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Vamos falar de... Gênero? Um debate necessário Por Mônica Karawejczyk 1 A mídia tem veiculado matérias mostrando como a desinformação e a intolerância sobre os debates envolvendo gênero estão por toda parte no Brasil. Para exemplificar destaco alguns fatos: em novembro de 2017 Judith Butler, filósofa estadunidense, foi hostilizada em um evento acadêmico, na cidade de São Paulo. Na ocasião, ela foi chamada de “a bruxa da ideologia de gênero”, “pedófila”, entre outros epítetos desabonadores. Em uma das manifestações, contrárias à presença dela no país, havia diversas pessoas portando cartazes com tais frases tendo, até mesmo, promovido a queima de um boneco com a foto de Butler (Folha de São Paulo, São Paulo, 07.nov.2017). Meses antes a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira”, cuja proposta era explorar a diversidade de expressão de gênero e a diferença na arte e na cultura em períodos diversos da produção artística, promovendo o debate sobre a diversidade e as questões LGBT² foi encerrada, de forma prematura, na cidade de Porto Alegre, depois de protestos de integrantes de grupos conservadores e do Movimento Brasil Livre (MBL), que apontaram que a exposição fazia apologia à pedofilia e zoofilia (Correio do Povo, Porto Alegre, 10.set.2017). Em todo o país também estão circulando projetos de leis com o intuito de proibir o ensino da “ideologia de gênero” no currículo escolar. E, enquanto escrevo estas linhas, foi aprovado, no município de Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana do Recife, uma lei municipal que “proíbe a realização de atividades pedagógicas que visem a reprodução do conceito de ideologia de gênero, tanto na rede municipal pública quanto na rede privada”, ficando proibido de constar, na grade curricular do município, “toda e qualquer disciplina que tente orientar a sexualidade dos alunos ou que tente extinguir o gênero masculino ou feminino” (Diário de Pernambuco, Recife, 23.nov.2017). Tais manifestações são uma breve mostra do que tem acontecido e que tem causado assombro tanto pelo 1 Historiadora, pesquisadora e feminista. Graduada em História pela UFRGS, mestre pela PUC-RS e doutora pela UFRGS. Desenvolve pesquisas relacionadas à conquista do voto feminino no Brasil e faz parte do GT Estudos de Gênero da ANPUH-RS. 2 LGBT é a sigla referente ao movimento de Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|93 grau de intolerância e desinformação que disseminam quanto pelo seu viés extremista e conservador. Baseados em premissas equivocadas e incompreensões das questões debatidas nos estudos de gênero (ou na também denominada teoria de gênero), percebe-se como é perigoso esse tipo de abordagem rasa e sem lastro, com o intuito da defesa da “ordem e dos bons costumes” e para “salvar o futuro das crianças”. Nesse sentido fica a pergunta: qual o papel do educador e do pesquisador nessas questões e como deter essa onda de desinformação e intolerância? A proposta desse ensaio é a de esclarecer alguns dos conceitos utilizados pelos pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam aos estudos de gênero. Entender o conceito de gênero possibilita compreender como as relações sociais são construídas a partir da nossa cultura e da nossa realidade social. Nos possibilita compreender que cada sociedade produz/constrói suas representações de gênero, ou seja, produz um modelo de pensamento sobre como devem ser as relações e os comportamentos de homens e mulheres, dentro de uma forma transmitida através das gerações pela cultura de cada lugar. Afinal ideias sobre comportamentos adequados a cada gênero circulam constantemente, não apenas nas mãos de legisladores, mas também nas atitudes de padres, pais, mães, professores, publicitários [...]. Ser um homem ou uma mulher [...] não é um estado predeterminado. É um tornar-se; é uma condição ativamente em construção. [...] Esse processo é frequentemente debatido como o desenvolvimento da ‘identidade de gênero’ (CONNELL; PEARSE, 2015, p.38). O que parece estar contribuindo para disseminar crenças equivocadas sobre o conceito de gênero é uma certa incompletude na forma como o termo gênero é compreendido. Os que criticam utilizam a palavra como fosse sinônimo de sexo biológico, caracterizando o gênero masculino e o gênero feminino. Contudo, nos estudos de gênero, a palavra é compreendida e utilizada de forma mais aprofundada, como uma categoria de análise que ajuda a pensar a maneira como as ações e posturas, dos homens e das mulheres, são determinados pela cultura em que estão inseridos (SCOTT, 1990). Como bem destaca Raewyn Connel e Rebecca Pearse: “o gênero é uma questão de relações sociais dentro das quais indivíduos e grupos atuam [...]. Não é uma expressão da biologia, nem da dicotomia fixa na vida ou no caráter humano” (CONNEL; PEARSE, 2015, p.47). O que os estudiosos da área fazem, por exemplo, é procurar os aspectos históricos, sociais e culturais que influenciaram a forma como foram construídas as relações entre homens e mulheres e que acabaram por serem os resRevista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|94 ponsáveis por diferenciações, discriminações, desigualdades e hierarquizações de tratamento entre homens e mulheres. Assim os pesquisadores e pesquisadoras ao utilizar o termo gênero estão se afastando da categoria biológiconatural e se aproximando da categoria social e cultural. As críticas dos grupos conservadores têm se centrado na área que pesquisa a identidade de gênero, concentrando as censuras e recriminações para a questão da sexualidade e nas discussões sobre o tornar-se homem e no tornar-se mulher. O que tem demonstrado uma incompreensão do que Simone de Beauvoir, na década de 1940, já denunciava ao afirmar: não se nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino (BEAUVOIR, 1967, p.9). Segundo a visão dos críticos quem se dedica a pesquisar, debater e questionar a identidade de gênero, principalmente no meio escolar, estaria tentando impor mudanças na orientação sexual de crianças e jovens³. Para eles haveria um alinhamento “natural” entre sexo-gênerosexualidade desde a mais tenra idade, ou seja, a combinação de sexo biológico sempre seria “harmonizado” com o desejo sexual e ao ser apresentada formas alternativas de se relacionar, se estaria procurando influenciar, confundir, contestar a orientação “natural” dos meninos e das meninas, como pode ser percebido nos projetos de leis que estão em tramitação pelo país. Como bem descreveu Georgiane Vázquez, Pesquisas sobre sexualidades existem dentro dos Estudos de Gênero, porém – e parece ser necessário repetir – não se trata de conspirar para mudar a orientação sexual de ninguém. As pesquisas sobre sexualidade variam em quantidade proporcional e, na maioria das vezes, procuram analisar trajetórias, sociabilidades ou mesmo subjetividades 3 Uso o termo “orientação” sexual pois ela se refere à forma como as pessoas se sentem em relação à afetividade e sexualidade e também como forma de salientar que a orientação não é algo que se possa mudar de acordo com o desejo do sujeito, isto é, não é uma opção. Sobre a questão destaco que: “Hoje, são reconhecidos três tipos de orientação sexual: a heterossexualidade; a homossexualidade; e a bissexualidade. Mas é a heterossexualidade que é compreendida comumente como a sexualidade correta e esperada, estando na base da ordem social em que meninas e meninos são criadas/os e educadas/os, constituindo-se como uma norma, ou uma heteronorma ou heteronormatividade. [...] A reprodução da norma heterossexista funciona também a serviço da reprodução da dominação masculina, haja vista que a masculinidade se constrói tanto em oposição à homossexualidade quanto à feminilidade” (GÊNERO, 2009, p.102). Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|95 dos indivíduos relacionando tais conceitos à sexualidade – sejam os indivíduos heterossexuais ou não. Também são temas dentro dos Estudos de Gênero: a maternidade, os sentimentos, a religiosidade, a assistência, a participação política, os racismos, as interseccionalidades e o próprio movimento feminista, isso só para citar algumas poucas áreas (VÁZQUEZ, 2017). Outra questão que impacta a quem se dedica a estudar a área é o uso persistente da designação “ideologia de gênero”, disseminada pela mídia e pelos grupos conservadores, para se referir aos estudos de gênero. Nada mais estranho para quem se dedica a estudar a área. Afinal, desde meados do século XVIII, no mundo ocidental, ocorreram manifestações no sentido de se descontruir a ideia de uma superioridade masculina e construir a igualdade de gênero. Neste sentido o feminismo e a luta pelo direito ao voto feminino, iniciada de forma mais organizada em meados do século XIX, foi um primeiro passo na tentativa de obter tal igualdade. A Igualdade de gênero se refere, então, à igualdade de direitos, responsabilidades e oportunidades de mulheres e homens na sociedade e não à imposição de uma ideologia, de um comportamento ou de dogmas4. Tentativas de se proibir debates que tenham por objetivo a construção de uma sociedade mais plural e igualitária não fazem muito sentido. Discutir sobre gênero permite uma visão mais crítica a respeito do comportamento dos homens e das mulheres na sociedade, permite que seja problematizada a maneira como socializamos (e de forma desigual) meninos e meninas. Refletir sobre gênero leva a repensar sobre a cultura, a linguagem, a família, o papel da mulher e do homem na sociedade, entre outros temas relevantes. Utilizar o gênero como ferramenta de análise da sociedade permite observar uma série de aspectos que vem perpetuando relações desiguais de poder entre homens e mulheres. E, é bom frisar, a identidade de gênero é um dos focos de interesse dos estudos de gênero e não o único5. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), nesse sentido, lançou um manifesto no qual combate, de forma muito apropriada, o argumento daqueles que persistem em difundir a generofobia no meio escolar, ao afirmar: 4 Para ilustrar destaco que no Brasil somente em 1988, com a chamada Constituição Cidadã, é que foi proclamada a igualdade jurídica entre os sexos, tal como se lê no artigo “5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição [...].” 5 Além do componente sexo os estudos de gênero também têm levado em conta, classe social, raça, geração, religião, orientação sexual e etnia, pois, as interações humanas são marcadas por uma ampla gama de relações extremamente relevantes e que estão inter-relacionadas. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|96 quando se reivindica [...] a noção de ‘igualdade de gênero’ na educação, a demanda é por um sistema escolar inclusivo, que crie ações específicas de combate às discriminações e que não contribua para a reprodução das desigualdades que persistem em nossa sociedade. Falar em uma educação que promova a igualdade de gênero, entretanto, não significa anular as diferenças percebidas entre as pessoas (o que tem sido amplamente distorcido no debate público), mas garantir um espaço democrático onde tais diferenças não se desdobrem em desigualdades (MANIFESTO, p.9). A ideia de igualdade implica em se reconhecer que, na sociedade em que vivemos, existem diferentes grupos de homens e mulheres, que possuem necessidades específicas, exigindo do governo ações e recursos diferenciados. Desse modo, promover a equidade de gênero é reconhecer que tais diferenças levam a necessidade de se distribuir benefícios de uma forma justa e que atendam as desigualdades existentes, é desnaturalizar as diferenças culturais com vias a se identificar e reconhecer preconceitos como construções sociais e históricas. E este é um debate necessário que não pode ser cerceado por conclusões equivocadas e permeadas por tanta desinformação, sendo o papel dos/das educadores/as e pesquisadores/as o de informar, analisar e propor atividades pedagógicas e discussões para sanar tais lacunas. Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 2 – A Experiência Vivida. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero uma Perspectiva Global. São Paulo: nVersos, 2015. CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constit uicao.htm> GÊNERO e Diversidade na Escola: Formação de Professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|97 relações étnico-raciais. Caderno de Atividades. Rio de Janeiro: CEPESC, 2009. MANIFESTO pela igualdade de gênero na educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras. Associação Brasileira de Antropologia. In: Guia de Gênero e Sexualidade para Educadores (as). Disponível em < http://viracao.org/viracao-lanca-guia-sobre-genero-esexualidade-para-educadoresas/>. Publicado em 11.out.2017. Acesso: 25.out.2017. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. v.l , n.2, jul./dez. 1990. VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gênero. (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-degenero/>. Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso: 27.nov.2017. Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.5, vol.3, jul/dez. 2016|98