Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil:
argumentos contrarianistas sobre a política externa e a
diplomacia - Paulo Roberto de Almeida (Kindle)
Kindle
Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil: argumentos
contrarianistas sobre a política externa e a diplomacia
Brasília: Diplomatizzando, 2024. 126 p.; ISBN: 978-65-00-91081-0; ASIN: B0CS5PTJRL;
Kindle). Relação de Originais n. 4561; Relação de Publicados n. 1542.
Índice
Prefácio: Como ser contrarianista com algum senso de humor
1. Desigualdade e injustiças mundiais: progresso e poder
O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na prepotência dos
poderosos.
Correto, mas menos do que antes e menos do que se pensa.
2. Periferia histórica e dependência estrutural: mitos diplomáticos
O Brasil está situado na periferia, por razões históricas e estruturais e, portanto, forçado
a uma situação de dependência em relação às poderosas nações centrais.
Certo relativamente, mas errado absolutamente; válido num passado distante, não muito
válido depois de 200 anos de independência e cem anos de ideologia do desenvolvimento.
3. Empresas multinacionais e dependência tecnológica
A dominação econômica de empresas multinacionais atua como obstáculo para nossa
independência tecnológica e se reflete em relações desiguais na balança tecnológica.
Totalmente errado. Os efeitos são exatamente no sentido contrário, mas o trabalho
principal tem de ser feito em casa.
4. Protecionismo dos ricos: responder na mesma moeda?
O Brasil não consegue exportar devido ao protecionismo dos países ricos que protegem
seus setores estratégicos ou sensíveis. O Brasil deveria fazer o mesmo.
Muito relativo: o protecionismo talvez tenha uma incidência marginal nos fluxos globais
e não seria ele um obstáculo absoluto ao dinamismo das exportações brasileiras, que
dependem de outros fatores vinculados à produtividade geral e competitividade da
economia nacional. Imitar práticas protecionistas não é necessariamente receita para o
desenvolvimento econômico e social do Brasil.
5. Multilateralismo e política de blocos
O multilateralismo e os blocos regionais representam nossa melhor defesa no plano
mundial, por isso precisamos atuar mediante grupos de países.
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Correto no plano multilateral, mas eventualmente duvidoso no plano regional; em todo
caso, vantagens relativas. A coordenação a partir de posições de “mínimo denominador
comum” podem ser fatores enfraquecedores, não reforçadores, de nossas posições.
6. Alianças preferenciais no Sul Global
Devemos reforçar os laços com grandes países (China, Rússia), com outros
países em desenvolvimento (Índia, África do Sul) e, com os da América do
Sul, com os quais dispomos de vantagens comparativas.
Talvez, mas vejamos os custos e benefícios desse tipo de política de aliança
com o chamado Sul Global.
7. Abertura econômica só com plena reciprocidade
Só podemos abrir nossa economia e liberalizar o comércio na base da
estrita barganha recíproca e com o oferecimento de concessões
equivalentes e substantivas.
Trata-se de um dos maiores absurdos econômicos já ouvidos, só justificável
politicamente pelo dito “não se dá nada de graça, sem algo em troca”.
8. Capitais voláteis e desafios nas contas externas
Os capitais voláteis são responsáveis pela desestabilização de nossas contas externas e
devem ser estritamente controlados.
Pura bobagem, que não resiste à menor análise empírica. A volatilidade está implícita nas
políticas econômicas dos países emergentes e medidas de controle teriam como resultado
fuga de capitais e ágio cambial.
9. Tratados internacionais devem ser sempre recíprocos
Os tratados devem ser sempre recíprocos e respeitadores de nossa soberania e
autonomia nacional.
Retórica vazia: soberania se defende com desenvolvimento, não com boas intenções e
tratados bonitos.
10. Globalização desigual e suas ameaças
A globalização acentua as desigualdades dentro e entre as nações. Por
isso o Brasil deve evitar uma abertura excessiva à economia mundial.
Errado. O contrário é verdadeiro, mas a inserção internacional não exime
a capacitação endógena.
11. Assimetrias estruturais devem ser corrigidas prioritariamente
Processos de liberalização entre parceiros muito desiguais beneficiam principalmente os
mais poderosos, por isso devemos primeiro corrigir assimetrias estruturais.
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Não necessariamente, uma vez que todos os processos de interdependência – a fortiori
de integração – sempre se dão entre parceiros relativa ou absolutamente desiguais e os
mais exitosos são justamente aqueles que mobilizam países em estágios diversos de
desenvolvimento.
12. Uma diplomacia voltada prioritariamente para o desenvolvimento
A ação diplomática brasileira deve servir ao processo de desenvolvimento
nacional.
Sem dúvida, mas não se deve fazê-la cumprir objetivos que não são os
seus.
13. Uma diplomacia reconhecida como de alta qualidade
Nossa diplomacia é altamente capacitada e profissional, reconhecida pelos
seus dotes de excelência.
Talvez, ou certamente, mas atitudes autocongratulatórias raramente são
benéficas do ponto de vista da manutenção da qualidade do serviço.
Nota sobre o autor
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1. Desigualdade e injustiças mundiais: progresso e poder
O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na prepotência dos
poderosos. Correto, mas menos do que antes e menos do que se pensa.
O mundo sempre foi desigual e os países menos poderosos têm de fazer um esforço
singular para garantir que seus interesses sejam pelo menos ouvidos, como já clamava Rui
Barbosa na segunda conferência da Haia, em 1907. O mundo continua desigual, mas com o
surgimento da ONU e a expansão do direito internacional em áreas cada vez mais amplas dos
sistemas normativo e regulatório – anteriormente deixadas à competência exclusiva dos Estados
nacionais – ele tende a se tornar administrado mais pela força do direito do que pelo direito da
força, pelo menos tentativamente.
O mundo deve continuar sendo desigual, até onde o horizonte histórico nos permite
visualizar, mas a imposição da força bruta tende a ser relegada a casos extremos (e marginais)
de litígios entre países ou dentro dos países (guerras civis). Mesmo o moderno sucedâneo dos
poderosos impérios de outrora não pode atuar com base apenas na sua vontade unilateral e tem
de fazer legitimar determinadas ações pelo corpo político por excelência (por certo imperfeito)
da comunidade das nações, representado pela ONU (e seu Conselho de Segurança). Nem
sempre isso é possível, daí o recurso a ações unilaterais, aparentemente reservadas a Estados
mais poderosos (mas nem sempre: ditadores de países menos poderosos podem se aventurar
contra vizinhos mais frágeis).
Nesse sentido, o mundo contemporâneo é menos injusto do que aquele conhecido até
meados do século XX, mas ele continuará sendo desigual, estruturalmente falando, na medida
em que o desempenho relativo dos países continua apresentando diferenciais enormes, tanto no
plano das capacitações materiais, e militares, quanto no que respeita educação, direitos
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humanos, democracia, avanços tecnológicos, oportunidades de progresso social, etc. O mundo
era por certo menos desigual quando a maioria das nações tinha sistemas econômicos baseados
na agricultura de subsistência ou em processos manufatureiros simples. A divergência
aumentou a partir da primeira e da segunda revoluções industriais – caldeiras a vapor, primeiro,
química, eletricidade e motor a explosão, depois – e tornou-se propriamente abismal com o
aprofundamento da terceira, baseada nos sistemas de informação, na eletrônica e nos
equipamentos computadorizados. Ela continua se manifestando na quarta, talvez quinta,
revolução industrial, fundada basicamente na economia do conhecimento.
A distância atual não tem a ver, entretanto, com os velhos mecanismos imperiais ou
coloniais do passado, uma vez que o desempenho nestas novas áreas não se baseia na extração
de recursos primários, mas sim no acúmulo de conhecimento, algo que pode estar ao alcance
de qualquer sociedade que se disponha a fazer da educação a alavanca principal de sua
organização econômica e social. A “acumulação primitiva” requerida por esse tipo de
prioridade social não pode ser obstada por nenhuma desigualdade estrutural baseada no poder
da força bruta; ao contrário, os menos poderosos podem aprender muito com as potências mais
avançadas e a maior parte do conhecimento humano encontra-se hoje livremente disponível nos
sistemas de informação abertos. Tanto é assim que pequenos países, anteriormente colônias
(como Cingapura), ou antigos reinos, até escravizados por vizinhos mais poderosos (como a
Coreia, submetida pelo Japão durante toda a primeira metade do século XX), conseguiram se
alçar no ranking da prosperidade material e da competitividade tecnológica.
O diferencial básico entre sociedades avançadas, normalmente mais poderosas, e as
menos desenvolvidas situa-se, não tanto na dominação de umas sobre as outras, mas nos níveis
de produtividade do capital humano, ou seja, o progresso trazido pelo potencial inovador e
produtivo de determinadas populações. Esse é o fator básico do poder, não a exploração direta,
que está na base de certas concepções do desenvolvimento humano e social. Todas as
sociedades históricas são, ou foram, sociedades organizadas com base em relações de
dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplo, na antropologia ou
na história comparadas, de sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo,
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sociedades desiguais: nessas sociedades uma determinada categoria de pessoas detêm a
capacidade de comandar outras pessoas e delas extrair recursos excedentes em termos de
produção econômica. O mesmo se passa, mutatis mutandi, no sistema internacional.
Nas sociedades modernas e contemporâneas, o progresso assumiu principalmente a
forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade
de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na
propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças
produtivas deu origem a um verdadeiro modo de produção inventivo, transformando o
progresso em rationale da vida econômica e social.
Embora o progresso nem sempre seja qualitativamente aferível, ele pode ser
quantitativamente mensurável, o que significa uma maior disponibilidade de bens e serviços
anteriormente raros ou escassos; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer
um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais
inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e
serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está
precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla
de necessidades humanas.
Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso econômico cria
desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que
são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente
especialização de funções produtivas. O progresso de algumas sociedades particularmente
inovadoras cria, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em
termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas
também de marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais
desenvolvidos.
Nesse sentido, as relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas
num âmbito puramente interclassista ou intra societal, mas prevalecem igualmente num nível
inter societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e
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diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim,
um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional
confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre
classes sociais.
A racionalização conceitual do progresso histórico e social, ao coincidir no tempo com
a formação e o desenvolvimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes
últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto
de suas sociedades respectivas. O estado do progresso passou a exigir, cada vez mais, o
progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um
processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State
building.
Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas para a
ideia do progresso. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, em primeiro lugar, no
pensamento liberal clássico, de que são exemplos os conceitos de “mão invisível”, de
“vantagens comparativas” ou de “laissez-faire” no plano econômico. A força doutrinária do
pensamento liberal contaminou também as elites dominantes de países eles mesmos submetidos
a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos
(espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual)
puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do progresso material
das sociedades envolvidas. Mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição
colonial um grande fator de progresso histórico de sociedades mais atrasadas.
O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas
tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do
Progresso nas formações dominantes. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao
lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais
poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social
dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que
constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de
relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer,
na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e
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poder econômico constituem requisitos necessários ao – e não efeitos do – exercício da vontade
imperial. A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a
capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de
recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora.
A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano
nacional como no das relações inter societais, parece assim situar-se na capacitação tecnológica
e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material
e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva,
deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente
autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a
internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser
obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema
nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.
A experiência histórica indica que o progresso, em suas diversas formas materiais,
emana sempre dos diversos centros de poder econômico, e a eles retorna indefectivelmente após
ter cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade
originalmente dominante. Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema
interestatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional: as sociedades ou nações
que não conseguirem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu
próprio progresso econômico estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a se
tornarem meros objetos da História e não em seus atores.
O discurso realista, em relação ao qual estas notas constituem mero exercício
argumentativo, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política – num contexto
interno ou externo – razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de
serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve
esquecer, porém, de que ele constitui o fundamento último e a razão secreta da atuação da maior
parte dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.
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