ante a necessidade de criar um discurso nacional e popular. 55 parâmetro definidor do francesismo. Gangotena tinha ganhado um espaço dentro das letras parisienses pela amizade com Max Jacob, que cumpriu um papel fundamental ao guiá-lo e ao aproximá-lo a seu círculo literário. O poeta publicou nas revistas Intentions e Revue de l’Amérique latine, mas decisivamente na revista Philosophies, que, dirigida por Pierre Morhange e apadrinhada por Jacob, ocupava um espaço cultural importante como radicalizadora das vanguardas (CASTILLO DE BERCHENKO, 2013, p. 59-60). Desta maneira, o poeta compartilhava as páginas desta revista com figuras como Jean Cocteau, René Crevel, André Salmon e Jules Supervielle. Isto significava uma ampla aceitação do equatoriano que escrevia em francês dentro do meio literário parisiense. No entanto, apesar do excepcional reconhecimento e introdução ao centro, Gangotena não aderiu determinantemente a nenhuma vanguarda europeia. Assim, a poesia de Gangotena apresenta um deseo de mundo diferente dos modernistas. Ao ser consagrado no centro por publicar em revistas importantes, ele aquiesceu o cosmopolitismo sem a necessidade de se afiliar a um movimento. Ele assumiu a francofilia universal sem concebê-la como um ideal a seguir como os modernistas. Habitar em Paris e participar de seu cenário literário sem se inserir contundentemente em uma vanguarda europeia criou uma indeterminação da obra de Gangotena em relação ao deseo de mundo. Se este se expressa como a ansiedade de pertencer ao centro, ele o cumpriu satisfatoriamente por conquistar o espaço e a apreciação, mas a não aderência ativa e estética a um modelo o problematiza. Este ato faz considerar que, diferentemente dos modernistas que tomavam as temáticas do simbolismo, a forma e a métrica, Gangotena não perseguiu um modelo para implantar ou inovar em seus versos. Portanto, deve-se ressaltar esta posição do poeta frente ao centro para valorizar sua produção lírica dentro da literatura equatoriana sem desmerecê-la por ter escrito em francês. Ao comparar Gangotena com os decapitados, estes estabeleceram uma articulação de francesismo desde a influência dos movimentos literários não só da França, mas europeus, e desde o refúgio, muitas vezes manifesto, em escritores e poetas. Apesar de Gangotena ter se relacionado com a língua, mais do que com movimentos e precursores, guarda um vínculo maior com eles do que com os posmodernistas, não pela articulação do francesismo, mas devido à crise espiritual. Neste sentido, existe uma relação que vale a pena ser analisada, já que tem se colocado uma distância demasiado grande entre Gangotena e os poetas equatorianos de seu período. Por esta razão, apresenta-se a necessidade de contrastar Gangotena com um decapitado para mostrar as 56 articulações de francesismo e as similaridades temáticas que guardam em relação ao niilismo e à angustia existencial. Para esta análise, toma-se a figura de Medardo Ángel Silva por ser considerado o poeta mais representativo deste período na literatura equatoriana. Inclusive seu poema «Alma en los labios» se adaptou ao pasillo84 − como também o poema «Para mí tu recuerdo», de Borja, e «Emoción vesperal», de Noboa Caamaño. Ao observar a vida e a obra do autor, evidencia-se a influência francesa que recebe para escrever seus versos. Primeiramente, como assinala seu biógrafo Abel Romeo Castillo (apud PAZOS BARRERA, 2002, p. 79), o autor se dedicou ao estudo das línguas francesa e italiana. Também publicava uma coluna chamada «Al passar» com o pseudônimo de Jean D’Agreve, no jornal El Telégrafo, que respondia à novela do francês Eugène Marie Melchior, Vizconde de Vogüé (1840-1910), publicada no ano do nascimento de Silva (VALLEJO, 2002, p. 94). Isto mostra como seus inícios literários, como leitor e jornalista, mostraram a sedução e admiração de Silva pela literatura francesa, que se intensificou ao ingressar nas filas do modernismo. Por exemplo, quando aborda a mulher criolla, esta «se idealiza a tal punto que casi no es posible diferenciarla de la que aparece en los poetas simbolistas franceses y en los americanos85» (PAZOS BARRERA, 2002, p. 80). Esta decidida predisposição pela influência do simbolismo se ampliava com a veneração ao poeta de Les Poètes Maudits (1884) no poema «Epístola», onde, com dedicatória a Arturo Borja, escreveu: «Hermano, que a la diestra del padre Verlaine moras86» (2012, p. 110), mostrando também a atração pela refinada linguagem, pela musicalidade da rima e pelas referências à mitologia grega: Tú, que ves la increada luz que el alba que ciega, tú, que probaste el agua de la Hipocrene griega, ruega al Supremo Numen por la estirpe de Pan. Mientras Zoilo sonríe, en la sombra conspira. Tal la postrera fase que solloza la lira. Nuestros dioses se van. Nuestros dioses se van.87 (SILVA, «Epístola», 2012, p. 111) Estas alusões à Hipocrene, fonte de inspiração poética, o Supremo Nume, a divindade superior dos deuses, Pã, deus dos bosques, campos e pastores, e Zoilo, 84 O «pasillo» equatoriano é um gênero musical que forma parte da identidade nacional. Idealiza-se até o ponto que não é possível diferenciá-la do que aparece em poetas simbolistas franceses e em modernistas americanos. 86 Irmão, que à destra do padre Verlaine habitas. 87 Tu, que vês a incriada luz que a alba que cega, / tu, que provaste a água da Hipocrene grega, / roga ao Supremo Nume pela estirpe de Pã. / Enquanto Zoilo sorri, na sombra conspira. / Tal a ulterior fase que soluça a lira / Nossos deuses vão embora. Nossos deuses vão embora. 85 57 gramático e crítico grego, mostram o diálogo que Silva mantinha com suas leituras de alta cultura, que acompanham o desenvolvimento do simbolismo francês. Em Gangotena, existe também uma ataviada linguagem: O Pascal : L’esprit d’aventure, de géometrie, En avalanche me saisit, Et ne suis-je peut-être que l’acrobate Sur les géodésiques, les méridiens ! Mais comme toi jadis, petit Blaise, A la renverse sous les chaises, En grand fracas, je ronge les traversins. 88 (GANGOTENA, «Carême», 1992, p. 31) O poeta alude ao pensamento de Blaise Pascal, filósofo cristão, teólogo e físico francês do século XVII. Existem dois motivos pelos quais isto ocorre. O primeiro se deve ao conhecimento e à experiência pessoal, já que ele havia estudado engenharia em minas depois que o padre reprovasse sua inscrição para arquitetura na Escola de Belas Artes, com o qual se entende a linguagem de «geometria» e «meridianos» devido às contribuições à matemática que Pascal fizesse e, ao mesmo tempo, se relacionando com sua experiência pessoal. O segundo responde à angustia pascalina, que é considerada a antecipação do pensamento existencialista porque se opunha ao racionalismo de Descartes, o qual tentava explicar o entorno do ser humano, anulando a incerteza do raciocínio. Se o poeta não tomava a referência com a vontade de se entregar às vanguardas hispano-americanas ao se pronunciar sobre os Andes, neste caso ele não se submete às vanguardas europeias. Ele tinha a capacidade de dialogar livremente com sua bagagem intelectual para produzir seus versos, sem a necessidade da aderência, apresentando rastros que denotam uma possível inclinação que não é determinante. Cenários similares se repetiram na obra de Gangotena como, por exemplo, o ceticismo religioso que se associa ao barroco, ao misticismo, a Kierkegaard ou a Unamuno, onde Carvajal encontrou um indubitável parentesco espiritual (2005, p. 87), mas que, novamente, não se engajam decisivamente a uma corrente. E seria esta constante dificuldade de categorização de Gangotena dentro do centro ou da periferia que causaria a ambiguidade para abordá-lo, inclusive para quem tivesse uma melhor abertura à sua obra, quando os tempos do realismo social se acalmaram. 88 Ô Pascal: / O espírito da aventura, de geometria, / Me aprisiona em avalanche. / E acaso não sou apenas o acrobata / Sobre as geodésicas, os meridianos! / Mas como tu outrora, pequeno Blaise / De costas sob as cadeiras, / Com grande estrépito, roo os travesseiros. 58 Ao entender que a articulação de francesismo expressa na influência da literatura francesa como modelo a seguir operava de diferente modo nos modernistas e em Gangotena, podem-se analisar suas semelhanças. A principal foi a angústia existencial e o niilismo, onde as temáticas universais como o amor, a existência e a morte se aproximaram. Por este motivo, a necessidade de comparar a obra destes dois poetas serve para analisar o percurso lírico deles e para considerar que o termo afrancesado, atribuído à Gangotena, poderia ocupar outras presunções além de afastado da cultura nacional. Os dois poetas se refugiaram na poesia para desmantelar sua intimidade. Gangotena declarou: «J’expédie mes tristesses par la voie lyrique89» («Salle d’attente», 1991, p. 52), enquanto Silva alude à mesma sensação que a poesia lhe provocava: Donde mi corazón –urna de melodía− vierte en un verso triste su lírico tesoro: y duerme en tu regazo −¡oh, sacra Poesía!− frente al lirio, a la estrella, al tibio ocaso de oro.90 (SILVA, «Divagaciones sentimentales» 2012, p. 95). Ambos acudiram ao verso para deixar o registro da angústia que neles habitava e procurar a exegese emancipadora da tristeza; a lassidão seria uma marca pessoal. Conhece-se que Silva provinha de uma família com limitações econômicas e materiais, motivo pelo qual entrou na vida adulta rapidamente, já que aos quatro anos ficou órfão de pai e deixou o ensino médio para trabalhar e se manter com sua mãe. A desolação do poeta dominaria sua obra, o que também se relaciona com sua misteriosa morte 91. Gangotena, por outro lado, habitava um corpo doente. Padecia de problemas de saúde, principalmente respiratórios e uma possível hemofilia que se relacionou com o abatimento de seus versos92, e também tinha problemas familiares, principalmente devido à oposição do pai por se negar ao estudo universitário na Escola de Belas Artes. 89 Eu expeço minhas tristezas pela via lírica Onde meu coração –urna de melodia− / verte num verso triste seu lírico tesouro: / e dorme em teu regaço −oh, sacra Poesia!− / frente ao lírio, à estrela, ao morno ocaso do ouro. 91 Não se sabe com certeza se a morte de Silva foi um suicídio premeditado, já que também existem as teorias de suicídio acidental e assassinato, sendo este último descartado pelos amigos íntimos do poeta (BALSECA, 2003, p. 12). O que se sabe é que ele tinha uma pistola, carregada com uma bala só, com a qual jogava roleta russa para impressionar sua namorada e exigir sua declaração de amor. Pela trajetória da bala no seu cérebro, entrando pelo parietal direito e saindo pelo ocipital esquerdo, e não pelas têmporas, pensa-se que foi acidental (CASTILLO apud BALSECA, 2003, p. 15). 92 O precário estado de saúde do poeta se devia a problemas respiratórios. Referente a isto, está documentado no caderno de viagem de Henri Michaux como no texto «Retrato de Alfredo Gangotena» de Carlos Tobar Zaldumbide, seu contemporâneo e amigo. Neste último, conta-se uma breve descrição de como o poeta inventou um curioso aparato inalador no qual respirava ervas aromáticas. Sobre a hemofilia, existem contradições. Enquanto Virginia Pérez e a sobrinha do poeta, Mona-Claire Mouradain, afirmaram que Gangotena não padecia desta doença, Castillo de Berchenko recolheu as 90 59 A este conjunto de experiências pessoais se agrega o «mal du siècle» que se iniciou com os românticos e continuou com os simbolistas, e as guerras do século XX e as correntes literárias que se dirigiam ao existencialismo. Por esta razão, Silva relacionou a melancolia de Borja com a influência dos franceses: Aquella melancolia inexpresable que vaga en las estrofas de Borja, ese acento indefinible de tristeza, son características del poeta de Le Chariot d’Or. La voz implorante, balbuciente, el místico arrobamiento y serenidad: eso es el mago de Sagesse (SILVA apud VALENCIA, 2005, p. 86)93. Esta referência ao simbolista francês Albert Samain mostra como os modernistas mantinham uma contemporaneidade com a literatura do centro por meio da leitura, o que lhes permitia dialogar com elas. Em Gangotena, do mesmo jeito, encontram-se referências a leituras de Unamuno, Sartre e Kierkegaard. Portanto, a poesia era o encontro para conjugar a imediata fase adulta de Silva e o corpo doente e triste de Gangotena. No encontro com o amor e a mulher desejada, ambos sentiram o abatimento e a desesperança, que se acalmava com a chegada da imagem feminina: La historia de mi alma es la del peregrino que extraviado una noche en un negro camino pidió al cielo una luz… y apareció la luna; pues estaba de un viejo dolor convaleciente, y llegaste lo mismo que una aurora naciente, en el momento amargo y en la hora oportuna.94 (SILVA, «Amada», 2012, p. 93). Esta poderosa imagem do infortúnio de um peregrino que pede ao céu uma «luz» e aparece uma «luna» [lua] se desvanece com a chegada da mulher, como a única capaz de acalmar «en el momento amargo y en la hora oportuna» [no momento amargo na hora oportuna]. Este efeito tranquilizante da presença feminina também se evidenciou em Gangotena: Je gisais étendu là, de tout mon corps, là dans la morne solitude de mes pensées, Quand ces pas, tout d’un coup ressentis dans l’invi- testemunhas de Filoteo Samaniego e Henri Michaux, que reiteram a presença dela, além de outros malestares como problemas para caminhar, manter-se sentado e dores musculares (BURNEO, 2005, p. 24). 93 Aquela melancolia inexpressável que vaga nas estrofes de Borja, esse acento indefinível de tristeza, são características do poeta de Le Chariot d’Or. A voz implorante, balbuciante, o místico arrebatamento e serenidade: isso é do mago de Sagesse. 94 A história de minha alma é a do peregrino / que extraviado uma noite num negro caminho / pediu ao céu uma luz… e apareceu a lua; / pois estava de uma velha dor convalescente, / e você chegou assim como uma aurora nascente, / no momento amargo e na hora oportuna. 60 sible, tout d’un coup vinrent définir mon ciel. A grand fracas j’ouvris la porte, et l’ouvris, soudain : première sur cette contrée nouvelle que je dérange.95 (GANGOTENA, «Cruautés», 1992, p. 160) Neste poema se mostra a imagem do poeta estendido na «solidão de seus pensamentos» [solitude de mês pensées] quando, de repente, a chegada de uns passos «definiram seu céu» [vinrent definir mon ciel]. O poder sedativo daqueles passos corresponde a Marie Lalou96, poeta francesa a quem ele dedicou o poema. Assim, a figura feminina foi um refúgio que ofereceu a oportunidade de se libertar, por instantes, dos devaneios mentais. Esta impregnação da lassidão compartilhada dos poetas alcançava seu escopo ao anunciarem sobre a morte e a existência. Aqueles estados de neurastenia e doença da alma faziam com que eles pensassem no ato de morrer como uma incessante invasão. A consciência da morte os trasladavam a um espaço de presença e subsistência, do qual não podiam fugir: Por la noche la Muerte las alcobas visita donde dormimos nuestros apetitos bestiales y, buen vendimiador, los frutos escogita de sus vendimias eternales. Una vez a mi lado llegó calladamente y, cual si fuera un miembro próximo de la familia, me acarició las manos y me besó la frente; y yo comprendí todo… Y desde esa vigilia, ella marcha conmigo y se acuesta a mi lecho y su mirar oscuro toda mi vida abarca… ¿No ves, por mi actitud que estoy como en acecho del rumor con que boga su misteriosa barca?...97 (SILVA, «La extraña visita», 2012, p. 116). 95 Eu jazia estendido lá, com todo meu corpo, lá na morna solidão de meus pensamentos, / Quando esses passos, de repente sentidos no invisível, de repente vieram definir meu céu. / Com grande estrondo abri então a porta, e a abri, / repentinamente: primeira sobre esta comarca nova que perturbo. 96 A relação epistolar com Marie Lalou – poeta francesa − começou depois que Gangotena recebesse uma carta dela em 1934 felicitando sua recente publicação de Orogénie. O poema «Cruautés» abre com uma dedicatória para ela. Eles nunca chegaram a se conhecer pessoalmente. 97 Pela noite a Morte as alcovas visita / onde dormimos nossos apetites bestiais / e, bom vindimador, os frutos excogita / de suas vindimas eternais. / Uma vez a meu lado chegou caladamente / e, como se fosse um membro próximo da família, / me acariciou as mãos e me beijou a frente; / e eu compreendi tudo… / E desde essa vigília, / ela caminha comigo e deita a meu leito / e seu olhar escuro toda minha vida abarca… / Você não vê, por minha atitude que estou como à espreita / do rumor com que voga seu misterioso bote? 61 Em cada estrofe se observa a descrição da aproximação da morte e a personificação dela para estabelecer um diálogo. Em primeira instância, reconhece a proximidade nas «alcovas» [alcobas] para logo recebê-la como um «miembro da família» [membro de la familia] e caminhar junto com ela. A última estrofe avista a sensação de estar «à espreita» [en acecho], mas também mostra curiosidade por entender o mistério que carrega a morte. De certa maneira, Silva se antecipou à morte, sentindo-a perto até chegar a uma relação de estima que marca a assídua convivência que tinha com ela. Estas relações com a morte não são diferentes para Gangotena, que também se antecipa a ela: Poumons que la nuit déchire en son soupir ? Les vents allongent les corridors. Crochues s’élancent les milles sorcières Où la ciguë prépare son élixir : Alambic et source de ma mort.98 (GANGOTENA, «Salle d’attente», 1991, p. 51) Neste fragmento, o poeta é ainda mais dramático do que Silva ante a consciência da inevitável chegada da morte. Em imagem de vento, esta transita pelos corredores, se transformando em feitiçarias para preparar cicuta, a qual toma a força de elixir. A inexorabilidade da morte atravessa Gangotena entre o encurralamento e sua espera. Em outro poema, a morte é muito mais próxima quando declara: « Adieu ! / Adieu ! Dorénavant ma tâche est brève : celle de mourir »99 («Cruautés», 1991, p. 105-106). Desta maneira, encontram-se laços entre estes poetas que guardam similaridades que poderiam ser consideradas dentro da análise de Gangotena no contexto da literatura equatoriana, permitindo diminuir o pretendido afastamento dele como alheio ou atípico. O caso de Gangotena e sua peculiaridade bilíngue e sem aderência marcam o início da compreensão de sua obra, mas também deve-se pensar que aquele lugar que ocupa, tão afastado de seus contemporâneos, responde à imposição de critérios gerados pelo surgimento do intelectualismo do realismo social. Os princípios deste movimento se opunham irremediavelmente à recepção de sua obra e deixaram as interpretações de Gangotena como fixas, tornando difícil uma revalorização do poeta. Por esta razão, voltando ao significado de afrancesado, recai sobre Gangotena a qualidade do poeta que escreveu em outra língua, e que, além disso, nem se interessou por escrever sobre temas locais em busca de uma literatura nacional em formação. Não 98 Pulmões que a noite rasga num suspiro? / Os ventos alongam os corredores. / Encurvados se lançam as mil feitiçarias / Onde a cicuta prepara seu elixir: / Alambique e origem de minha morte. 99 Adeus! / Adeus! Adiante minha tarefa é breve: aquela de morrer. 62 obstante, ao compará-lo com a geração de poetas anteriores a ele, que não tinham a obrigação de se comprometer politicamente ou se fixar no popular, existem relações bastante relevantes. Retirando a divergência estética, já que Silva e os modernistas respeitavam a rítmica musical e a métrica, enquanto Gangotena o verso livre, aquele véu melancólico se assemelha em certas temáticas. Isto permite entender que se bem o compromisso patriótico e nacionalista levou a literatura equatoriana a produzir e alcançar o reconhecimento e, ao mesmo tempo, compassar o mesmo processo com outros lugares como o Peru e a Colômbia, também criou um hermetismo que afastou os poetas e escritores que não sentiram o chamado do compromisso. Em consequência, isto considera uma bifurcação da literatura equatoriana entre a poesia e a narrativa. O lirismo se desenvolveu a partir do modernismo, que carregava as valorizações de relação com a literatura francesa, e passou ao posmodernismo, herdando deseo de mundo e diálogo com a francofilia universal, mas também aderindo à localidade. A prosa penetrou frontal e decididamente na denúncia social, na luta de classes e no engajamento com ideologias políticas, dominando o panorama literário equatoriano na produção e na crítica, impondo seus princípios como reguladores. Como foi visto no caso de Gangotena, os versos que se pronunciaram sobre os Andes passaram invisíveis pelo bilinguismo principalmente, mas, possivelmente, também por não seguirem as regulações de como se expressar na localidade. Analogamente, poemas de Silva como «Bolívar y el tiempo», onde exalta a grandeza do Chimborazo100 e a imagem de Simón Bolívar, «Mi ciudad», que aprecia os atributos de Guayaquil, ou «En el bar» e «La quinta pareja», que evidenciam fanicos de uma cidade em carência pela vida boêmia101, também correram com a mesma sorte. Estes poemas não conformam parte da visão geral dele por não conformarem a maioria de seu corpus lírico. Portanto, as interpretações que se fixaram no decorrer da crítica literária equatoriana não permitiram ver algumas informações que poderiam ser oportunas e significativas. Campaña resume bem as contradições entre pertencer ou não à literatura nacional de acordo com os controversos tempos da primeira metade do século XX: 100 O Chimborazo é o vulcão e a montanha mais alta dos Andes equatorianos. Singularmente, Silva é conhecido pela sua poesia, mas existe um rastro de relatos escritos, onde se observa um «brote viçoso da terra», uma «literatura criolla sobretudo» (CHÁVEZ apud PAZOS BARRERA, 2002, p. 93). Nestes relatos, a visão da realidade equatoriana vai depender do leitor porque não revela uma consciência nacional expressa como os escritores posteriores a ele. 101 63 El sofisma es claro y también lo es su origen: si no se aborda la cuestión social se es evasivo; si en la obra no hay referencias a elementos de lo nacional se es extranjerizante; si no hay elementos de lo popular, se es elitista. La literatura de lo social, popular y nacional es lo aceptado y bueno. La literatura «intimista», «universal» o «culta», lo rechazado y malo. Es el maniqueísmo autoritario de la sociología y la política. 102 (CAMPAÑA, 2012, p. 24) Isto denota como o «autoritarismo» sociológico e político do realismo social cimentou as limitações da apreciação literária no Equador. Este hermetismo vedou amplamente não só Gangotena, mas outros poetas e escritores que também se inclinaram por outros caminhos estéticos ou ideológicos. Evidentemente, os autores rejeitados estiveram encadeados ao menosprezo do maniqueísmo, atitude que mantinha posturas extremas. O pejorativo adjetivo de afrancesado se relaciona fortemente mais à Gangotena do que aos decapitados, mas foram estes últimos que mais possuíram uma articulação de francesismo. Os lírios, as rosas, o jardim, as estações do ano103, o perfume, os astros e as metáforas com cores relacionadas a estados de ânimo se apreciam longamente na obra dos modernistas, o que remete a Baudelaire e Verlaine contundentemente. Em Gangotena, a influência não foi uma regra e muito menos a criação de uma dependência dela. Ele entra nas correntes para usá-las à sua vontade e não para aderir a elas, fazendo com que sua poesia fosse difícil de categorizar. Isto demostra uma nova compreensão dele já que não deve ser considerada a escrita em francês como o único parâmetro de francesismo. A crítica de um Gangotena insipiente e alienado não poderia ser em maior medida do que o grupo ao qual pertencia Silva. Existe uma tolerância aos modernistas sobre a influência da literatura francesa por serem prévios ao realismo social e não advertirem aquele vigor da localidade e do compromisso. No entanto, sobre Gangotena pesa fortemente devido à sua plena convivência simultânea com a obrigação patriótica da narrativa. Por este motivo, a importância de aproximá-lo com os decapitados e Silva serve para que a áurea de exílio que orbita sobre o poeta bilíngue não carregue aquela esmagadora alienação outorgada. Vários versos de Gangotena traduzidos ao espanhol poderiam ter sido adaptados ao pasillo equatoriano, da mesma forma que o poema «Alma en los labios» de Silva, por 102 O sofisma é claro e também sua origem: se não se aborda a questão social se é evasivo; se na obra não há referências a elementos do nacional se é estrangeirista; se não há elementos do popular se é elitista. A literatura do social, popular e nacional é o aceitado e o bom. A literatura «intimista», «universal» ou «culta», o refutado e o ruim. É o maniqueísmo autoritário da sociologia e da política. 103 Note-se que as estações do ano no Equador não correspondem às da Europa. No país, as regiões e a altitude andina marcam os mais diversos climas. Desta maneira, a menção da primavera ou do outono pelos poetas equatorianos produz estranheza para quem conhece esta singularidade climática. 64 compartilharem o véu melancólico e certas temáticas, que este gênero musical aprimorou. Deve-se entender que a obra lírica do poeta cruzou uma história literária e social do país, que conformava uma intolerância do que vinha de fora. Gangotena foi aquele «forasteiro» que retornou no já esvanecido modernismo do verso, em detrimento do florescente realismo social da prosa. 2.2 REALISMO SOCIAL E POSMODERNISMO Ao mesmo tempo que o modernismo equatoriano se esvanecia com a última publicação do decapitado Ernesto Noboa y Caamaño em 1922, entrava no cenário literário a tendência nacionalista. A prosa e o verso passavam a se engajarem neste projeto. A obra Plata y Bronce, de Fernando Chávez, publicada em 1927, seria o antecedente para o avassalador caudal de realistas sociais a partir da década de 1930, enquanto o poeta Jorge Carrera Andrade seria o máximo representante dos poetas considerados posmodernistas. No entanto, o compromisso por desenvolver uma robusta temática arraigada ao Equador tomaria bases diferentes. Enquanto a intensidade da narrativa se fixou por retratar a realidade nacional, as lutas da classe trabalhadora, a precariedade do trato com o camponês e o indígena e a rivalidade entre conservadores e liberais, o lirismo se aventurou por ressaltar a cor local em jogo com os ismos europeus e hispano-americanos, mantendo, de certa maneira, o deseo de mundo dos modernistas. Para entender melhor esta bifurcação entre a prosa e o verso, pretende-se analisar os antecedentes do realismo social, que fizeram com que tomasse a imponente força sobre o panorama literário equatoriano. Na entrada do século XX, duas correntes distintas se desenvolveram, o idealismo do modernismo e as revelações do realismo e suas variantes – costumbrismo104, naturalismo e criollismo105. Em 1892, Alfredo Baquerizo Moreno106, de pensamento liberal, (1859-1951) publica Titania, seguida de El señor Penco (1895) e Evangelina e Tierra adentro (ambas de 1898). Suas obras, em grande medida, contêm «la visión del mundo de la clase que protagonizó los cambios económicos, políticos, sociales e ideológicos de la sociedad guayaquileña de fines del siglo XX107» (HAYEK, 2002, p. 105). Em 1900, Manuel J. Calle e Roberto Andrade publicam Carlota e Pancho Villamar, respectivamente. A primeira, ambientada em 104 O costumbrismo se define como uma tendência estética que reflete os usos e costumes da sociedade. O criollismo se caracteriza por seu carácter épico e fundacional. 106 Foi presidente da República no período entre 1926-1930. 107 A visão do mundo da classe que protagonizou as mudanças econômicas, políticas, sociais e ideológicas da sociedade guayaquileña no final do século XX. 105 65 Guayaquil do final do século XIX, «nos introduce en el sórdido mundo de la miseria y de la prostitución108» (HAYEK, 2002, p. 107), enquanto a segunda se situa em Quito, nos anos de convulsão política – o governo de Gabriel García Moreno109, seu assassinato, o governo de Ignacio de Veintimilla110 e parte do mandato de José María Plácido Caamaño111 (HAYEK, 2002, p. 108). Nos anos posteriores seguiriam as publicações de obras consideradas menores até 1904, com a obra A la costa, de Luis A. Martínez112. Neste romance avista-se um agudo retrato da situação de época do país: a rivalidade entre o conservadorismo de Quito, o liberalismo de Guayaquil, a migração massiva dos Andes ao litoral, a luta de classes e a precariedade do trabalho. O aprofundamento na realidade equatoriana coloca este romance em um espaço canônico como precursor do realismo. Porém, não houve uma continuidade com a linha realista de Martínez. Passaria um lapso de 23 anos até que se publicasse Plata y Bronce (1927), de Fernando Chaves113, que abriria o frutuoso caminho do realismo social nas três décadas seguintes. A razão que explica a escassez de obras neste período se deve, segundo Hayek (2002, p. 116-117), ao deterioramento do projeto alfarista, que terminou por favorecer um Estado oligárquico-terratenente, onde as classes altas continuaram no poder, silenciando os escritores de corte liberal. A décadas de 1910 e 1920 marcaram um período de instabilidade econômica, social e política, ressuscitando a consciência de mudança. No Equador, desde 1913 se festejava o 1 de maio, dia do trabalho, e, em consequência, ocorriam protestos e greves de grupos e sindicatos organizados todo ano. As demandas iniciadas pelos trabalhadores do trem foram apoiadas e continuadas por outros coletivos, que convocaram uma marcha multitudinária em 15 de novembro de 1922 em Guayaquil, onde, por reação das autoridades, ocorreu a matança de centenas de pessoas, e seus corpos foram lançados ao 108 Introduz-nos ao sórdido mundo da miséria e da prostituição. Do partido Conservador, foi presidente por dois períodos, de 1861 a 1865, e de 1869 a 1875. 110 Presidente no período de 1876-1883. 111 Presidente no período de 1884-1888. 112 La banda negra (1900), de Fidel Alomía; Luzmila (1903) de Manuel E. Rengel; Amar con desobediencia (1903), de Quintiliano Sánchez; Rayos catódicos y fuegos fatuos (1907), Cintas alegres (1920) e Cosas de mi tierra (1929), de José Antonio Campos; La llaga, Thea, El último hidalgo e La herencia del dolor, de Nicolás Augusto González; e Lorezo Cilda (1918), de Manuel Rendón (HAYEK, 2002, p. 109). A autora não especifica as datas das obras de González. 113 Neste lapso figuraram também as obras Para matar um gusano (1915), de José Rafael Bustamente; Serraniegas (1914) e Ángel (1914), de Eduardo Mera; e Égloga trágica (1916), de Gonzalo Zaldumbide. Esta última foi publicada fragmentariamente na Revista de la Sociedad Jurídico-Literaria. Só em 1956 apareceu completa. 109 66 rio Guayas. Este trágico evento passou a ser conhecido como o Masacre de 1922 na história. Regia sobre a sociedade um mal-estar geral. O preço do cacau tinha caído bruscamente. O setor dedicado à agricultura estava afetado. O malogrado sistema bancário controlado pela oligarquia estancava a economia. Todos estes fatores e eventos influenciaram para que acontecesse a Revolución Juliana em 1925. Em 9 de julho deste ano, um movimento militar desconheceu o governo, instaurando uma Junta Militar de Zona. Os oficias subscreveram um manifesto intitulado «A la nación», em nome de todas as instituições das Fuerzas Armadas, derrocando no governo de Gonzalo S. Córdova e suas autoridades. Eles anunciaram a vontade de transferir o governo a civis e dar um novo caminho para o país (PAZ Y MIÑO, 2002, p. 35). A isto se agregava a influência externa das revoluções mexicana e russa, de 1910 e 1917, respectivamente. Todos estes sucessos reavivaram o realismo encabeçado por Martínez. Um avassalador caudal de escritores do realismo social chegaria a partir de 1930, instaurando-se como eixo regulador das letras até a década de 1950. Los que se van (1930), composto por contos de três guayaquileños – Joaquín Gallegos Lara (1911-1947), Enrique Gil Gilbert (1912-1973) e Demetrio Aguilera Malta (1909-1981) −, retratou a vida e o cotidiano do montuvio114, camponês do litoral equatoriano, caracterizado por ser trabalhador e de temperamento forte, mas que passa por condições econômicas difíceis que o levam à violência. Acrescenta-se a estes escritores José de la Cuadra e Alfredo Pareja Diezcanseco, para se chamar «El grupo de Guayaquil», que denominou a homogeneidade dos que se entregaram à consciência nacional. Esta obra marcaria uma frutífera produção e reconhecimento literário no Equador, que se estenderia aos Andes com Jorge Icaza (1906-1978) – autor de Huasipungo (1934), uma das obras mais importantes do indigenismo. A localidade dominava majoritariamente e se espalhava nas letras equatorianas, destacando a necessidade de preservar as linguagens populares e construindo uma identidade. Assim, o tema social deixou de ser uma inovação e passou a ser uma regra, uma norma para abordar a narrativa. Quem não escrevesse segundo as normas seria um «desalinhado», transgredindo o que Rama denomina «límites de la capacidad asimiladora» [limites da capacidade assimiladora] (1994, p. 91), já que nas refutações pode se apreciar melhor as 114 No dicionário da Real Academia da língua aparece montubio e montuvio. Em 2014, foi incluído com «v» para se referir ao campesino do litoral equatoriano, já que com «b» significa homem grosseiro. 67 aceitações de correntes literárias. O realismo social se estabeleceu com o vigor da tradição interna, rejeitando qualquer desvio das leis que defendiam. No cenário poético, a consciência nacional também seria o princípio que guiaria a produção dos versos, mas com temáticas de diferente índole, além da denúncia dos romancistas. Neles se configurava uma dupla adesão, a primeira, que compartilhava os limites assimiladores do realismo social, e a segunda, que continuava com o deseo de mundo herdado dos modernistas. Por um lado, se interessaram também pela realidade nacional, o pedido por uma sociedade mais justa, pelo indígena, propondo uma revalorização de sua cultura e uma reinterpretação negativa da conquista, pelo telurismo, o descobrimento da realidade geográfica, onde a terra era vista como uma presença magnificente, e o ruralismo, variante do último, que descrevia o entorno do campo andino. Por outro lado, também dialogam com a sucessão de vanguardismos que surgiam na Europa e na América Hispânica – cubismo, surrealismo, dadaísmo, expressionismo, creacionismo, ultraísmo, e estridentismo, entre outros. Isto permitia que também pudessem alcançar uma produção lírica íntima, abordando o referente à transcendência do homem. Desta maneira, inserir-se nas vanguardas hispano-americanas permitia ser «simultaneamente internacional» e «autóctone», mantendo suas próprias «exigências culturais» (UNRUH, 1994, p. 10, tradução nossa). Os posmodernistas podiam continuar com o deseo de mundo dos modernistas, mas sem ambicionar a circunscrição no cosmopolitismo, já que propunham obter um reconhecimento do centro a partir do local. Em suma, os poetas deste período dialogavam em diferentes intensidades com o compromisso pela realidade nacional, mas também iam além das fronteiras ao se situar nos vanguardismos. Os poetas mais representativos deste período foram Miguel Ángel Zambrano, Hugo Mayo, Miguel Ángel León, Gonzalo Escudero, Jorge Carrera Andrade, Augusto Arias e Alejandro Carrión, entre outros. Eles não se fixavam profunda e exclusivamente à crítica social devido à amplitude de perspectivas que podiam tomar. Esta bifurcação na literatura equatoriana, entre a prosa e o verso, é fundamental para entender o retorno de Gangotena. Fala-se que os limites de assimilação do realismo social refutaram sua obra, mas ele não se encontrava tão longe de seus contemporâneos líricos, já que seus versos se inscreviam dentro das vanguardas. Por esta razão, o poeta é muitas vezes incluído dentro dos posmodernistas, categorização que em seu momento não se deu. De qualquer maneira, este grupo se apresentou mais flexível à literatura, 68 sem levar a denúncia social e a política ao extremo, como seus colegas romancistas. E, provavelmente, esta seja a razão pela qual a crítica gerada por este grupo foi mais condescendente com Gangotena, apesar de também considerá-lo como um caso insólito. Diferente das críticas de Raúl Andrade, Manuel J. Calle e Joaquín Gallegos Lara sobre os modernistas no capítulo anterior, Jorge Carrera Andrade, o poeta mais reconhecido do posmodernismo, reconheceu o valor do decapitado Humberto Fierro: Estaba hecho para el deslumbramiento, lo que vale decir, estaba creado para la poesía. Moldeaba con desvelamiento de crítico su dolor, lo que significaba que vivía ganado por el arte. Un arte deslumbrado, y a la vez discreto, fue así el de este desposado de la soledad y caballero de la orden del Silencio.115 (CARRERA ANDRADE apud VALENCIA, 2007, p. 74) Eles tinham compartilhado uma amizade, participaram da criação da revista Frivolidades e planejaram a «Colección Apeles» com a intenção de publicar uma dúzia de volumes ilustrados, sendo El laúd en el valle, de Fierro, o primeiro (VALENCIA, 2007, p. 76-77). No entanto, isto não oculta a defesa de Carrera Andrade pela poesia de caráter intimista de Fierro, dedicado a trabalhar sua «dor» [dolor], «solidão» [soledad] e «silêncio» [silencio]. Se a crítica do realismo social remarcou a falta de compromisso de realidade nacional dos modernistas devido a seu pseudofrancesismo, Carrera Andrade deu outro entendimento no exemplo de Fierro: Fierro no escribió con el fin de conmover a las masas. Era poesía de refinado intelectualismo la suya, y no estaba hecha para la fácil digestión del vecindario. Fue demasiado occidental y extranjero espiritualmente para asimilar el orientalismo indígena. Pero, igualmente, no comprendió ni conoció la civilización capitalista, burguesa, occidental.116 (CARRERA ANDRADE apud VALENCIA, 2007, p. 77) Carrera Andrade coloca seu colega em um espaço lírico ambíguo, afastado do indígena e do ocidentalismo, sem a convicção de «comover as massas» [conmover a las masas] e da influência europeia. Valoriza sua poesia sem estar preso aos limites do realismo social. Abre o horizonte a uma flexibilidade na apreciação, provavelmente, devido à dupla consciência dos posmodernistas do centro e da periferia, sem se entregar ao maniqueísmo do pensamento diretriz que regia. 115 Estava feito para o deslumbramento, o que vale dizer, estava criado para a poesia. Moldava com desvelamento de crítico sua dor, o que significava que vivia ganhado pela arte. Uma arte deslumbrada, e às vezes discreta, foi assim o deste desposado da solidão e cavaleiro da ordem do Silêncio. 116 Fierro não escreveu com o fim de comover as massas. Sua poesia era de refinado intelectualismo, e não estava feita para a fácil digestão da vizinhança. Foi demasiado ocidental e estrangeiro espiritualmente para assimilar o orientalismo indígena. Mas, igualmente, não compreendeu nem conheceu tampouco a civilização capitalista, burguesa, ocidental. 69 Sobre Gangotena, Carrera Andrade reconheceu a incompreensão de sua obra em 1959, mas não foi evasivo ao recomendar o estudo de sua obra: Hay, así, una definida poesía ecuatoriana, caracterizado por su identidad de destinos. Es cierto que, a veces, se encuentran supervivencias de la actitud espiritual pasada; pero esas no son sino las islas que hay en todo mar, y no llegan a construir un archipiélago. Alfredo Gangotena es la mayor de esas islas. Nadie ha explorado todavía su territorio de sombra, sus profundidades abisales, su fauna y flora de misterio. Gangotena ha llamado acertadamente a su último libro Tempestad secreta. En efecto, su poesía se oscurece de pronto, se ilumina de relámpagos internos, castiga con sus azotes líquidos, sacude y destruye los terrenos deleznables, dejando en pie solamente el acantilado ceñudo y sin edad. «Hemos vivido en familia con las tormentas, −algo más, las hemos domesticado», dijo cierta vez Ignacio Lasso. Gangotena no conoció esa prueba tormentosa, pues estuvo ausente o retirado del afán colectivo. Vivió muchos años en París y escribió sus primeros libros en francés, entre los cuales está esa Orografía deliciosa e inolvidable. Su catolicismo y su natural refinamiento, le han impedido la actitud de protesta. Le cher Gangó –como le llama Supervielle− está a merced de la tempestad y sus fantasmas. Esperamos que las bellas construcciones de su isla no sean destruidas por alguna próxima acumulación de nubes.117 (CARRERA ANDRADE, 2002-2003, p. 254) Carrera Andrade expõe aqui várias apreciações sobre Gangotena. Em primeira instância, olha a poesia dele como a «mais velha dessas ilhas» [mayor de esas islas] e relacionada a uma «atitude espiritual passada» [actitud espiritual passada]. Isto se deve à interpretação da experiência religiosa de Gangotena como uma herança conservadora, mas que, como Carvajal afirma, atravessou uma radical angústia surgida das fontes pascalinas, para logo atravessar a tensão agnóstica e desembocar no existencialismo filosófico (2005, p. 87). Em seguida, resume a dificultosa hermenêutica de Tempestad secreta, definindo os versos de Gangotena entre a escuridão e a iluminação, o que afirma o hermetismo do poeta. Adicionalmente, explica a ausência de Gangotena do «afã coletivo» [afán 117 Há, assim, uma definida poesia equatoriana, caracterizada pela sua identidade de destinos. É certo que, às vezes, encontram-se sobrevivências da atitude espiritual passada; mas essas não são senão as ilhas que existem em todo mar, e não chegam a construir um arquipélago. Alfredo Gangotena é a maior dessas ilhas. Ninguém tem explorado ainda o seu território de sombra, suas profundidades abismais, sua fauna e sua flora de mistério. Gangotena tem chamado acertadamente seu último livro Tempestad secreta. Com efeito, sua poesia escurece de repente, se ilumina de relâmpagos internos, castiga com seus açoites líquidos, sacode e destrói os terrenos depreciáveis, deixando em pé somente o alcantilado cenhoso e sem idade. «Temos vivido em família com as tormentas, − algo mais, as temos domesticado», disse certa vez Ignacio Lasso. Gangotena não conheceu essa prova tormentosa, já que esteve ausente ou retirado do afã coletivo. Viveu muitos anos em Paris e escreveu seus primeiros livros em francês, entre os quais está essa Orografia deliciosa e inesquecível. Seu catolicismo e seu natural refinamento lhe tem impedido a atitude de protesto. Le cher Gangó – como lhe chama Supervielle − está à mercê da tempestade e seus fantasmas. Esperamos que as belas construções de sua ilha não sejam destruídas por alguma acumulação próxima de nuvens. 70 colectivo] de seus contemporâneos devido à estadia em Paris, situando sua poesia como um caso segregado, mas reconhece a qualidade poética referindo-se à obra dele como uma «Orografia deliciosa e inesquecível» [Orografia deliciosa y inolvidable]. E pede que as construções da ilha não sejam destruídas pela «acumulação de nuvens» [acumulación de nubes], em outras palavras, derrubadas pelo domínio do exacerbado realismo social. E para finalizar, Carrera Andrade termina aconselhando: «La poesía ecuatoriana de nuestro tiempo tiene, así, como misión esencial domesticar la tempestad. Cuando se clausure la época tenebrosa en que vivimos, será posible establecer un balance justo de su significación y sus resultados118» (2002-2003, p. 254). Por um lado, ele não descarta o valor da poesia de Gangotena para a literatura equatoriana, apesar de guardar certo receio por abordar o conteúdo de sua produção lírica; e, por outro lado, propõe territorializar a obra de Gangotena dentro da literatura equatoriana, reconhecendo seu valor. Isto também serve para entender que o realismo social excedeu seu arbítrio sobre o cenário literário, apagando as vozes de outras expressões, e que a rigidez deste movimento era mais flexível no posmodernismo. Deveria, então, considerar-se a bifurcação da prosa e do verso no panorama literário equatoriano da década de 1930 em diante, apesar de os dois terem se comprometido com a localidade. Gangotena, evidentemente, era alheio às leis do realismo social, e a crítica mais forte sobre ele veio deste movimento; e, ao contrastá-lo com o posmodernismo, ele continua sendo um raro, mas distinguido pela relevância e qualidade de seus versos. A indulgência por Gangotena se baseava na consideração das vanguardas europeias, que seus contemporâneos líricos conheciam bem. Provavelmente, Carrera Andrade teria reagido de uma maneira suspeita ao saber que a posterior crítica categorizou Gangotena como posmodernista junto com ele. Por esta razão, surgiu o interesse em afrontar estes poetas a partir da construção e experimentação das vanguardas no deslocamento da periferia ao centro. Carrera Andrade também habitou o cosmopolitismo, era bilíngue e se sentia seduzido pela literatura francesa, mas configurou sua obra diferentemente de Gangotena. O propósito do ponto seguinte a ser tratado pretende ver a multiplicidade de possibilidades que os poetas e escritores têm ao transitar entre línguas e estéticas. 118 A poesia equatoriana de nosso tempo tem, assim, como missão essencial domesticar a tempestade. Quando se encerrar a época tenebrosa em que vivemos, será possível estabelecer um balanço justo da sua significação e resultados. 71 2.3 JORGE CARRERA ANDRADE E ALFREDO GANGOTENA: O TRÂNSITO ENTRE LÍNGUAS E ESTÉTICAS O quiteño Jorge Carrera Andrade, poeta, escritor, ensaísta e crítico, dois anos mais velho do que Gangotena, é considerado o mais alto representante do posmodernismo equatoriano, e dos mais reconhecidos dentro da literatura hispanoamericana. Como assinala Ojeda, o início literário de Carrera Andrade se deu aos quinze anos com o conto poemático «La bohemia», aparecido na revista La idea em 1917 (2007, p. 16), onde era o diretor junto com Luis Aníbal Sánchez119. Posteriormente, colaborou na revista Frivolidades, surgida em 1919, em Quito, onde também participava Humberto Fierro, decapitado e grande amigo120. Na revista América, fundada em 1925 em Quito, também colaboraria com Fierro, Gonzalo Zaldumbide e Gonzalo Escudero – estes dois últimos eram amigos próximos de Gangotena −, entre outros. Também falava francês desde criança, o que lhe permitiu iniciar em seus trabalhos de antologista como tradutor da obra de Reverdy (OJEDA, 2007, p. 37). As primeiras produções foram Estanque inefable (1922) e Las guirnaldas del silencio (1926), mostrando uma articulação de francesismo semelhante aos decapitados, seduzido pelo simbolismo francês, mas dando o salto de Baudelaire, Verlaine e Rimbaud a André Gide e Francis Jammes – declarado venerado pelo poeta. A isto se agregam os poemas de conteúdo político «Canto a Rusia» e «Lenin ha muerto», de 1927, e «Mademoiselle Satán»121, também de 1927. Em 1928 – mesmo ano de retorno de Gangotena à Quito − parte à Europa e experimenta o cosmopolitismo até 1933. O trânsito transatlântico mostrou um processo de amadurecimento intelectual e crítico, configurando desde Boletines de mar y tierra (1930) a «dupla consciência» dos posmodernistas, aquela dentro dos limites assimiladores da consciência nacional, e o deseo de mundo herdado dos modernistas. A localidade se tornou intensa, ao mesmo tempo em que entrou no diálogo com a sucessão de vanguardismos, do centro e da periferia. A proposta de analisar este poeta junto com Gangotena propõe um entendimento frente ao trânsito, desde a partida dos Andes até a chegada à Europa. Isto 119 Jornalista lojano, conhecido por ser um promotor cultural. Fierro e Carrera Andrade se juntaram aqui para fundar «Apeles», editorial de revistas e livros de autores jovens (VALENCIA, 2005, p. 120). 121 Publicado na revista Figaro, o poema descreve uma relação com uma mulher, com conteúdo sexual. Carrera Andrade pediu desculpas pelo escândalo que gerou. 120 72 mostrará a multiplicidade de possibilidades que os poetas têm frente ao deslocamento, tomando uma posição nos discursos da literatura global. Estanque inefable abre com uma epígrafe de Les norritures terrestres (1897), de Gide: Nathanael, todo lo mirarás de paso, y no te detendrás en parte alguna. –Que toda emoción sepa en tí volverse embriaguez… Nathanael, que la importancia esté en tu mirada y no en la cosa que mires122. (GIDE apud CARRERA ANDRADE, 1922, p. 10). A nova sensibilidade apela aos sentidos, à tradução do ato de observar como próprio e individual, permitindo que fosse o poeta que criasse seu universo lírico em procura da liberdade. A força da musicalidade, da rima e da métrica não era mais uma norma em Gide, porém, continuaria sendo importante para Carrera Andrade, mas sem a vitalidade que operava nos modernistas. O véu melancólico que cobria os decapitados e a refinada linguagem com referências da cultura europeia perdem a intensidade. Nele, o que interessa é a sinceridade e a lisura traduzidas e expressadas pela via lírica, do mesmo jeito que seu precursor: Los sauces son buenos amigos en el paseo solitario; tiemblan, recuerdan, y son tristes como almas ante los fracasos […] Tienen rumor de pies de seda sobre el agua atenta a su sueño; la sombra de Bión los inclina y oyen su flauta en el recuerdo123. (CARRERA ANDRADE, «Los amigos del paseo», 1922, p. 57). Através da linguagem simples, o poeta penetra nas impressões deixadas pelo caminho solitário no bosque e compartilha a intuição obtida ao observar um objeto ou ser, e não à definição pré-estabelecida que estes têm. Observa-se a menção a Bion de Boristene, filósofo grego cínico, o que faz entender a virtude do homem que vive com a natureza. O poema posterior «Ostra de la felicidad» é dedicado à Detlev von Liliencron, poeta e romancista do naturalismo alemão, o que remete à postura de Carrera Andrade frente à imparcialidade na reprodução da realidade e à consideração do instinto e das Nathanael, tudo você olhará de passagem, e você não se deterá em parte alguma. –Que toda emoção saiba em você se tornar embriaguez… / Nathanael, que a importância esteja no teu olhar e não na coisa que você olhe. O original em francês figura da seguinte maneira: «Nathanaël, tu regarderas tout en passant, et tu ne t’arrêteras nulle part. Dis-toi bien que Dieu seul n’est pas provisoire». 123 Os salgueiros são bons amigos / no passeio solitário; / tremem, lembram, e são tristes / como almas ante os fracassos. / […] / Têm rumor de pés de seda / Sobre a água atenta ao sono; / A sombra de Bion os inclina / E escutam sua flauta na lembrança. 122 73 emoções como regentes da conduta humana. No poema «La casa del poeta» faz menção a Valdelomar, poeta e escritor peruano, a quem diz lembrar pela «tela provinciana» (1922, p. 13) atingida pela temática. Carrera Andrade começava por considerar a localidade em sua obra, mas ainda atraído pelo naturalismo e simbolismo da influência. Gangotena publicou os poemas «Carta» e «Paisaje» em espanhol em 1922, mesmo ano de Estanque inefable, Romanza de las horas e o Masacre, na revista Repertorio americano, de Costa Rica, graças à ajuda de Gonzalo Zaldumbide124. Estes poemas seriam traduzidos no mesmo ano por Georges Pillement, crítico literário da Revue de l’Amérique latine (CASTILLO DE BERCHENKO, 2013, p. 41). Em «Carta» se mostrava a inclinação poética de Gangotena por trabalhar a intimidade e sua dor: Aunque yo esquivo el contorno, doloroso es todo gesto mío: quisiera estrecharme, mas, sin fatiga camina hacia mi centro aquel muro chato; y el tiempo –también presto− del espíritu despluma el ala, ¡miserable harina! 125 (GANGOTENA apud CASTILLO DE BERCHENKO, 2013, p. 39-40) O poema ainda não alcança a ataviada linguagem, o tormento e o hermetismo que desenvolveria desde que começasse a escrever em francês para a revista Intentions, mas mostra a angústia − «doloroso é todo gesto» [doloroso es todo gesto] − que caracterizaria suas obras. Em «Paisaje» existe um rastro do deslocamento de Gangotena, ao escrever: Los ilustres ensueños de las locomotoras ilustran de espirales la tela del paisaje. Como las locomotoras, prestas huyen las horas y en mi conciencia gime el eco de su engranaje126 (GANGOTENA apud CASTILLO DE BERCHENKO, 2013, p. 40) O poeta se encontra com Paris e o progresso da vida industrial. As «locomotivas» [locomotoras] servem de imagem para mostrar a angústia do poeta, quando em sua «consciência geme o eco de sua engrenagem» [conciencia gime el eco de su engranaje]. Gangotena publica estes poemas dois anos depois da chegada em Paris. Ele experimentou a literatura francesa habitando o cosmopolitismo e, portanto, encontrava124 Depois de ler Gangotena, Zaldumbide pediu a seu amigo, o crítico costa-riquenho Napoleón Pacheco, que enviasse os poemas ao diretor de Repertorio Americano. 125 Embora eu esquive o contorno, doloroso é todo gesto / meu: gostaria de me estreitar, mas, sem fatiga caminha / a meu centro aquele muro plano; e o tempo −também rápido- / do espírito arranca a asa, desgraçada farinha! 126 Os sonhos ilustres das locomotivas/ ilustram de espirais a tela da paisagem. / Como as locomotivas, pronto fogem as horas / e em minha consciência geme o eco de sua engrenagem 74 se mais atualizado do que Carrera Andrade, que experimentou à influência anacronicamente, já que existe uma diferença de vinte e cinco anos entre Les norritures terrestres e Estanque inefable. O mesmo Gide, que tinha iniciado no simbolismo, encontrava-se em outro caminho literário naquele momento. Em 1908 tinha fundado junto com outros intelectuais a revista cultural Nouvelle Revue Française, que seria uma das mais prestigiosas da Europa, e onde os movimentos de vanguarda encontrariam um espaço de divulgação. Sem dúvida, o deslocamento a curta idade favorece a realização do deseo de mundo de Gangotena, experimentando a francofilia universal diretamente e desenvolvendo o individualismo vanguardista. Seu primeiro poema em francês, de 1923 e dedicado a Jules Supervielle, mostra a violência de sua linguagem e o abatimento intensificados: Au bord de ton sol ondulé, île stérile − que baigne un fleuve de bitume −, Je déroule la toise de ma mort.127 (GANGOTENA, «Promenade sur le toit», 1991, p. 28) Neste fragmento, o «solo ondulado» [sol ondulé], o «rio» [fleuve] e a «regra de medição» [toise] apresentam o poeta como engenheiro em minas, mas também a angústia pela consciência de morrer, provavelmente pelo estado de saúde. O poeta deixa para trás os poemas em espanhol para se entregar ao verso livre das vanguardas, diferente de Carrera Andrade, que continuava trabalhando com a rima dos modernistas. A obre seguinte de Carrera Andrade, La guirnalda del silencio, abre com um poema a Francis Jammes − amigo de Gide −, que claramente influenciou nos seguintes poemas. O poeta se preocupa pela transparência da linguagem, pela sensibilidade da observação e pela expressão das sensações pelos caminhos na natureza. O cotidiano é retratado com solenidade e clareza. A simplicidade permite penetrar na metáfora para criar imagens com exatidão e aceder à verdade do sentimento. Assim, os versos «Tu amor es como el roce tímido de la mejilla de un niño128» («Tu amor es como la piel de las manzanas», 1926, p. 25) ou «El pájaro es el periódico / de la mañana en el campo129» («Después de llover», 1926, p. 19) representam a vontade poética de traduzir o reflexo do espelho da realidade através da simplicidade, lisura e criatividade, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo o verso livre por momentos. Na margem de teu solo ondulado, / ilha estéril / − que banha um rio de asfalto −, / desenrolo a régua de minha morte. 128 Teu amor é como o toque tímido / da bochecha de uma criança. 129 O pássaro é o jornal / da manhã no campo. 127 75 Nesta mesma obra, Carrera Andrade expressaria o deseo de mundo herdado dos modernistas, a vontade de experimentar o cosmopolitismo e a irradiação artística europeia no poema «El camarada parte de la tierra natal», dedicado a Benjamín Carrión (1897-1979) – escritor, político e diplomata equatoriano: Ya rebosa el humano vaso de su deseo: va a salir de esta tierra. La luz de otras ciudades le va a limpiar, por fin, la niebla de los ojos. el odre de su echo se va a llenar de otro aire. […] Verá el beodo mar, los puertos tumultuosos y las mil chimeneas de Marsella y el Havre. Aquí nos quedaremos viendo la lluvia, con […] Nos hablará el vecino de siempre. Faltaremos a la casa a comer alguna tarde por ódio a la comida que dan todos los días… De noche, nos pondremos a jugar naipes. 130 (CARRERA ANDRADE, «El camarada parte de la tierra natal», 1926, p. 43-44). Entre a partida de Carrión que verá «a luz de outras cidades» [la luz de otras ciudades] e a estadia no Equador de Carrera Andrade que vai «jogar cartas» [jugar naipes], se expõe a necessidade de experimentar a Europa, porque oferece a oportunidade de «respirar outro ar» [respirar otro aire], de vivenciar a afluência das correntes artísticas. Ficar no Equador representou o tédio estético da inércia e da monotonia. Gangotena habitava em Paris desde a adolescência, algo que muitos escritores e poetas equatorianos contemporâneos dele teriam desejado, se tivessem tido a oportunidade. Para este momento, Gangotena já tinha escrito um bom número de poemas, entregando-se à individualidade interior de seus versos, sem causar estranheza, já que o mesmo Francis Jammes tinha escrito o manifesto Le Jammisme, em 1897, propondo a liberdade do poeta das escolas literárias (apud DÉCAUDIN, 1981, p. 68). Isto mostrava o caminho da literatura francesa no começo do século XX, separando-se da tradição e estabelecendo a irrupção das vanguardas. Em 1924, o surrealismo iniciado por André Bréton proclamava a liberdade das regulações estéticas e da razão. A poesia de Gangotena entrava nesta multiplicidade de vozes emergidas das vanguardas, apesar de não ter se aderido a um movimento explicitamente. A vontade artística da época outorgava o direito de se aventurar a construir sua própria linguagem. No poema 130 Já derrama o humano o copo de seu desejo: / vai sair desta terra. A luz de outras cidades / vai lhe limpar, finalmente, a névoa dos olhos. / A pele de seu peito / vai se encher de outro ar / […] / Verá o embriagado mar, os portos tumultuosos / e as lareiras de Marselha e o Havre. / Aqui ficaremos vendo a chuva, / […] / Nos falará o vizinho de sempre. Faltaremos / à casa a comer alguma tarde / por ódio à comida que nos dão todos os dias…/ À noite, começaremos a jogar cartas. 76 «Veillé», publicado na revista Le Roseau d’or, o poeta continuava com a mesma proposta iniciada: Dans la neige et dans les cendres, comme le manteau des solitudes, Le vent dru de la nausée me retourne l’ombilic. Omnimode est l’épouvante ; et sous l’arcade Quelque esprit m’empoigne pour l’estrapade.131 (GANGOTENA, «Veillé», 1991, p. 85) Gangotena decide tomar seu próprio caminho literário, impulsionado pela individualidade das vanguardas. Sua preocupação por expressar sua intimidade, o abatimento que lhe persegue e o hermetismo terminam por nele se impregnar. A imagem desta estrofe, a sensação da presença de um «espírito» [esprit] que o «atenaza para a estrepada» [m’empoigne pour l’estrapade] mostra como o sofrimento segue com intensidade sua produção lírica. Em 1928, Carrera Andrade parte dos Andes para experimentar a Europa e complementar o deseo de mundo e descobrir o ansiado cosmopolitismo, enquanto Gangotena retorna de Paris, onde tinha ganhado um espaço no meio literário, para se encontrar com o a consciência nacional, influenciada pela instabilidade política, o Masacre de 1922 e a Revolución Juliana. Em 1930, Carrera Andrade publicou Boletines de mar y tierra, prologado por Gabriela Mistral132. Os poemas desta obra mostram o registro da viagem e o início do poeta por se posicionar frente ao mundo, seguindo com seu projeto metafórico de uma linguagem simples. No poema «El hombre del Ecuador bajo la torre Eiffel», escreveu: Mástil de una aventura sobre el tiempo. […] Hierro para marcar el rebaño de nubes o mudo centinela de la edad industrial. La marea del cielo mina en silencio tu pilar.133 (CARRERA ANDRADE, «El hombre del Ecuador bajo la torre Eiffel», 2000, p. 252) O poema aponta ao encontro e assombro com a modernidade industrial, a ansiada saída da periferia e da marginalidade ao cosmopolitismo, do mesmo jeito que 131 Na neve e nas cinzas, como o manto / das solidões, / O vento intenso da náusea me dá volta no umbigo. / Onímodo é o terror; e sob o arco / Algum espírito me atazana para a estrepada. 132 Uma das principais figuras da literatura hispano-americana. Ganhou o prêmio Nobel em 1945. 133 Mastro de uma aventura sobre o tempo. / [...] / Ferro para marcar o rebanho de nuvens / ou mundo sentinela da idade industrial. / A maré do céu / mina em silêncio seu pilar. 77 Gangotena, anos atrás, quando se pronunciasse sobre as locomotivas. Mais adiante, no poema «Saludo de los puertos», o poeta se aproxima ao diálogo com o universalismo: Estoy en la línea de trenes del Oeste empleado en el Registro del Mundo, […] encendiendo en mi pipa las fronteras ante la biblioteca de tejados de los pueblos y amaestrando el circo de mi sangre con el pulso cordial del universo.134 (CARRERA ANDRADE, «Saludo de los puertos», 2000, p. 222) O deseo de mundo frente ao conhecimento universal − «ante a biblioteca de telhados dos povos» [ante la biblioteca de tejados de los pueblos], lhe serviu para considerar a posição de marginalidade periférica como a possibilidade de formular um projeto literário, − «amestrando o circo» [amaestrando el circo] de seu «sangue» [sangre]. Carrera Andrade entrou em diálogo com o cosmopolitismo e universalismo francês, sem a necessidade nem a vontade de se inserir como um assimilado, quer dizer, sem se mimetizar no centro, apropriando-se clandestinamente do patrimônio literário central. O deslocamento coincidiu com a tensão das vanguardas de cada lado do oceano, perfilando o hispano-americanismo transgressor da francofilia universal, do mesmo jeito que outros poetas e escritores como Vicente Huidobro, César Vallejo e Oswald de Andrade. O deseo de mundo dos modernistas tinha se configurado quando Carrera Andrade chegou à Europa. Não era mais necessário tomar a sumptuosidade do sistema literário francês devido ao surgimento das vanguardas hispano-americanas. A força por escrever a partir da marginalidade, sem a necessidade de se assimilar com o centro, motivava a se entregar ao projeto de manter a localidade. Gangotena parte à Paris quando os poetas e escritores ansiavam escrever a partir do centro e ser acolhidos. Ele não vislumbrou estas tensões estéticas transatlânticas. A tradução de seus primeiros dois poemas em espanhol na Revue de l’Amérique Latine influenciaram para que decidisse escrever em francês, depois do ano de silêncio que guardou. A incorporação dentro do sistema literário francês mostrava o deseo de mundo, o qual ainda não considerava a completa separação da francofilia universal. Portanto, o momento do deslocamento influi na produção destes poetas, já que avistaram condições diferentes dentro dos sistemas literários. Estou na linha de trens do Oeste / empregado no Registro do Mundo, / […] / acendendo em minha pipa as fronteiras / ante a biblioteca de telhados dos povos / e amestrando o circo de meu sangue / com o pulso cordial do universo. 134 78 Por um lado, Carrera Andrade começou, daí em diante, a criar uma «sensación de universalismo135», procurando afirmá-lo «en medio de una particularidad nacional o regional136» (BALSECA, 2002-2003, p. 31). A ecuatorianidad passou a ser o eixo principal de sua obra, pelo que seria amplamente reconhecido nas letras nacionais. O compromisso com a localidade, imprescindível para se alinhar com os limites de assimilação, ampliaram-se com suas facetas como periodista, ensaísta, crítico e historiador137. Por outro lado, Gangotena continuou à margem dos movimentos literários do centro e da periferia. Estando em Quito publicaria Nuit, em 1938, em Bruxelas. Seu projeto literário individualista não encontrava a possibilidade de assimilação no Equador, inclusive se escrevesse em espanhol. Provavelmente esta foi uma das razões para continuar envolvido com a França, onde sua liberdade poética conseguiu se desenvolver, sem as estritas obrigações por seguir regulações estéticas ou ideológicas. Gangotena era consciente de sua origem, o que se mostra nos poemas que fazem alusão aos Andes, mas sem as normas da localidade para ser considerado um nacional no Equador. No poema «À l’ombre des sequoias», de L’orage secret (1926-1927), antes do retorno à Quito, o poeta escreveu: «Mon berceau et ma langue sont ailleurs, au sommets des / Andes, à votre guise !138» (1992, p. 78). O sentimento de pertencimento do poeta se evidencia, mas vale ressaltar que «berço» [berceau] tem uma conotação em sua tradução ao espanhol andino «cuna». «Ser de cuna» se refere a uma pessoa de classe alta. Portanto, mais do que o sentimento pelos Andes e por sua língua, expõe seus problemas familiares e sua ascendência aristocrática, condição que incrementou a refutação de sua obra. O trânsito transatlântico configura condições que dispõem de uma multiplicidade de possibilidades e posições que os poetas podem tomar frente à literatura global. Para Carrera Andrade, escrever a partir do Equador não inibiu uma alta articulação de francesismo; partir à Europa representou o desejo de absorver a irradiação cultural, 135 Sensación de universalismo. Em meio de uma particularidade nacional ou regional. 137 Como assinala Ojeda, ele tentou renovar o velho Partido Liberal, sem consegui-lo. Logo participaria da fundação do Partido Socialista Equatoriano, onde seria nomeado secretário. Também fundou o periódico Humanidad para apoiar a candidatura do socialista Juan Manuel Lasso. Na Europa, publicou seis ensaios sobre sua testemunha da Segunda República Española projetada no periódico quiteño El día, analisando e projetando sobre a realidade equatoriana, em 1932. Também refutou o governo de Velasco Ibarra, quando este se declarou ditador em 1946. Durante vários anos ele publicou para o jornal El comercio, de Quito, e El Nacional, de Caracas. Como ensaísta, publicou vários estudos sobre a cultura e a literatura equatoriana e hispano-americana. Também dedicou parte de sua estadia em Paris para compilar dados sobre a história do Equador. (2007, p. 18-32) 138 Meu berço e minha língua estão longe, acima dos / Andes, à vossa guisa! 136 79 habitar o cosmopolitismo lhe ajudou a sentir o hispano-americano e produzir como equatoriano na França o reafirmou. Para Gangotena, a viagem na adolescência lhe impôs forçosamente uma articulação de francesismo, o qual chegou a lhe pertencer, dominar a língua, como se fosse a materna lhe proporcionou se refugiar nela, e, portanto, o sentir americano não o envolveu, não por menosprezo, mas porque não chegou a compartilhar as experiências de Carrera Andrade e de vários outros escritores que se descobriram latino-americanos na viagem. A posição identitária, segundo os requerimentos dos limites de assimilação, não se encontra em nenhum de seus poemas. O mutismo sobre uma identidade cultural denota a ambiguidade da crítica sobre ele. Tanto o francês como o espanhol serviram de ferramentas para elaborar seu universo interior, mas não para criar uma identidade arraigada em um sistema literário. Gangotena, no original, seja em francês, em espanhol ou traduzido, consegue um fluxo de símbolos que não se associam às identidades da língua, mas ao universo interior que habitou o poeta. A influência francesa foi clara nos modernistas e em Carrera Andrade. As referências a Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, André Gide e Francis Jammes, entre outros, encontram-se facilmente em seus versos. Em Gangotena, a tarefa meândrica de relacioná-lo diretamente com um referente francês é pouco factível. Portanto, o termo afrancesado ou transplantado de Rojas toma outras conotações. Os afrancesados não necessariamente precisam sair do país para serem influenciados pelas estéticas europeias; o poeta pode ser mais afrancesado escrevendo em espanhol do que em francês, e a alienação não reside necessariamente na escrita em outra língua. A dupla consciência dos posmodernistas – como Carrera Andrade, Escudero e Samaniego − flexibilizava a aceitação de Gangotena, mas, ainda assim, categorizá-lo era tarefa difícil. O deseo de mundo, o cosmopolitismo e as vanguardas permitiam o acesso a ele, mas a falta de cor local em suas obras não permitia que fosse acolhido completamente. O qualificativo de afrancesado recaiu fortemente sobre Gangotena por escrever em francês, suspendendo as articulações de francesismo dos contemporâneos como irrisórios, que indiscretamente aspiraram e desejaram a literatura francesa. Carrera Andrade, que escreveu sobre a tarefa da crítica literária equatoriana de «domesticar la tempestad», a única obra escrita em espanhol, inseriu a poesia em francês de Gangotena dentro da antologia de Poesia francesa contemporánea, de 1952. Entende-se este ato crítico com complexidade, já que separa a obra gangoteneana como francesa e equatoriana pela identidade linguística, mais do que pela temática. Evidentemente, 80 sobre a identidade, o patrimônio linguístico é o mais indubitável, mas para o poeta bilíngue, que transitou e escreveu nas duas línguas, não se aplica obrigatoriamente. Sobre a escrita em duas línguas do poeta, Iván Carvajal opina que «si hubiese escrito toda su obra em español, Gangotena habría sido de igual manera ‹ignorado premeditadamente en su país de origen139» porque ele não teria se adscrito às ideologias do escritor como «forjadores de la literatura nacional140» (2005, p. 87). Escrever em francês resultou que a crítica o considerasse como o «não-equatoriano», «el gran poeta que el Ecuador dio a Francia141» (CARRIÓN, 1950, p. 9). No entanto, esta ambiguidade na identidade também se apresentou na França. Em 1928, Jean Cassou se pronunciou sobre Gangotena e seu caderno de poemas Orogénie: [...] Ce jeune Américain du Sud possède le plus riche vocabulaire français et se livre avec une fantastique aisance aux plus inattendus rapprochements. Mais ceux-ci n’arrêtent qu’à peine la vue et l’oreille, tout emportés qu’ils sont par un mouvement qui, lui, nous procure peut-être moins de surprises. On voudrait peut-être plus d’air dans cette éloquence tropicale et cette frénésie assurée et dont l’autorité confond. Mais livrons-nous à cette autorité : il est rare de rencontrer une ivresse aussi puissante et aussi soutenue. Il manque, pour mon oreille, des timbres, des voix, je ne sais quelle sorte d’émotion à la poésie de M. Gangotena. Pour abondante et débordante qu’elle soit, elle n’évoque point la richesse et l’étoffe d’un grand orchestre. Mais c’est de la belle et sonore musique de piano, et son auteur est de la lignée des plus grands virtuoses. [...]142 (CASSOU apud GANGOTENA, 1991, p. 117) Ele exaltou o domínio da língua francesa do «americano do sul» [Américain du sud] e se impressionou pelo efeito dos versos que vão além da vista e da orelha, reconhecendo a «embriaguez» [ivresse] «potente» [puissante] e «sustentada» [soutenue], e a «riqueza» [richesse] e a «força» [étoffe] de uma grande orquestra. Esta condição bilíngue de Gangotena causava estranheza e admiração, apesar de não poder atribuir uma «emoção» [émotion]. Colocar o poeta dentro da «linhagem dos mais grandes virtuosos» consentia a incorporação dentro do meio literário parisiense, lhe outorgando o direito de escrever a partir do centro. Para a crítica francesa, a condição 139 Se tivesse escrito toda a sua obra em espanhol, Gangotena teria sido de igual maneira «ignorado premeditadamente no seu país de origem». 140 Forjadores da cultura nacional. 141 O grande poeta que o Equador deu para a França. 142 [...] Este jovem americano do sul possui o mais rico vocabulário francês e se livra com uma fantástica facilidade às mais inesperadas reconciliações. Mas disso não detêm apenas a vista e a orelha, todas levadas por um movimento que, ele, nos proporciona menos surpresas. Seria desejável talvez mais ar nesta eloquência tropical e neste frenesi afirmado e onde a autoridade confunde. Mas nos livremos desta autoridade: é raro encontrar uma embriaguez tão potente e tão sustentada. Faz falta, para minha orelha, timbres, vozes, não sei que sorte de emoção tem a poesia de Alfredo Gangotena. Por mais abundante e desbordante que ela seja, não evoca a riqueza e a força de uma grande orquestra. Mas é a bela e sonora música de piano, e seu autor é da linhagem dos mais grandes virtuosos. 81 bilíngue de Gangotena não gerava as acentuadas contradições da crítica equatoriana, mas era claramente um hispano-americano na França, que escrevia em francês com virtuosismo. Claude Couffon, que declarou Gangotena como o «poeta universal» no primeiro volume editado do poeta, escreveu na introdução de Poèmes français II, Orogénie et autres textes, no ano seguinte: «En 1991, nous avons publié dans la collection ‹ Orphée › le premier volume des Poèmes français du grand poète équatorien Alfredo Gangotena. [...]143 (1992, p. 7). O crítico francês retornou à identidade de origem, esquecendo a apologia que tinha feito sobre a condição bilíngue do poeta. Mais do que escrever em francês ou espanhol, o problema de categorização de Gangotena se intensifica por não encontrar influências e precursores claros em seus versos. Enquanto os precursores dos decapitados e Carrera Andrade são claros e identificáveis, em Gangotena, a árdua tarefa de encontrar a influência leva a referências, mas não a precursores, dirigindo a análise ao hermetismo do poeta. Sobre a influência, Harold Bloom classifica como Askesis, aquela onde «a internalização é a via de separação do poeta» e «o distanciamento da alma de si mesmo não é pretendida, ainda segue a partir da tentativa de se separar não só dos precursores, mas de seus mundos» (1973, p. 120, tradução nossa). A vontade de Gangotena por desenvolver uma linguagem poética própria, guardando distância com as correntes literárias, fez com que a ansiedade por encontrar influências e precursores resultasse em uma dificuldade para sua categorização dentro dos sistemas literários. Sobre isto, encontra-se a carta da escritora francesa Marcelle Auclair, de 1933: - Très Cordillère des Andes ? volcanique, −et la langue française, on sent parfois l’expression craquer sous la pression intérieure, comme éclate l’écorce d’un fruit mûr, et c’est d’une très émouvante sincérité – C’est peutêtre pourquoi vos poèmes évoquent parfois en moi les psaumes – le terrible halètement de ce verset ou l’Âme dit à l’Éternel : «Détourne de moi le regard, et laisse-moi respirer, − avant que je m’en aille et que je ne suis plus...» Je retrouve en vous certains accents de St-Leger Leger aussi. Vous connaissez certainement assez bien ces poèmes pour comprendre qu’il s’agit là d’une parenté très subtile, et non d’une influence cherchée et consentie. 144 (LASSUS, 2014, p. 223) 143 Em 1991, nós publicamos na coleção «Orphée» o primeiro volume de Poèmes français do grande poeta equatoriano Alfredo Gangotena. [...] 144 [Entre] a Cordilheira dos Andes, vulcânica, e a língua francesa, às vezes sente-se a expressão se romper sob a pressão interior, como estoura a casca de uma fruta madura. É de uma sinceridade muito comovedora. Talvez por isso seus poemas evocam em mim os salmos, o terrível ofego deste versículo onde a Alma diz ao Eterno: «Desvia de mim o olhar e me deixa respirar antes que eu vá e você não saiba mais...». Também volto a encontrar em você certos acentos de Saint Leger. Provavelmente você conhece bastante bem esses poemas para compreender que se trata de um parentesco muito sutil e não de uma influência buscada e consentida. 82 Esta apreciação de Auclair expõe o trânsito de Gangotena, entre a cordilheira dos Andes, vulcânica, e a língua francesa, sem chegar a habitar definitivamente em um espaço, e sem desmerecer a qualidade poética de seus versos, que lhe evocam salmos. Em seguida, a escritora encontra os acentos de Marie-René Auguste Alexis Leger145 (1887-1975), poeta nascido em Guadalupe, departamento ultramarino da França, que também se caracterizou pela dificuldade de acesso, o hermetismo e o intrincado léxico. Auclair afirma ver um «parentesco sutil» [paranté subtile], mas não uma «influência buscada e consentida» [influence cherchée et consentie]. A valorização de Gangotena radica em considerar a condição em «trânsito», sem a vontade de adesão a um sistema literário. Forçar seu pertencimento a um espaço atrapalha a apreciação de seus versos, já que ele habitou o cosmopolitismo parisiense, atingindo à irradiação cultural e às influências, mas sem procurar precursores para sua produção lírica. O deslocamento de Gangotena não construiu um lar, diferentemente de Carrera Andrade, que se entregou ao compromisso do hispano-americanismo. Portanto, partir do trânsito de Gangotena tornase fundamental para valorizar sua obra. 145 O poeta usou vários pseudônimos, Alexis Leger, Saint-Leger Leger e Saint-John Perse. 83 3 JULES SUPERVIELLE E AS ARTICULAÇÕES DE FRANCESISMO NO URUGUAI Mario Benedetti (1920-2009) – poeta, escritor, dramaturgo e crítico uruguaio − expõe um bom número de uruguaios que criaram suas obras mais representativas no estrangeiro146. Conscientes de que em seu país não existiam maiores oportunidades, saíram em procura de outros mercados e públicos. Sobre os artistas Comte de Lautréamont (1846-1870), Jules Laforgue (1860-1887) e Jules Supervielle, refere-se como o trio francês, casualmente nascidos em Montevidéu e pertencentes à literatura francesa (1963, p. 20-21). No entanto, Alberto Zum Felde, crítico uruguaio, posicionou Supervielle como um caso especial frente aos outros dois escritores: Por eso, aunque uruguayos por accidente de nacimiento, Laforgue y Lautreamont147 no pueden ser tenidos como poetas uruguayos. El simple y solo hecho de haber nacido en determinado país, no da nacionalidad literaria; tal nacionalidad no la define ese hecho solo y simple; la define el arraigo espiritual del autor o la relación que los caracteres de su obra tengan con la vida de su país. Una literatura nacional se compone, no de todos los escritores que hayan nacido dentro de su territorio político, sino de todos los que han vivido o actuado de modo más o menos permanente en su medio, han escrito en su lengua y comparten los rasgos espirituales propios de su nacionalidad. Así, un escritor nacido en Francia, pero aclimatado desde muy joven en estas tierras, que escriba en español, y cuya producción tenga algún género de relación, objetiva o subjetiva con lo nacional, formará parte de nuestra historia literaria. Y en cambio, no formará parte de ella, no será un escritor americano, otro que habiendo nacido en esta región de América, haya vivido siempre en Francia, escriba francés, y presente, en su obra, caracteres franceses. Tal es, en el primer caso, la posición de Paul Groussac, escritor argentino por su vida y por su obra, aunque francés de nacimiento; y tal es, en el segundo, la posición de los célebres Lautreamont y Laforgue, nacidos en Montevideo de padres franceses, franceses ellos mismos, íntegramente, por su espíritu, idos a Francia adolescentes, y en cuya obra no hay el más leve rasgo que recuerde a esta lejana tierra, perdida en una bruma surda. Latreamont y Laforgue son poetas franceses, y todo intento de nacionalizarlos, es decir, de incorporarlos a nuestro haber, es querer conquistar glorias con partidas de registro civil.148 (ZUM FELDE, 1941, p. 520) 146 O artista Joaquin Torres García (1874-1949), que trabalhava e expunha em Paris desde 1924 até 1933; Pedro Figari (1861-1938), que pintava, escrevia e expunha em Buenos Aires, Paris e Sevilla; Enrique Amorim (1900-1960) e Juan Carlos Onetti (1909-1994), que publicaram em Buenos Aires a maior parte de seus romances; e Antonio Frasconi (1919-2013), que emigrou aos Estados Unidos em 1945, onde foi considerado um dos melhores gravuristas, entre outros. 147 Zum Felde não colocou o acento agudo na vogal «e» no sobrenome Lautréamont, como se escreve em francês. Na tradução, este acento é colocado. 148 Por isso, ainda que uruguaio por acidente de nascença, Laforgue e Lautréamont não podem ser tidos como poetas uruguaios. O simples e só fato de ter nascido em determinado país, não dá a nacionalidade 84 Zum Felde fez uma separação entre a identidade de origem e a identidade literária. A primeira não necessariamente define a segunda, já que é o afinco [arraigo] do escritor ou poeta o que afirma o pertencimento a um sistema literário. Lautréamont e Laforgue não são uruguaios por não terem apresentado rasgos de identidade uruguaia, diferentemente do francês Groussac149, que era altamente considerado na Argentina por seus aportes dentro da literatura rio-platense. Diferente da crítica equatoriana frente aos afrancesados, o crítico não julga a origem do escritor, nem o idioma de expressão. O sentimento de pertencimento é o que outorga a nacionalidade literária. Toda a produção de Supervielle foi escrita em francês; no entanto, nela se encontram afincos do Uruguai, do hispano-americanismo, o pampa, o gaucho e seus costumes. Por esta razão, Zum Felde ratificou que o caso de Supervielle foi distinto, já que «sus ojos están vueltos a América, y mucho de lo mejor de su obra se nutre de la emoción y de la evocación de los motivos americanos150» (1941, p. 520). Supervielle tinha um apreço e gratidão pelo Uruguai, e isto fazia com que a temática rio-platense estivesse presente em sua escrita. Assim, o crítico terminou declarando que ele foi «francés por su lengua –y, desde luego, por su cultura−151», mas «uruguayo por la voluntad de su arte152» (1941, p. 520). A intenção não é procurar uma diferenciação entre o Equador e o Uruguai, porque ela existe, mas se ocupar de relevantes cisões encontradas que são pertinentes para compreender melhor o caso de Gangotena. O limite de assimilação estabelecido por Zum Felde não se equipara ao caso equatoriano. Por exemplo, o equatoriano Victor Manuel Rendón (1859-1940), considerado como transplantado por Rojas, escreveu o romance Lorenzo Cilda (1918) em francês. O protagonista Lorenzo retorna de Paris literária; tal nacionalidade não a define esse fato só e simples; a define o afinco espiritual do autor ou a relação que os caracteres de sua obra tenham com a vida desse país. Uma literatura nacional se compõe, não de todos os escritores que tenham nascido dentro de seu território político, senão de todos os que tenham vivido ou atuado de modo mais ou menos permanente em seu meio, têm escrito em sua língua e compartilham os rasgos espirituais próprios de sua nacionalidade. Assim, um escritor nascido na França, mas aclimatado desde muito jovem nestas terras, que escreva em espanhol, e cuja produção tenha algum gênero de relação, objetiva ou subjetiva com o nacional, formará parte dela, não será um escritor americano, outro que tendo nascido nesta região da América, tenha vivido sempre na França, escreva em francês, e apresenta, em sua obra, caracteres franceses. Tal é, no primeiro caso, a posição de Paul Groussac, escritor argentino por sua vida e por sua obra, embora francês de nascença; e tal é, no segundo, a posição dos célebres Lautréamont e Laforgue, nascidos em Montevidéu de pais franceses, franceses eles mesmos, integramente, por seu espirito, idos à França adolescentes, e em cuja obra não há o mais leve rasgo que faça lembrar esta terra distante, perdida em uma bruma surda. Lautréamont e Laforgue são poetas franceses, e toda tentativa de nacionalizá-los, quer dizer, de incorporá-los a nosso haver, é querer conquistar glórias com partidas de registro civil. 149 Anteriormente, o debate entre ele e Rubén Darío foi abordado na análise de Siskind. 150 Seus olhos estão virados à América, e muito do melhor de sua obra se nutre da emoção e da evocação dos motivos americanos. 151 Francês por sua língua. 152 Uruguaio pela vontade de sua arte. 85 para tomar posse das terras herdadas de seus pais. A ambientação de Guayaquil, caráter que atesta apego pelo país e que chama a atenção, passou despercebida. Não era concebível sentir afinco pelo país escrevendo em outra língua. No entanto, ao parecer, o leitor uruguaio não se incomodava por encontrar rastros de influência de um escritor estrangeiro. Isto se apresentava como um atrativo: Que en Quiroga convivan huellas de Poe y de Maupassant; que en Reyles aflore un poco de Balzac y algo más de Zola; que la reiterada Santa María, de Juan Carlos Onetti, constituya una suerte de Yoknapatawpha faulkneriano; que Borges sea una corriente subterránea en los cuentos de Mario Arregui, nada de eso es demérito de riquezas 153 (BENEDETTI, 1963, p. 29). É possível afirmar que as copiosas migrações europeias de finais do século XIX e XX no Cone Sul ‒ Argentina, Brasil e Uruguai ‒ viabilizaram e flexibilizaram as relações estéticas com o outro lado do Atlântico. Por exemplo, no Uruguai, José Alfonso Trelles (1857-1924) – conhecido como «El viejo Pancho» −, nasceu na Espanha, mas foi um dos mais altos representantes da poesia nativista, gauchesca; Álvaro Armando Vasseur (1878-1969), filho de pais franceses, formou parte da Generación del novecientos; Eduardo Dieste (1881-1954) recebeu educação desde criança na Espanha e escreveu obras com conteúdo espanhol, mas retornou ao Uruguai aos 21 anos e publicou a peça teatral El viejo (1920), com caracteres gauchescos; e Carlos Reyles (1868-1938), que recebeu o reconhecimento de Unamuno pela obra Embrujo de Sevilla (1922), também escreveu literatura gauchesca. Receber educação fora do país, ter uma origem europeia ou publicar no exterior não rejeitava o escritor uruguaio absolutamente, sempre que sentisse a chamada do afinco. A influência estava presente: Están, además, las voces de Europa. Durante muchos años, les hemos puesto amplificadores para escucharlas mejor. Y las hemos sintonizado por riguroso turno. Hubo una generación que sólo escuchaba a España; otra, que sólo escuchaba a Francia; otra más, que sólo escuchaba a Inglaterra. […]154 (BENEDETTI, 1963, p. 18) O deseo de mundo atingia as gerações literárias, sendo o Uruguai, «en lo intelectual, un satélite de Europa» (ZUM FELDE, 1939, p. 28). Por esta razão, o caso de 153 Que em Quiroga convivam rastros de Poe e de Maupassant; que em Reyles aflore um pouco de Balzac e algo de Zola; que a reiterada Santa Maria, de Juan Carlos Onetti, constitua uma sorte de Yoknapatawpha faulkneriano; que Borges seja uma corrente subterrânea nos contos de Mario Arregui, nada disso é demérito de riquezas. 154 Estão, além, as vozes da Europa. Durante muitos anos, temos colocado amplificadores para escutá-las melhor. E as temos sintonizado por rigoroso turno. Houve uma geração que só escutava a Espanha; outra, que só escutava a França, outra mais, que só escutava a Inglaterra. [...] 86 Supervielle gerou tensões diferentes, se comparado com Gangotena. A origem francesa e o lugar de nascimento lhe outorgaram o direito de escrever nos dois sistemas literários. Ser filho de pais franceses legitimava o uso do idioma francês, e ter nascido no Uruguai lhe permitia escrever com temáticas americanas. Porém, sua identidade literária também gerava certa ambiguidade, tanto na França como no Uruguai. Dois anos antes de ter defendido a identidade uruguaia de Supervielle, Zum Felde se expressou sobre ele de maneira diferente: En cuanto a Jules Supervielle, poeta de densa y refinada madurez, que ocupa um lugar de alta estima en el ambiente literario de París, donde reside y donde le tienen por suyo, séame permitido no comentarlo en esta reseña, no obstante su jerarquía, porque su obra está totalmente escrita en francés; y por lo tanto, entiendo que, aun cuando uruguayo por su nacimiento, su apreciación cabe mejor dentro de la poesía francesa. 155 (ZUM FELDE, 1939, p. 143) O crítico menciona a figura de Supervielle dentro da resenha de poesia uruguaia de um modo singular, já que reconhece seu pertencimento à literatura francesa, mas, simultaneamente, o menciona, reconhecendo sua hierarquia. Supervielle produziu verso e prosa, sendo esta última a que mais salienta o sentimento americano e a temática rioplatense. Na França, Paul Fort (1872-1960) – poeta francês do movimento simbolista − também apresentou uma apologia sobre a identidade de Supervielle no prefácio de Poèmes (1919): Le poète est un Français, un aristocrate ensemble et un « fils du peuple ». Sa famille est originaire de ce versant pyrénée, le Béarn [...]. Mais Jules Supervielle nous vint à Paris de Montevideo, la cité d’Amérique la plus proche du cœur de la France, l’Athènes de ces nouvelles contrées latines où ses parents avaient émigré. [...] L’aspect français, d’abord. Les voyages ne l’ont pas modifié. Français, ce poète l’est comme moi, et autant que vous. Les séjours prolongés qu’il fit en son bel Uruguay n’ont affaibli aucun des traits de sa pure et fine race. Il est gracieux, tendre, imprégné de lumière subtile et riante, d’ardeur spirituelle, de tous les charmes reconnus que notre terre confère à ses élites. [...] Sa lyre est une lyre de France et non un instrument bizarre, strident et lointain. Elle reste française par-delà les océans [...] Jules Supervielle est notre égal et notre frère156. (FORT apud SUPERVIELLE, 1996, p. 47-48) 155 Quanto a Jules Supervielle, poeta de densa e refinada maturidade, que ocupa um lugar de alta estima no ambiente literário de Paris, onde reside e onde é considerado seu, que me seja permitido não comentálo nesta resenha, não obstante sua hierarquia, porque sua obra está totalmente escrita em francês; e por tanto, entendo que, apesar de ser uruguaio por nascença, sua apreciação cabe melhor dentro da poesia francesa. 156 O poeta é um francês, um aristocrata e «um filho do povo». Sua família é originária desta região dos Pirineus, o Bearne [...]. Mas Jules Supervielle veio a Paris de Montevidéu, a cidade da América mais próxima do coração da França, a Atenas destas comarcas latinas onde os seus pais emigraram. E é por esta razão que ele aparece sobre um duplo e sedutor aspecto. 87 Além da origem francesa de Supervielle, Fort coloca Montevidéu como a cidade mais próxima do coração da França, permitindo que o lugar de nascimento não seja uma razão para diminuir a qualidade como francês. Supervielle tem o direito de pertencer aos dois lugares sem ser um assimilado ou um afrancesado. Escrever em francês não significou se apoderar clandestinamente do patrimônio literário central pela origem; e abordar as temáticas rio-platenses não era visto como o estrangeiro que escrevia com exotismo sobre o continente americano. Diferentemente dos modernistas, que ansiavam o cosmopolitismo e aceder à contemporaneidade europeia, de Gangotena, que não aderiu completamente a um sistema literário e de Carrera Andrade, que se inseriu dentro da legitimação do hispano-americanismo no centro, Jules Supervielle escreveu dentro dos dois sistemas literários, apesar de escrever somente em francês. Fort interpreta esta dupla admissão nos sistemas literários como uma vontade do poeta e escritor: Les annés que Supervielle a passées rêveur dans les pampas ont laissé comme une marque sur sa poésie, et l’influence des immenses plaines américaines sur son esprit est indélébile. Ne m’a-t-il point, lui-même, assuré qu’à Paris comme à Montevideo, il se sentait parfois le mal du pays ? Mais c’est, je crois, le cas de tous les Hispano-Américains qui longtemps ont habité la France. N’importe, mon ami Jules Supervielle est, si je puis dire, de moelle essentiellement française.157 (FORT apud SUPERVIELLE, 1996, p. 48-49) Supervielle guardava um profundo apreço pelo Uruguai e pela França, o que se expressava em sua produção, ganhando o reconhecimento dos dois lugares. Além do prefácio de Fort, Poèmes foi dedicado à memória de Rodó, de quem tinha traduzido um extrato de Motivos de Proteo, em 1909, para a revista La Poétique, elogiando seu trabalho (KIM-SCHMIDT e COLLOT, 1996, p. 686). Em sua segunda obra poética, Comme des voiliers (1910), existe uma seção intitulada La pampa, com poemas como «La quinta», «Les bœufs», «Adieu à l’‹Estancia», «Coin de plage», «Impressions des Andes» e «Sécheresse dans la pampa», com referências ao continente. Em seus estudos de licenciatura em espanhol, na França, tinha feito uma tese sobre «le sentiment de la O aspecto francês, primeiro. As viagens não o modificaram. Francês, este poeta é como eu, e tanto quanto vocês. As estadias prolongadas que fez em seu belo Uruguai não debilitaram nenhum rasgo de sua fina e pura raça. Ele é agraciado, tenro, impregnado de luz sutil e alegre, ardor espiritual, de todos os encantos reconhecidos que nossa terra confere a suas elites. [...] Sua lira é uma lira da França e não um instrumento bizarro, estridente e distante. Ele permanece francês ao outro lado dos oceanos [...]. Jules Supervielle é o nosso igual e o nosso irmão. 157 Os anos que Supervielle passou sonhador nos pampas deixaram uma marca sobre sua poesia, e a influência das imensas planícies americanas sobre seu espírito indelével. Não me assegurou, ele mesmo, que tanto em Paris quanto em Montevidéu, ele sentia às vezes o mal do país? Mas é, eu acho, o caso de todos os hispano-americanos que durante bastante tempo moraram na França. Não importa, meu amigo Jules Supervielle é, se posso dizer, de medula essencialmente francesa. 88 nature dans la poésie hispano-américaine158». As leituras sobre os poetas argentinos Esteban Echeverría, que descobriu o pampa na poesia, e Luis L. Domínguez, que introduziu o ombú159 como motivo emblemático (KIM-SCHIMIDT e CONCHOL, 1996, p. 675), influenciaram sua produção, que tinha se iniciado com o simbolismo francês. Este capítulo descreve as condições literárias de Gangotena e Supervielle nos contextos andino e rio-platense, respectivamente, para entender como ocorreu a recepção de suas obras. Supervielle ganhou o apreço no Uruguai, apesar de escrever unicamente em francês, diferentemente de Gangotena, que foi rejeitado, apesar de retornar ao espanhol em sua última produção. 3.1 SUPERVIELLE NO CONTEXTO URUGUAIO Com processos de colonização e migratórios diferentes na América Hispânica, Zum Felde resume as diferenças sobre o revestimento social dos países andinos e os rioplatenses: Nosotros somos hijos de otra época de España; empezamos a desarrollarnos bajo la égida del regalismo liberal de los borbones, fecha que señala la separación del novel virreinato rioplatense de la tutela absorbente de Lima. Y así, en vez de la emigración bachilleresca que dió a las antiguas ciudades virreinales aquel artificioso brillo de su retórica, pobló estas costas del Estuario una emigración de carácter más civil que eclesiástico y más comercial que letrada. Una sociedad de tipo burgués se formó aquí, opuestamente a aquella de tipo aristocrático. Así, no tuvimos en nuestras calles las suntuosas carrozas blasonadas ni los portales platerescos que lucían Lima, Bogotá, Quito, Córdoba.160 (ZUM FELDE, 1939, p. 13) A aristocracia conservadora criolla e colonial, no Equador, e a sociedade burguesa comercial, no Uruguai, variariam as questões sociais, políticas e identitárias. Na região andina, o legado colonial continuou com a intervenção da Igreja no Estado e o controle da aristocracia conservadora sobre o rumo político e econômico. No Equador, o conceito de hierarquia anda par a par com o conceito racial. Em estatísticas, o Equador de 1923 mostrava dois milhões de equatorianos com 900 mil mestizos, 400 mil brancos e 700 mil índios (CASTILLO-BERCHENKO, 2013, p. 89), enquanto no 158 O sentimento da natureza na poesia hispano-americana. Espécie de planta herbácea, distribuída nos pampas da América do Sul. 160 Nós somos filhos de outra época da Espanha; começamos a nos desenvolver sob a égide do regalismo liberal dos borbones, data que indica a separação do novo ‹virreinato› rio-platense da tutela absorvente de Lima. E assim, em vez de uma emigração de bachareis que deu às antigas cidades do virreinales aquele artificioso brilho da sua retórica, povoou estas costas do Estuário uma emigração mais civil do que eclesiástica e mais comercial do que letrada. Uma sociedade de tipo burguês se formou aqui, opostamente a aquela de tipo aristocrático. Assim, não tivemos nas nossas ruas as suntuosas carroças blasonadas nem os portais que luziam Lima, Bogotá, Quito, Córdoba. 159 89 Uruguai, em Montevidéu de 1889, tinham 114 mil uruguaios e 100 mil estrangeiros, dentre os quais os italianos eram 22% do total da população, e os espanhóis 15% (MÉNDEZ, 2015, p. 125). O afluente migratório nos países rio-platenses, no final do século XIX deu como resultado um revestimento social diferente. Por responderem a bases distintas de conformação nacional, a migração desembarcou no Uruguai com as ideias vigorantes da Europa daquele momento, enquanto a conformação de uma população mestiza no Equador deixou por longo tempo as cadeias das práticas do arbítrio colonial impostas. O intercâmbio mais significativo no Equador com a cientificidade francesa se deu na chegada da Misión geodésica francesa, em 1736, para definir o meridiano da linha equatorial e comprovar a forma da terra nos debates entre newtonianos e cartesianos. A missão se alojou em conventos jesuítas, e foi com eles que houve um diálogo de intercâmbio intelectual, já que os religiosos guardavam conhecimentos da cientificidade barroca e se entregaram à modernidade científica trazida pela missão (ESPINOSA e SEVILLA, 2013, p. 53). O Equador entrou em contato com o pensamento francês pelas elites e continuaria assim nos dois séculos seguintes, enquanto no Uruguai, a população chegava influenciada pela influência do pensamento liberal da França que se espalhava sobre a Europa. Portanto, a composição social constituiu um princípio determinante na articulação de francesismo destes países. Os escritores receberiam públicos diferentes e com heranças culturais mais aptas ou não frente à influência europeia, em maior proporção em um lugar do que em outro. Na América Hispânica, mudanças políticas e sociais ocorriam no final do século XIX e início do XX. As reivindicações sociais a favor de melhores condições de trabalho e a vontade de mudar as políticas conservadoras dominavam. Porém, estas vozes de mudança correspondiam a diferentes fatores, segundo as circunstâncias internas de cada país. No Equador, as lutas e oposições começaram por mudar o sistema latifundiário imposto desde a colônia, a favor de um novo regime que beneficiasse o camponês, o trabalhador e o sistema econômico que se desenvolvia no litoral, para posteriormente se preocupar com a precariedade dos indígenas. No Uruguai, os enfrentamentos entre os partidos blanco – conservador e nacionalista − e o colorado – criollista popular e liberal − dominavam o cenário político. A guerra civil de 1904 marcou o começo da etapa contemporânea do Uruguai (ZUM FELDE, 1991, p. 223), já que o país se encontrava dividido entre os blancos, que representavam a elite, a tradição castiça, e os colorados, que se destacava como o 90 partido dos migrantes, de origem popular e caudilha. Os espanhóis se uniam ao partido blanco, pela tradição e domínio desde inícios da colônia, enquanto os italianos se afiliavam ao partido colorado, já que eram influenciados pelo pensamento garibaldino. No ano de 1897, o país se encontrava dividido, já que seis departamentos estavam no comando do partido blanco, existindo dois governos, o da capital, dirigido por Juan Lindolfo Cuestas, colorado, e outro na Estancia del cordobés, liderado por Aparicio Saravia. José Batlle y Ordóñez, colorado, é apoiado por blancos também para assumir a presidência em Montevidéu em 1903. Saravia se levanta com armas, mas Batlle celebra um pacto temporal, mantendo a divisão que regia na presidência anterior. Batlle aproveita aquele ano para reorganizar o exército e ganhar a guerra que durou vários meses no ano seguinte, terminando com a morte de Saravia. O partido colorado dominaria por vinte e cinco anos a vida política do país, até a morte de Batlle em 1929. A ascensão ao poder de Batlle coincidia com o conflito econômico em Montevidéu, onde a indústria se desenvolvia. As organizações de trabalhadores surgiam e se dividiam em revolucionária e socialista-democrata. O presidente se caracterizou por dois períodos, o primeiro como democrata-liberal, e o segundo, mais radical, nos limites do socialismo (ZUM FELDE, 1991, p. 234). Dentro de seu próprio partido, as oposições contra esta segunda fase de Batlle formaram o partido Riverista, que apoiava um governo mais neutro. Em 1913, Batlle propôs uma reforma constitucional, que consistia em suprimir a presidência do país por uma Comissão ou Conselho, formado por sete ou nove membros. Onze membros batllistas do senado rejeitaram a proposta. O partido blanco aproveitou a situação para formar uma coalisão chamada El día. O projeto se manteve imobilizado. As eleições proclamaram Feliciano Viera, batllista, presidente em 1915. Existiu uma maioria batllista no senado, mas não na Assembleia constituinte. A proposta de supressão da presidência tomou outro caminho. Celebra-se um Conselho Administrativo, renovável a cada dois anos, compartilhando o poder executivo com o presidente, eleito a cada quatro anos. Os ministérios do Interior, de Defesa Nacional e de Relaciones Exteriores seriam responsabilidade do presidente, enquanto os outros seriam do Conselho (ZUM FELDE, 1991, p. 240). O modelo foi acordado em 1917, mas entrou em vigência em 1919, mantendo-se durante três governos até 1933, quando o golpe de Estado iniciou a ditadura de Gabriel Terra, também batlllista, mas que queria impor uma reforma por plebiscito, sem passar pela votação nas câmeras. A forte oposição desta proposta levou à instalação de um regime ditatorial, para chamar as 91 eleições na Assembleia constituinte, reestabelecendo o presidencialismo unipessoal. O General Alfredo Baldomir tomaria a presidência até as novas eleições, que proclamaram Juan José de Amézaga, do batllismo, ganhador. Na década de 1880, dominava o romantismo no cenário de El Ateneo, instituição onde se congregava a intelectualidade uruguaia (ZUM FELDE, 1939, p. 25). O humanismo letrado e academicista encontrava a maneira de expressar sua insatisfação frente ao dominío do sistema ditatorial nos Anales del Ateneo, publicação mensalmente distribuída entre os anos 1881 e 1886, desaparecida junto com a ditadura. Nesta revista, os colaboradores defendiam em sua maioria o idealismo das escolas românticas, refutando o naturalismo e o positivismo que chegava à região rio-platense (ZUM FELDE, 1939, p. 26). Apesar de as figuras deste movimento gozarem de um amplo reconhecimento, as obras mais representativas deste período ocorreram com Juan Zorilla de San Martín (1855-1931), autor de Tabaré161 (1888) e Eduardo Acevedo Díaz, autor de Ismael162 (1888), que não pertenceram a El Ateneo. As novas tendências do positivismo e do modernismo literário entraram em cena na conhecida Generación del novecientos. Assim, na filosofia, o positivismo filosófico, o realismo literário e o simbolismo irromperam como novas diretrizes estéticas. A Revista Nacional de Literatura y Ciencas Sociales, que publicava desde 1895, servia como intermediário para a nova geração. Rodó e Pérez Petit, encarregados ativos da revista, introduziram as novas influências europeias163 – Ibsen, Nietzche, Tolstoy, Hauptman, Verlaine, Mallarmé, D’Annunzio, entre outros – em suas páginas (ZUM FELDE, 1941, p. 204). Assim, surgiu no romance e no teatro o naturalismo e o realismo de Javier de Viana, com Campo164 (1896), coleção de contos; Carlos Reyles, com Beba165 (1897), romance; e Florencio Sánchez, com M’hijo el doctor (1903), obra teatral166. Na poesia, a figura mais representativa foi Julio Herrera e Reissig, influenciado pelo simbolismo francês e pelo modernismo hispano-americano, seguido de outros poetas como Delmira Augustini, María Eugenia Vaz Ferreira. Outra figura de importância foi Horacio Quiroga, poeta e contista de amplo reconhecimento. 161 Trata-se de uma poesia épica-lírica, contando o idílio amoroso do indígena Tabaré com Blanca, uma espanhola, e a guerra entre charruas e espanhois. 162 Esta obra recolhe a história uruguaia e a independência liderada pelos criollos frente aos espanhois até a batalha de Sarandí, onde se enfrentaram contra o Império do Brasil. 163 Segundo Zum Felde, a Revista Nacional não apresenta maiores sintomas de modernismos, nem literários, nem ideológicos. A revista não responde a tendências determinadas. (1941, p. 206) 164 Coleção de contos que retratam a vida rural. 165 Romance que aborda o trabalho pecuário, a indústria rural. 166 Obra que contrapõe as vidas da cidade e do campo. 92 Não seria até a década de 1920, denominada por Bordoli como a «década de oro»167 (apud VISCA, 1972, p. 157), que apareceriam caracteres profundamentes nacionais nas letras uruguaias. O modernismo entrava em crise, e o americanismo surgia nas letras uruguaias com o movimento neo-criollista, denominado nativista, convivendo paralelamente com as vanguardas. Na poesia, Fernán Silva Valdés inagurava o nativismo poético168 com Agua del tiempo (1921); Pedro Leandro Ipuche, iniciava o gauchismo cósmico169 com Alas nuevas (1922); em narrativa, Justino Zavala Muniz mostrava os signos da tradição uruguaia, a interpretação da realidade e a consciência coletiva em suas obras Crónica de Muniz170 (1921), Crónica de um crimen171 (1926) e Crónica de la reja172 (1930); além de outros escritores que escreveram sobre a realidade uruguaia como Francisco Espínola com Raza ciega (1926); Enrique Amorím com La carreta (1929); e Víctor Dotti com Los alambradores (1929). Comparado com o Equador, o que destaca é a transição do modernismo a correntes literárias que defendiam a localidade e o retrato da realidade nacional. O passo dos influenciados pela literatura francesa e europeia deu o aspecto de ser mais marcado no país andino. No Uruguai, esta transição ocorria sem deixar a marca de uma profunda cessação. Os mesmos poetas e escritores experimentavam a transição, passando da influência modernista de Rubén Darío, do deseo de mundo - do consentimento da francofilia universal - à localidade. Fernán Silva tinha se iniciado com Ánforas de barro (1913) e Humo de Incienso (1917), sob as diretrizes do modernismo e do simbolismo, passando em Agua del tiempo a abordar o tema criollo, usando o léxico gauchesco. Emilio Orbe (1893-1975), outro poeta, começou com uma produção hereditária de Herrera e Reissig e Dario –Alucinaciones de Belleza (1912) −, mas em sua segunda obra Letanía Extrañas (1915), começa por mostrar o afastamento do modernismo, se dirigindo ao realismo lírico, o qual já dominou sua produção posterior – El Castillo Interior (1917), El Halconero Astral (1919) e El Nunca Usado Mar (1922), entre outros. Adolfo Montiel Ballesteros (1888-1971) iniciou na via lírica com Primaveras 167 Década de ouro. Visca estende esta denominação às outras áreas como a narrativa, a música e a plástica, enquanto Bordoli se refere só à poesia. 168 Quando o criollismo é aplicado à poesia, este se denomina nativismo. Os poetas mostram uma consciência de nacionalismo, e sendo descritivos das paisagens, mais do que dos indivíduos. 169 Gauchismo cósmico foi definido pelo poeta como uma fusão do nativismo com o vanguardismo. 170 O romance é sobre a vida do general Justino Muniz, caudilho gaucho e avô do escritor. 171 Também com conteúdo histórico, mas relacionado com circunstâncias judiciais. O romance recolhe a vida nativa de Melo, capital do departamento de Cerro Largo, retratando os caracteres do gaucho criminal no meio rural. 172 O romance trata amplamente da vida no campo. 93 del Jardín (1912), Emoción (1915) e Savia (1917), inseridas no modernismo, mas, em 1919, publicou na Itália Cuentos Uruguayos (1920), mostrando seu criollismo e sentimento nacional. Sua produção posterior continuaria nesta direção com obras como Alma Nuestra (1922), La Raza (1925), Rostros Pálidos (1923), Luz mala (1927), Fábulas y cuentos populares (1926) e Montevideo y su Cerro (1928). Os escritores e poetas uruguaios encontravam o nacionalismo literário na imagem do gaucho, do pampa, da vida no campo e do nativismo. A dupla consciência dos poetas posmodernistas equatorianos, aquela de herdar o deseo de mundo dos modernistas e manter a localidade, espalhava-se sobre os escritores e os poetas urugaios. A articulação de francesismo na literatura uruguaia se mostrava mais flexível e tolerante frente à influência. A transição a uma literatura local, realizada por vários escritores e poetas que se iniciaram com a influência europeia, mostra que a dependência com a literatura central não era vista como uma sentença acusatória, sempre que a localidade chegasse a apelar sua produção na irrupção do nacionalismo. Estas condições favoreciam a recepção de Supervielle. A migração fazia com que sua origem francesa não fosse considerada totalmente alheia, já que boa parte da população apresentava uma origem europeia recente, sobretudo da Italia e da Espanha. Sua figura era bem considerada no Uruguai dentro dos circuitos literários. Tratava-se do franco-uruguaio que tinha ganhado um espaço em Paris, e sua obra representava a aspiração do cosmopolitismo de seus contemporâneos uruguaios. Posteriormente, a demonstração de afeto e afinco pelo Uruguai, do mesmo jeito que pela França, intensificou-se com a introdução da temática rio-platense em sua obra, principalmente em seus romances. Isto permitia que guardasse um lugar dentro da literatura nacional, diferente de Lautréamont e Laforgue. A escrita em francês não impedia a consideração de sua obra. 3.2 SUPERVIELLE E GANGOTENA NOS SISTEMAS LITERÁRIOS A dificuldade para categorizar a obra gangoteneana como francesa ou equatoriana se estabeleceu pela carência de um sentimento de afinco em sua produção. As vanguardas francesas e as correntes hispano-americanas não tocaram sua obra de uma maneira contundente. A necessidade do leitor de encontrar uma orientação estética em sua obra gera conflito. Porém, a produção de Supervielle encontra visíveis evidências de americanismo e francesismo, tornando fácil sua apreciação. 94 Supervielle começou sua vida literária com Brumes du passé (1901), quando tinha dezessete anos. Estes poemas mostravam a influência das leituras dos românticos Musset, Hugo e Lamartine, como também dos parnasianos Leconte de Lisle, Sully. O primeiro poema, intitulado «À la memoire de mes parents», expõe a melancolia produzida pela perda de seus pais quando era criança, evento que o marcaria ao longo de sua vida: Il est deux êtres chers, deux êtres que j’adore, Mais je ne les ai jamais vus, Je les cherchais longtemps et je les cherche encore. Ils ne sont plus... Ils ne sont plus... Un jour j’allais tout seul dans un vieux cimetière Pensant à ceux que j’adorais, Et je vis une tombe, et, gravés sur la pierre, Les noms de ceux que je cherchais...173 (SUPERVIELLE, 1996, p. 3) No mesmo ano de nascimento do poeta em Montevidéu, seus pais decidiram viajar à França, mas eles morreram acidentalmente em Oloron-Sainte-Marie174. Sua avó materna tomaria cuidado dele por dois anos, até que seu tio o levasse ao Uruguai, sendo criado como se fosse seu próprio filho. Os poemas seguintes, como «La fumée», mostram o simbolismo de Mallarmé, a filosofia de Leconte de Lisle e a musicalidade de Verlaine. O poema «J’ai trop aimé les fleurs...» exibe a influência do ritmo de Baudelaire e a sensibilidade de Verlaine: J’ai trop aimé les fleurs et leurs senteurs si douces, Les blondes fleurs des champs, qui ne vivent qu’un jour, J’ai trop aimé l’Automne avec ses feuilles rousses Qui sont comme des cœurs qui palpitent toujours...175 (SUPERVIELLE, 1996, p. 10) As flores, tema recorrente dos parnasianos e simbolistas influenciaram na produção de Supervielle. Esta tendência continuaria em sua obra seguinte, Comme des voiliers, adicionando também a figura de Albert Samaine, mas escrevendo uma seção intitulada «La Pampa», com poemas sobre o continente americano. Pela primeira vez, ele manifestou seu interesse por se pronunciar sobre o hispano-americanismo: Un vieil ombú plus murmurant qu’une forêt, Malgré ses ans se trouble au familier sourire Du matin, et l’on voit se dorer son sommet 173 São dois seres queridos, dois seres que adoro / Mas não os vi jamais, / Os procurava bastante tempo e os procuro ainda. / Não estão mais... Não estão mais... / Um dia ia sozinho num velho cemitério / Pensando nos que adorava, / E vi uma tumba, e, gravados sobre a pedra, / Os nomes dos que procurava... 174 Envenenados pela água de uma torneira verde cinza, tomada em Saint-Christau, ou vítimas de cólera. 175 Amei bastante as flores e seus aromas tão doces, / As louras flores dos campos, que não vivem mais que um dia, / Amei bastante o Outono com suas folhas rosas / Que são como cores que palpitam sempre... 95 Où le jeune soleil se mire...176 (SUPERVIELLE, «La Quinta», 1996, p. 34) O ombú, que foi retratado por Luis L. Domínguez no século XIX, era o símbolo do pampa. Esta árvore também se tornava essencial na pintura. O uruguaio Pedro Figari177 (1861-1938) o plasmava em seus quadros. Assim, o poeta apelava à sua essência americana, tal como Zum Felde aponta ao falar dele. Sua figura começava a ganhar um espaço também no Uruguai, não só na França. Sua próxima obra, Poèmes, de 1919, foi dedicada à sua mãe e à memória de Rodó, mostrando um amplo interesse pela literatura do país rio-platense. Este caderno é dividido em quatro seções − «Voyage en soi», «Paysages», «Le Goyavier authentique» e «Les poèmes de l’hymour triste». Na primeira seção, o poeta mostra a vitalidade de encontrar uma voz nova, separada das influências literárias: Ah ! croire que l’on dit pour la première fois Et n’être que l’écho brisé d’une autre voix ; S’imaginer Poète au plus secret de l’âme Et brûler, sans savoir, d’une étrangère flamme: Que de fois Baudelaire, et toi Villon aussi Vous avez mis en moi le terrible souci, […].178 (SUPERVIELLE, «Le doute suit mes vers comme l’ombre ma plume», 1996, p. 53) Os registros das modas literárias se evidenciam claramente em Supervielle desde seus inícios. O poeta reconhecia viver com a influência de Baudelaire e Villon, mas também de Chateaubriand, Francis Jammes, Samain e Rimbaud ao longo da sua produção lírica. O poeta tinha o direito a habitar o cosmopolitismo, como qualquer francês, devido à sua ascendência. Mas o olhar transatlântico o trasladava aos pampas. Na seção seguinte, ele explorou os horizontes do pampa e da França. No fragmento dois do poema «La pampa», Supervielle escreveu: Où suis-je ? Le rancho. Tout autor, au repos, S’étire jusqu’à l’horizon la pampa rude Qui ne connaît que l’ombre errant des troupeaux Et parfois un ombú, courbé de solitude...179 (SUPERVIELLE, 1996, p. 57) 176 Um velho ombú mais murmurante que uma floresta / Malgrado seus anos se encontra no sorriso familiar / Da manhã, e vê-se dourar sua cima / Onde o jovem sol se olha... 177 Eram amigos. Em Paris, Supervielle escreveu vários prefácios de catálogo sobre a obra de Figari, e as exposições que este fizesse. Também dedicou para o artista plástico a seção «La campagne se souvient», de Poèmes. 178 Ah! acreditar no que se diz pela primeira vez / E não ser mais que o eco quebrado de outra voz / Imaginar-se Poeta no mais secreto da alma / E arder, sem saber, de uma alheia chama: / Que às vezes Baudelaire, e também você Villon, / Vocês colocaram em mim a terrível preocupação, / [...]. 179 Onde estou? No rancho. Tudo ao redor, em repouso / Estira-se até o horizonte o pampa rude / Que não conhece mais que a sombra errante dos rebanhos / E às vezes um ombú, curvado de solidão... 96 O poeta apontou mais uma vez a descrição da planície, do campo e da imagem de solidão que este espaço produzia. As impressões do poeta podem guardar certa relação com Etcheverria, devido à sensibilidade e à tristeza frente ao pampa nu e desértico da Argentina. Posteriormente, a mesma seção também compartilha paisagens da França, onde resgatou sua relação com os Pirineus e o país Basco, de onde provinham seus pais. Em «Poèmes de l’humour triste», Supervielle se liberava da métrica e da rima, seduzindo-se pelo verso livre, usando coplas e rimas não convencionais. Aqui, o poeta encenou a melancolia e a ironia, influenciadas por Laforgue, mas que mostravam a evolução poética de Supervielle por interiorizar sua linguagem. O poema abre com uma dedicatória a Ventura García Calderón, francoperuano que militou na geração arielista, e também contém uma dedicatória a si mesmo − «À moi-même quand je serais posthume180», com ironia. A última seção retrata a observação do Uruguai, onde descreveu a sociedade criolla, mas com um ar de exotismo e de humor: Les marines senteurs montent vers les terrasses Dans le soir que la lune élargit, doux-amer, Et croisent, sur la route obscure de l’espace, Les parfums des jardins descendant vers la mer. [...] Voici Concha : des yeux mi-clos sur un visage Brun, où la poudre a fait du bleu ; Dolorès : son regard chaste semble plus sage Que ses fines lèvres de feu. [...] Toutes s’en vont auprès de leurs galants superbes, Frais fleuris, fols en frais, Dont les clairs compliments sont comme les proverbes... Les premiers mots font deviner les mots d’après.181 (SUPERVIELLE, «Soir créole», 1996, p. 104) Supervielle descreve uma situação de galanteio de marinheiros em procura de mulheres. O momento carrega um humor devido às leis cortesãs da aproximação. O homem que espera a aparição das mulheres, que têm um código para receber os elogios, que se tornam provérbios. A distância do poeta com o entorno faz com que ele tome 180 A mim mesmo quando for póstumo. Os marinheiros farejadores sobem em direção aos terraços / Na noite em que a lua alarga, agridoce, / E atravessam, sobre a rota escura do espaço, / Os perfumes dos jardins descendo para o mar. / [...] / Eis aqui Concha: olhos semicerrados sobre um rosto, / Marrom, onde o pó se ocultou; / Dolores: seu olhar casto parece mais sábio / Que seus finos lábios de fogo. / [...] / Todas chegam perto de seus magníficos galanteadores, / Frescos floridos, fanáticos frescores, / Cujos claros cumprimentos são como os provérbios... / As primeiras palavras fazem devir as palavras de depois... 181 97 uma posição um tanto afastada. Ao retratar os costumes dos criollos, brancos nascidos na América, ele se torna o francês, estrangeiro, que observa, e não o uruguaio que fala de seu próprio país. O afinco de Supervielle gera um problema, já que daí em diante, as temáticas abordadas se alternariam entre o sistema literário francês e o rio-platense. O afinco pelos dois lugares estaria presente, mas sobre o Uruguai existiria uma ambiguidade. Por momentos, sua escrita se encontra com o mais profundo sentimento nativista e gauchesco, mas, em outros, este está invadido pelo olhar exótico do francês sobre a América Hispânica. Zum Felde afirma que seu americanismo poderia ser considerado um tanto afrancesado já que tem «algo de exotismo colorista con que los mismos escritores franceses sienten el motivo simbólico de la pampa182» (1941, p. 521). Vários poemas de Supervielle poderiam pertencer à literatura uruguaia, se tivessem sido escritos em espanhol, da mesma maneira que seus romances. A vontade da literatura de Supervielle expunha um sentimento de pertencimento aos dois lugares. O deslocamento não lhe significa um exílio, nos dois lugares sentia saudade pelo espaço deixado. A decisão de Supervielle por escrever exclusivamente em francês se encontra em Boire à la source (1951), onde explica a relação que tinha com as duas línguas: Je rentrerai bientôt en France après sept ans de séjour en Uruguay. [...] de penser en français. Il est vrai que j'ai toujours considéré la langue espagnole comme une grande dame dont il fallait se méfier et qui était prête, si je n'y prenais garde, à faire main basse sur tout mon univers intérieur (lequel s'exprime en français). [...] Je parle, je pense, je me fâche, je rêve et je me tais en français, mais je suis d'autant plus obligé de me tenir sur mes gardes [...].183 (SUPERVIELLE, 1951, p. 145146). Por causa da Segunda Guerra Mundial, Supervielle não retornou à França por sete anos, o que faz entender o significado de voltar a falar francês cotidianamente. Ele afirma um respeito pelas duas línguas, mas que a língua francesa representa o seu «universo interior». Indiferentemente da preferência linguística, tanto a França como o Uruguai são seu lar, sentindo saudade do lugar não habitado. O espanhol, apesar de não ser a ferramenta de escrita de Supervielle, convive harmoniosamente em seu 182 Algo de exotismo colorista com que os mesmos escritores franceses sentem o motivo simbólico do pampa. 183 Entrarei em breve na França depois de sete anos de estadia no Uruguai [...] de pensar em francês. É verdade que sempre considerei a língua espanhola como uma grande dama da qual era necessário desconfiar e que estaria pronta, se eu não tomasse cuidado, para furtar todo o meu universo interior (o qual se expressa em francês). [...] Eu falo, penso, fico com raiva, sonho e me calo em francês, mas eu tenho a maior obrigação de estar em guarda [...]. 98 bilinguismo. Por esta vontade de pertencer aos dois lugares é que Supervielle desenvolveu posteriormente um sentimento rio-platense e hispano-americano, inclusive ao escrever em francês. A convivência bilíngue de Supervielle marcou uma convivência estética transatlântica, onde as correntes chegaram a se influenciar mutuamente. Desta maneira, um leitor de Supervielle pode encontrar rastros das correntes literárias francesas em temas uruguaios, ou uma estética rio-platense escrita em francês. A convivência bilíngue e estética deste poeta e escritor determinou a tarefa da crítica que também oscilava entre considerá-lo ou não um nacional. De qualquer maneira, a situação de Supervielle no contexto uruguaio é menos dramática que a de Gangotena. Sua obra é respeitada pelo círculo literário parisiense e admirada no Uruguai. O trabalho de crítica de Zum Felde era forte em comentários, nada benevolentes, em se tratando de obras que não satisfizessem seu pensamento; portanto, o fato de ser contemporâneo a Supervielle e reconhecer a qualidade de sua obra atesta que os limites de assimilação no Uruguai eram mais flexíveis do que no Equador. Se Gangotena tivesse escrito em francês uma poesia de fácil acesso, como a de Supervielle, e com uma temática que falasse da localidade, provavelmente, também teria sido rejeitada. O poeta equatoriano não tinha o direito de falar francês como se fosse parte de seu patrimônio, e isto teria continuado sendo afrancesado. Supervielle podia ser visto no Uruguai como franco-uruguaio ou francês nascido no Uruguai, e na França, pela apologia de Fort, como um uruguaio de pais franceses em Paris, mas tendo o direito de ser admitido nos sistemas literários, pela origem e pelo lugar de nascença. O deslocamento de Supervielle significava deixar um lar por outro, enquanto em Gangotena representava sair de seu lar a um lugar novo, que não lhe pertencia. Apesar da preferência de Supervielle pelo francês 184, ter escrito em espanhol não teria sido estranho para o meio literário uruguaio. Teria se tratado de um escritor filho de migrantes, como vários escritores na mesma condição, e como um bom número de cidadãos no momento. O espanhol e o francês lhe pertenciam, do mesmo jeito que as nacionalidades. Falar francês para Gangotena significou uma aprendizagem que nunca chegaria a lhe pertencer, apesar de ter ganhado a admiração dos franceses por este domínio. Em Quito e em Paris era o equatoriano que tinha renunciado a seu patrimônio linguístico e, portanto, à sua nacionalidade. Gangotena era estrangeiro para os sistemas 184 Silvia Molloy (2015) conta que, em conversa com a sobrinha do poeta, Supervielle impôs o francês como língua caseira. Falar francês era difícil para Pilar, sua esposa, que era uruguaia (2015, p. 51-52). 99 literários, já que sua poesia «no pertenece al Ecuador ni a Francia185» (BURNEO, 2005, p. 34). O status de bilíngue de Gangotena não era favorável para a recepção de sua obra. Sobre o bilinguismo em Gangotena e a posição dele frente à realidade nacional, os críticos fixaram considerações sobre o fragmento «XI» de Absence: Est-ce bien pour moi ce bruit de lampes, ce souffle noir ? Mais qui de violent frappe à ma porte ? Ah ! c’est encore vous, enguirlandé de plumes et de palmes, Monsieur l’Inca Tupac-Yupanqui ? Qu’avez-vous donc de si pressé à nous révéler ? Vous me faites plutôt, entouré des ombres, l’effet de me traquer, De me traquer et de vous tenir toujours à l’est, Toujours à l’est terrible de ma pensée.186 (GANGOTENA, 1992, p. 135) Segundo Burneo (2005, p. 40), «la presencia del señor Inca nos lleva de inmediato al choque de dos culturas y a la incomunicación 187» para levá-lo ao exílio linguístico, enquanto para Carvajal (2005, p. 113), este fragmento expressa o poeta que «se sabe no-indio y que percibe que no podría ser compreendido por sus vecinos indígenas188» com os que compartilha um território. Ao mesmo tempo em que reconhece a existência do outro-indígena, também reconhece a impossibilidade de entendê-lo. Os escritores e poetas não teriam aceitado esta posição, já que seus propósitos partiam de dar uma voz ao indígena, de admitir que ele também tinha o direito de se expressar. Neste fragmento, vale a pena mencionar Henri Michaux, poeta belga que acompanhou o poeta no retorno ao Equador e permaneceu dois anos com a família Gangotena, para logo publicar Ecuador: Journal de Voyage (1929) em Paris. O livro foi recebido no Equador como transgressor e injurioso por retratar desfavoravelmente a cultura do país, mas que, visto de outra concepção, considera-se como a «satire effrénée de l’exotisme189» (Couffon, 1992, p. 10), algo que Gangotena compreendia bem frente à literatura europeia do viajante que mostrava o continente americano como excêntrico e misterioso. Para os realistas sociais, a formulação desta interpretação não cabia, a ofensa já estava feita, o que provocaria ainda mais o isolamento de Gangotena. O poeta, que se reconhece não-índio no choque de culturas, poderia oferecer outra interpretação neste fragmento, partindo da transgressão de Michaux. Mais do que 185 Não pertence ao Equador nem à França. Mas quem bate iracundo à minha porta? / És tu, enguirlandado de plumas e palmas, / Senhor Inca Tupac-Yupanqui? / O que tens de urgente para nos revelar? / Me provocas, com tua envoltura de sombras, o efeito de me acossar, / De me acossar e de te manter ao leste, / Sempre ao leste terrível do meu pensamento. 187 A presença do senhor Inca nos leva de imediato ao choque de duas culturas e à incomunicação. 188 Se sabe não-índio e que percebe que não poderia ser compreendido pelos seus vizinhos indígenas. 189 Sátira desenfreada do exotismo. 186 100 alheio à cultura nacional, Gangotena poderia estar apelando à sátira do afã de dar voz ao índio, dos realistas sociais e dos indigenistas. O projeto literário equatoriano de imprimir os registros dos montuvios, dos cholos, dos indígenas e demais falas populares nasceu da pluma dos escritores criollos ou mestizos, muitas vezes de famílias nobres, cultas e quando menos de classe média, que não se reconheciam no outro mais do que pela experiência da observação exterior. O poeta, de família aristocrática quiteña, não pode ser mais honesto ao admitir a existência da alteridade indígena, a vontade de saber o que o outro quer dizer — «Senhor Inca Tupac-Yupanqui? / O que tens para nos revelar?» — e a incapacidade de traduzir a alteridade — «Sempre ao leste do meu pensamento». A crítica frente a Gangotena o colocou como alheio à realidade nacional, mas deveria-se considerar que ele a experimentou de uma maneira diferente, isento dos modelos do compromisso e da denúncia, do mesmo modo que experimentou as vanguardas francesas, sem aderir explicitamente a uma corrente literária. A crítica atual chega a um senso comum sobre o bilinguismo em Gangotena, o trânsito em duas línguas ocasionou o exílio, e a carência de um sentimento de afinco o afastou de uma identidade literária. Para Burneo, a poesia de Gangotena em francês contém combinações sintáticas e um léxico que o «dotan de la misma extranjeridad de la que goza su poesia em español190» (2005, p. 53). Para Carvajal, apesar de observar um conteúdo hispano-americano pela religiosidade andina, além do diálogo com a angústia pascalina e o sentimento trágico da vida de Manuel de Unamuno, em poemas como «L’homme de Truxillo», «Chistophorus» e «Carême», também assegura que «si hubiese escrito toda su obra em español, Gangotena habría sido de igual manera ‹ignorado premeditadamente em su país de origen191» (2005, p. 87) porque não se inscrevia nos modelos literários equatorianos. Para Castillo-Berchenko, o espanhol impõe pudor pelo conservadorismo quiteño, e interpreta que o francês lhe permitiu escapar das cadeias culturais, mas que Tempestad secreta se aventura a tocar o proibido, sem se importar com a imaculada carga do espanhol andino (2013, p. 166). A crítica atual tem um olhar condescendente e apreciativo do bilinguismo em Gangotena, deixando para trás a turbulência do tabu que significava abordar o poeta que escrevia em uma língua de empréstimo. 190 Dotam da mesma estrangeirice que goza a sua poesia em espanhol. Se tivesse escrito toda a sua obra em espanhol, Gangotena teria sido de igual maneira «ignorado premeditadamente no seu país de origem». 191 101 Casanova, ao falar de Gangotena, o confunde provavelmente com Jules Supervielle afirmando que viveu no Uruguai192 e o categoriza como «colonizado» por «plegarse a la lengua de los otros, los colonizadores, sus amos 193», e pelo conflito linguístico onde «su lengua materna es la humillada194» (CASANOVA apud BURNEO, 2005, p. 66). O termo não pode ser atribuído ao poeta, já que a condição aristocrática e a posição no meio parisiense não cabem na designação. Porém, o termo «transnacional» se aplica melhor pela hibridez que designa o termo. O escritor chega a Paris, capital da «República sem fronteiras ou limites, pátria universal isenta de qualquer patriotismo [...] lugar transnacional cujos únicos imperativos são os da arte e da literatura: a República Universal das Letras» (CASANOVA, 2002, p. 47). Como poeta «transnacional», Gangotena viveu o espaço da unificação internacional, permitindo que escrevesse a partir de uma posição mais livre e acolhida em francês, o que não pode ser negado. Diferente dos poetas abordados, que se entregaram a um sistema literário, ou ambos, deve-se considerar que a condição em trânsito de Gangotena implicou pertencer clandestinamente às identidades literárias. A extraterritorialidade da sua poesia consegue habitar a República Universal das Letras tanto em francês quanto em espanhol. O esforço dos gangotenistas, tanto hispano-americanos como franceses, têm, em grande medida, desvendado as sombras da crítica que o impugnou como afrancesado, estrangeirista e alheio à cultura nacional. Porém, cabe destacar que tanto os escritores contemporâneos ao poeta como os críticos e gangotenistas atuais, que decidiram abordar a obra a partir da apologia do verso sobre a identidade e o bilinguismo, também apresentam uma articulação de francesismo, francofilia e bilinguismo. A possibilidade de ler Gangotena nas duas línguas abre a compreensão de sua obra, e as circunstâncias de seu estudo também levam a outras diretrizes. Castillo-Berchenko realizou seu estudo de Gangotena na França, podendo configurar o círculo literário parisiense no período que o poeta habitou o cosmopolitismo. Carvajal conseguiu esboçar as influências intelectuais do poeta em relação à religiosidade desde o entendimento do barroquismo e misticismo andino. Burneo trabalhou sobre a tradução dos versos e a condição bilíngue. Este trabalho propôs uma aproximação à crítica sobre ele, tanto em francês como em espanhol. 192 Este erro biográfico de Gangotena na obra de Casanova já tem sido mencionado por Burneo. Dobrar-se à língua dos outros, dos colonizadores, os seus amos. 194 Sua língua materna é humilhada. 193 102 Parece que ser bilíngue abre as portas e amplia a compreensão do poeta, por isso Carvajal afirma que a edição crítica de Gangotena deveria ser bilíngue (CARVAJAL, 2005, p. 89). A possibilidade de «domesticar» a obra parte da compreensão de trânsito, ir além do entorno nacional para entender o poeta transatlântico e compreender os diálogos estéticos entre sistemas literários. Os poetas e escritores bilíngues são de difícil categorização, devido às particularidades da aquisição da outra língua, das decisões de escrever nela, de se pensar através dela e de aderir ou não às identidades literárias. O escritor transatlântico e bilíngue constrói, além de seu universo literário próprio, um caminho de destinos, opções e escolhas que os definem no mundo literário para serem analisados individualmente. As agrupações, como a de Casanova, riscam em generalizálos. 103 4 OUTRAS CONSIDERAÇÕES 4.1 TENTATIVAS DE TERRITORIALIZAÇÃO DE GANGOTENA Até aqui tem sido analisado e exposto o desconcerto do bilinguismo, a assimilação do equatoriano que escreveu em francês, o deslocamento, o trânsito transatlântico, a posição tomada frente às vanguardas, e a não aderência contundente a uma corrente literária. No entanto, quando o realismo social perdeu seu ímpeto controlador sobre as letras equatorianas, a obra de Gangotena começou a tomar outros matizes dentre os críticos que tinham uma abertura para incorporar seus versos dentro da literatura nacional. Tal como Carrera Andrade tivesse insistido, iniciaram-se as tentativas de domesticar não só Tempestades, mas também a obra escrita em francês. Por esta razão, é importante rever aquelas novas interpretações que se deram de Gangotena em alguns críticos que tentaram territorializar seus versos, muitas vezes forçando as categorizações e cometendo desacertos. O trabalho de Burneo descreve a introdução de Gangotena na literatura equatoriana. Em 1946, dois anos depois da morte do poeta, Eduardo Riofrío realiza a primeira tradução de dois fragmentos de Absence. Em 1951, Carrera Andrade traduz «Carême» e os apresenta em Letras del Ecuador. A versão dele contém cinquenta e cinco versos a menos que o original, de 209 versos como consta na edição de Couffon. Neste mesmo ano, Carrera Andrade também publica Poesía francesa contemporánea, colocando Gangotena dentro dela. Em 1945, a Casa de la cultura ecuatoriana anuncia a preparação de uma edição bilíngue da obra, mas não é até 1956 que se publica Poesia, com as traduções de Gonzalo Escudero e Filoteo Samaniego (2005, p. 58-65). Observase que Poesia, a primeira tradução da obra completa de Gangotena, ocorre doze anos depois de sua morte. Poderia-se pensar que isto significou a verdadeira introdução dele no panorama literário equatoriano, mas, como afirma Burneo, os anos noventa são os que constituem «un reconsiderar la figura de Alfredo Gangotena y una puesta en circulación de su obra195» (2005, p. 71), já que, em 1990, Jorge Enrique Adoum incorpora uma tradução completa de «Cuaresma» em Poesia viva del Ecuador − siglo XX −, em 1991 e 1992, Claude Couffon edita a obra dele em dois volumes; em 1991, 195 Uma reconsideração da figura de Alfredo Gangotena e sua obra colocada em circulação. 104 Castillo de Berchenko publica sua tese doutoral sobre Gangotena; e, em 1998, Carvajal publica «Alfredo Gangotena, poeta del extrañamiento», em Hispanoamérica. Existe um lapso de quatro décadas desde a publicação de Poesia, em 1956, até os anos noventa, quando começa a se falar verdadeiramente de Gangotena, quer dizer, abordar sua obra e interpretá-la. Porém, neste lapso existem menções sobre Gangotena dentro da literatura equatoriana, mas sem uma análise extensa de sua produção poética. A territorialização dele começou a ser possível, mas com certas contradições. Incluir o poeta no contexto significava, de certa maneira, traçar semelhanças com seus contemporâneos, e terminou por se forçar a interpretação de alguns de seus versos como pertencentes às correntes literárias do momento. E ainda hoje ele é por vezes catalogado como posmodernista ou vanguardista equatoriano, o que também gera um conflito, já que a ambiguidade de sua obra deixa a dúvida. Por este motivo, pretende-se compreender melhor estas tentativas de territorialização dele nas letras equatorianas. O posmodernismo, como se estabeleceu anteriormente na definição de Encalada, agrupa a maioria dos poetas nascidos no começo do século XX, mas também agrupa os ismos das vanguardas com o sentido rítmico e musical que vinha do modernismo (2007, p. 57). O jogo de ismos se refere àqueles vanguardismos europeus e hispanoamericanos, dando prioridade à cor local da equatorianidade. Isto permitia que os posmodernistas continuassem com o deseo de mundo dos modernistas, adquirindo o cosmopolitismo, mas com a possibilidade de se circunscrever à localidade. Este movimento teve uma dupla capacidade, aquela de ter a aceitação do realismo social pelo compromisso de pertencer ao Equador, e aquela de se introduzir no internacionalismo. Assim, podia-se dialogar com o surrealismo, o dadaísmo e o futurismo, do centro, mas também com o telurismo, o indigenismo, o altruísmo, o creacionismo ou o estridentismo, da periferia. Visto que uma intencionada localidade não se evidenciou em Gangotena, a consideração de posmodernista provoca debate e não é capaz de acolher o poeta totalmente. O termo serve para agrupar o poeta dentro da data de nascimento junto com seus contemporâneos, mas não para atribuir o diálogo transatlântico de vanguardas. Certamente, existiu uma forçada tentativa de ver os Andes de Gangotena, por exemplo, como símbolo de localidade, permitindo uma interpretação do diálogo transatlântico, mas cometendo o erro de lhe assegurar um hispano-americanismo que não lhe pertenceu totalmente. O crítico Agustín Cueva, por exemplo, que representava uma nova crítica afastada da fervura da situação sociopolítica do Equador, olhando com distanciamento o transcorrido realismo social, posicionou Gangotena dentro dos poetas 105 posmodernistas que publicaram na década de 1930, e que contribuíram ao «descubrimiento y mise en valeur de lo nacional196» (1992, p. 62), do mesmo jeito que a narrativa. E, ao se referir a ele, escreveu: «quien escribe en francés la mayor parte de su producción, que posee, sin embargo, una fuerza telúrica muy americana197» (1992, p. 64). Por um lado, o francês deixou de ter uma carga acusatória sobre Gangotena, mas, por outro, resgatou um suposto hispano-americanismo quando, como foi visto, o telurismo pôde ser associado, mas sem predominar. No fragmento «V» de Absence, por exemplo, Gangotena se expressou novamente sobre os Andes a partir de sua intimidade: O Terre ! Terre trois fois maudite, cette foi-ci, ô Terre ! je te contemple animé de toute la haine dont mes yeux seront un jour capables Depuis qu’on m’a sournoisement parlé de mon malheur,198 [...] (GANGOTENA, «V», 1992, p. 118) O telurismo, que se refere à força que exercem o solo e a terra sobre o indivíduo, não se apresenta intencionalmente comprometido com o nacional. Mais prevalece a lassidão, a angústia e a melancolia do poeta, rodeado de pessimismo. Novamente, podem se encontrar rasgos telúricos, mas afirmá-los seria forçado. Ele experimenta os Andes a seu modo, deixando de lado as regulações ideológicas de uma estética. Portanto, chamar Gangotena de posmodernista responde à categorização de data de nascimento, mais do que por compartilhar características literárias com seus contemporâneos. Por outro lado, em oposição a esta tentativa de territorialização, e argumentada a condição de afrancesado, interpretou-se que os Andes representaram o isolamento e o tédio que lhe impôs o retorno de Paris. Por este motivo, a descrição de «Terra maldita» [Terre maudite] se viu como uma aberração dele ao entorno provincial e marginal de Quito, mas o «ódio» [haine] com que o poeta observou o andino se originou desde que tivesse sido avisado de seu «infortúnio» [malheur], o que faz entender que a causa não residiu na «Terre», mas em seus estados neurastênicos. No mesmo fragmento, concluiu: «Mais non ! voici, je me souviens : / Je suis venu vers toi, de loin, comme un cadavre, / 196 Descobrimento e mise en valeur do nacional. Quem escreve em francês a maior parte de sua produção, que possui, no entanto, uma força telúrica muito americana. 198 Ô Terra! Terra três vezes maldita, desta vez, ô / Terra! Contemplo-te animado com todo o ódio / que meus olhos serão um dia capazes. / Desde quando fui avisado insidiosamente de meu infortúnio, / [...] A palavra «animé» figura como masculino na versão original em francês editada por Claude Couffon, mas em Poesía, a tradução ao espanhol aparece como «animada», no feminino. 197 106 Terre Horrifique, te retrouver !199» (1992, p. 120). Voltar como um «cadáver» [cadavre] de Paris denota o tormento existencial que trabalhou desde seu início poético, tornando importante resgatar o exílio interior de Gangotena, sem importar o espaço ou a língua de onde se expressasse, já que este foi o fator que incrementou seu exílio literário. Ele aquiesceu os Andes desprendido do compromisso universalista da localidade, e, ao mesmo tempo, habitou o cosmopolitismo parisiense sem tornar o deseo de mundo em uma desesperada vontade de se inserir no centro, já que ele conseguiu aquilo sem se afiliar expressamente a uma vanguarda ou ao círculo literário parisiense. Em 1929, Gangotena recebeu uma carta de Jean Laboise, amigo da Escola de minas, onde este lhe expressa o afeto e a lembrança do tempo compartilhado em Paris, além das impressões que tem do poeta no retorno à Quito: Je ne sais pas quand nous nous reverrons, ni même si nous nous reverrons un jour, en France ou en Amérique, mais je tiens quand même à rester en contact avec toi en souvenir des bons moments passés au 60 du Boulevard Saint Michel. Je pense que tu dois être heureux d’avoir revu ton cher Équateur où tu dois faire figure de grand homme en tant qu’ingénieur français et aussi de poète car j’ai vu tu n’avais pas reconcé à ton violin d’Ingres. 200 (LASSUS, 2014, p. 208) E posteriormente explica sua situação e desejo de sair do norte da França ao sul, ou a outros países, incluindo a América do Sul, a Colômbia ou o Equador: Quant à moi je cherche actuellement une situation intéressante et ce n’est pas très facile à trouver. Je suis rentré il y a quelques semaines d’Algérie, où j’ai fait mon service militaire, en Constantine, [...]. Peut-être y retournerai-je pour travailler car je ne peux plus vivre sans soleil et le climat actuel du Nord de la France, m’est particulièrement désagréable ; à moins que je ne parte vers des pays encore plus inconnus pour moi et que je ne tente fortune en Amérique du Sud où paraît-il il y a beaucoup à gagner, en Colombie, par example. Si tu entendais parler de quelque chose de très intéressant en Équateur, je crois que je n’hésiterais pas à m’expatrier quelques années, car tu m’as tellement vanté les charmes de ton pays que j’ai la tentation de le connaître, ce qui me procurerait en outre le plaisir de t’y retrouver. 201 (LASSUS, 2014, p. 208) 199 Mas não! agora lembro: / Tenho vindo até você, de longe, como um cadáver, / Terra Horripilante, a te reencontrar! 200 Não sei quando voltaremos a nos ver, nem se voltaremos a nos ver um dia, na França ou na América, mas quero ficar em contato com você em lembrança dos bons momentos que passamos no número 60, Boulevard Saint Michel (Trata-se do endereço da Escola de Minas em Paris). Imagino que você deve estar feliz de ter voltado a seu querido Equador, onde você figurará como um grande homem como engenheiro francês e também poeta, já que tenho visto que você não tinha renunciado a teu «violino de Ingres». 201 Quanto a mim, agora procuro uma situação interessante e não é fácil encontrá-la. Voltei da Argélia faz duas semanas, logo após fazer lá meu serviço militar, em Constantina, [...]. Talvez volte para trabalhar lá pois já não posso viver sem sol e o clima atual do Norte da França me resulta particularmente desagradável. A menos que parta a países ainda mais desconhecidos para mim ou tente a sorte na América do Sul, onde parece que há muito a ganhar, na Colômbia, por exemplo. Se você souber de algo 107 A tentação que sentiu Laboise por se expatriar no Equador responde às referências que obteve de Gangotena em Paris, que, ao que parece, se vangloriou dos «encantos» de seu país. Consequentemente, as interpretações de aversão dos Andes na figura do poeta não podem ser concludentes, já que não pode se saber o verdadeiro sentimento do poeta. As aproximações a Gangotena causam diversas interpretações, o que se deve não só às dificuldades da categorização, do bilinguismo ou da ataviada linguagem, mas à carência de um registro do poeta mesmo ou entrevista, que explique uma hermenêutica de seus fins líricos. Portanto, afirmar uma territorialização completa dele nas letras equatorianas encontrará vicissitudes. As ambiguidades abundam sobre a obra de Gangotena, não só sobre a recepção, mas sobre sua posição quando escreveu em cada língua. Outra tentativa de territorialização dele aparece quando a escrita em francês encontra rasgos hispanoamericanos, e vice-versa. Sem dúvida, existe uma convivência do poeta nas duas línguas, sem importar em qual se expressasse, mas tomar os impulsos de equatoriano ou de francês para se apropriar dele resultam em uma ação forçada: [...] A lo largo de su poesía, los Andes toman la forma de una tierra maldita, de la incomprensión o de la nada, pero aparecen siempre, sobre todo en la poesía en francés. Al mismo tiempo, su poesía en español está poblada de galicismos y giros enrarecidos por la sintaxis francesa. Por ello, las idas y vueltas de Gangotena en su propia poesía ponen en evidencia una escritura que, en ocasiones, es doble, no termina de ser española o francesa, si no que se va configurando en un espacio intermedio, de ahí que desaparezca la idea de original en la autotraducción […]202 (BURNEO, 2012, p. 78). A presença dos Andes na poesia em francês de Gangotena indetermina a possibilidade de ser um vanguardista francês, mas a interferência do francês em sua escrita em espanhol também impede a consideração dele como equatoriano. A sintaxe do francês em espanhol se encontra, por exemplo, no fragmento «IV» de Tempestad secreta, onde escreveu «No pudo menos que se exclamar: ¡desolación, desolación!203» (2015, p. 167). Em espanhol, o pronome possessivo «se» nesta frase pode caber de duas interessante no Equador acho que não duvidarei em me expatriar por uns anos. Você tem se vangloriado tanto comigo dos encantos de seu país que tenho a tentação de conhecê-lo, o que me daria, ao mesmo tempo, o prazer de te ver novamente. 202 Ao longo de sua poesia, os Andes tomam a forma de uma terra maldita, da incompreensão e do nada, mas aparecem sempre, sobretudo na poesia em francês. Ao mesmo tempo, sua poesia em espanhol está povoada de galicismos e giros enrarecidos pela sintaxe francesa. Por isso, as idas e voltas de Gangotena em sua própria poesia colocam em evidência uma escrita que, por vezes, é dupla, não termina de ser espanhola ou francesa, mas que vai se configurando em um espaço intermediário, daí que desapareça a ideia de original na autotradução. 203 Não pôde menos que se exclamar: desolação, desolação! 108 formas: «No se pudo exclamar [...]» ou «No pudo exclamarse [...]», sendo impossível antes do verbo no infinitivo. Esta mudança vem da interferência do francês «s’exclamer». Isto se repete em outra estrofe do mesmo verso: «Que se exclamar a todo ámbito: ¡desolación, desolación!», onde também a parte «a todo ámbito» causa estranheza em espanhol, sendo mais relacionada com as expressões do francês que formam «à tout». Esta característica de escrita dupla que Burneo aponta, sem terminar sendo espanhola ou francesa, justifica uma leitura indefinida da identidade nos versos de Gangotena em qualquer um dos dois idiomas, seja o original em francês ou em espanhol, ou sua correspondente tradução. Aqui, destaca-se a autotradução de Gangotena dos fragmentos XVI e XVII em espanhol de Absence, que passaram ao francês posteriormente em «Jocaste». O próprio traslado de uma língua a outra fez com que o poeta mesmo tivesse a consciência da ambiguidade da identidade linguística de sua produção. Este ato representa a convivência bilíngue, habitando fora das línguas e usando-as como uma ferramenta, como se fossem um recurso, mais do que o refúgio em um sistema literário. Tendo em vista estas contrariedades que exercem a territorialização de Gangotena, se um adjetivo de ligação a uma estética convém, este seria o de vanguardista no sentido amplo da definição, quer dizer, pela ruptura com os modelos preestabelecidos e por compor novas formas de experimentar a poesia. Qualquer outra tentativa de agregar um adjetivo, conferindo a especificidade de um ismo, do centro ou da periferia, como principal em sua obra, levaria novamente à indefinição. Os principais críticos da obra gangoteneana concordam em partir da condição de «trânsito» para sua territorialização. As considerações de «vivir-entre-dos» de Castillo de Berchenko, a escrita «doble» de Burneo, o «extrañamiento» de Carvajal e o «hermetismo» de Virginia Pérez conduzem Gangotena dentro de um espaço deslocado. Portanto, uma territorialização de Gangotena é possível, sempre que a condição de «trânsito» seja valorizada, permitindo que as ambiguidades convivam sem gerar tensões maniqueístas. Ele pertenceu aos sistemas literários do Equador e da França, sem a intencionalidade de estar incluso totalmente neles. Isto faz com que o hispanoamericanismo de seus versos, quando escreveu em francês, tenham valor para um leitor equatoriano, da mesma maneira que o galicismo, quando escreveu em espanhol, para um leitor francês. 109 4.2 PUBLICAÇÕES E REJEIÇÕES NO EQUADOR É necessário entender que o mercado editorial no Equador apresentava dificuldades, e, em consequência, as publicações. Ver uma obra impressa era um obstáculo para um poeta e escritor equatoriano. A obra de Gangotena foi publicada apenas em 1956, onze anos depois que a Casa de la Cultura Ecuatoriana anunciasse a edição bilíngue. Pode-se atribuir a isto a rejeição que experimentou e os longos anos que deveriam ter passado para dar uma outra opinião de sua obra, mas este caso não é o único. Vários de seus contemporâneos experimentaram as vicissitudes de publicar suas obras. Por exemplo, a divulgação dos modernistas equatorianos se dava em revistas, onde eles dirigiam e colaboravam. A primeira revista que entra em cena no século XX foi Letras, de Quito, em 1912. Posteriormente, apareceriam na mesma cidade Apolo, em 1914; La idea, em 1917; Caricatura, em 1918; e Frivolidades, em 1919204; e em Guayaquil, Renacimiento, em 1916; e Patria, em 1918. Nelas participaram um grande número de colaboradores e figuras literárias equatorianas, das quais permaneceram o registro dos poetas da Generación decapitada como os mais altos representantes. A data de fundação de Letras diverge das datas de publicação dos decapitados. La flauta del ónix de Arturo Borja apareceu em 1920, oito anos depois de sua morte; El laúd en el valle, de Humberto Fierro, e Romanza de las horas, de Ernesto Noboa y Caamaño, foram publicados em 1919 e 1922, respectivamente. Medardo Ángel Silva dirigia a revista Renacimiento, mas El árbol del bien y del mal foi publicado em 1918. Campaña considera que o período modernista equatoriano se tratava de um grupo de sessenta ou mais poetas, ensaístas, comentaristas e divulgadores, sendo os decapitados os grandes expoentes do movimento, mas não o verdadeiro rosto do modernismo (2012, p. 19). Há um abismo de nomes que poderiam ser estudados atualmente, mas o frágil sistema editorial equatoriano tem provocado o esvanecimento desta possibilidade. Frente a esta situação de precariedade na impressão e difusão de obras literárias, que constituía um impedimento para os poetas, não é estranho entender a vontade de Silva por publicar Trompetas de oro em Madri, além da internacionalização, e tampouco é estranho interpretar o porquê Gangotena continuou escrevendo em francês depois de seu retorno, e por que demorou vários anos para 204 Outras revistas como El sol, em 1925; América, em 1925; e Claridad, em 1926, apareceram na década seguinte. 110 retornar ao espanhol. Talvez o poeta era consciente desta precariedade e preferia se manter no meio literário parisiense, onde já tinha ganhado um espaço. A sorte das obras do escritor Miguel Ángel Corral é outro caso que provoca assombro. Ele publicou duas novelas, Voluptuosidad e Las cosechas, enquanto trabalhava na França como diplomata. A primeira não teve maior relevância, mas a última ganhou um concurso de novelas hispano-americanas organizado pela revista Mundial, em Paris, em 1914, onde o jurado era Rubén Darío. A obra ficou inédita até os anos setenta, quando a Casa de la Cultura Ecuatoriana assumiu sua publicação (HAYEK, 2002, p. 114-115). A divulgação de obras era uma tarefa difícil, já que não existiam órgãos estatais que tomassem a liderança do desenvolvimento cultural. O mesmo Jorge Carrera Andrade, que alcançou um amplo reconhecimento e valorização, afirmou em 1929: «El escritor vive una existencia heroica en nuestro medio. Sabe que sus obras no tendrán editor ni comprador...205» (apud OJEDA, 2007, p. 14). O mesmo poeta ou escritor tinha que procurar os meios, muitas vezes de seu próprio bolso, para consegui-lo. E em ocasiões, devia-se cruzar as fronteiras, como o realista social Alfredo Pareja Diezcanseco, que publicava suas obras em Santiago do Chile e em Buenos Aires desde 1935. Torna-se importante, portanto, levar em consideração este fator sobre a apreciação de Gangotena. A chegada em Quito implicou um entorno novo para ele, devido à longa ausência de oito anos e às mudanças sociais e políticas do país, mas as possibilidades para se fazer conhecer abismaram ainda mais sua recepção. Permanece a dúvida do que teria acontecido com Gangotena se ele tivesse tido melhores condições no meio literário equatoriano em seu retorno. O hermetismo dos intelectuais equatorianos resume, em grande medida, o estudo de Gangotena, entendendo que sua obra estava adiantada às regulações literárias da época. No entanto, seu caso não foi o único. Os mesmos realistas sociais do Grupo de Guayaquil, que escreveram Los que se van, sofreram a rejeição: La publicación de este libro produjo dentro del país considerable revuelo. En general, fué mal recibido. Se acusó a la obra de excesiva crudeza, de lenguaje brutal y de exageración en la pintura de los caracteres y de las pasiones. […] De inmediato se tildó a la literatura que hacían los autores del discutido libro, como el producto de un plan político, que buscaba producir escándalo internacional, el desprestigio de nuestro medio retrasado, revelando imprudentemente detalles vergonzosos de la explotación del hombre campesino y describiendo a éste como una especie de subhombre movido por 205 O escritor vive uma existência heroica em nosso meio. Sabe-se que suas obras não terão editor nem comprador. 111 la lujuria, los celos, el alcohol, y a ratos, por el instinto homicida. […]206 (ROJAS, 1948, p. 185) A nova estética que eles lançavam ingressou como uma transgressão. O reconhecimento e os aplausos chegaram do estrangeiro, situando os escritores desta geração como uma original proposta que devia continuar sendo trabalhada. Eventualmente, um novo caudal de escritores, ensaístas e críticos aderiam ao projeto, estabelecendo a direção deste movimento com autoridade sobre as letras equatorianas. A obra Huasipungo, de Jorge Icaza, que guarda um valor canônico, também teve a mesma sorte. A linguagem descarnada deste romance «fue objeto de severas críticas y hasta explicaciones oficiales: la miseria del aborigen jamás había escandalizado a los explotadores, pero el que se la denunciara les pareció un caso de alta traición a la patria… […]207» (CUEVA, 1992, p. 59); mas terminou se instaurando favoravelmente graças à tendência estética que regia. Outro caso excepcional, que pode se considerar com uma sorte similar à Gangotena, é o escritor Pablo Palacio. Suas obras Un hombre muerto a puntapiés e Débora, ambas de 1927, eram alheias ao realismo social. A qualidade narrativa do escritor se orientava pelas vanguardas, pelo psicologismo e pela experimentação, características que causaram estranheza em seus contemporâneos. Joaquín Gallegos Lara se referiu a ele da seguinte maneira: Pablo Palacio con unas [...] cualidades de satírico-socialista utilizadas en su primer libro Un hombre muerto a puntapiés (1927) –libro para el cual la realidad no es una nebulosa– empezaba pulverizando sus ácidos con una regular puntería. Se esperaba que la afinase. Creíamos que llegaría a meter en su literatura la cantidad indispensable de análisis económico de la vida para darse cuenta de contra quién debía dirigir sus tiros. Pero nuestro tirador se pasó de inteligente. […] Disparó contra todos y contra sí mismo. De tal manera no llega a acertarle a nadie en la ofensiva novela recién publicada […] Pablo Palacio no ha podido olvidar su mentalidad de clase, que tiene un concepto mezquino, clownesco y desorientado de la vida, propia en general de las clases medidas cuya existencia niegan los interpretadores autóctonos de la realidad americana.208 (GALLEGOS apud RIVAS, 2007, p. 107) 206 A publicação deste livro produz dentro do país considerável agitação. Em geral, foi mal recebido. Acusou-se a obra de excessiva crueza, de linguagem brutal e de exagero na pintura dos personagens e das paixões. [...] De imediato, a literatura que faziam os autores do discutido livro foi marcada como o produto de um plano político, que procurava produzir escândalo internacional, o prestígio de nosso meio atrasado, revelando imprudentemente detalhes vergonhosos da exploração do homem campesino e descrevendo este como uma espécie de subhomem movido pela luxúria, pelos ciúmes, pelo álcool, e por momentos, pelo instinto homicida. 207 Foi objeto de severas críticas e até tinha explicações oficiais: a miséria do aborígene jamais tinha escandalizado os exploradores, mas que tivesse sido denunciado lhes pareceu um caso de alta traição à pátria. 208 Pablo Palacio com umas [...] qualidades de satírico-socialista utilizadas em seu primeiro livro Um hombre muerto a puntapiés (1927) – livro para o qual a realidade não é algo nebuloso − começava 112 Palacio foi criticado por não saber «contra quem disparar», em outras palavras, por não escrever segundo os requerimentos dos realistas sociais, os interpretadores autóctones da realidade nacional, e pela suposta origem burguesa − «su mentalidad de clase»209. Pouco importou que ele tivesse participado da fundação do Partido Socialista del Ecuador. Os limites de assimilação eram estritos, e qualquer desvio do caminho significava a desestima. Foi necessário esperar até 1964, como afirma Fernández (2012, p. 9), para que sua obra começasse a ser resgatada. O reconhecimento de sua obra chegou de outros autores e lugares, como do chileno Vicente Huidobro, do argentino Roberto Arlt e do peruano César Vallejo. Nem a valorização que deu Benjamín Carrión, escritor equatoriano comprometido com a localidade e primeiro presidente da Casa de la Cultura Ecuatoriana, serviu para introduzir sua obra com o correspondente merecimento. A rejeição e o hermetismo dos circuitos literários tratam o caso de Gangotena como uma recôndita excepcionalidade. No entanto, isto demostra que houveram fatores externos que também prejudicaram seus contemporâneos. A precariedade da produção editorial limitava a divulgação de obras, e a reprovação da estrita crítica também se espalhou sobre outros escritores. Em consequência, o retorno de Gangotena ao espanhol com Tempestad secreta no final de sua vida deveria considerar esta condição, que resultou em uma obra sem repercussão editorial e desalinhada com o pensamento do período. pulverizando seus ácidos com uma regular pontaria. Esperava-se que a afinasse. Acreditávamos que chegaria a meter em sua literatura a quantidade indispensável de análise econômica da vida para se dar conta de contra quem devia dirigir seus tiros. Mas nosso atirador se passou de inteligente. [...] Disparou contra todos e contra si mesmo. De tal maneira não chega a acertar ninguém no ofensivo romance apenas publicado [...] Pablo Palacio não tem podido esquecer sua mentalidade de classe, que tem um conceito mesquinho, clownesco e desorientado da vida, própria em geral das classes médias cuja existência negam os interpretadores autóctones da realidade americana. 209 Sua mentalidade de classe. 113 CONCLUSÕES A poesia de Alfredo Gangotena permaneceu por longo tempo invisível nas letras equatorianas. O ressurgimento e interesse por estudar sua obra marcou a análise de críticos por tratar o conteúdo de seus versos, o bilinguismo, o deslocamento de Quito a Paris e as condições que desfavoreceram sua recepção. Este trabalho decidiu se desviar e contextualizar o poeta dentro da literatura equatoriana desde as relações com a literatura francesa, já que esta foi a principal crítica que desfavoreceu sua obra. Compreender melhor como operava a francofília universal no modernismo hispano-americano e equatoriano, guiado pelo deseo de mundo, serviu para mostrar que a influência da literatura francesa regia fortemente sobre os cenáculos intelectuais do período. Gangotena habitava o cosmopolitismo, algo que qualquer poeta modernista teria desejado para ampliar seus horizontes estéticos. A ênfase que se coloca no julgamento acusatório sobre Gangotena por ter escrito em francês perde valor frente a dependência modernista pelo parnasianismo e simbolismo franceses. O debate que surgiu desde os críticos e escritores da cultura pré-nacionalista em detrimento de Rubén Darío e os decapitados analisou a gênese do antifrancesismo que se formulou para receber Gangotena posteriormente. Isto era fundamental para aportar com o caso do poeta, já que existia certo vazio na interpretação do consolidado realismo social que o rejeitou. A proposta se fixou em ir além e rever a gênese do pensamento ideológico que orientava os novos escritores e poetas comprometidos com a denúncia social. Sugerir uma nova posição desde as articulações de francesismo, frente aos termos desenvolvidos pela crítica do centro e da periferia, serviu não só para apagar as tensões que impõe a poesia de Gangotena, mas também para permitir um contraste mais justo com seus contemporâneos, quem recorreram à literatura francesa, incluso com mais intensidade do que o poeta, escrevendo em espanhol. Ao mesmo tempo, isto questionou a escrita em francês de Gangotena como se fosse o único parâmetro de francesismo. Partir do modernismo se justifica nas semelhanças que o poeta teve com os decapitados, por compartilhar a relação de intimidade com a produção poética e a 114 angustia existencial. Encontrar como em certas temáticas poderiam se relacionar com Medardo Ángel Silva concede a Gangotena uma revalorização importante, já que esta aproximação retira em grande medida a estranheza que governa sobre ele. Tratar a bifurcação da prosa e do verso na literatura equatoriana na década de 1930, expondo como se circunscreveram à localidade, considera a continuidade do deseo de mundo nos posmodernistas, fazendo com que mantivessem o interesse por se inserir no centro, e compreendendo, mais uma vez, que a vanguarda de Gangotena outorga a possibilidade de diálogo com seus contemporâneos deste período. Por esta razão, nestas relações estéticas transatlânticas, o foco se centrou em analisar como Carrera Andrade e o poeta enfrentaram o trânsito. A multiplicidade de cenários frente ao processo de assimilação das vanguardas determinou que a aderência fosse fundamental para ser apreciado. A comparação com Supervielle revê os panoramas literários, que construíram uma flexibilidade frente à francofilia universal. O contexto social e político Equador estabeleceu uma geração intelectual oposta a influência estrangeira, diferente do Uruguai, onde a composição migratória permitiu que Supervielle e outros escritores pudessem manter uma relação com a Europa, sem ser sentenciados por aquilo. Também, entendeu-se que pertencer a um sistema literário depende do sentimento de afinco, além de se inserir numa estética. A análise das tentativas de territorialização de Gangotena dentro da literatura equatoriana reconhece o valor da crítica que se interessou por dar um valor a sua obra. No entanto, examinou como a intenção por se apropriar de seus versos terminou por forçar os rastros hispano-americanistas, equatorianos e franceses, que se encontravam escondidos dentro de sua privacidade lírica. Compartilhar a rejeição com outros escritores como Pablo Palacio, além da precariedade da divulgação editorial de seu tempo no Equador, contempla uma melhor compreensão de Gangotena. A escrita em francês e a origem aristocrática não foram os determinantes da rejeição necessariamente, mas o vigor da crítica nacional por não assimilar as obras desligadas do propósito que defendiam, além da falta de apoio para publicar. Todas estas questões foram propostas com a intenção de aportar com um entendimento mais amplo sobre a obra de Gangotena, procurando espaços ainda não abordados pelos críticos mais relevantes sobre ele. No desenvolvimento deste trabalho, percebe-se a vontade por dar uma interpretação mais indulgente ao caso do poeta, 115 tentando minorar os julgamentos que o afastaram da literatura nacional. A condição em trânsito deveria ser, então, o início de qualquer entendimento de seus versos, permitindo que possa conviver nos espaços, sem gerar uma tensão por forçar uma completa aderência ao hispano-americanismo ou à França. O problema da estante que revelou o desejo e o interesse por estudar Gangotena tem continuado conforme este trabalho avançava. A pequena biblioteca que se construiu durante os estudos de mestrado mantinha uma organização. Uma parte classificava os livros em português que foram lidos durante as aulas; outra a literatura equatoriana, dividindo entre obras e crítica; outra a literatura uruguaia com as obras de Supervielle, seguido dos livros de crítica literária hispano-americana; e uma pequena seção com autores franceses. A poesia de Gangotena ocupou diferentes posições. Quando compartilhava o espaço com a coleção Antares de obras equatorianas, surgia uma inquietação por pensar no que opinariam Jorge Icaza, Benjamin Carrión ou Jorge Enrique Adoum; se seria considerado uma transgressão este ato. Por um momento também foi colocado junto com Los raros e Azul de Rubén Darío, onde imaginava que este o felicitaria por ir além no diálogo com a francofilia universal. Em outra ocasião se encontrava fazendo companhia às obras de Jules Supervielle, fantasiando com a leitura de Gangotena de Voleur d’enfants, obra que serviu para lhe dedicar o poema «Voleur». O poeta equatoriano não tem uma estante específica, ele transita entre as categorizações, provocando o desconcerto pela necessidade de fixar seus versos dentro de uma corrente ou uma identidade. Esta indefinição dele provoca o interesse, o deslumbramento, mas também o tédio e, por vezes, a frustração. Entrar neso universo de Gangotena propõe um constante itinerário de mudanças para o leitor devido ao trânsito, e deveria ser esta condição a que guie sua valorização. 116 REFERÊNCIAS ARAUJO SÁNCHEZ, D. Poetas del modernismo. In: PAZOS BARRERA, J. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república 1895-1925. Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina, v. IV, 2002. p. 61-76. AYALA, E. Historia de la revolución liberal ecuatoriana. Quito: Corporación editorial nacional, 2002. BÁEZ, M. Pictura et poiesis: la transcodificación en la poesía de Medardo Ángel Silva. Kipus: revista andina de letras, n. 20, p. 177-188, 2006. BALSECA, F. El pensamiento de Jorge Carrera Andrade. Kipus: revista andina de letras, Quito, v. 15, p. 27-44, 2002-2003. _____. El modernismo de la capital y su diálogo con la lírica portuaria. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, sede Ecuador, 2003. _____. Subjetividad y adolescencia en la poesía de Medardo Ángel Silva. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, sede Ecuador, 2003. BENEDETTI, M. Literatura uruguaya siglo XX. Buenos Aires: Américalee, 1963. BLOOM, H. Anxiety of influence: a theory of poetry. New York: Oxford University, 1973. BORGES, J. L. Anatomía de mi ultra. Ultra, Madrid, n. 11, p. 493, Maio 1921. BURNEO, C. Alfredo Gangotena y la traducción: una mirada. Quito: [s.n.], 2005. _____. Amistad y traducción en la construcción biográfica de Alfredo Gangotena. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador; Corporación Editora Nacional, 2012. CAMPAÑA, M. Estudio introductorio. In: VALLEJO, E. La generación decapitada. Silva, Fieroo, Borja y otros. 2a. ed. Quito: Libresa, 2012, p. 7-33. CARRERA ANDRADE, J. Destino de la poesía ecuatoriana de nuestro tiempo. Kipus: revista andina de letras, Quito, v. 15, p. 247-255, 2002-2003. _____. «Después de llover». La guirnalda del silencio. Quito: Imprenta nacional, 1926, p. 9. _____. «El camarada parte de la tierra natal». La guirnalda del silencio. Quito: Imprenta nacional, 1926, p. 43-44. _____. «El hombre bajo la torre Eiffel». Obra poética, editado por Raúl Pacheco y Javier Vásconez. Quito: Ediciones Acuario, 2000, p. 227-228. 117 _____. «Saludo de los puertos». Obra poética, editado por Raúl Pacheco y Javier Vásconez. Quito: Ediciones Acuario, 2000, p. 221-222. _____. «Epístola a Francis Jammes». La guirnalda del silencio. Quito: Imprenta nacional, 1926, p. 8. _____. «La casa del poeta». Estanque inefable. Quito: Imprenta de la Universidad Central, 1922, p. 13. _____. «Los amigos del paseo». Estanque inefable. Quito: Imprenta de la Universidad Central, 1922, p. 57. CARRIÓN DE FIERRO, F. José de la Cuadra: del realismo social al realismo mágico. In: VÁSQUEZ, J. D. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república 1925-1960. Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina, v. VI, 2002, p. 123-157. CARRIÓN, A. El factor nacional en la Poesía Ecuatoriana. Letras del Ecuador, Periódico de Literatura y Arte. Quito, novembro-dezembro 1950. CARVAJAL, I. A la zaga del animal imposible. Lecturas de la poesía ecuatoriana del siglo XX. Quito: Centro Cultural Benjamín Carrión, Estudios literarios y culturales, v. 1, 2005, p. 87-104. CASANOVA, P. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação liberdade, 2002. CASTILLO DE BERCHENKO, A. Alfredo Gangotena o la escritura escendida. Quito: San Francisco, 2013. _____. Presencia/ausencia de Alfredo Gangotena: El poeta en sus textos. Re/Incidencias, v. 1, n. 6, Octubre 2011. COUFFON, C. Alfredo Gangotena dans la vie littéraire française. In: GANGOTENA, A. Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 7-22. _____. Introduction. In: GANGOTENA, A. Poèmes français II. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 7-11. CUEVA, A. Lecturas y rupturas. 2a. ed. Quito: Planeta, 1992. ENCALADA, O. La lírica en el período: primera parte. In: DÁVILA, J. Literatura de la república. 1925-1960 (primera parte). Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador, v. V, 2007, p. 47-84. ESPINOSA, C.; SEVILLA, E. Un diálogo científico tripartito. In: ESPINOSA, C.; LOMNÉ, G. Ecuador y Francia, diálogos científicos y políticos (1735-2013). Quito: Flacso Ecuador, 2013, p. 52-68. 118 FERNÁNDEZ, M. D. C. Estudio introductorio. In: PALACIO, P. Obras completas. Quito: Libresa, 2012, p. 7-49. FORT, P. Préface. In: SUPERVIELLE, J. Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996. GALLEGOS, J. Izquierdismo confusionista. In: RIVAS. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república. 1925-1960 (segunda parte). Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador, v. VI, 2007, p. 95-122. GANGOTENA, A. «V» Absence. Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 120. _____. «XI» Absence. Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 135. _____. «IV» Tempestad secreta. Poesia. 3a. ed. Quito: Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión, 2015, p. 95. _____. «Carême». Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 53. _____. «Carta». In: CASTILLO DE BERCHENKO, A. Alfredo Gangotena o la escritura escendida. Quito: San Francisco, 2013, p. 39-40. _____. «Cruautés». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 105106. _____. «Cruautés». Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 160. _____. «La voix». Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 87. _____. «Le solitaire». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 29. _____. «L'homme de Truxillo». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 43. _____. «Paisaje». In: CASTILLO DE BERCHENKO, A. Alfredo Gangotena o la escritura escendida. Quito: San Francisco, 2013, p. 40. _____. «Poème». Poèmes français II. Orogénie et autres textes. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 20. _____. «Poèmes». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 29. _____. «Salle d'attente». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 5152. 119 _____. «Veillé». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 85. _____. «Promenade sur le toit». Poèmes français. Giromagny: Imprimerie Szikra, 1991, p. 28. HANDELSMAN, M. El modernismo en el Ecuador y América. In: PAZOS BARRERA, J. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república 1895-1925. Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina, v. IV, 2002, p. 44-57. HAYEK, M. I. La novela ecuatoriana en el período. In: PAZOS, J. Literatura de la república. 1895-1925. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Corporación Editora Nacional, v. 4, 2002, p. 99-118. JAMMES, F. Le Jammisme. In: DÉCAUDIN, M. La crise des valeurs symbolistes: vingt ans de poésie française, 1895-1914. KIM-SCHMIDT, H; COLLOT, M. Notes et variantes. In: SUPERVIELLE. Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996. LASSUS, M. D. Sous le figuier de Port-Cros: Lettres à Alfredo Gangotena. Paris: Nouvelles éditions Jean-Michel Place, 2014. MARTÍNEZ, P. A. Aproximación a la poética visual de Jorge Carrera Andrade (Cartografía lírica, imaginarios colectivos y códigos pictóricos de un país secreto). Kipus: revista andina de letras, Quito, v. 15, p. 113-144, 2002-2003. MÉNDEZ, E. 500 años. Lo esencial de la historia uruguaya. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2015. MOLLOY, S. Vivir entre lenguas. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2015. MORA. Valoración del pensamento de Rodó. In: RODÓ, J. E. Ariel. Tradução de Pinto de Aguiar. Salvador: Aguiar & Souza LTDA., s/d, p. 5-24. MOSCOSO, M. E. La lírica en el período: segunda parte. In: DÁVILA, J. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república. 1925-1960 (primera parte). Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador, v. V, 2007, p. 85-120. OJEDA, E. Jorge Carrera Andrade. In: DÁVILA, J. Literatura de la república. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, sede Ecuador / Corporación Editora Nacional, v. 6, 2007, p. 11-47. _____. Jorge Carrea Andrade y la vanguardia. Revista Iberoamericana, Pittsburg, v. LIV, n. 144-145, p. 675-690, Julio-Dezembro 1988. PAZ Y MIÑO, J. J. Historia y sociedad en el período. In: PAZOS BARRERA, J. Historia de las literaturas del Ecuador. Literatura de la república 1895-1925. Quito: Corporación Editora Nacional / Universidad Andina, v. IV, 2002. 120 RAMA, Á. Las máscaras democráticas del modernismo. Montevideo: Arca, 1994. RODÓ, J. E. Ariel. Valencia: Prometeo Sociedad Editorial, 1914. ROJAS, Á. F. La novela ecuatoriana. Guayaquil: Clásicos Ariel, 1948. SILVA, M. A. «Amada». In: Decapitados. Antología poética. Quito: Luna de bolsillo, 2012, p. 93. _____. «Divagaciones sentimentales». In: Decapitados. Antología poética. Quito: Luna de bolsillo, 2012, p. 95. _____. «Epístola». In: Decapitados. Antología poética. Quito: Luna de bolsillo, 2012, p. 110-111. _____. «La extraña visita». In: Decapitados. Antología poética. Quito: Luna de bolsillo, 2012, p. 116. _____. «Divagaciones sentimentales». In: Decapitados. Antología poética. Quito: Luna de bolsillo, 2012, p. 93. SISKIND, M. Cosmopolitan desires: Global Modernity and World Literature in Latin America. Evaston: Northwestern University Press, 2014. SUPERVIELLE, J. «À la memoire de mes parents». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 3. _____. Boire à La sources, confidences. Paris: Gallimard, 1951. _____. «J’ai trop aimé les fleurs...». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 10. _____. «La pampa». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 57. _____. «La quinta». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 34. _____. «Le doute suit mes vers». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 53. _____. «Message de Supervielle à Alfredo Gangotena». In: GANGOTENA, A. Poèmes français II, Giromagny: Imprimerie Szikra, 1992, p. 165-167. _____. «Soir créole». Œuvres poétiques complètes. Paris: Gallimard, 1996, p. 104. UNRUH, V. Latin American Vanguards: The Art of Contentious Encounters. Tradução de TRADUÇÃO NOSSA. Berkeley: University of California Press, 1994. VALENCIA, G. El círculo modernista ecuatoriano: crítica y poesía. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador; Corporación Editora Nacional; Ediciones Abya Yala, v. Serie Magíster 74, 2007. 121 _____. La herida de Arturo Borja: autonomía literaria y pesimismo. Kipus: revista andina de letras. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, Corporación Editora Nacional, n. 19, p. 77-92, I & II Semestre 2005. VISCA, A. S. Aspectos de la narrativa criollista. Montevideo: Imprenta Letras S.A., 1972. ZUM FELDE, A. Las literaturas americanas II. La literatura del uruguay. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1939. _____. Proceso histórico del Uruguay. 11. ed. Montevideo: Arca, 1991. _____. Proceso intelectual del Uruguay. Montevideo: Claridad, 1941.