www.fgks.org   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 1 2 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA Armando Marques Guedes Estudos sobre Relações Internacionais 2005 colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 3 Ficha técnica Título Estudos sobre Relações Internacionais Coordenação Editorial IDI - MNE Edição Colecção Biblioteca Diplomática do MNE Ministério dos Negócios Estrangeiros, Portugal Design Gráfico Risco, S.A. Paginação, Impressão e Acabamento Europress, Lda. Tiragem 1000 exemplares Data Outubro de 2005 Depósito Legal 233525/05 ISBN 972-9245-44-4 4 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Índice Prefácio 7 1. As religiões e o choque civilizacional 9 2. As guerras culturais, a soberania e a globalização: o choque das civilizações revisitado 37 3. O funcionamento do Estado em época de globalização. O transbordo e as cascatas do poder 83 4. Local normative orders and globalisation: is there such a thing as universal human values? 129 5. O Islão, o islamismo e o terrorismo transnacional 183 6. O terrorismo transnacional e a ordem internacional 193 7. Sobre a União Europeia e a NATO 227 colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 5 6 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Prefácio Nos vários Colóquios, Seminários e Conferências em que participei na última dúzia de anos, uma cinquentena versaram áreas da Ciência Política, e em particular do âmbito mais restrito de estudo das Relações Internacionais. Numa boa vintena destes encontros apresentei comunicações escritas ou orais, que depois acabei por publicar aqui e ali, com uma preocupação por garantir uma dispersão editorial que torna muitas delas hoje em dia dificilmente acessíveis. Nalgumas voltei-me para a acção diplomática portuguesa. Num subconjunto maior voltei-me para o espaço da lusofonia, essa entidade em construção. Noutras, dediquei-me antes a discussões mais gerais e mais teóricas focadas em análises do sistema internacional. Decidi juntar num primeiro apanhado sete dos artigos deste último agrupamento de publicações: é isso que apresento. A colectânea – pelo menos assim o espero – exibe uma forte unidade. Um denominador comum a todos os artigos coligidos é uma marcada atenção aos enquadramentos proporcionados pelos processos de transformação e integração-fragmentação à escala mundial que têm vindo a ser apelidados de globalização. Não é o único laço que os une – todos os estudos que coligi foram redigidos na última meia década. Mais ainda: na maioria dos casos trata-se de trabalhos cujas primeiras versões podem ser encontradas em publicações periódicas oriundas de instituições superiores militares; embora num ou noutro exemplo, não. Num primeiro desses dois últimos casos, tenho o gosto de dar à estampa uma longa comunicação em língua inglesa, até agora inédita, que apresentei e discuti longamente numa Conferência Internacional realizada em 2001 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O segundo diz respeito à publicação de um texto no prelo, cujo aparecimento na revista Nação e Defesa, do Instituto da Defesa Nacional, está iminente. Ambos têm uma óbvia semelhança de família com os outros cinco, que torno a publicar: pareceu-me haver uma suficiente sintonia nos artigos que agrego para justificar a sua publicação conjunta num só volume. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 7 Por via de regra re-editei os sete artigos em versões idênticas às originais. Exepcionalmente, fiz uma limpeza de gralhas, levei a cabo pequenas alterações estilísticas e, mais raramente, acrescentei uma ou outra frase no intuito de melhor esclarecer aquilo que quis passar como mensagem. Mantive sempre que foi caso disso o tom coloquial que, por norma, caracterizou as minhas comunicações. Em nenhum caso introduzi quaisquer modificações de substância que alterem, seja no que for, o sentido que penso ter dado aos meus textos matriciais. A primeira nota de rodapé que incluo em cada uma das secções da presente publicação fornece o lugar de origem de cada uma das comunicações em que os expus. Foram os seguintes os lugares de origem dos cinco artigos já publicados, dos sete que aqui incluo: (i) “As religiões e o choque civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-177, Atena e Instituto de Altos Estudos Militares, 1999. (ii) “As guerras culturais, a soberania e a globalização: o choque das civilizações revisitado”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares 51: 165-192, 2000. (iii) “O funcionamento do Estado em época de globalização. O transbordo e as cascatas do poder” Nação e Defesa 10, Instituto da Defesa Nacional, 2002. (iv) “Sobre a União Europeia e a NATO”, Nação e Defesa 106: 33-76, Instituto da Defesa Nacional, 2004. (v) “O terrorismo transnacional e a ordem internacional”, Nação e Defesa 108: 169-199, Instituto da Defesa Nacional, 2005. Como poderá ser facilmente verificado, a ordem de apresentação e a de publicação, quando esta teve lugar, nem sempre coincidiram. O que me forçou a uma escolha editorial, no que toca à presente colecção de artigos. Com o intuito de disponibilizar como fio condutor a progressão das minhas perspectivas, edito aqui os textos na ordem em que eles foram redigidos e apresentados e não na da respectiva publicação. Oslo, 3 de Agosto de 2005 8 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 1. As Religiões e o Choque Civilizacional* 1. Alguns cientistas sociais desde há muito produzem, e muitas vezes apoiam, as chamadas teorias da secularização. Sob a capa de uma diversidade superficial, estas são todas aparentadas; trata-se sempre, no fundo, de asserções segundo as quais estamos perante as convulsões de morte das religiões, consideradas como de alguma maneira incompatíveis com “a modernidade”. As inúmeras narrativas teóricas para o efeito formuladas, em rigor não variam muito. Começam, por via de regra, por uma soi-disante constatação: nas sociedades científico-industriais, alega-se, a fé e a observância religiosas declinam. Para tal são por norma aduzidos motivos intelectuais, ou razões intelectualistas: às doutrinas religiosas contrapõem-se por convenção as científicas, hoje mais prestigiadas, ligadas a enormes sucessos tecnológicos; e, por essa via, também a vertiginosos desenvolvimentos económicos. Postula-se que a religião em resultado decai. O princípio subjacente que está implícito a estas formulações é simples: o seu prestígio e o da rival variam em razão inversa um do outro. Razões sociológicas de fundo também não faltam nessas variadíssimas elaborações teóricas: as religiões, sublinha-se num tom durkheimiano, são na verdade celebrações de comunidades; e num mundo moderno fragmentado e massificado pouca comunidade existe ainda para celebrar – a não ser a do Estado nacional, é comum a ressalva muitas vezes entoada em timbres weberianos: mas essa tem rituais cívicos e valores próprios nacionalistas. Neste estilo de formulações o nacionalismo também varia em razão precisamente inversa da religião; substitui-a. Se contextualizarmos os discursos teóricos deste tipo no cientismo oitocentista em que eles tantas vezes efectivamente ancoram e se tentarmos * Comunicação lida como conferência de fecho, do Seminário “Religiões, Segurança e Defesa”, na tarde de 16 de Julho de 1999, no anfiteatro central do Instituto de Altos Estudos Militares. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 9 perspectivar o Mundo, neste fim de Milénio, sem as lentes dessa sabedoria convencional, é fascinante constatar a convergência, no panorama contemporâneo, de duas tendências, duas forças que à partida julgaríamos incompatíveis: uma incongruência surpreendente e um estado de coisas paradoxal. Por um lado, teses como as da secularização parecem efectivamente verdadeiras, empiricamente verificáveis, num Mundo cada vez mais laico; mas, por outro lado, soam a totalmente falsas e não aparentam sobreviver a um escrutínio mais aprofundado. Os indícios do dilema são muitos. As fés (as convicções, senão a observância) parecem crescer. A sua diversidade não pára de aumentar. As seitas e as novas religiões (quantas vezes com um enorme experimentalismo e criatividade) proliferam um pouco por toda a parte. A religiosidade, de mil maneiras, está visivelmente a renascer. As tendências sacralizantes adicionam-se assim, ao que tudo indica, a tendências opostas, laicas. Testemunhamos, na modernidade, um rol de ambivalências. Os dois retratos exemplares de algum modo coalescem. A par com o carácter galopantemente asséptico da vida social, da substituição do Deus único pela Razão Suprema de que falavam os positivistas, da “gaiola de ferro” da racionalidade omnipresente sobre que pontificou Max Weber, do Big Brother global pós-orwelliano, vivemos também um período que Michel Maffesoli (1992:181, tradução minha) caracterizou como de “um enraizamento no solo e um crescimento em direcção do céu”. Ouve-se “um rumor de anjos”, como há uma boa vintena de anos anunciou Peter Berger1. Se essa ambivalência não significa uma nova fase de maturação da religiosidade, parece pelo menos evocar um crescendo na sua instrumentalização. Com o fim do Mundo bipolar e com a quebra dos critérios político-ideológicos de validação a que nos tínhamos habituado, estamos a ser canalizados para um reenquadramento e para reorientações a um tempo mais locais e mais transcen1 Para isso podemos aduzir (muitos o têm feito) razões e motivos mais intelectualistas (como, por exemplo, a ansiedade conceptual causada por inovações e modificações tecnológicas incompreensíveis, que colmataríamos, ou representaríamos, com bruxas, astrologias ou OVNIs), ou mais sociologísticas. Não é porém esse o meu tema neste Seminário: o meu tópico é o do redimensionamento político contemporâneo das religiões. A comunicação de Ignacio Ramonet tratou de forma admirável a problemática referida. 10 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS dentes – o que tem sido chamado a “tribalização do Mundo”. E que redunda, quantas vezes, num crescimento explosivo, e coordenado, de teias nacionalistas, irredentistas e imanentistas, ou até divinas, ou pelo menos em novas (e velhas) “comunidades nacionais e religiosas imaginadas”, como as intitularia Benedict Anderson. Talvez as duas forças (a profana e a sagrada), longe de antagónicas, se complementem; e que, por isso, as imagens se acasalem. Vivemos num meio internacional dado a nacionalismos ritualizados e propenso a religiões nacionalizadas. Nada disto é particularmente inovador – desde há bastante tempo (uma boa dezena de anos) que muitos sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e historiadores, entre outros, o vêm a anunciar. Talvez valha a pena, em todo o caso, reiterar o que já foi neste Seminário abundantemente abordado e que forma o núcleo duro que subtende asserções deste tipo, as suas condições nocionais de possibilidade. E talvez valha a pena fazê-lo reformulando perguntas: o que é que torna a religião num veículo tão adequado para a identidade, nomeadamente a identidade cultural, étnica, ou nacional? Qual é a natureza profunda da afinidade electiva entre sistemas de ideias, representações e práticas desses domínios na aparência tão distintos? No quadro internacional contemporâneo, afinidades dessas estarão a ser potenciadas? E em que sentido é que, a partir da compreensão das razões de ser dessa iteração entre religião e identidade, podemos esperar saber prever a eclosão de tensões e conflitos? Basta olhar em volta, auscultar o Mundo, para compreender a urgência de para tudo isto encontrar respostas. Para perceber a insensatez que seria, face aos cenários prospectivos que se parecem impôr, não tomar as cautelas preventivas possíveis. 2. Não será talvez exagerado asseverar que, na última meia dúzia de anos, as discussões sobre estes e outros temas afins têm sido em grande parte desencadeadas em função (e levadas a cabo no contexto) do brilhante quadro teórico proposto, de Harvard, por Samuel Huntington e pelas suas célebres colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 11 (outros diriam notórias) teses sobre “O Choque de Civilizações”2. Sem surpresas, verifico que grande parte do que foi discutido neste Seminário o foi muitas vezes contra precisamente esse pano de fundo. Tal como seria de esperar: sejam quais forem as críticas a que Huntington possa (e deva) ser sujeito, não há dúvida que retratou bem o Zeitgeist, o espírito do tempo em que vivemos, ou em todo o caso algumas das traves-mestras da maneira como temos vindo a olhar o Mundo contemporâneo e as suas mais recentes transformações. O que o notável estudioso norte-americano disse e escreveu adequa-se bem ao observável e tocou fundo em muitas das perspectivas convencionais que temos arreigadas. O que não equivale naturalmente a dizer que tenha razão, ou pelo menos que a tenha toda. A posição teórica de Huntington é simples e clara e não será seguramente preciso fazer aqui mais do que recapitular as linhas de força maiores da sua argumentação. Segundo Huntington, o malogro da União Soviética, e a resultante transição de um Mundo bipolar para uma nova ordem internacional com apenas uma superpotência (os Estados Unidos), trouxe consigo uma rápida consequência estrutural: ao de cima, por assim dizer, vieram os “blocos civilizacionais” básicos (são seis ou sete, não são muito claras as asserções de Huntington quanto ao estatuto “tectónico”, digamos assim, do bloco africano nem do latino-americano) que nos separam uns dos outros. Em resultado uma nova ordem internacional, de base essencialmente cultural, rapidamente se cristalizou. Primeiro num artigo notável publicado em 1993 na revista Foreign Affairs e depois, em 1996, numa versão mais alargada (mas sem alterações substantivas) numa monografia – ambos intitulados The Clash of Civilizations – Huntington soletrou, em detalhe, a nova topografia política emergente. Não vou reiterá-la, a não ser para relembrar imagens fortes como a relativa, nomeadamente, ao que Huntington (memorável e, segundo muitos Muçulma2 Uma obra traduzida para várias línguas, incluindo o Português, bastante influente em diversos meios académicos, políticos, e outros. Desencadeou, de imediato, várias reacções, algumas das quais reeditadas em 1996 pela Foreign Affairs numa colectânea (The Debate), de que existe também tradução portuguesa. Mais mediatamente, o modelo de S. Huntington tem sofrido reajustes, não obstante a sua enorme fecundidade heurística. 12 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS nos, insultuosamente) apelidou as “fronteiras sangrentas do Islão”, por exemplo. Ou para repetir ilustrações que o autor ofereceu, no que toca à irredutibilidade das identidades religiosas umas às outras – como escreveu, é possível ser-se meio francês, meio argelino, ou meio socialista, meio capitalista; não faz porém qualquer sentido alegar ser-se meio Católico, meio Muçulmano… Huntington tem decerto razão. Religiões, de facto, expressam visões muito particulares do Mundo (enquanto construtos conceptuais), vivências muito concretas (enquanto experiências colectivas), e, de um ponto de vista sociológico, como o revelou Émile Durkheim com a sua boutade de que “Dieu est la societé”, são sempre representações simbólicas dos nexos de relações sociais em que nos vemos envolvidos. Mapeiam-nos. Formam, como tal, uma parte integrante da nossa identidade mais profunda; definem-nos, ainda que várias outras maneiras haja de o fazer. Se é aí que reside a sua força, é aí também que reside todo o seu potencial de risco para a segurança. Religiões são muitas vezes factores sérios de desestabilização política, como muitas outras vezes o são de estabilização. À partida, há que dizê-lo, Huntington parece ter posto o dedo numa ferida; aflorou pelo menos uma parte da verdade, a mais negativa. Relembrou-nos (contra uma perigosa amnésia) que se a experiência histórica nos ensina alguma coisa, ensina-nos que as religiões, quando se sentem fortes, tendem, por infelicidade, a lutar umas contra as outras. É, previsivelmente, quando se sentem fracas que se unem (ou que parecem insinuá-lo) contra o que reconhecem e circunscrevem como inimigos comuns. Tendem quantas vezes nesses casos porém a fazê-lo por meras razões tácticas, na convicção (com certeza bem fundamentada) de que juntar forças recruta e mobiliza energias úteis para programas políticos partilhados (sejam eles a luta contra o aborto, a remissão das dúvidas do chamado Terceiro Mundo, ou a inclusão da religião nos curricula escolares, para só usar exemplos3 recentes). Nesse sentido, o melhor testemunho para o implacável 3 Muitos outros exemplos poderiam decerto ser aduzidos que sugerem áreas de colaboração possível entre religiões diferentes. E sem dúvida que são inelutáveis as vantagens políticas tácticas de cooperações pontuais destes tipos, sobretudo as alegadamente gizadas em pretensões programáticas de convergências teológicas. Mas nem por isso, creio, se torna muito convidativo o exercício. Em primeiro lugar, e como insistiu em Oxford F. Fernández-Armesto (1997), tais alegações colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 13 cerco pressentido pelos líderes religiosos contemporâneos talvez seja a disponibilidade para, segundo dizem, “pôr de lado as divergências” e para colocar a tónica, como alegam, naquilo que, insistem, “têm de comum”. Não é a primeira vez, numa História truculenta, que a situação lhes é avessa. Mas a ameaça é hoje mais geral. Os inimigos que se perfilam na linha de horizonte são muitos e as frentes que abrem são muito variadas: do mais baixo materialismo ao humanismo laico, os opositores recatam-se em posturas antagonísticas que vão do desprezo científico às acusações de uma endémica incorrecção política; ou assumem outra posição mais estrutural e por isso mesmo talvez mais corrosiva, ainda que à superfície menos ameaçadora: escondem-se por detrás da interdependência crescente a que assistimos no Mundo moderno e a que, bem ou mal, chamamos globalização. A maneira como a globalização erode as religiões, lhes faz tremer as bases de sustentação, e a forma como define novos pontos de aplicação para os desafios e constrangimentos a que elas estão sujeitas são questões na ordem do dia. Se bem que, a meu ver, daí não lhes venham grandes perigos, antes pelo contrário. Voltarei a este ponto. Se confrontada com algum recuo, a situação de diálogo inter-religioso vivida no presente, ainda que não seja inédita, é claramente de excepção. Em termos puramente empíricos e quantitativos, parece incontornável a conclusão de que religiões são, de alguma forma, inimigas naturais umas das outras. Por muito que líderes e responsáveis o neguem (e por razões pastorais e teológicas muitos deles o fazem muitas vezes), as religiões são como que mutuamente exclusivas. O que, são em geral factual e intelectualmente bastante pouco convincentes; e, portanto, têm poucos pés para andar. Em segundo lugar, consequências de convicções deste género tendem a distribuir-se à volta de hostilidades intocadas, porque meramente deflectidas para novos canais de expressão; são, por conseguinte, pouco cautelosas. Insistir, por exemplo, que o Deus do Cristianismo, o Alá Islâmico, ou o Tetragramaton Judaico são “o mesmo”, não faz sentido senão num registo tão fraco que se torna trivial e induz enormes “perdas de informação”; se introduzirmos na equação o politeísmo Hindu ou o ateísmo Budista, persistir na ideia de uma comunalidade desliza para o puro nonsense. Da mesma forma que, a meu ver, nos condenamos a perder de vista diferenças que fazem toda a diferença se teimarmos em asseverar que, de algum modo, as vias, os meios, ou as finalidades de todas as religiões são “idênticos”, ou sequer essencialmente semelhantes. 14 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS pelo menos de um ponto de vista analítico, é intrinsecamente interessante. Sem querer entrar em grandes polémicas, é transparente que tensões e conflitos entre religiões têm ocorrido por duas grandes ordens de razões, tanto quanto conseguimos vislumbrar. Primeiro, cada uma delas no essencial representa uma asserção, uma visão particular, do Mundo, de um acesso privilegiado à verdade, quando não ao seu monopólio. Todas as diferenças entre umas e outras tendem por isso a ser retratadas como erros, enganos, ou mentiras, que urge desmistificar. Em segundo lugar, como fenómenos sócio-culturais, ou sócio-políticos, religiões são expressões fortíssimas de identidade; e se julgarmos pela sua disposição em lutar por esta, nada é tão precioso para as pessoas como as credenciais emblemáticas que têm de pertencer ao agrupamento social com que se embrenham. A esta luz, para além de excepcional, a situação ecuménica contemporânea é mais aparente que real, mais uma ficção conveniente que uma descrição convincente4. O facto, teimoso, é que religiões continuam a ameaçar-se mutuamente (e quantas vezes estridentemente) por debaixo do verniz de supostos programas de colaboração bem intencionada. Pior: como muitos observadores têm notado, nos últimos anos a situação geral parece ter-se vindo a agravar. Uma segunda constatação que convém assumir com frontalidade. 4 Comecemos por olhar para o que nos está mais próximo e para o âmago da questão; e façamo-lo simultaneamente arriscando um apelo ao bom senso e deixando a sugestão de que talvez seja prudente evitar confundir desejos com realidades. Para os Cristãos, a propensão para desenfatizar diferenças religiosas é apelidado de ecumenismo; acabámos de ouvir o muito ilustre Senhor D. Januário Torgal Ferreira falar sobre isso mesmo. A nível superficial (e até em termos potenciais) o ecumenismo intra-Cristão parece fazer bastante sentido, como poderia ser de esperar num qualquer esforço de reunificação do que se reputa terem uma vez sido, in illo tempore, tradições comuns. Tal como, com um esforço ligeiramente maior, pode parecer sensato (ou persuasivo) alegar a adequação (e logo eventual eficácia) a um ecumenismo mais lato que ancore os seus programas de acção no âmbito de supostas convergências teológicas de fundo entre todas as (ou muitas das) religiões. É fácil e tentador, com efeito, contemplar a História com lentes que nos levem a considerar todas as diferenciações como cismas, cismas que (é tentador acreditar) seriam penosos obstáculos para uma ansiada unidade sincrética, cosmopolita e até universalística, resultantes de miopias morais ou de mal-entendidos baseados em preconceitos ultrapassáveis, arrogâncias idiotas, ou em falácias irracionais. É particularmente curioso, por isso mesmo que, num período com tantos canais disponíveis de comunicação seja tão difícil manter o momento ecuménico por todos tão almejado. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 15 Esta constatação não é fácil de racionalizar e não deixa de ter uma pouco cómoda e incontornável verosimilhança: muito, com efeito, a corroba. Tal como Huntington insistiu e previa, com a dissolução do enquadramento bipolar que se seguiu ao desmantelar da União Soviética, ódios incubados têm fervilhado e saído à rua. Têm sido escavados novos fossos separadores, para além de terem sido ampliadas linhas de falha arcaicas. A situação (melhor, a conjuntura) é complexa: ao que verificamos, apesar de confrontarem inimigos comuns, as principais religiões do Mundo (e seguramente muitas das fés menores) têm-se insulado ou, pelo contrário, têm sofrido convulsões evangélicas ou proselitistas, e têm-se muitas vezes entrincheirado umas contra as outras em processos cada vez mais globais de competição feroz por lealdades. Muitos são os casos em que a insegurança tem medrado num chão fértil. Uma qualquer simples enumeração de casos funciona como uma espécie de retrato singular do Mundo contemporâneo, uma tomada de pulso resignada: as instâncias mais visíveis e alarmantes pela sua violência (ou violência potencial) separam Muçulmanos de Cristãos ao longo de pelo menos três continentes (Ásia, África e Europa), Hindus de Muçulmanos na Ásia Central, Xiitas e Sunis um pouco por toda a parte, na Ásia do Sudoeste Sikhs de Hindus, Católicos de Protestantes, Cristãos e Muçulmanos e grupos ditos animistas (na África Oriental, por exemplo), e na Europa, Muçulmanos de Ortodoxos e estes de Católicos. Não há combinações que pareçam impossíveis; todos os continentes estão como que afectados. Tal como não há “bloco civilizacional”, como Huntington lhes chamou, que seja imune ao contágio. A religião, ao que parece, tem tido um papel fundamental tanto na presença de velhas fronteiras e antigas linhas de demarcação, como na criação de novas. Religiões têm sido (e ao que tudo indica continuarão a ser) termos nos quais novas guerras são empreendidas. Nesse sentido, nada evoluiu, ou se o fez foi para pior. As guerras religiosas têm tido o que Felipe Fernandéz-Armesto chamou “uma história quase contínua”5: seria imprudente pensar que fosse o que fosse nisso se alterou. 5 F. Fernandéz-Armesto (1997, op. cit.: 48-51), um pequeno estudo truculento sobre o futuro da religião na “modernidade”, que aqui cito liberalmente e sem grande contenção. 16 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Bem pelo contrário. E aí uma perspectivação mais minuciosa e analítica pode ser-nos útil: a persistência de conflitos religiosos violentos, aventar-se-á, ensina-nos imenso sobre o poder, a natureza e o papel da religião, ainda que num Mundo supostamente secular. Por muito que nos custe encará-lo, convenhamos que as renitências e resistências das religiões umas em relação às outras afloram ciclicamente. Não o fazem de maneira constante; mas as pausas são muitas vezes pouco mais do que um trompe l’oeil. Mesmo um Islamismo por tradição honrosamente pautado por uma grande tolerância, tem vindo a mostrar outra face ao Cristianismo e ao Judaísmo mal os entrevê como ameaçadores. O Cristianismo, por sua vez, e não obstante o humanismo cosmopolita e as doutrinas de Paz e Amor universais que advoga, tem sido vítima de episódios exclusivistas violentos como as Cruzadas e as Inquisições. Até o Hinduísmo, internamente estruturado segundo uma enorme inclusividade sincrética, vê hoje nos Sikhs e nos Muçulmanos inimigos de morte. A intervalos (em muitos casos, longos intervalos) algumas religiões são caridosas para com as outras (quase sempre com alguma condescendência…), o que poderia instilar-nos esperança num acatamento reencontrado. Mas face às numerosas recaídas, só uma fé optimista incorrigível nos permitiria alegar que quaisquer alterações de fundo desse género terão vindo para ficar. A irredutibilidade parece pandémica; os desacatos, uma propensão estrutural. Muitas das religiões no Mundo de hoje são, infelizmente, autênticas bombas-relógio. Podemos lamentar o facto e nada nos impede de sobre ele formular considerações e juízos de valor. Se bem que não sejam de esperar, neste campo, grandes concordâncias. Alguns serão da opinião (política) que essas infelizes circunstâncias provam a propensão inata das religiões em fazer mais mal que bem. Outros poder-se-ão recantar na convicção (mais confessional) de que aderentes e oficiantes das religiões são falíveis, imperfeitos, e incapazes por isso de absorver as lições de paz, caridade, resignação, tolerância e comunhão pelas quais a maioria dos credos religiosos ostensivamente propugna. Muitos, com porventura maior neutralidade, insistirão nos aspectos mais positivos e pacíficos da maioria das religiões e verão no recrudescer da conflituosidade não uma manifestação intrínseca da religião, mas antes uma prova conclusiva da força colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 17 gigantesca das afiliações religiosas como fontes e repositórios da identidade social. E localizarão na crescente afirmação destas identidades, e não nas religiões, os reais perigos para o futuro. 3. Neste fim do século, muitas das guerras têm efectivamente essas características religioso-identitárias. As suas frentes são conhecidas. A fragmentação da Índia pós-colonial teve uma base religiosa, Muçulmanos contra Hindus, um problema ainda não resolvido, como se vê nas tensões fronteiriças actuais em Cachemira; os conflitos dos últimos com os Sikhs têm envenenado a paz social naquele país, e a efervescência do mais recente renascimento hinduísta (que tem tido como corolários ataques a Cristãos, entre outros), lança dúvidas quanto a uma qualquer pacificação eminente. Na guerra surda (e já com barbas) de Católicos contra Protestantes irlandeses, seria arriscado aventar soluções, não obstante os aparentes compromissos recém-logrados. Nos Balcãs, confrontações no mínimo tripartidas têm desde o princípio de decénio (e desde há vários séculos) virado Católicos, Ortodoxos e Muçulmanos uns contra os outros, na Bósnia-Herzegovina Ortodoxos contra Muçulmanos, com a mesma receita no Kosovo. No Líbano, a forma mais económica de descrever a longa guerra é decerto caracterizando-a como uma série de confrontações entre Cristãos, Judeus, Xiitas, Sunis e Druzos. Não é particularmente abusivo ver a religião como uma dimensão activa nas guerras Israelo-Árabes, na dos Arménios contra os Azeri, a dos Russos com os Chechenos, ou até nas (infelizmente mais próximas) brutalidades dos Indonésios contra os Timorenses. Um novo espírito do tempo, dir-se-ia, está a assentar arraiais. Os afegãos encararam a guerra com os soviéticos com um jihad dos mujahidin contra os invasores, tal como o têm feito as minorias Islâmicas que nas Filipinas e na Tailândia, ou como, mais tarde ou mais cedo, talvez o venham a fazer as da China, em Xinjiang. Tudo isto augura com efeito corrobar o modelo de Huntington, ao acentuar um crescendo sensível na preponderância daquilo que ele tão graficamente 18 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS apelidou de “linhas de falha civilizacionais”, que o fim da arquitectura bipolar teria como que feito vir à tona. Mas tal está longe de ser pacífico. Porque não deixa de ser verdade (como muitas vezes tem sido objectado) que cada caso é um caso; e que, se o preço a pagar pela adequação de todos os casos particulares a um mesmo quadro genérico é um apagamento de diferenças e distinções conceptuais fundamentais, então o preço é demasiado alto6. Em causa estão problemas de fundo cruciais como a questão, tão vexatória, da definição do que é “uma guerra religiosa”, um conceito extraordinariamente árduo de desfiar. O que está em jogo não é uma hesitação puramente formal, mas sim uma dúvida substantiva: se subsumir eventos essencialmente diferentes sob a égide de um conceito unitário é muitas vezes útil e tranquilizante (já que evita confusões e eventuais dissonâncias cognitivas), o fazê-lo redunda num raciocínio circular se for baseado numa petição de princípio. O risco, obviamente a evitar, é o de se acabar por concluir precisamente aquilo que começámos por fabricar. Uma guerra é religiosa quando a sua motivação é religiosa ou, em rigor, é-o apenas quando as suas finalidades são religiosas? Ou ambas? E podemos considerar um conflito como religioso se a religião for só um dos seus vários factores, ou deve o conceito ser reservado estritamente para guerras de cariz integralmente confessional? E o que é que isso quer dizer? É difícil não ter a impressão de que as interpretações mais maximalistas do modelo de Huntington, sem embargo da sua notável elegância intelectual, ganhariam com uma muito maior sofisticação nestes domínios. Dificuldades como esta são ademais agravadas pela evidência de que nem todas as religiões exibem a mesma propensão para a conflitualidade. Mais, mesmo no seio de uma única religião (por exemplo o Catolicismo) vivem-se períodos mais violentos do que outros, como um mínimo de atenção torna evidente. Ao que se adiciona a constatação de que, já que a religião e a identidade estão tão intimamente interligadas, o redimensionamento político das religiões é tantas vezes um facto insofismável. Por outras palavras e para voltar ao que atrás foi dito: conflitos 6 As explicações fáceis, a essa luz, saem a perder: não Huntingon, ele próprio um autor cauteloso, mas algumas leituras que dele são feitas e que pecam por excessivas simplificações. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 19 religiosos são, não raramente, conflitos étnicos mascarados. O que suscita novos problemas, já que recoloca e reposiciona as questões exigindo formulações teóricas mais elaboradas e muito mais criteriosas. Um outro bom sintoma desse déficit de elaboração teórica (com graves consequências e implicações para a compreensão dos factos) tem a ver com o esmiuçar imprescindível do que é, daquilo que significa, “um processo de identificação étnica”7. A dúvida está longe de ser simples; justifica-se portanto determo-nos um pouco sobre esta tão necessária redimensionação das questões político-religiosas abordadas por Huntington. Muitos exemplos de distorções resultantes de simplificações depauperizantes (por não tomarem em linha de conta considerandos destes) são possíveis. Ocorre-me um, muito geral: como escreveu memoravelmente Ernest Gellner em 1992, “ao contrário do que as pessoas de fora geralmente supõem, a mulher Muçulmana típica numa cidade Muçulmana não usa o véu por a sua avó o ter usado, mas porque ela não o usou: a avó, na aldeia, estava demasiado ocupada no campo, e frequentava os locais de culto [shrines] sem véu, e deixava o véu para os seus superiores. A neta está a celebrar o facto de se ter juntado aos superiores da avó, mais do que a sua lealdade à sua avó” [1992:16, tradução minha]. A lição é bem aprendida: o conhecimento detalhado do contexto sócio-cultural adequado, e da natureza precisa da acção simbólica levada a cabo (neste como em muitos outros casos) põem a nu 7 Como escreveu há uma trintena de anos Abner Cohen, “a etnicidade, na sociedade moderna, é um resultado da interacção intensa de diferentes grupos culturais e não o resultado de uma qualquer tendência para a separação”. Ou seja, e por outras palavras, a identidade (qualquer identidade, mesmo a étnica) é melhor concebida se tomada como um fenómeno relacional, um campo cultural de acção que passa pela definição de uma pertença, de uma origem, ou de uma orientação, estreitamente ligadas à construção social de uma comunidade. Trata-se de uma construção que tem sempre lugar no enredo de uma conjuntura sócio-política pré-existente; e que logo, por isso mesmo, não pode de maneira nenhuma ser tornada inteligível a partir de puros e simples pressupostos “primordialistas” que insistam, por exemplo, no “nacionalismo incipiente” de um qualquer grupo etnolinguístico; ou que inventem uma imaginária propensão político-militar intrínseca a todas as religiões. É invariavelmente em termos do seu contexto preciso (e só nos seus termos) que a etnicidade, ou o nacionalismo como uma sua expressão mais politizada, se tornam plenamente compreensíveis. Para um estudo interessante elaborado sob esta perspectiva, ver J. de Pina Cabral (1994), sobre a etnicidade em Macau. 20 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS inflexões causadas por interpretações apriorísticas8, e guiam-nos de forma segura na reconstituição do sentido e do alcance das asserções étnico-religioso-nacionalistas; tudo passos imprescindíveis, como tentarei cursoriamente demonstrar. Aventar generalizações sem as distinções finas que resultam de um esmiuçar cuidadoso de mecanismos sociais complexos é sempre arriscado. A articulação entre religiões e identidades, e a associação deste par ordenado com a violência política (uma ligação não necessária mas comum, nuns casos naturalmente mais do que noutros) tem desde há muito suscitado um vivo interesse académico. Numerosos estudos se têm debruçado sobre religião e nacionalismo. Menos, mas em todo o caso bastantes, sobre religião e etnicidade. Seria absurdo tentar neste Seminário uma qualquer recensão do muito que tem sido produzido neste domínio; limitar-me-ei, por isso, a dois breves exemplos, ambos passados, que me parecem pertinentes visto dizerem respeito a mudanças sociais algo semelhantes àquelas hoje em curso. Não pretendo com eles mais do que simples avisos à navegação: não preenchem outra função senão a de alertar para a intrincação da tríade religião-política-identidade. Um primeiro é relativo às Filipinas de finais do século XIX e dos dois primeiros decénios do século XX. Numa monografia excelente, publicada em 1979 e intitulada Pasyon and Revolution (uma refundição da sua tese de doutoramento na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos) o autor, um historiador filipino, Reynaldo Ileto9, debruçou-se sobre as rebeliões místico-políticas, chamemos-lhes assim, que lá tanto caracterizaram esse período. Numa análise soberba no detalhe e exímia a nível epistemológico, Ileto mostrou que movimentos nativos tais como o Katipunan, a Confradia de San Jose, ou a Santa Iglesia (os três maiores movimentos independentistas locais), se sublevaram contra a dominação espanhola utilizando armas conceptuais inadvertidamente postas à sua disposição pelo próprio inimigo. Pensar a unidade, a nação, ou 8 O que para além de intelectualmente grave nos faria correr o risco de não conseguir compreender plenamente este fim de Milénio em que, como tem sido notado, o Mundo padece quase exclusivamente de guerras civis, pelo menos metade das quais secessionistas. 9 R. Ileto (1979), uma obra que creio essencial para a compreensão dos progressos do nacionalismo timorense. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 21 mesmo o povo filipino, notou Ileto, era radicalmente inviável em culturas onde tais conceitos não existiam; tal como impossível seria “imaginar” (para utilizar a terminologia de Ben Anderson) alterações e transformações sócio-políticas que melhorassem um estado colonial de coisas então comummente reputado pela população nativa como insustentável. Os habitantes das Filipinas apenas dispunham de uma experiência colectiva, o Drama Litúrgico hispânico medieval (uma encenação pública da caminhada de Jesus Cristo para o Monte das Oliveiras) e de um guião em língua Tagalog (um texto para-litúrgico, o Pasyon Pilapil), para retratar e estruturar em detalhe gráfico (como ainda hoje o faz) sequências de transição como a composta pelo sofrimento, a morte e a redenção. Decalcando discursos sobre este modelo, argumentou Ileto, os revolucionários filipinos elaboraram e deram corpo a uma espécie de Teologia da Libertação avant la lettre: na organização da sua resistência, o líder político era visto como uma encarnação de Jesus Cristo, os seus chefes político-militares como os apóstolos, a luta como a caminhada da Paixão, e a Independência como a Redenção. Os grupos assumiam nomes explicitamente religiosos (Fraternidades, Confrarias, Igrejas). A sequência como que formatou a rebelião. A insurreição foi interminável e os novos senhores coloniais norte-americanos herdaram-na em 1898; só a conseguiram resolver em 1910. O preço: largas centenas de milhares de mortos, de um lado e de outro. Um corolário: o nacionalismo filipino e a religião são indissociáveis. Um segundo exemplo refere-se a finais do século XX e à luta de parte da maioria negra Shona contra a minoria branca (política, militar e economicamente dominante e hegemónica) na antiga Rodésia. Num estudo intitulado Guns and Rain, publicado em 198510 por um antropólogo sul-africano, David Lan, foi abordada a questão, complexa, da mobilização (iminentemente bem sucedida) dos Shona Korekore pelos guerrilheiros revolucionários da Zanu. Dada a impossibilidade manifesta de recrutar ajudas locais com base nas cartilhas marxistas-leninistas, a guerrilha Zanu recorreu a alianças firmes com os “feiticeiros” Shona fazedores de chuva. Os Korekore estão divididos em clãs, dos quais o principal é 10 D. Lan (1985), com esta monografia, ofereceu-nos uma grelha de análise brilhante, mas que parece ter dado poucos frutos. 22 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS o dos Elefantes, de que saem sempre os chefes. A conquista dos Korekore pelos pastores que viriam a formar este clã é contada, em longas séances públicas, pelos espíritos dos chefes do passado, os mhondoro, que falam pela boca dos feiticeiros possuídos. Lan mostra, em páginas vivíssimas, como a aliança entre os guerrilheiros da Zanu e estes fazedores de chuva funcionou com toda a eficácia: com uma legitimidade oferecida pelos mhondoro, os guerrilheiros como que se transmutaram, aos olhos dos Shona, de outsiders em encarnações de antepassados da estirpe real dos Elefantes. O resultado, nessa zona de fronteira com Moçambique: uma mobilização geral que, apesar de inúmeras mortes, não se deu por satisfeita enquanto não conseguiu assegurar a sua quota-parte na vitória final da maioria, e na consequente transformação da Rodésia em Zimbabwe. Neste exemplo, como no anterior, são complexíssimos (e nos dois casos inesperados) os mecanismos sócio-religiosos de construção de identidades. E impossíveis, diria eu, de deduzir a priori. 4. Insisti nos custos incorridos por teorizações como a de Huntington, que resultam amiúde de generalizações que escondem tanto quanto revelam, e que nos tendem a levar de volta ao seu ponto de partida. A par e passo tentei ainda mostrar como, sub-reptícia e insidiosiosamente, generalizações desse tipo reintroduzem quantas vezes uma dimensão política avulsa (pela porta das traseiras, por assim dizer) na leitura que fazemos da acção religiosa. Este dado parece-me nevrálgico: o que está em causa, deste ponto de vista, é o papel preenchido, na própria estrutura das nossas explicações de clivagens, conflitos, e outros processos relacionais, pela religião, por um lado; e, por outro lado, pela etnicidade ou pelo nacionalismo – se se quiser pela política. O problema não é linear: porque nos panoramas contemporâneos a política e a religião muitas vezes não são termos que aludam a duas modalidades distintas de pensamento e acção, mas sim conceitos operativos que não fazem mais do que denotar dois aspectos, indissociáveis, de todas as acções e representações colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 23 sociais11. O que dificulta enormemente a compreensão de processos e está no fundo na raiz de muitas das simplificações que somos em resultado tentados a aceitar. Mudemos de ponto de aplicação, mas retendo os cuidados. Ao nível da elaboração de modelos analíticos que digam respeito ao sistema moderno de relações internacionais, parte do que está em causa é, no fundo, a urgência de uma reconsideração dos papéis respectivamente preenchidos pela cultura e pelo poder. O modelo do “Choque das Civilizações” nisso ajuda, mas não chega. É necessário, mas não é suficiente. Chama a atenção para o problema, mas não o resolve de maneira satisfatória. Postula um papel crescente para entidades não estatais (no caso supra-estatais), nos palcos internacionais de hoje, a par com os Estados tão reificados pela tradição realista e neo-realista. Sugere uma desconstrução saudável da imutabilidade a-histórica da “anarquia hobbesiana”, mas no fundo substitui-a por uma visão sincrónica e igualmente estática de um “estado de natureza”, apesar do tom spengleriano ou toynbeeiano das entidades civilizacionais que afirma e erige. O que não lhe permite prever muitos dos desenvolvimentos diacrónicos mais recentes dos cenários internacionais. Ilustrá-lo é facílimo. A guerra da NATO no Kosovo pode servir como um bom caso-teste, recente, do modelo básico de Huntington, e dos seus limites face a possíveis explicações paralelas (ou complementares), paradoxalmente mais “clássicas”. Explicações, por exemplo, que ponham a tónica, não em clivagens culturais, mas nas relações de poder. Com efeito, uma adesão estreita ao modelo de Huntington (ele próprio, em trabalhos recentes, tem mostrado uma clara consciência do facto) levar-nos-ia a várias conclusões que os factos empíricos puros e duros não verificam. Seríamos assim, por exemplo, conduzidos a considerar como em última instância incompreensível que o cristianíssimo Ocidente possa agir contra Cristãos (ainda que Ortodoxos) em defesa de Muçulmanos (ainda que 11 Para um ponto afim, ver o curto artigo de um investigador português, Miguel Vale de Almeida (1999) sobre as políticas populares de “africanização” político-religiosa contemporânea na Bahia, Brasil, nomeadamente no que toca à instrumentalização conjuntural da identidade étnica num âmbito religioso-cultural. 24 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS também europeus). Desta perspectiva a “questão kosovar” transtorna o paradigma huntingtoniano. A não ser que consideremos que haja objectivos secretos ulteriores, uma qualquer lógica insidiosa que leva a que as coisas sejam exactamente o contrário do que parecem12. Mas não ficamos por aqui. É curiso notar, para além disso, que, face às mesmas questões, nada nos impede de alegar precisamente o contrário: ou seja que casos como o do Kosovo corroboram o modelo huntingtoniano, como se pôde ver nas solidariedades grega (ortodoxos tal como os sérvios) e russa (eslavos, para além de correlegionários). Nesta versão alternativa, houve de facto uma Clash à la Huntington, de que saíram derrotados sérvios, russos e gregos. O meu ponto é este: já que ambas não podem ser simultaneamente leituras correctas, mas já que ambas são possíveis, então é porque o modelo de Huntington não está completo – deixa alguma coisa de fora. Parece-me claro que teorias de complot (que são por via de regra tão dificilmente refutáveis como são indemonstráveis) se por um lado superficialmente confirmam e realçam as teses de Huntington, por outro põem em evidência o desconforto com que os huntingtonianos mais simplistas encaram alguns dos factos do Mundo contemporâneo, factos ambíguos que não podem senão aparecer-lhes como anomalias. Tal como julgo óbvio que declarações teimosas 12 Curiosamente, e como talvez fosse de esperar, muitos dos cidadãos de países árabes, como o retratou um artigo recente do Economist, parecem sustentar um tipo de opinião que consiste na fabricação apressada de elaborações secundárias construídas precisamente para negar essa incompreensibilidade e para assim manter viva a interpretação “huntingtoniana”: segundo o Economist, poucos árabes, com efeito, confiam na justificação da NATO de que teria decidido agir dada uma genuína preocupação com os Kosovares; alguns têm por isso insistido que o que está realmente em causa é a urgência europeia (e, sobretudo, norte-americana) em “mostrar quem manda no Mundo”; outros, mais elaborados (entre os quais jornalistas, líderes religiosos e intelectuais), têm insistido que as acções foram desencadeadas por uma NATO plenamente consciente de que os seus ataques iriam acelerar a infame limpeza étnica, sendo o verdadeiro objectivo final dos aliados o de expulsar, em definitivo, os Muçulmanos da Europa; outros ainda, menos teleológicos mas igualmente maquiavélicos, têm advogado nos jornais e televisão do Magrebe e do Médio Oriente que o ataque aos Cristãos sérvios foi uma ignóbil táctica de sedução destinada a arrefecer a indignação da opinião pública Islâmica relativamente a futuros (e iminentes) novos ataques ao Iraque, à Libia e a outros países árabes. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 25 que insistam que Huntington tinha razão visto o conflito ter tido lugar essencialmente entre culturas e civilizações (e religiões) não são muito convincentes, e deixam outras anomalias sem explicação. Sem sombra de dúvida a crise jugoslava põe em cheque pelo menos a suficiência do modelo básico do Clash of Civilizations. Um momento de reflexão, aliás, traz à superfície não só estas, mas também outras, limitações; e fá-lo, creio, de maneiras interessantes, já que me parece sugerem algumas das dificuldades epistemológicas específicas da grelha explicativa de Huntington. Um exemplo suplementar é o que nos é disponibilizado pela reacção do Iraque e da Líbia à operação Aliada no Kosovo – países que apesar de muçulmanos, imediata, vocal, e quase incondicionalmente, professaram “apoio total” a Milosevic e aos nacionalistas sérvios, disponibilizando-lhes mesmo (ou, pelo menos, assegurando fazê-lo) “especialistas” em guerrilha, medidas de resistência anti-bombardeamentos, e até bem testadas tácticas propagandísticas e diplomáticas. Sem querer aventar quaisquer juízos de intenção, tratou-se com toda a evidência de reacções que deram precedência ao ódio e à desconfiança anti-ocidental sobre eventuais solidariedades pró-Islâmicas ou hipotéticas preocupações religiosas ou culturais com atrocidades sérvias. À contre-sens, note-se, relativamente ao predito pelo modelo de Huntington, ou em todo o caso ao que diz respeito a uma aplicação maximalista por seguidores seus mais radicais. Mais uma vez contradizendo as expectativas desse novo modelo convencional. As posições grega e russa também foram instrutivas. Como previam os huntingtonianos, a população da Grécia, esmagadoramente Cristã Ortodoxa, apoiou vocalmente os correligionários sérvios. Mas foram sobretudo grupos extremistas, ultra-nacionalistas e comunistas, por exemplo, os que mais activos foram na sua solidariedade – precisamente aqueles que, por razões antes político-ideológicos que propriamente civilizacionais (tal como na Rússia Ortodoxa e eslava) mais próximos se sentiram dos sérvios; ou mais distantes se sentiram dos Aliados, nomeadamente dos norte-americanos… Em todo o caso, e contra as eventuais previsões huntingtonianas, os Estados grego e russo, ainda que com aparentes avanços e recuos, mantiveram firme a sua aposta, realista, numa raison 26 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS d’État que persistiu sempre em investir nas realidades do poder em detrimento de uma qualquer identificação transcendente13. Nestes como nos casos anteriores, não quero deixar de reiterar, o que está realmente em causa (e explica as aparentes anomalias) é o papel muito real preenchido nas relações internacionais (mesmo depois da fim da bipolaridade) não só pelas relações culturais, mas pelas relações tácticas e estratégicas de poder, bem como pelas estratégias dinâmicas do seu exercício. Clivagens e linhas de falha culturais, ou civilizacionais, podem ser muito importantes e talvez tendam a ver a sua centralidade aumentar na nova ordem internacional. Mas a velha power politics continua, incólume, a canalizar as Realpolitik dos Estados sem prestar grande atenção (que não a pragmaticamente útil) a quaisquer “linhas de falha” prévias. Parece-me defensável argumentar, por exemplo, que (tal como tinham já evidenciado na Guerra do Golfo) os Estados Unidos estão empenhados em cimentar alianças transversais relativamente aos grandes blocos culturais, nomeadamente ao Muçulmano. Estão claramente apostados em criar acontecimentos internacionais públicos que desenfatizem, senão a unidade dos “blocos civilizacionais”, pelo menos a sua percepção. Com algum sucesso: depois da crise 13 Os turcos, que conquistaram o Kosovo no século XIV e o abandonaram no século passado, sentem em relação aos albaneses (por eles, otomanos, convertidos ao Islamismo) fortes ligações e responsabilidades; pelo menos três milhões de cidadãos turcos, muitos deles influentes políticos, militares ou líderes económicos são de ascendência parcialmente albanesa. Não surpreendentemente, os turcos foram, desde o princípio da última crise, apoiantes firmes da NATO. A Turquia ofereceu a sua Força Aérea para bombardeamentos, disponibilizou para tal as bases do seu território (o que não fez em Dezembro último quando dos ataques do Iraque) e manteve uma postura firme e bem audível de solidariedade, a todos os níveis, no interior da Aliança Atlântica. Mas isto é só parte de narrativa. Porque seria decerto absurdo, convenhamos, uma qualquer explicação do comportamento turco que descontasse (ou que secundarizasse) factores como a pertença da Turquia à NATO, a urgência governamental em proceder a uma lavagem de cara junto aos países ocidentais no que diz respeito ao tratamento que as autoridades turcas elas mesmo têm infringido aos Curdos e aos militantes Islâmicos locais, a questão (então na ordem do dia) do julgamento do líder do PKK, ou até a assunção de uma postura mais palatável, perante esta crise balcânica, que a dos gregos. Tudo razões de poder, não de cultura…Tal como, de resto, o apoio professado pelo Vaticano às teses sérvias, manifestamente mais atento a reaproximações a longo prazo do que preocupado com humanitarismos mais lineares e imediatos. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 27 kosovar deixou de ser linear (ou até muito convincente) a visão afunilada segundo a qual os blocos seriam monolitos inamovíveis. Mais do que isso: à insuficiência de puras motivações prévias junta-se a importância de motivos ulteriores. Não será seguramente muito especulativa a ideia de que a insistência norte-americana em intervir na ex-Jugoslávia não é independente da sua urgência em substituir (ou complementar) bases na Alemanha com outras, na Europa do sudeste. Uma última ilustração das insuficiências de um huntingtonianismo radical, mais anedótica e que revela de um cenário paralelo, diz respeito às sucessivas posturas político-religiosas assumidas por aquele que foi o clérigo mais “graduado” da Arábia Saudita até à sua morte em finais de Maio passado, o Sheik Abdel-Aziz Bin Baz. O Sheik foi Juiz, Reitor universitário, Presidente da Comissão das fatwa (os decretos religiosos islâmicos) e, finalmente, Grande Mufti, um posto especificamente reactivado pelo Rei em sua honra. Aliado dos revivalistas bastante radicais, os célebres Wahabi, o Sheik Bin Baz colaborou durante decénios, como ulema (especialista religioso), com sucessivos reis saudi, do Rei Saud a Faiçal, e finalmente a Khalid e Fahd. Quando em Agosto de 1990 o Iraque invadiu o Kuwait, o Rei Fahd, sempre prudente, viu-se obrigado a ter que tomar decisões difíceis: colaborar militarmente com o Ocidente abria brechas entre príncipes e clérigos saudi; não o fazer era pior, já que expunha o reino saudita às ambições territoriais hegemónicas de Saddam Hussein. A entrada em cena do Sheik Bin Baz, foi providencial. Bin Baz exarou uma fatwa que estipulava que, em casos de emergência extrema seria permissível a um Estado muçulmano solicitar ajuda a não muçulmanos, assim legitimando a solução preferida pelo Rei. Meio milhão de soldados Aliados entraram no reino. Meses mais tarde, o Sheik acrescentou uma segunda fatwa, redefinindo a guerra contra Saddam como um jihad. Tudo isto de um líder religioso conhecido por sempre insistir que a Terra é plana, que filmes e fotografias são gravosamente imorais, e que mulheres que estudem em instituições mistas não são mais do que prostitutas. Quando dos célebres Acordos de Oslo, mais recentemente, o Sheik Bin Baz produziu uma outra fatwa, legalizando e aprovando o processo de paz israelo-árabe. O que não deixou de causar burburinho interno: Osama Bin Laden, por exemplo, o dissidente saudita exilado, notório pelas acusações de montar o seu próprio jihad contra Israel e os Estados Unidos (e responsabilizado por estes pelos 28 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ataques terroristas às embaixadas norte-americanas na África Oriental e na Ásia Central durante o ano passado), insurgiu-se violentamente contra Bin Baz e exigiu (sem sucesso, naturalmente) a sua demissão imediata. Histórias de caso deste tipo (e haveria muitas outras) parecem-me sublinhar o óbvio: que, por muita importância e centralidade que queiramos atribuir a motivações culturais e religiosas no que toca a decisões em política internacional, fazê-lo sem reconhecer o lugar devido à pragmática da Realpolitik, à luta nua e crua pelo poder e às suas involuções, independentemente de quaisquer preocupações identitárias, éticas ou religioso-cosmológicas, é pura e simplesmente reducionista. Mais ainda e em termos gerais: perspectivações estáticas e a-históricas deixam muito a desejar; encarar blocos civilizacionais como entidades impermeáveis e imutáveis inviabiliza previsões e uma melhor compreensão dos acontecimentos. Pior: basear explicações (ou mesmo descrições) em modelos culturais abstractos e gerais é muitas vezes empobrecedor – logo enganador, já que pode sugerir implicações e parece permitir inferências por defeito condenadas à nascença. 5. Moderar, como estou a tentar fazer, os excessos de uma teorização huntingtoniana polarizada e simplista com o que considero uma sóbria constatação da importância continuada da dinâmica das relações de poder, não constitui propriamente uma desvalorização do excelente contributo que nos é oferecido pelo Clash of Civilizations. Nem relativizar a capacidade das religiões (ou ancorá-las, tanto a elas como ao seu potencial político, no âmbito do social) significa, de algum modo, uma qualquer minoração destas. As religiões sobrevivem facilmente a isso e a muito mais14. Mas, como tentei mostrar, se suscitar dúvidas não redunda 14 E considerá-las como parte do social não derroga seja o que for do seu valor: antes lhe acrescenta alguma coisa. Como escreveu em 1997, Felipe Fernandéz-Armesto, que já atrás citei, “o futuro da religião, se há um, terá lugar no Mundo que conhecemos. O problema é de equilíbrio. Quando as religiões são absorvidas pelo Mundo, deixam de ser religiões. Quando o ignoram, deixam de ser eficazes” (1997, op. cit.:15, tradução minha). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 29 numa desvalorização nua e crua das teses de Huntington, não deixa por isso de delas lograr uma reformulação, ou um esbatimento. O que me parece essencial, se quisermos saber arrumar (e perceber) a multiplicidade de acontecimentos (aparentemente avulsos, mas com uma semelhança de família suspeita e sugestiva) que podemos observar no palco internacional contemporâneo. Não se trata propriamente de lhe fazer uma crítica, mas mais de dar uma achega a um modelo lúcido e muito claro. Que uma reperspectivação deste tipo não é uma heresia, corroba-o o facto de o próprio Huntington, num artigo recente publicado no penúltimo número da Foreign Affairs15, com toda a evidência o assumir. Ao escrever, há apenas meia dúzia de meses, sobre os Estados Unidos como The Lonely Superpower, o autor do “Choque de Civilizações” alterou o acento tónico das análises anteriormente propostas, sem no entanto lhes modificar grandemente a substância, ou o conteúdo. Tal como nos dois Clash of Civilizations, no recente Lonely Superpower Huntington insiste que, durante o correr da presente década, os cenários políticos globais têm sido “substancialmente reconfigurados segundo linhas culturais e civilizacionais”. Mas, agora, o foco é posto pelo autor no que considera “desde sempre” a outra perna da política internacional: “a política global é sempre sobre o poder, e as relações internacionais de hoje estão a modificar-se ao longo dessa dimensão crucial. A estrutura global do poder na Guerra Fria”, escreve, “era basicamente bipolar; a estrutura emergente é muito diferente” (1999:35 tradução minha). Segue-se uma cartografia detalhada do que Huntington considera a novíssima geometria de alianças e antagonismos. O resultado, curiosamente, é um policy paper quase totalmente neo-realista, em que o “huntingtonianismo” mal transparece. No Mundo em que hoje vivemos (e a que Huntington chama “uni-multipolar”) para o nosso autor a única superpotência global sobrevivente, os Estados Unidos, estará em competição directa com as grandes potências regionais (a Alemanha, a Rússia, o Brasil e a China, por exemplo) e, em consequência os norte-americanos previsivelmente aliar-se-ão às de “segunda 15 S. Huntington (1999), um excelente position paper, em que o autor simultaneamente faz um balanço da sua teorização anterior e a modera com considerações políticas “clássicas”. 30 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS linha”, para lhes fazer frente: à Ucrânia, à Argentina, ou ao Paquistão. Longe das famosas “fronteiras sangrentas do Islão”, nesta releitura os conflitos prospectivos contra que nos devemos precaver serão nas várias áreas de influência multipolar. E terão, como protagonistas, não turbas religiosas, mas antes líderes políticos de Estados regionais de segunda apanha que, Huntington dixit, reconhecerão como conveniente a coligação com os Estados Unidos (como potência global) na sua resistência à hegemonia dos novos senhores da vizinhança. Mas o modelo, no essencial, continua estático. Tal como o Clash of Civilizations, é mais sugestivo e diagnóstico que útil para quaisquer previsões. 6. Não queria acabar sem algumas considerações cursórias e sucintas. O Mundo contemporâneo, de muitos pontos de vista, apresenta-se-nos tão ambíguo como perigoso; o prognóstico entra pelos olhos dentro. Se o Mundo moderno se subdivide, também se une. Aos estretores centrífugos finais da bipolarização e à fragmentação consequente do palco internacional em vários palcos locais, adicionam-se processos centrípetos de uma globalização acelerada, potenciados por novas estratégias económicas, por inovações no campo das comunicações, pela circulação fluída da informação, e pela entrada em funcionamento consequente de mecanismos políticos poderosos que visam estruturar a nova global village em construção16. Uma linha de fuga a que Huntington atribuiu pouca importância, ao nível da arquitectura teórica que edificou. Mas o que outros porém fizeram. Numa obra notável publicada em 1995 (e revista em 199617), Benjamin Barber, da Universidade de Rutgers, intitulou estas duas tendências simultâneas, respectivamente, de Jihad e de McWorld. Para Barber, as duas forças em confronto (a de um McWorld centrípeto e a de um Jihad 16 Para uma visão panorâmica da progressão em várias frentes da globalização, é útil o livro do sociólogo australiano M. Waters (1995). 17 B. Barber (1996) inclui na reedição do seu estudo, alguns dos comentários que sobre este lhe tinham sido formulados, nomeadamente por Bill Clinton. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 31 centrífugo) encerram riscos. Riscos graves, já que para além de estarem em despique uma com a outra, estas forças relevam intrinsecamente de tendências pouco pacíficas. É fácil vê-lo. A “mão invisível” do mercado global, a neo-liberal, está ligada a um “braço manipulador” que “se não for guiado por uma cabeça soberana, é deixado às contingências da ganância espontânea” (1996:220, tradução minha). Enquanto que os “nacionalismos” e as “religiosidades” pós-modernas por norma parecem identificar-se a si próprios pelo contraste com o “outro” estranho, transformando a política num exercício de exclusão e ressentimento. São forças que promovem comunidades, mas habitualmente à custa da tolerância e da mutualidade; logo, “criam um Mundo em que a pertença é mais importante que o empowerment, e em que fins colectivos impostos por líderes carismáticos tomam o lugar de bases comuns produzidas por deliberações democráticas” (ibid: 222, tradução minha). O futuro, visto desta perspectiva, encerra seguramente muitíssimos monstros novos. Os reais perigos do futuro, gostaria de sugerir, parecem-me no essencial residir a nível dessas duas linhas de força. O idioma em que, impetuosamente, da Sérvia ao Kosovo, da Flandres ao País Basco, do Quebeque à Tchetchénia, as tribos reinventadas e as novas comunidades imaginadas levam a cabo os seus jihad (sejam fundamentalistas cristãos, rebeldes congoleses, ruandeses, sul-angolanos, ou guerreiros divinos muçulmanos) continua a ser a linguagem dura da política. A religião pode ser (e muitas vezes é) o refrão, a deixa, ou o tema de fundo: mas o motor, o propulsor, é (continua a ser) o da etnicidade e o do nacionalismo. Uma doença já antiga. A questão que se põe e que julgo mais fascinante é a de apurar se se trata, nesses fogos novos que se ateiam, do mesmo nacionalismo que o gestado na Paz de Westphalia e depois retomado e alterado no século XIX, ou se é algo de radicalmente novo. Um tema que tem sido, no fundo, abundantemente suscitado neste Seminário e que é pertinente. Os idiomas políticos modernos são atípicos: a retórica utilizada parece (muitas vezes e em sentido estrito) demasiado mundana para ser a de verdadeiras religiões; e é de longe sectária e exclusivista demais para ser nacionalista. Para esta questão parece-me sem dúvida preferível (na esteia de Michel Ignattief e de B. Barber, entre outros) uma resposta compósita a uma resposta 32 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS essencialista (segundo a qual só os velhos nacionalismos seriam de facto nacionalistas), ou a uma resposta fenomenológica (de acordo com a qual ambas as variedades seriam de nacionalismos). Há alternativas. Podemos assim certamente asseverar que nacionalismos, quaisquer que sejam as suas cores, são sempre decomponíveis em dois grandes “momentos”: um, de identidade do grupo e de exclusão; um outro, igualmente importante, de inclusão e integração. Diferem no doseamento relativo dos dois termos deste binómio, deste par de ingredientes. É nisso que se distinguem os contemporâneos dos do passado. Os nacionalismos westphalianos punham a tónica com firmeza no segundo “momento”, o de construção, e lograram ultrapassar o feudalismo e implantar a eventual construção de nações-Estado; no século passado, na fase expansionista interna e externa, estes nacionalismos, em nome da tão almejada integração inclusiva, mantiveram à margem o identitarismo exclusionário18. O século XX e os processos de interdependência, alargamento e, eventualmente, globalização, geraram, pelo contrário, “tendências do primeiro momento”, chamemos-lhe assim, forças voltadas para a desconstrução, a oposição e a hostilidade ao Estado e aos “outros”. As suas manifestações são muitas e variadas. Às vezes são duras. Noutros casos são apagadas. Na Europa, nomeadamente, (para só dar um exemplo e para tornar a citar Barber), ou pelo menos nas democracias europeias, “a tentação de resistir à modernidade lê-se no comentário nervoso que a modernidade faz sobre si própria” (ibid: 169, tradução minha). As “versões pálidas” do jihad europeu (dos Jihad na Europa e por europeus) têm assumido duas formas que se intersectam, e que infelizmente mesmo em Portugal reconhecemos: o “provincianismo”, que vira as periferias contra os centros; e o “paroquialismo”, que desdenha o cosmopolita. Trata-se todavia de um Jihad aguado, já que a Europa, bem posicionada no centro, não é senão um fraco microcosmos (e um particularmente anémico) dessas novas confrontações. 18 Muitos são os estudos que sob este e outros temas afins nos últimos anos que se têm debruçado. Retenho aqui um, de A. Linklater (1998), precisamente sobre a evolução e as transformações a que têm estado sujeitos mecanismos de exclusão. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 33 Em minha opinião, tendências destas são, no fundo, expressões das mesmas forças sociológicas ambíguas que caracterizam a modernidade e cujas manifestações parciais, num reflexo, Huntington capturou no espelho fugaz da nova ordem internacional que previu com uma nitidez tão convidativa. Uma visão mais ampla, creio no entanto, contemplará com utilidade a perspectivação de um Mundo dividido em blocos culturais com outra, uma segunda visão, a de um Mundo em convergência acelerada. Um Mundo do qual blocos, quaisquer que eles sejam, não são senão uma configuração relacional de passagem, um momento, porventura inevitável num processo de maturação, de resistência passageira. Blocos que, num canto de cisne, afirmam, no contexto da recente intensificação profunda de interacções, as suas pertenças, origens e orientação, em estreita ligação com a construção (em plano inclinado e curso acelerado) de uma nova ordem internacional. Num Mundo a caminho de uma integração global, hoje económica, amanhã política, depois talvez sócio-cultural – a afirmação de identidades étnicas é um processo relacional compreensível. De uma postura meramente local, em que a especificidade de cada grupo era um dado adquirido (porque embutido na própria divisão e fragmentação do panorama geral) transitou-se para uma nova situação estrutural, uma configuração mais dinâmica, em que a posição de cada um e a divisão em partes, dependem do seu posicionamento em relação a um todo global em movimento. Perante estas alterações é compreensível que grupos etnolinguísticos tenham necessidade de se afirmar alto e bom som. Mais: porque religiões têm dimensões sociais e cognitivas que fazem delas veículos de eleição para identidades, afirmações nestes termos têm estado em alta nos novos contextos relacionais. Lutas religiosas ou, talvez melhor, a invocação de motivações transcendentes para afirmações político-identitárias, continuarão infelizmente a incendiar recantos e áreas centrais, compondo novos cenários nacionais e internacionais. Não são fáceis de prever nem será fácil contê-los. Mas estou convicto que em bom rigor têm os dias contados, com a progressão inexorável das transformações radicais irreversíveis da própria natureza das comunidades políticas. O que não quer dizer que possamos ficar parados. A verdadeira questão, a frente de luta meritória, a tarefa dura e inacabada, julgo ser a de garantir a 34 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS sobrevivência, no processo, de valores democráticos como a Liberdade. Será o esforço imprescindível de assegurar uma progressão pacífica, tranquila (e tão rápida quanto possível) para um pluralismo democrático que sobreviva a uma nova ordem laboriosa que irá ser marcada pela unidade de um todo novo e complexo composto por partes diversificadas que fazem ponto de honra em assim se manter. Muito me surpreenderia se as religiões aí não vierem a ter um novo papel, mais construtivo. Talvez isto não seja mais do que wishful thinking. Antevejo porém esse novo papel, pelo menos para as religiões mais universalistas que acredito irão encontrar num futuro mais globalizado um terreno fértil para as suas vocações cosmopolitas. O que equivalerá, no fundo, num regresso a casa, para muitas delas19. É bom não esquecer que a habilidade das religiões em inspirar violência está intimamente ligada à sua capacidade, igualmente surpreendente e impressionante, de operar como forças a favor das igualdades, da tolerância e da paz. Como muitas vezes foi dito (e mais vezes ainda esquecido) terroristas e pacificadores muitas vezes crescem nas mesmas comunidades e aderem às mesmas tradições religiosas. 19 Como mostrou M. Mann (1986: 223-227, 323ss.) no seu estudo magistral sobre a evolução e transformações do poder, as religiões universalísticas e cosmopolitas (e.g., o Cristianismo) emergiram em grandes Impérios, como visões de comunidade política alternativas às do Estado hegemónico. Se bem que tenha sido forçado a concessões, a sua postura utópica rapidamente o tornou numa avant-garde para o grosso da população e para as elites bem-pensantes. O meu ponto é o seguinte: num Mundo cada vez mais globalizado, esse tipo de religiões reencontrará o habitat natural para os valores e discursos que defende. Um exemplo: ainda que a posição da Igreja Católica quanto à interrupção voluntária da gravidez ou em desfavor da ordenação de mulheres possa ser vista como contra a corrente da “modernidade”, passa-se precisamente o contrário na sua luta anti-restrições da livre circulação de pessoas, a favor de um esbatimento das dívidas dos países pobres, ou em defesa de uma maior tolerância da diversidade, seja ela étnica ou cultural – tudo frentes cosmopolitas, bem ao gosto universalista, em que a postura da Igreja é pelo contrário vista como modernista. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 35 Bibliografia Anderson, B. (1991), Imagined Communities. Reflections on the origins and spread of nationalism, Polity Press, Cambridge. Barber, B. (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the world, Ballantine, New York. Fernández-Armesto, F. (1997), The Future of Religion, Phoenix, London. Huntington, S. (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25. ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. ____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs 78(2): 35-50. Ileto, R. (1979), Pasyon and Revolution. Popular movements in the Philippines, 1840-1910, Ateneo de Manila University Press. Lan, D. (1985), Guns and rain. Guerrillas and spirit-mediums in Zimbabwe, Currey and California University Press. Linklater, A. (1998), The transformation of Political Community. Ethical foundations of the post-Westphalian World, Polity Press, Cambridge. Maffesoli, M. (1992), La transfiguration du politique. La tribalisation du monde, Grasset et Fasquelle, Paris. Mann, M. (1986), The Sources of Social Power, vol.1: A History of Power from the beggining to AD 760, Cambridge University Press. Pina Cabral, J. (1994), “A complexidade étnica de Macau”, Estudos Orientais 5: 209-225, Lisboa. Vale de Almeida, M. (1999), “Poderes, Produtos, Paixões: o movimento afro-cultural numa cidade baiana”, Etnográfica: 131-157, Lisboa. Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London. 36 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2. As Guerras Culturais, a Soberania e a Globalização: o Choque das Civilizações Revisitado20 1. Num muito interessante e útil Seminário que o Instituto de Altos Estudos Militares organizou no passado mês de Julho de 1999, coube-me a responsabilidade de fechar o ciclo de Conferências. O tema geral do encontro prendeu-se com o balanço da interacção entre três domínios hoje mais uma vez em ressonância delicada nos palcos internacionais, Religiões, Segurança e Defesa; o que aliás deu o título às jornadas. Nesse contexto, tive a oportunidade de levantar algumas objecções ao notável e muitíssimo influente modelo analítico produzido por Samuel Huntington no(s) seu(s) Clash of Civilizations21. Algumas das minhas hesitações foram substantivas. Outras mais formais e até metodológicas. Na comunicação que apresentei, o esforço levado a cabo foi sobretudo descontrutivista: justificou-o o conjunto e o encadeamento dos outros trabalhos inscritos, tal como, a meu ver, o legitimou o empreendê-lo perante uma audiência que imaginei em geral bastante apegada ao paradigma huntingtoniano. Não deixei, por isso mesmo, de sugerir alternativas pontuais a algumas das considerações do especialista norte-americano. E tentei levá-lo a cabo nos termos da discussão geral então em causa: uma ponderação dos papéis que as religiões poderiam vir a preencher nos conflitos futuros. O contexto da presente exposição é no entanto outro, a um tempo mais genérico e menos tópico. Trata-se de discutir a utilidade de uma adopção do 20 Comunicação apresentada num Seminário especial organizado no Instituto de Altos Estu- dos Militares a 22 de Fevereiro de 2000. 21 Ver o curto artigo de Armando Marques Guedes (1999), para uma perspectivação crítica, algo desconstrucionista, dos esplêndidos trabalhos de S. Huntington sobre aquilo que este último tão sugestivamente apelidou de Clash of Civilizations. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 37 paradigma de Huntington enquanto chave interpretativa para a ordem mundial contemporânea. O que me parece exigir uma comunicação muito mais inclusiva, mas que está em todo o caso agora facilitada. Em parte sem dúvida porque, para além de tudo, se passaram desde Julho alguns meses ricos em acontecimentos e lições. A intervenção militar Aliada no Kosovo internacionalizou-se e transitou para uma nova fase. Tropas multinacionais entraram também entretanto em Timor-Leste. Os panoramas jurídicos internacionais foram sujeitos a várias alterações, com o estabelecimento de precedentes inesperados e em resultado de inovações judiciais de monta. Vislumbra-se já no Mundo, por conseguinte, um horizonte porventura mais legível. Proponho, em razão disso, ensaiar aqui uma abordagem ao modelo de Huntington que é mais positiva e mais sistemática (ou, em todo o caso, menos avulsa) do que aquela que antes lhe contrapus. E, simultaneamente, quereria enunciar formulações mais abrangentes. Criticarei, espero que de forma convenientemente contida, o modelo dos Clash. Porei porém no essencial a tónica, na análise alternativa que sugiro, numa perspectivação que considero mais dinâmica e mais construtivista da ordem internacional pós-bipolarização. Uma ordem mutável e muito friável, cuja evolução, ainda que a traço grosso, em todo o caso podemos e devemos (frente às promessas e aos desafios do início de um terceiro Milénio) começar a tentar entrever e decifrar. Trata-se de uma nova ordem, irei insistir, emergente. Uma ordenação que forma, por conseguinte, uma arquitectura inacabada, com uma configuração cujos contornos aparentes são muitas vezes meras imagens de transição, simples figuras de passagem que importa, prudentemente, saber não cristalizar em formulações definitivas. Parecem-me por isso prematuras quaisquer tentativas de enunciar verdadeiros paradigmas (ou “mapas”, como Huntington kuhnianamente também lhes chama), ao contrário do que foi o caso durante a Guerra Fria em que o modelo bipolar descrevia (de modo sofrível mas passável) a ordem política da distribuição do poder no Mundo. A gestação rapidíssima de um McWorld (na denominação célebre e feliz de Benjamin Barber), que Huntington em minha opinião subestimou, tem preenchido (nesses processos de cristalização de uma nova ordem) papéis fulcrais. Tal como, aliás, tem também sido o caso com a rápida e cada dia mais nítida erosão das soberanias westphalianas dos 38 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Estados nacionais, que as tradições ainda dominantes do realismo e do neo-realismo insistem em sancionar como os únicos protagonistas que contam nos palcos internacionais. Trata-se de papéis que não se esgotam no simples cosmopolitismo universalista que desenha a sua face mais visível. Tentarei, senão cartografá-los, pelo menos delinear algumas das suas principais características topográficas22. Mais do que mostrar-me ambicioso, esforçar-me-ei no que se segue por ser sugestivo. Adivinhar o futuro não é propriamente uma empresa racionalmente bem fundamentada. Ainda que especulações sejam muitas vezes imprescindíveis e elaborá-las possa ser uma questão de bom senso prospectivo: conjecturar é quase sempre uma precaução vital. Nesta comunicação, a estratégia que irei seguir é compatível com essa minha perspectivação. De uma maneira sistemática, mas delineando sempre alvos preferenciais, tentarei pôr em paralelo a visão paradigmática de Huntington com outra, que me parece adequar-se melhor ao conjunto de acontecimentos e processos empíricos que creio serem detectáveis nas rápidas transformações que configuram a ordem internacional contemporânea. Daí deriva a escolha de temas focais como a globalização e a soberania, ou as entidades civilizacionais e as polaridades características da ordem mundial: trata-se de encapsulações nocionais que de alguma maneira expressam o contraste entre duas perspectivas 22 Para utilizar metáforas geológicas, tão caras ao que já talvez possamos chamar a tradição huntingtoniana. O modelo de Huntington, com efeito, ao persistir no uso de termos como “civilizações”, “dinâmicas”, “núcleos” e “linhas de falha”, alude explicitamente a uma tectónica de placas que, infelizmente e não obstante as qualificações, trata na prática de uma maneira bastante estática. Numa visão wegeneriana, Huntington tende a substituir processos dinâmicos por configurações reificadas na esteira, aliás, de historiadores como Arnold Toynbee e Oswald Spengler. É de notar que tal como Alfred Wegener, e ao invés dos geólogos contemporâneos, Huntington não previu realmente mecanismos que explicassem os movimentos dos seus “blocos”, assim aparentemente deixados como monolitos inamovíveis. Sem embargo de representações metafóricas, tais como as do core states, torn states, ou civilization shifting, (substitutos de operadores tectónicos como as “linhas de sutura” ou os “movimentos orogénicos”), Huntington não previu nem um nível do “manto”, nem “plumas térmicas” e “subducções”, que explicassem a dinâmica das suas “civilizações”. De alguma forma, o artigo “The Lonely Superpower” (1999) ao reintroduzir as power politics tão típicas do neo-realismo, supre uma parte dessa insuficiência na mecânica do paradigma do Clash of Civilizations; mas sem verdadeiramente a colmatar. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 39 alternativas, cujo destaque me permitirá com maior nitidez ponderar o que considero os excessos e as insuficiências do paradigma huntingtoniano. Outros enfoques seriam decerto legítimos; e alguns deles assumi na comunicação que aqui li em Julho último. Dada a conjuntura internacional actual e tendo em vista o que reputo ser a direcção presente da evolução das coisas, prefiro porém agora dar primazia a estes temas. Sem querer repetir o óbvio, cabe começar por um curto sumário da posição assumida por Huntington nos dois trabalhos que publicou em 1993 e em 1996. Devo dizer, logo à partida e em termos genéricos, que me agrada a alegação de fundo que julgo a mais central das formuladas por Huntington: a noção, implícita, de que a cultura é uma diferença que cada vez mais faz diferença na ordem internacional23. E, como corolário, a asserção segundo a qual ideias produzem eficácia. Contento-me, porém, com uma satisfação muito limitada. O célebre cientista político norte-americano parece-me confundir as árvores com a floresta ao implicitamente equacionar cultura com “civilização” (ainda que insista que o não faz), e ao formular uma avaliação (que considero pobre) que na prática privilegia a imutabilidade nas inter-relações entre tais unidades complexas. A par e passo, umas vezes directa, outras indirectamente, voltarei a estas diversas questões primordiais. 2. O formato geral do paradigma proposto por Huntington é simples; e são claros os seus pontos de aplicação e o seu alcance. A tradição académica e política dominante dos realistas, como a dos neo-realistas, tem insistido em encarar o sistema internacional como tendo no seu âmago uma colecção de Estados. Não o tem feito, porém, de uma maneira linear. Esta visão essencialista e de raiz westphaliana foi, durante alguns decénios (sobretudo depois da Segunda Guerra 23 Aguardo por isso com impaciência o livro co-editado por S. Huntington e Lawrence Harrison, com publicação prevista para Abril de 2000, sugestivamente intitulado “Culture Matters: how values shape human progress”. 40 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Mundial), modulada pelo quadro estabilizador de uma arquitectura bipolar que todos conhecemos bem. Tratou-se, todavia, de uma modulação de pouca dura. Com o desmembramento da União Soviética, argumentou Huntington, nenhum destes paradigmas hoje nos serve. Em alternativa, o autor propôs um outro: um modelo em que as unidades de conta seriam uma mão cheia de (sete ou oito) “civilizações”, uma das quais a Ocidental (the West). Segundo Huntington, estas serão unidades cujo relacionamento mútuo, cultural e identitário, configurará a nova ordem internacional emergente; e nisso a religião, ou melhor os alinhamentos religiosos, previu ele, irão ter um papel determinante. As guerras que se avizinham, nesses seus termos, serão guerras culturais de matriz essencialmente religioso-cosmológica. As localizações delas são fáceis de antever: os conflitos pós-bipolarização ocorrerão sobretudo nas perigosas “zonas de sutura” (para usar uma terminologia geo-tectónica) das “entidades [ou blocos] civilizacionais”. Não quero ser excessivamente crítico face a uma obra que creio brilhante, escrita por um autor que nos tem habituado a não podermos prescindir de ler aquilo que publica. Há muitas facetas de nota no modelo erigido. Num livro duro em relação ao Islão (que entre outras coisas prevê uma aliança táctica deste com a “civilização Confuciana”), Huntington sublinha vários pontos fundamentais e infelizmente muitas vezes esquecidos, ou secundarizados. Insiste, nomeadamente, que é possível uma modernização sem ocidentalização. Mais: previne-nos que as afiliações religiosas, as identidades éticas e as lealdades nacionais, são em não escassos casos mais importantes que quaisquer convergências ideológicas, no que toca aos processos políticos pós-Guerra Fria. Relembra-nos ainda que, longe de significar uma racionalização laica, o desenvolvimento económico se mostra repetidamente associado a um crescendo na religiosidade dos actores sociais. E sobretudo, e tal como atrás destaquei, reitera aquilo para que Joseph Nye nos tinha já alertado: a saber que novas formas de poder, por exemplo o poder cultural que Nye apelidou24 de soft, têm vindo a ganhar terreno num Mundo que 24 Joseph Nye definiu este conceito de soft power no âmbito de um estudo monográfico (1990) que produziu sobre a previsível evolução pós-bipolar da hegemonia norte-americana. Infelizmente não o desenvolveu. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 41 os cold warriors, endurecidos na postura adequada ao balance of terror próprio da ordem bipolar, por vezes revelam dificuldades em compreender. Apesar destes insights, Huntington peca, irei argumentar, por graves a-sociologismos e uma séria a-historicidade. Ao presumir entidades civilizacionais no essencial fixas e estanques (ou em todo o caso estáveis, coesas e em última instância incomensuráveis), por exemplo, assume uma atitude relativista que me parece difícil de defender. Como tentarei demonstrar, nem essa rigidez é indiscutível nem este relativismo é justificado. Mais consequentemente, Huntington minimiza (quando não passa sob silêncio, ou alega a sua inviabilidade) o crescimento, tão claro quão explosivo, senão de um muito maior patamar de integração global, pelo menos de novas dimensões éticas e normativas na ordem mundial. Como irei sublinhar, trata-se aqui de um pecado original: já que, em consonância com o alargamento e a agudização de todo o género de interdependências, essas são dimensões que, cristalizando numa estruturação política cada vez mais nítida do sistema internacional, o têm transformado rapidamente, desde o fim da Guerra Fria, num primeiro esboço de uma verdadeira sociedade internacional, assim domesticando a anarquia hobbesiana25 originária, cujo preço tem sido a conflituosidade própria do “estado de natureza”. A tudo isto farei também constante alusão no que se segue. Para evitar tempestades em copos de água não entrarei aqui, todavia, em grandes detalhes no que diz respeito ao que considero pecadillos avulsos e menores dos Clash. Não é meu intuito, de maneira alguma, regatear méritos a uma análise que considero extraordinária na minúcia, magnífica na amplitude, no fôlego e na erudição, e que ademais desencadeou incontáveis reperspecti- 25 Para uma elucidação destes conceitos básicos, é útil a leitura de H. Bull (1979). Para uma defesa acérrima de um hobbesianismo estreito, ver K. Walz (1959). Para uma crítica mordaz desse reducionismo, ler J. Marques de Almeida (1998). Em J. Nye (1997), há uma perspectivação bastante equilibrada do tema geral. Para uma crítica de fundo, de muito mais fôlego, convém ver o amplíssimo estudo de A. Linklater (1998), cujo pressuposto de base é exactamente o de uma transformação, no sentido do alargamento, das “comunidades políticas” na ordem internacional contemporânea, logrando porventura uma reformulação crítica habermasiana profunda daquilo a que o seu mentor académico na London School of Economics, Hedley Bull, chamava the new medievalism. 42 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS vações críticas (sob pontos de vista muitas vezes saudavelmente inusitados) da “ordem mundial” no fluxo que (a meu ver) as correntes imparáveis da globalização e os concomitantes redemoinhos do neo-tribalismo nos deixaram como legado. Cabe-me no entanto nomear alguns desses pequenos pecados “por comissão e por omissão” de que a obra de Huntington me parece padecer. Na minha comunicação de Julho esmiucei uns poucos: o que considerei uma atenção insuficiente a distinções sociológicas finas, sem as quais tentar compreender a etnicidade me parece imprudente; alguma inocência, ou pressa, quanto à “resolução” religiosa que propõe das imagens de violência e afirmação política contemporâneas, que se traduz por amálgamas pouco criteriosas de mecanismos muito diferentes uns dos outros; e uma forte displicência teórica, pouco sensata no que toca ao balanço dos nacionalismos exclusionários estridentes que caracterizam alguns dos recantos do Mundo moderno. Há porém outras imoderações, de maior peso e menor justificação, no esplêndido trabalho de Huntington. Não posso deixar de enumerar duas delas. Em primeiro lugar, e em termos genéricos, vislumbra-se uma propensão marcada para fornecer interpretações parciais categóricas de factos históricos complexos, quando tal convém à adequação da realidade ao modelo paradigmático proposto. Em segundo lugar, na secção final da monografia transparece uma crítica severa e muito partisanne, em que Huntington denuncia com alarme os supostos malefícios de uma eventual “multiculturalidade”, numa América do Norte que parece ter transitado de um melting pot relativamente tranquilo para a efervescência de um salad bowl multivocal26. Confesso que não percebo a função do argumento aduzido por Huntington quanto a este ponto, senão como um esforço, exorbitante e inglório, para se escusar a contabilizar os efeitos da globalização (e da tribalização associada) no interior dos próprios Estados Unidos 26 Sobretudo nas pp. 305-308. Huntington defende aí que o “multiculturalismo” galopante da Administração Clinton ameaça a integridade e o futuro dos Estados Unidos (e do “Ocidente” em geral), para além, a seu ver, tal “mistura” trair os objectivos dos Founding Fathers. Numa secção muito dada a aforismos depauperizantes, Huntington cai em afirmações curiosas (e profundamente westphalianas), tais como: a multicivilizational United States will not be the United States, it will be the United Nations (p. 306). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 43 da América. O que indicia uma propensão maximalista, e que creio circular, para formular juízos políticos nos termos estreitos do paradigma proposto. 3. De uma maneira muito positiva, podemos começar por delinear uma curta análise genérica daquilo que reputo como algumas das principais traves-mestras do sistema internacional moderno. Vários pares de forças em tensão, chamemos-lhes assim, me parecem subjazer à configuração de relações segundo a qual reconhecemos neste momento aquilo a que se convencionou chamar a “ordem internacional”27. São forças que se degladiam e que, enquanto “campos de forças” (como diriam os personagens do Star Wars) constrangem as formas, e os blocos, aparentes nos palcos mundiais. Darei duas ilustrações. Assim temos, por um lado, o binómio Jihad-McWorld, que se manifesta, por exemplo, pela competição entre globalização e soberania; a arena de um conflito de fundo com várias frentes, cuja resultante geral, a nível de uma renovada forma dos Estados, não é ainda óbvia. Por outro lado, destacam-se os fossos escavados entre os Estados e diversos dos novos actores internacionais e entre antigas e mais recentes formas de poder, tudo inovações que no concreto redundam em conjunturas de tensão entre velhas alianças e coligações tradicionais e as novas, mais pragmáticas, que defrontam. Uma dicotomia complexa, cuja dança se rege pelas minudências de uma coreografia constantemente recriada e que é, por isso, difícil de antever. 27 Para um modelo, certamente discutível mas fascinante, dos processos periódicos de forma- ção e de dissolução de ordens internacionais cada vez mais globais, é aconselhável a leitura de The Rise and Fall of World Orders, publicado em 1999 por T. L. Knutsen. Knutsen subdivide estes processos em três grandes “fases”: uma primeira, de hegemonia, por sua vez composta por três momentos, respectivamente de punitive pre-eminence, de remunerative pre-eminence e de normative pre-eminence; a que se segue uma fase de challenge, desencadeada por outras potências; e que, numa terceira e última fase, descamba no que chama disruptive competition. Mais interessante, todavia, é decerto a última parte do estudo (que reveladoramente Knutsen intitula de déjà-vu) relativa à evolução do que retrata como a instável hegemonia norte-americana nos palcos contemporâneos. 44 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS As várias forças que acabei de referir obviamente interagem em profusão. Mais ainda: estes dois grandes pares de oposições (e outros, sem dúvida), cada um deles com uma dinâmica própria intrínseca (porque em desequilíbrio, ou em equilíbrio instável), naturalmente reagem um com o outro. Todas estas tendências, por outras palavras, se potenciam mutuamente. E na sua interacção cambiante, geram configurações arquitectónicas, virtuais e passageiras mas sempre novas, do sistema internacional. Configurações que, muitas vezes, nos agrada (ou nos convém) reificar, tornar absolutas. Ou que, pelo menos, sentimos que podemos com utilidade e justificação erigir em paradigmas cognitivos. Configurações que, no entanto e como antes lhes chamei, são meras figuras de transição. Por assim dizer, imagens (ou flashes) fugazes. Sem naturalmente buscar aqui uma qualquer exaustividade, o que não teria cabimento28, comecemos pela tensão soberania-globalização a que aludi. Uma tensão que resulta do simples facto de cada vez mais as questões sócio-políticas contemporâneas excederem os âmbitos territoriais circunscritos pelos Estados tradicionais. Vejamo-la primeiro, de modo sucinto, no plano económico-financeiro. A abertura generalizada de cada vez mais mercados (com ou sem GATT), os novos fluxos mercantis viabilizados por sistemas de transporte cada vez mais eficientes, o desenvolvimento de meios de comunicação e informação que redundam numa contracção crescente (passe a antinomia) do espaço (a chamada “abolição da distância”) e do tempo, são factos incontornáveis e traços distintivos da vida moderna. Teorias (mais ou menos mercantilistas) de soberania económica tornam-se, em consequência, cada vez menos convincentes. E, mesmo quando são consentidos, os proteccionismos tendem no Mundo interdependente contemporâneo a ter cada vez menos pés para andar. O cresci- 28 Um maior detalhe quanto aos processos de globalização é oferecido na sinopse do soció- logo australiano M. Waters (1995). No que toca a problemas associados à globalização económica, é de recomendar o longo artigo técnico de Joaquim Aguiar (1998), que inclui uma interessante discussão sobre os traços distintivos (e a complexidade) daquilo a que chama a “onda” actual de globalização. A respeito da emergência de novos actores internacionais, do consequente retrocesso do monopólio de protagonismo dos Estados e, talvez sobretudo, em relação ao utilíssimo conceito de structural power, é imprescindível a leitura de Susan Strange (1996). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 45 mento explosivo desses novos e tão importantes actores internacionais que são as empresas transnacionais aí está, há uma boa quarentena de anos, para o corroborar. A resultante não é porém apenas essa, de um descentramento centrífugo. Convém também tomar em linha de conta o acelerar mais recente (pós-bipolarização), daquilo a que Francis Fukuyama chamou a “common marketização” do Mundo: o congregar de esforços e de protagonismos em blocos económicos multinacionais (por via de regra regionais, dada a consequente redução de custos) como a União Europeia, o MERCOSUL, a NAFTA, a ASEAN, ou o SADCC. E ainda ponderar o crescente comércio electrónico (via Internet, por exemplo) num mercado à escala planetária, um circuito em que (como Bancos e Bolsas de Valores já tinham prenunciado) o Sol nunca se põe. Tudo isto redunda numa constatação fácil: estamos também perante diversas tendências centrípetas em operação no sistema. E a este processo não se vislumbra uma qualquer reversão possível. É disso sintomático que, em 1998, quando a crise vitimou em série a Tailândia, a Indonésia, a Coreia do Sul e o Japão, a receita foi expedita e consensual: aquilo que era preciso para resolver o impasse era, no fundo, mais integração. A nível político (ou político-militar), tal como a nível sócio-cultural, a operação de processos paralelos e no essencial funcionalmente equivalentes não é difícil de detectar. Não é só a rápida universalização de critérios ético-jurídicos (como a dos Direitos Humanos, ou aquela a que a rápida multiplicação de Tribunais internacionais especiais tem dado corpo), nem a ruidosa fragmentação tribal aquilo que está em jogo. É muito mais complicado que isso. Com o fim da bipolarização e a dissolução dos dois grandes blocos antagónicos, que cautelosamente se entre-olhavam contra um pano de fundo de países ditos não-alinhados, passou-se quase abruptamente a uma nova ordenação, policentrada e multidimensional, dos palcos internacionais. E apesar de num primeiro momento daí ter parecido resultar um Mundo unipolar, com os Estados Unidos como único hegemon, cedo se verificou esse modelo não ser muito satisfatório, quanto mais não seja pela sua excessiva lineariedade. Porque, se é indubitável que em termos técnico-militares resultou na nova ordem uma clara hegemonia 46 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS norte-americana, a nível económico o Novo Mundo viu-se forçado a partilhar essa posição de preponderância com a velha Europa e o novíssimo Japão. Mais grave ainda para esse hipotético modelo unipolar: todo um variado universo de entidades transnacionais (de corporações comerciais a instituições financeiras, passando por mafias e grupos terroristas) constitui um nível suplementar que não olha às fronteiras dos Estados e no qual a hegemonia está ainda mais repartida29. Um outro eixo numa ordem compósita. A unipolaridade tem assim de conviver com multipolaridades diversificadas30 num Mundo cada dia mais complexo. Confirmar a multidimensionalidade do cenário daí resultante não é árduo. Por muito convidativa (e retoricamente tentadora) que possa ser a imagem de uma ordem unipolar, fácil é concordar que tal hipótese não tem grande correspondência empírica com o observável. Não é essa, decerto, a evolução das coisas. Longe de se subdividir em Estados avulsos, e de sobreviver com placidez na sombra dos Estados Unidos ou de uma qualquer benevolente Pax Americana, o Mundo pós-bipolarização reordenou-se em blocos e coligações de vários tipos e feitios. Uns, como a ASEAN ou o MERCOSUL, mais económicos do que políticos. Outros, da União Europeia à SADCC, mais político-económicos do que militares. Outros ainda, como a NATO ou a UEO, mais político-militares que qualquer outra coisa. Quase todos são associações de Estados, cujos documentos fundadores repudiam explicitamente quaisquer hipóteses de que venha em seu nome a ser desafiado o estatuto soberano dos seus membros; nas Nações Unidas temos disso um exemplo típico. A excepção é a União Europeia, num continente mais uma vez pioneiro: na realidade não é uma federação, uma confederação, ou um simples conglomerado de Estados; mas antes uma forma nova de governação 29 Tal como de resto a nível cultural. Sem querer antecipar a minha argumentação, não posso deixar de citar Held et al. quanto ao que escreveram na sua obra monumental sobre a globalização (1999: 373): não obstante as tranformações contemporâneas, the announcement of the eradication of national cultural differences seems highly premature. 30 Esta perspectiva não é nova, evidentemente; e é partilhada por autores tão díspares como Joseph Nye (1997), Susan Strange (1996), e pelo próprio Huntington (1999), que recentemente caracterizou o Mundo como uni-multipolar. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 47 transnacional em que, voluntariamente, os Estados-membros abdicaram de uma parte da sua soberania. Esses novos blocos ou coligações têm vindo a tomar a ribalta, no palco. Na sua maioria, trata-se de blocos regionais. É verdade que as regiões, ou entidades, daí resultantes são muitas vezes arenas histórico-culturais de algum modo já existentes em potência e só agora realmente activadas, tanto por razões tácticas como por verdadeiras e sólidas alianças ou lealdades. Justamente o cenário a que os Clash of Civilizations (e várias outras obras) fazem alusão. Mas de maneira nenhuma, creio eu, assistimos à subida ao tablado das entidades que o huntingtonianismo previa. O que me parece é que o paradigma equacionou a situação de maneira demasiado simples, precipitada, e por isso mesmo talvez reducionista. Como o próprio Huntington31 penso que reconheceu num artigo publicado em 1999. De momento, posso dar voz a uma primeira hesitação relativamente ao modelo huntingtoniano. A ordem internacional em que participamos no Mundo moderno é parcimoniosamente explicável como resultando no essencial da operação conjunta de forças antagónicas como as que sugeri e, eventualmente, de outros pares de princípios semelhantes. Gostaria de insistir neste ponto. Só uma modelização complexa desse tipo permite fazer justiça tanto à multidimensionalidade dos factos, quanto à sua constante progressão. Uma complexidade que não penso seja devidamente assumida nos Clash, ainda que muitas vezes transpareça dela Huntington ter plena consciência. Sem querer ser excessivo, o huntingtonianismo radical parece-me conter um certo “vício de forma”, a nível dos seus pressupostos. De uma leitura cuidada, a conclusão a que chego é que se trata de um sistema (ou melhor, de uma descrição paradigmática) que no fundo, estrita como metaforicamente, presume a pré-existência de “entidades civilizacionais” fixas e estanques que, enquanto a bipolarização durou, estariam efectivamente camufladas. Na perspectiva de Huntington (e não obstante os 31 Detalhes quanto a esta reformulação das teses huntingtonianas, que interpreto como uma recaída neo-realista que, a par do poder soft das afiliações culturais, reintroduz na equação o poder hard (político-militar) dos Estados, ver Huntington (1999, op. cit.). 48 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS seus protestos em contrário) são no essencial retratadas como monolitos sem grandes contactos ou intercâmbios entre si; ou, em todo o caso, como unidades em que tais permutas são de pouca consequência. O autor trata na prática estas entidades como autênticos blocos coesos que, sem embargo de algumas pequenas mudanças (mais cosméticas que autênticas, ou realmente consequentes) e raras revoluções, não evoluem32 verdadeiramente; que definem a identidade dos seus membros de maneiras muito semelhantes (e, no essencial, histórico-místicas); e se revelam, em última instância, fortissimamente constrangedores no que toca às suas margens e liberdades de escolha, motivações, e modalidades de acção. O que me parece redundar em drásticas (e excessivas) simplificações daquilo que é empiricamente observável. Nisso, a meu ver, o Clash of Civilizations retrata, no fundo, uma ficção. Por outras palavras, e salvo o devido respeito, trata-se de uma espécie de análise sobre a aerodinâmica dos cavalos de corrida que começa por assumir que os cavalos são esféricos. Uma presunção talvez conveniente, mas pouco convincente. No essencial, tenta explicar (ou pelo menos compreender) o presente (e prever algum futuro), em termos daquilo que ficou do passado, uma vez esbatida a bipolarização. Um bocadinho chercher midi à catorze heures. É uma perspectivação que, naturalmente, gera problemas previsíveis na eventual adequação do modelo à realidade. 32 Neste contexto, é particularmente irónico que dois dos pais fundadores das Ciências Sociais, Émile Durkheim e Marcel Mauss tenham (logo no princípio do século XX) advogado, num artigo famoso, que o passo seguinte da Sociologie que em grande parte inauguraram deveria ser o de estudar o relacionamento entre “entidades civilizacionais” e os “contactos entre civilizações”. Durkheim e Mauss introduziram para o efeito (e numa terminologia que trai a época) o conceito de “coeficiente desigual de expansão e internacionalização”, o qual permitiria equacionar as dimensões desses relacionamentos. Os dois autores franceses notaram, por exemplo, que as instituições políticas tendem por via de regra a ser menos dadas à internacionalização do que o comércio, as técnicas, os mitos ou a religião. Um ponto que, sobretudo no âmbito de uma discussão sobre as teses huntingtonianas, nos dá pausa para pensar. Tais variações na “receptividade” e nas “resistências” das civilizações seriam porventura boas bases para uma eventual análise dinâmica da situação actual de forte “diálogo civilizacional” (a frase é do filósofo alemão Jürgen Habermas) que hoje em dia testemunhamos (e em que os portugueses têm sido parte activa), e bem mais úteis, a meu ver, que o modelo mais estático de S. Huntington. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 49 4. Sem desnecessariamente me repetir, gostaria de voltar a pegar nas minhas objecções, agora não uma a uma, mas em termos compósitos. E quero aplicá-las a casos concretos. Começo pelo exemplo porventura mais óbvio: o relativo ao Kosovo. Há apenas alguns meses, no Seminário em que aqui participei, tive ocasião de advogar a tese segundo a qual o paradigma do Clash of Civilizations (pelo menos na sua versão mais maximalista) dá mal conta (porque o faz de maneira insuficiente) da intervenção levada a cabo pela NATO no Kosovo. Foi então a seguinte a minha linha de argumentação: o modelo de Huntington, ao prever a eclosão de conflitos ao longo das “linhas de falha civilizacionais” que o autor norte-americano identificou, via-se em apuros para dar conta de uma acção colectiva de países sobretudo ocidentais e cristãos, concentrada contra as pretensões de um Estado também europeu e também cristão (ainda que do “bloco” ortodoxo), a favor de um enclave muçulmano localizado em pleno território da Europa. A arrumação das forças mobilizadas era, insisti então, contrária àquela que o paradigma de Huntington nos levaria a supor. Apesar de a Sérvia, à la rigueur, não ser do “bloco” ocidental, é todavia inegável que tem com este muito maiores afinidades do que com o “bloco” islâmico; pelo que as eventuais previsões sairiam “transtornadas”, como então escrevi33. Sublinhei, nesse contexto, a utilidade heurística de explicações que intitulei de “mais ‘clássicas’”, e que identifiquei (com algum realismo e não em grande discordância com as opiniões mais recentes do próprio Huntington) como as que “ponham a tónica não em clivagens culturais, mas em relações de poder” (ibid). Quereria agora complementar o que então disse com o que resulta de uma outra perspectiva, a um tempo mais ampla e mais processual (menos estática). E, penso, mais actual. Melhor: escapando um pouco ao realismo puro e duro que então defendi, ou talvez melhor, complementando-o. A reperspectivação a que aludo, e que tentarei esboçar, implica uma visão de “longa duração”, na frase de 33 (1999, op. cit.:162). Tive o gosto, aliás, de ver este ponto retomado nas “conclusões” do Seminário listadas por um grupo de oficiais ligados ao Instituto de Altos Estudos Militares. 50 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS um eminente historiador francês, Fernand Braudel. Exige uma maior profundidade temporal, por assim dizer. Farei referência ao exemplo balcânico que aflorei em Julho. Com os benefícios da retrospecção, um novo balanço geral da guerra no Kosovo, creio eu, começa agora a ser possível. Sem simplificar, e com o intuito de pôr em evidência algumas das suas linhas de força, vale a pena começar por enquadrar a intervenção Aliada num contexto de curta duração, numa conjuntura temporal breve. Fazendo-o num quadro abstracto, mas problematizado. Uma coisa é certa: a guerra do Kosovo foi estranha e curiosa. Uma rápida reflexão demonstra-o em abundância. Tratou-se de um conflito armado empreendido, sem motivos óbvios, numa perspectiva clássica, por forças com poucos interesses nacionais próprios directamente afectados ou postos em causa; um conflito legitimado, perante uma opinião pública atenta, em nome de princípios humanitários; um uso da força militar levado a bom termo, com enorme esforço e despesa, em apoio de algo menos do que a soberania futura (pelo menos em sentido tradicional) da maioria albanesa e contra os direitos soberanos invocados pela Sérvia de Slobodan Milosevic. Em nada, como se vê, uma guerra tradicional. Bem pelo contrário: toda uma série de novidades interessantes. Como li há pouco tempo num artigo da Newsweek, o último decénio do século XX, que começou com uma defesa “clássica” dos Estados soberanos (a Guerra do Golfo), acabou com um ataque concertado e sistemático a essa mesma ideia de soberania, no caso a exercida (ou antes, imposta) pelos sérvios sobre o Kosovo. É óbvio que a acção aliada terá também sido muitas outras coisas. Terá expressado, por exemplo, a urgência dos norte-americanos em justificar uma presença militar futura numa zona equidistante da Rússia e do Médio Oriente, numa conjuntura em que é cada vez mais difícil manter forças substanciais em território alemão. Ou, em termos geo-estratégicos menos gerais, pode ainda ser interpretada como um passo oblíquo para a contenção regional de uma Rússia todavia nuclear, pela criação de uma espécie de cordão sanitário disposto ao longo de uma linha que, mais a norte, conta já com três novos membros da Aliança Atlântica. Mais prosaica e burocraticamente (os timings convidam-no) podemos suspeitar estar perante um hipotético empenhamento americano em colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 51 proclamar alto e bom som34 a sua liderança de uma NATO em reformulação e alargamento. Não é em princípio absurda nenhuma destas “explicações” para a ingerência, por si sós ou criteriosamente doseadas em “receitas maquiavélicas”. Do que se não tratou, decerto, foi de uma guerra empreendida nos termos, ou em nome, de quaisquer entidades civilizacionais. E, seguramente, não em termos das habituais manobras tácticas hegemónicas que têm vindo, cada vez mais, a ser imputadas ao Ocidente. Se encarada nos seus termos ostensivos, parece antes ter sido, pelo contrário, uma expressão de um novo estádio na estruturação política do sistema internacional, ainda que certamente “em termos ocidentais”. Um passo suplementar, decerto mais cedo ou mais tarde imprescindível na fase de integração-interdependência em que nos encontramos. Como que outra pedra no edifício de uma sofisticada estratégia, que se parece esboçar, que na sua versão mais recente associa a Annan Doctrine (segundo a qual há que “redefinir a soberania nacional”, nomeadamente no sentido de legitimar a eventual intervenção de “grupos de Estados” se tal for imprescindível para evitar “genocídios”35; e segundo a qual a Diplomacia, neste Mundo pós-clausewitziano, é tanto mais eficaz quanto mais se sustente da ameaça do uso da força militar) com o que foi efemeramente apelidado da Clinton Doctrine (uma espécie de Doutrina de Monroe jurídico-conceptual reforçada, que estipularia regras básicas para uma política de intervenção norte-americana alargada36, presume-se que ad infinitum, em nome dos Direitos Humanos). 34 Uma interpretação, devo dizer, que me parece pouco credível; aceitá-la implica considerar que, por vantagens pontuais, a Administração norte-americana incautamente se colocou numa posição de maior fragilidade face a aliados muitas vezes reticentes. Estas foram, em todo o caso, conclusões não incomuns (ver, por exemplo, Kolko, 2000, em que ambas são admitidas). 35 Uma doutrina formalmente enunciada perante a 54.ª reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de Setembro último, com um tácito objectivo conjuntural, com a insistência de que tal será legítimo “na ausência de uma autorização pronta [prompt]” do Conselho de Segurança se “o horror” estiver em curso. Os países “ocidentais” e alguns africanos saudaram a doutrina do Secretário-Geral. Muitos dos países em vias de desenvolvimento assumiram posturas ambivalentes. Uma oposição veemente coligou a China, o Vietname, a Indonésia, a Coreia do Norte, a Índia, a Rússia, a Bielorússia, o Iraque, a Argélia, o México e a Colômbia. 36 É interessante verificar que, no mês anterior à campanha aérea da NATO no Kosovo e no seu decurso, Bill Clinton e os porta-vozes da Casa Branca repetidamente anunciaram a urgência de 52 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Vista no contexto de uma série temporal longa, e encarada nos seus termos ostensivos, a incursão no Kosovo foi sem sombra de dúvida uma intervenção levada a cabo num novo momento da evolução da ordem internacional que saiu da Guerra Fria. Um indício de que o nível da interdependência no Mundo (em todo o caso na Europa) já não se compadece com o estato-centrismo secular. Um sinal de que os “perímetros de segurança nacional” não se restringem hoje apenas aos territórios imediatamente adjacentes a cada Estado; e uma correlativa cedência da maior parte das grandes potências mundiais (as Democracias pluralistas) face à opinião pública “global”. Uma nova fase ético-jurídica, por assim dizer, uma outra etapa numa progressão cosmopolita que decerto agradaria a Woodrow Wilson e a Franklin Delano Roosevelt. Mais um passo no trajecto pós-westphaliano que os pensadores liberais vêm como a inevitável ascenção de valores e instituições não-estatais na ordem internacional. E, em consequência, um ampliar do papel preenchido pelas populações e pelos respectivos interesses, em detrimento do monopólio que, desde Westphalia, vinha a ser concedido aos Estados37. De algum modo, e ao invés do que vaticinou Huntington há meia dúzia de anos, aquilo com que nos confrontamos é a emergência, nos palcos internacionais de hoje, não de antigas separações culturais mas de novíssimos princípios38 universalistas. Um estudar e desenvolver critérios doutrinais para sistematizar este tipo de intervenções. Perante resistências múltiplas, internas como externas, o tema foi (aparentemente) deixado cair, ou pelo menos arrumado numa prateleira à espera de melhores dias. Com um saudável realismo, a Administração americana parece estar consciente de que o preço a pagar por ingerências “policiais” generalizadas (no sentido de virem a ser levadas a cabo seja onde for que aparentem ser justificáveis em termos doutrinários) seria um imediato imperial overstretch e redundaria numa nova fonte de desordem internacional. 37 Em todo o caso (e seja qual for o grau de distanciamento irónico que queiramos afectar), a ingerência consumada pelos Aliados no território soberano da Jugoslávia foi um conflito desencadeado com esses pretextos e com essas (talvez entre outras) finalidades. No fundo, pelo menos em parte uma versão vigorosa do processo de globalização; ou, em todo o caso, um passo amplo numa cada vez mais nítida submissão de todos os actores internacionais a uma hegemonia ética e até normativa, ainda que, por razões pragmáticas, esta tenha vindo largamente a ser exercida “por intermédio” dos norte-americanos. 38 Como terceiro e último exemplo, dos inúmeros possíveis, pesemos na balança da globalização em curso a decisão de onze países (os novos membros da chamada Eurolândia) em abdicar volun- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 53 facto puro e duro que não se compadece com dogmas “clássicos” tout court como o de uma soberania não qualificada. Sem qualquer utopismo ou wishful thinking, é com efeito difícil não tomar esse pulso a vários dos acontecimentos interessantes e curiosos que se têm vindo a encadear nos cenários contemporâneos. Gostaria de insistir um pouco neste último ponto, o da generalização em curso de princípios universalistas. Comecemos pelo caso que nos está mais próximo: a tão desejada intervenção das Nações Unidas em Timor-Leste (já que nós próprios infelizmente não a podíamos levar a cabo) por uma força multinacional liderada pelos australianos. O meu ponto é fácil de enunciar. Só a pressão política (eleitoral e outras) de uma opinião pública, moralmente indignada e mobilizada por meios de informação cada vez mais globais, permite compreender o que os modelos tradicionais do interesse nacional dos Estados não podem senão deixar inexplicado: a nitidez da resposta. E apenas esse efeito de globalização ética, quereria alegar, torna inteligíveis factos e acontecimentos colectivos que nos poderiam deixar perplexos, como a velocidade (inédita) das decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como segundo exemplo, viremo-nos para o fortíssimo movimento de opinião que, de inúmeros quadrantes e de numerosos países, se constituiu em favor de responsabilização do General Augusto Pinochet pela transgressões de “direitos básicos” perpetradas pelo regime repressivo e ditatorial que impôs no Chile. Apesar do carácter polémico da questão, concordemos que se logrou um consenso tácito na opinião geral. Uma convergência verificada mesmo entre muitos daqueles que apoiaram as finalidatariamente de uma parte crucial da sua soberania por uma União Monetária Europeia; ainda que, sem dúvida, com uma maior racionalidade económica em mente. Talvez esta última ilustração seja um exemplo ambíguo: o que está na linha de horizonte, neste caso, será realmente a globalização generalizada ou, pelo contrário, a clausura de uma sub-entidade (civilizacional?) europeia, a tão amaldiçoada Fortaleza Europa? Mas certamente ambíguos também o são os dois exemplos anteriores. O que num Mundo que (se é verdadeiro o meu argumento) está subtendido por pares de forças em tensão, não será surpreendente: ambiguidades, ou talvez melhor, ambivalências, são decerto o que seria de esperar de uma condição estrutural desse tipo. A persistência de ambivalências nos palcos internacionais contemporâneos é seguramente, nessas condições, a situação normal. Cada um dos seus termos, no fundo, faz pouco mais que reflectir a nossa predilecção (temporária ou permanente) pela vitória de uma dessas forças que se degladiam. 54 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS des do seu golpe, ou dos que consideram o agora senador vitalício velho demais para incorrer em qualquer pena: mas que ainda assim fazem questão de estabelecer, em todo o caso, um novo e importante precedente (“anti-soberania”, note-se) na ordem jurídica internacional. Creio estas duas ilustrações instrutivas. Ambas são instâncias claras de retrocesso, diria eu, e indícios nítidos de que alguma coisa está a mudar. Talvez valha a pena que nos detenhamos um pouco sobre esta questão específica. Tenho plena consciência de que este ponto complementar implícito (o de uma exiguidade cada vez mais marcada a que é remetido o poder soberano dos Estados contemporâneos) está longe de ser pacífico. Objectar-me-ão, com algum óbvio fundamento, que nestes como noutros casos o hipotético refluxo da soberania perante a globalização, na ordem internacional contemporânea, não é verosímil. Que há que pôr os pés no chão. Que se trata de um processo mais aparente que real. Que (é uma frase feita) desde os tempos clássicos da Grécia de Tucídides o Mundo pouco, ou nada, mudou. E, em todo o caso, que no que diz respeito à pretensa globalização, se trata, ou da ponta de um icebergue económico-imperial de design (no duplo sentido do termo) claramente anglo-saxónico, ou de uma petite histoire efémera, senão oblíqua e perversa, que na prática releva do poder de alguns (os mais poderosos) dos Estados que, hipócrita e convenientemente, assim se mascaram e manobram39. Para narrativas deste tipo, tão 39 Curiosamente, uma posição deste tipo é precisamente a defendida num estudo monográfico recente por Stephen Krasner (1999). O argumento de Krasner (simplificando muito) é essencialmente o seguinte: a soberania, tal como tem sido abordada e interpretada pelos cientistas políticos e pela opinião pública, é uma ficção manipulada pelos Estados, um mito cuja transgressão se tem desde sempre verificado sistematicamente. A situação contemporânea nisso inova pouco: ao contrário, do seu ponto de vista, do que alegam os teóricos da globalização, para os quais a soberania estaria em retrocesso. Segundo Krasner tem sido bastante cumprida (ainda que com excepções) a international legal sovereignty, ou seja, o princípio de que o reconhecimento dela pela comunidade internacional só deve ser concedido a Estados juridicamente independentes. Muito menos respeitado, alega, tem sido no entanto a Westphalian sovereignty, o direito dos Estados de excluir interferências externas nos seus respectivos territórios. Tem sido assim, argumenta, tanto a nível de direitos das minorias quanto ao de Direitos Humanos ou da economia. As diversas variantes das teses realistas, visto estas serem no fundo sempre doutrinas críticas que supõem a actuação de pelo menos dois níveis de realidade, estão sempre na vizinhança de teorias do complot (ver, para este ponto, algumas das páginas do magnífico artigo de R. Keohane, 1995). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 55 ouvidas num Mundo de que cada vez mais sentimos ter perdido o controlo, a globalização é um ludíbrio; melhor talvez, uma fraude, uma impostura. A verdadeira direcção das coisas, segundo este discurso, é no sentido da permanência e da imutabilidade, plácidas, das formas tradicionais de soberania, acordadas e institucionalizadas na Paz de Westphalia. Ou seja: é possível a riposta de que a carruagem efectivamente não anda. Conquanto essa versão maximalista seja porventura exagerada: os mais prudentes asseveraram que a carruagem lá andar anda, talvez ande é menos do que parece. Ripostas deste tipo (a especialidade de realistas e neo-realistas convictos) não são, mau-grado as aparências, completamente disparatadas. Com efeito, o processo de globalização e de erosão das soberanias não tem sido nem simples nem linear. Os avanços e recuos de que tem padecido são notórios. Como o são as variações, e até as excepções. Seria difícil, por exemplo, ignorar a veemência com que o nacionalismo (e como seu corolário, uma doutrina estreita da soberania nacional) tem pautado as consolidações e as tentativas de afirmação de muitos dos jovens Estados nascidos (ou renascidos) do desmembrar da ex-União Soviética. Ou até a reacção, veementemente soberana (e imprudente) da própria Rússia, que sucedeu à União Soviética sem manifestamente aprender todas as lições, face às expectativas de emancipação da Tchetchénia. Como seria disparatado não tomar em linha de conta os ímpetos de asserção nacional dos novos países, na sua larga maioria africanos e asiáticos, que ascenderam à independência com todas as outras descolonizações europeias: uma das últimas40 das quais, a portuguesa. Parece-me no entanto escusado deitar fora o bébé com a água da banheira. Por outras palavras, a afirmação de um enfraquecimento generalizado das soberanias de maneira nenhuma equivale à negação destas. Nem sequer significa que possamos daí deduzir o eventual desaparecimento delas. Redunda, tão-somente, 40 Uma União Soviética que nos veio substituir como o último dos países europeus a proceder às descolonizações exigidas pelos novos tempos. Para uma perspectiva fascinante sobre a quebra dos consensos “imperialistas”, é útil a leitura do excelente artigo de R. Jackson (1996). Será pena se não for com celeridade levado a cabo um estudo comparativo sobre a dissolução progressiva a que estes consensos se viram sujeitos no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. 56 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS no reconhecimento do facto de que estamos perante um conceito cujo conteúdo, extensão, e aplicabilidade, mudaram. Para alguns isso será bom, para outros mau; mas é um facto com que todos teremos de nos reconciliar. Reacções refractárias à erosão em curso podem facilmente ser identificadas perto de nós. Voltando por instantes à intervenção Aliada no Kosovo, há efectivamente que ter presentes as variadas reiterações de soberania nacional, as várias expressões políticas “clássicas”, que precederam a mobilização generalizada de vontades; ou, pelo menos, os condicionalismos prontamente revelados. A Grécia, apostada em manter a ligação privilegiada que regionalmente mantinha com os sérvios, começou por abertamente se opor aos desígnios da Aliança Atlântica. A Turquia fez ponto de honra de salvaguardar com clareza a questão curda como incomensurável com a albanesa. A Espanha e a França hesitaram, tendo em vista os seus próprios dogmas quanto à indissociabilidade, respectivamente, do País Basco, da Catalunha, e da Córsega. A China e a Rússia depressa fizeram constar que uma parte substancial das objecções insistentes (e veementes) que fizeram questão de acumular se prendia com o precedente estabelecido, que consideraram soletrara uma ameaça directa de ingerência futura nos seus próprios assuntos internos. A linguagem de todos estes actos de resistência inglória foi a da soberania; nos termos, aliás, em que em princípio está embutida na Carta das Nações Unidas (mau grado o n.º 7 do seu artigo 2) e na maior parte dos outros diplomas e institutos do Direito Internacional. Podemos também duvidar da “franqueza” dos motivos aduzidos para o “novo humanitarismo”, como foi chamado. E teremos certamente para isso algumas justificações. É sem dúvida verdade que, no caso do Kosovo, e bem feitas as contas, os Estados Unidos, grandes patrocinadores da globalização (porque, sem sombra de dúvida, têm sido os grandes beneficiários dela, para além das óbvias afinidades ideológicas), lá levaram a sua avante. É portanto pelo menos plausível argumentar que nada mudou, para além das aparências. Que a velha power politics simplesmente encontrou um novo pretexto legitimador. Mas novamente isso me parece não querer ver a direcção da evolução das coisas. Todavia mais interessante seja porventura talvez reiterar e sublinhar os termos em que isso foi enunciado e os apoios (nomeadamente a nível da opinião pública e de colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 57 numerosíssimas, e cada dia mais influentes, organizações cívicas não-governamentais de todo o tipo) na prática conseguidos. O que denota a operação de fortes pressões sistémicas. É de notar que, no caso de Timor-Leste, os Estados Unidos, não obstante a importância atribuída à sua ligação tradicional com a Indonésia, acabaram por dar luz verde à tão urgente “intervenção da comunidade internacional”, como foi chamada a chegada de tropas multinacionais. Seguramente em parte em resposta à indignação moral da opinião pública. No Mundo da informação global, mutatis mutandis (e as diferenças foram muitas), tal como no caso do Kosovo, em nome de um maior cosmopolitismo (ético e político), o império da soberania recuou. Repito: é seguramente verdade que podemos não ver no exemplo jugoslavo, se do ponto de vista metodológico e político para aí estivermos inclinados (como S. Krasner, ou como Noam Chomsky), senão uma colossal “hipocrisia organizada”, e na ingerência Aliada uma manifestação sinistra de um novo “humanismo militarizado”41. Ou seja, como referi, é possível perante o ocorrido assumir uma postura de distanciamento sarcástico. Tal como poderá ser apropriado relembrar os incontáveis antecedentes de invocações legitimadoras precisamente do mesmo tipo; nomeadamente as expressas também relativamente aos Balcãs, na época da Primeira Grande Guerra. A situação não é porém verdadeiramente comparável. Há diferenças de monta que importa saber tomar em consideração. A conjuntura é hoje outra, muito mais propícia a alterações de fundo na ordem internacional das coisas. Por um lado, há que contar com a letalidade crescente dos sistemas de armamento no Mundo moderno, e as implicações que isso tem no que toca à correlação de forças. Com meios cada vez mais high tech, uma 41 Ambas expressões, que pus entre aspas, correspondem a subtítulos de obras recém- -publicadas pelos dois autores em causa: um deles, Krasner (1999), por apego a modelos neo-realistas; o outro, Chomsky (1999), ilutre linguista e Professor no MIT, de acordo com convicções “anti-imperialistas” radicais de que tem sido porta-voz. Nas páginas finais do seu ensaio Chomsky propõe, com a habitual dureza sarcástica e num estilo inconfundível, que seja empreendido um urgente assessment [das acções da NATO] on rational grounds with attention to historical fact and the documentary record, not simply by adulation of our leaders and the ”principles and values” attributed to them by admirers (op. cit.: 157). 58 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS campanha aérea deu corpo, no Kosovo e no resto de larga parte do território da ex-Jugoslávia, à guerra mais cara a que a Europa assistira desde os horrores do nazismo; um conflito sem uma única baixa42 em combate do lado Aliado. Milosevic, por sua vez, recuou, incidentalmente dando razão àqueles (em cada vez menor número, no decurso das hostilidades) que continuavam a acreditar que uma guerra aérea, por si só, poderia ser decisiva. Mas há mais. Há ainda que ponderar na equação a concomitante internacionalização de uma muito vocal esfera pública, o que potencia enormemente essa nova correlação de forças, dando voz e peso a esse novo e eficaz protagonista (sobretudo nos países democráticos) que é a opinião pública internacional. E há que ter em conta a força crescente da profusão de ONGs com maior e maior protagonismo e capacidade de intervenção e mobilização tanto das opiniões públicas como de interesses internacionais poderosos43, muitos deles pouco “clássicos”. Assim, a confirmar os receios de imediato invocados por Estados particularmente empenhados em esconder os seus esqueletos domésticos sob o manto protector da soberania westphaliana (por exemplo a China, decerto preocupada com o Tibete), a intervenção militar desencadeada no Kosovo não veio sozinha. Insisto no que disse atrás: a ingerência na Jugoslávia foi imediatamente seguida por uma outra, que beneficiou de ainda maior apoio consensual: a entrada de tropas internacionais, desta vez das Nações Unidas e agora sob liderança australiana, no território de Timor-Leste44. Se bem que, de um ponto de vista técnico- 42 O que, também incidentalmente, lança sérias dúvidas sobre a asserção de Huntington (e.g. pp. 88-91) segundo a qual o poder militar relativo do Ocidente estaria em refluxo nas arenas internacionais. Quando mosquetes eram confrontados com lanças, ou metralhadoras enfrentavam catanas, algum sangue, por via de regra, corria dos dois lados. 43 Foi fascinante verificar, por exemplo, como em muitas das manifestações realizadas em Portugal em apoio à independência de Timor-Leste se gritaram duas palavras de ordem: “Viva Timor Lorosae” e “Viva a Igreja Católica”. A César o que é de César. 44 Numa Conferência sobre a política externa portuguesa do pós-25 de Abril, organizada em Julho de 1999 no Convento da Arrábida (antes, por isso, do feliz desenlace da situação de Timor), José Manuel Pureza, numa interessante comunicação, defendeu que a tónica político-diplomática do Estado português, ao longo da sua confrontação com a Indonésia, redundou numa vitória ética. O que a seu ver (e trata-se de um ponto de que é difícil discordar), demonstrou a emergência de uma colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 59 -jurídico nesse caso se não possa em rigor falar de ingerência (já que a pretensa legitimidade da jurisdição indonésia nunca foi geralmente reconhecida), precedentes pesados estão seguramente a estabelecer (esperemo-lo) uma prática45 que se irá cada vez mais fortalecer até se instalar como regra. As coordenadas com que tradicionalmente se aferiam os direitos soberanos estão claramente a mudar. Mesmo as grandes organizações internacionais estuturadas segundo regras estato-cêntricas de composição, como as Nações Unidas, parecem estar a acabar por digerir (de facto mas não ainda de jure) a situação criada; e acham-se, ao que tudo indica46, com ou sem Kofi Annan e a sua doutrina anti-genocídio, empenhadas em reconciliar-se com os novos ventos. acrescida capacidade de intervenção de pequenos países numa nova ordem internacional pós-westphaliana, em que o poder hard deixou de ser o único critério procedente. 45 Uma prática e um conjunto de regras em incubação, que estão nitidamente a acelerar o passo. Algumas diferenças subtis há no seu encadeamento, em todo o caso, que denunciam umas quantas alterações profundas na própria estrutura da conjuntura, para usar uma frase consagrada. Durante o conflito na Bósnia-Herzegovina (tal como, de resto, na intervenção desastrosa das Nações Unidas na Somália) a ingerência humanitária por alguns dos Estados da comunidade internacional foi tardia porque em larga medida levada a cabo em resposta a pressões crescentes das respectivas opiniões públicas (ou melhor, às exigências dos seus eleitorados). No caso do Kosovo, como no de Timor-Leste, a lição tinha sido aprendida: longe de uma submissão passiva às correntes de opinião, os Estados intervenientes orquestraram, de sua própria iniciativa, campanhas bem montadas de propaganda; utilizando, para o efeito, os mesmos meios de comunicação social pelas quais antes se tinham sentido empurrados. Não me parece, porém, que esta viragem possa ser reduzida a um simples caso de if you can’t beat them, join them, por mais que essa possa ter sido precisamente a motivação dos poderes públicos. Por um lado, já que um dos principais motivos aduzidos para tais manobras de propaganda foi, pelo contrário, a necessidade de justificar, a opiniões públicas (sobretudo as democráticas) por via de regra renitentes perante acções militares, a urgência de uma reacção rápida face a cenários humanitários desastrosos. A experiência dramática e muito marcante do Ruanda tivera pelo menos esse efeito pedagógico. E, por outro lado, porque ao assim inverter os papéis habituais, os Estados quedaram-se na posição paradoxal de colaborar no reforço, e na consolidação, de uma das principais forças a que é atribuível o refluxo estrutural contemporâneo da soberania clássica. 46 É interessante, neste contexto, o curioso e curto artigo de Ignacio Ramonet (2000) sobre a “ingerência e a soberania”. Sem descartar as limitações que, no panorama internacional contemporâneo, o alargamento daquele significa para esta, antes pondo-as em evidência, Ramonet parece mais empenhado no seu estudo em denunciar iniquidades: pergunta, por exemplo, o que serão 60 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Por outras palavras, uma onda de “normalização” da anarquia internacional parece estar a assolar as margens da soberania, tal como antes esta era canonicamente defendida. Um facto que casa mal, convenhamo-lo, com o paradigma de Huntington: um modelo que no fundo, ao atribuir centralidade e identidade contrastiva a “entidades civilizacionais” irredutíveis, persiste numa perspectivação do Mundo enquanto colecção de entidades discretas e equiparáveis. O paradigma de Huntington redunda assim numa espécie de neo-realismo civilizacional que, ao limitar-se a transpor para um nível mais amplo o conceito de soberania, perde de vista factos empíricos como a erosão muito real a que esta tem estado sujeita e tende a negar a evidência do processo de globalização. No fundo o modelo huntingtoniano postula, à guisa de matriz do seu remaking of world order, uma espécie de balance of power revisitado pós-bipolarização em que as unidades na balança são, não os Estados que nos habituámos a reificar desde meados do século XVII, mas “entidades (ou blocos) civilizacionais” muito maiores mas de algum modo funcionalmente equivalentes. 5. Os limites da tese de Huntington podem também ser confrontados “de dentro para fora”, por assim dizer. A questão é com utilidade susceptível de ser abordada sob outro ângulo: enquanto sistema de representações, próprias de certa época, e de determinado clima vivido nalguns círculos intelectuais. Enquanto “retrato ideologizado”, chamemos-lhe assim. Um retrato relativista, cujo background é sobejamente conhecido. Desde há alguns anos que nos habituamos a invocações, tão veementes quão compreensíveis, da suficiência, senão da superioridade, de culturas e civilizações que não a Ocidental. As certezas fundamentais de cada cultura são delas condições de possibilidade. Cenários conjunturais ditam-nas. Muito antes de Edward Said, o famoso académico norte“bombardeamentos éticos”, questiona a plausibilidade de uma hipotética intervenção de um país africano contra os Estados Unidos para corrigir o racismo, e queixa-se da ausência de uma “ingerência social” contra a pobreza. Uma postura relativista, mitigada por uma enorme lucidez. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 61 -americano de origem palestiniana, insistir que a ciência ocidental se teria desenvolvido por intermédio da exclusão da civilização oriental, já muitos muçulmanos propalavam a autonomia e a especificidade47 próprias da dita “ciência islâmica”. Na Ásia, o histórico Primeiro-Ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, e o seu notório congénere da Malásia, Dr. Mahatir (desde há muito críticos ferozes do Ocidente) ecoam reivindicações chinesas, indonésias, e hoje em dia indianas, da premência e do ascendente dos chamados “valores asiáticos”, assim como do consequentemente distinto Asian Way. Um irredentismo que nem a crise económica que no ano passado assolou e destroçou muitas das economias da Ásia soube verdadeiramente calar. A causa enraiza no transcendente. Trata-se de declarações míticas, de construções simbólicas não refutáveis por realidades empíricas. Mais do que descrições, são actos pragmáticos ou até simplesmente de fé. Nas perspectivas (ou melhor, nas múltiplas perspectivas) dessas narrativas mítico-identitárias, dessas asserções, o Ocidente aflora sempre como uma unidade a que o resto do Mundo se contrapõe. A razão de ser para essa dicotomia radical (e estranhamente indiscriminada) é também simples de compreeder: proposições deste tipo formam parte e parcela de declarações 47 Apenas duas ilustrações sucintas das insuficiências de alegações deste tipo, das muitas possíveis. No ensaio atrás citado, E. Gellner levou a cabo uma crítica dura e epistemologicamente bastante bem fundamentada dessas pretensões a cientificidades paralelas, como lhes poderíamos chamar. O ponto de aplicação específico de Gellner: o “racionalismo” islâmico. Num breve artigo sobre a Ásia do Sudeste, H. Buchholt equacionou o eventual alcance de inovações dessas entre algumas das elites de alguns dos países asiáticos. Podemos, porém, ir mais longe. Em pretensa ressonância com o esforço de Max Weber, de associar o boom ocidental com a subida do Protestantismo, tem com efeito sido feita a elegia de uma propinquidade particular entre a ética confuciana e o desenvolvimento económico. Quanto a este último ponto, parece-me imprescindível sublinhar que, se é verdade que o Confucionismo, ao promover o respeito pela família, pelos mais velhos, e pela ordem e tradição, favorece a promoção do capitalismo, também não é de esquecer que esse mesmo Confucionismo tem sustentado e legitimado, precisamente em nome dos mesmos valores, os gerontocratas que lideram com mão de ferro os regimes socialistas autoritários no poder em muitas partes da Ásia. Mais que promover o desenvolvimento de economias de mercado, em todo o caso, a ética confuciana tem formado uma sólida base de sustentação para o crony capitalism e as “democracias musculadas” tão típicas do sudeste asiático. 62 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS relacionais48 formuladas sob roupagens essencialistas. Trata-se de estratégias identitárias. São versões vigorosas e curiosas inversões da atitude sobranceira do West versus the rest que muitos (com indubitável razão) alegam ter sido durante séculos a postura (separatista) dos “ocidentais”. À luz destes contrastes, tidos por inultrapassáveis visto serem apresentados como distinções fundadoras, posicionam-se novas atitudes, delimitam-se novas posturas, estabelecem-se novas (e restabelecem-se velhas) divisões e ligações. Criam-se operadores eficazes, enraízam-se discursos religiosos, são erigidas mitologias étnico-culturais, articulam-se oratórias políticas nacionalistas, circunscrevem-se territórios conceptuais. Com esses pretextos, liga-se-lhes uma ética de “correcção política” cuja asserção central transpira relativismo cultural: “todos os sistemas de valores são igualmente válidos e, no sentido em que caracterizam a nossa especificidade própria, irredutíveis uns aos outros”. O meu ponto é o seguinte: é tão lamentável quanto previsível que o relativismo implicitamente assumido por Huntington nos Clash of Civilizations o tenha encaminhado (empurrado até) na direcção de narrativas míticas deste tipo. Ou seja: que numa situação tensa, em que (pela primeira vez desde há muito tempo) os “outros” têm voz, incautamente Huntington tenha sido levado a tomar pelo seu valor facial asserções rituais que não relevam senão dos novos contextos de multiculturalidade difícil (e em tantos casos dolorosa) vividos na “aldeia global”. Não é este o lugar indicado para debater a questão, fascinante, da razoabilidade do relativismo nu e cru. Trata-se antes de alinhar as implicações do facto de Huntington, enquanto analista, ter acatado como proposições descritivas o que efectivamente são declarações “políticas” dos actores sociais que as formulam. Ou que, pelo menos, delas tenha aceitado uma parte: a das suas conclusões. A consequência: nos domínios etéreos do “politicamente correcto”, na terra-de-ninguém da equidistância, Huntington foi por conseguinte levado a aceitar a realidade empírica de entidades tão nebulosas como as suas famigeradas 48 Relativamente a este ponto, reitero os comentários que fiz em (1999, op. cit.:159-161), nomeadamente no que diz respeito à definição de “etnicidade” moderna como resultado da intensidade de interacções sociais, e não como efeito de tendências para a separação. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 63 “entidades civilizacionais”, formações abstractas eivadas de intemporalidade e de homogeneidade interna. Anomalias (como, por exemplo, a profusão de Estados intercalares) são com displicência arrumadas ao abrigo de elaborações secundárias protectoras e tranquilizantes. Mas os problemas inerentes ao modelo paradigmático delineado mantêm-se intocados. Como não poderia deixar de ser: os cavalos não são esféricos. Verificá-lo não é particularmente árduo. Atenhamo-nos de novo a um só exemplo, porventura o mais polémico: o do Islamismo. Huntington (a meu ver de maneira redutoramente mecânica) explica a relativa indefinição de “civilizações” como a latino-americana ou a africana pela ausência, nelas, do que chama core states: Estados local ou regionalmente com influência suficiente para servir de catalisadores. Nesse contexto, é interessante a alegação de que uma das “civilizações” mais bem circunscritas (delineada aliás pelo nosso autor, a ferro e fogo, por “fronteiras sangrentas”) seja a Islâmica. Qual será o core state da famigerada Dar al-Islam49, uma vez a Arábia Saudita apeada das suas ambições, a família hashemita irreversivelmente dividida, o Irão xiita desacreditado, os movimentos integralistas baath da Síria e do Iraque isolados, e quaisquer pretensões pós-Bandung de uma Indonésia em fragmentação a perder-se numa linha já longínqua de horizonte? Em 50 anos, quaisquer plausíveis veleidades pan-arabistas (e, por maioria de razão, pan-Islâmicas) se esfumaram. Como poderia ser de esperar. Para lá das mais óbvias clivagens entre Árabes e não-Árabes, Turcos, Persas e outros, há que contar com fracturas entre Malaios e Pakistanis, Javaneses e Minangkabaw de Sumatra, Bengalis de Punjabis e Pathans de Afegãos, só para nomear umas poucas. A tão ambicionada e tantas vezes propalada unidade muçulmana é um dos mitos religiosos com que agrupamentos muito diferentes uns dos 49 Sobretudo nas pp.174-183, 209-218 e 246-266 da sua monografia, Huntington mostra ter plena consciência dessa ausência de um core state muçulmano. Tipicamente, não deriva porém todas as consequências desse facto (nomeadamente a incongruência heuristicamente devastadora deste dado com a intensidade das bloody borders), de algum modo escondendo-as por detrás de elaborações secundárias que oferecem outras razões para a regularidade destes conflitos. Fica a dúvida sobre o real papel dos core states na teorização huntingtoniana. 64 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS outros inventaram, ou “imaginaram”, uma “comunidade”, para usar a expressão consagrada de Benedict Anderson. Mas ao invés de muitos desses processos de gestação comunitária, trata-se de um mito relativamente improcedente. Porque é uma construção mitológica largamente restrita a algumas elites religiosas e políticas (por via de regra pouco representativas) de uma mão-cheia de países (sobretudo árabes), e depois instrumentalmente propagada para o geral da população. Não é, efectivamente, um facto empírico puro e duro que caracterize um qualquer projecto dos agrupamentos sociais que professam o Islamismo. Como o não são sequer a estabilidade, a permanência, ou a integridade temporal da colecção de grupos que no Mundo se identificam como muçulmanos. Nem a sua impermeabilidade. Afloremos concretamente este problema e desmontemo-lo. No Irão, as eleições de 1997 deram a Presidência a um moderado, Muhammad Khatami, um leigo perante cujos apoios populares até o muito mais radical Ayatollah Ali Khamenei tem vindo a ceder; as eleições de 2000, as mais concorridas da história do país, confirmaram a tendência dando uma vitória clara aos “reformistas”. Na Argélia, a brutal e tão sangrenta guerra intestina parece estar a esmorecer; e mesmo a Líbia, o Sudão, e a Síria (ou o Líbano) parecem a caminho de uma maior tranquilidade. A democracia e as eleições livres, cada vez mais exigidas por populações cada vez menos miseráveis, mais instruídas, e mais sintonizadas com um Mundo que lhes tem sido revelado pela revolução electrónica encetada nos fins do século XX, ganham terreno do Qatar ao Oman, do Kuwait à Jordânia e a Marrocos. A progressão convergente na direcção geral da evolução internacional, ao que tudo indica, é inexorável. Serão mudanças de peso. Embora ainda seja indubitavelmente demasiado cedo para o asseverar, o movimento parece irreversível; o seu âmbito cada vez maior. As suas implicações potenciais são enormes. No Renascimento, condições não muito diferentes desencadearam, na Europa ocidental, uma Reforma e Contra-Reformas, que pouco deixaram igual. Em finais do século XVIII e inícios do século XIX foi a vez dos ghettos e dos shtetl da Europa central e oriental ashkenazi: a Haskallah judaica repetiu, mutatis mutandis, as “luzes” cristãs. Uma Reforma Muçulmana de fundo não estará à porta? As comunidades na Diáspora europeia colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 65 e americana, com um peso crescente50, serão o seu lugar de gestação? A imagem de uma “civilização”, de um bloco, sobreviver-lhe-á? Seja qual for a resposta para estas questões, parece-me incontornável a urgência de as formular. Ainda que como paliativo contra uma visão essencialista que negue a solidez das mudanças em curso, insistindo em ver no futuro uma mera repetição do presente que, por sua vez, pouco mais faria senão ecoar o passado. Por muito que o discurso mítico-identitário que a maioria dos Muçulmanos utiliza como táctica para a construção da sua “comunidade imaginada”51 pareça convincente, as alegações em que se baseia não soam hoje em dia nada tão líquidas que possamos com segurança falar de uma entidade civilizacional Islâmica; semelhante hipotética unidade é, cada vez mais nitidamente, uma ficção religioso-cosmológica alimentada, ao sabor de conveniências conjunturais, por membros de algumas das elites políticas ou pastorais dominantes em Bagdade, no Cairo, em Riade, nas aldeias e nos subúrbios argelinos, em Karthoum, entre os teólogos taliban, ou em Jacarta ou Kuala Lumpur. E, muito menos, poderemos presumir que essa pretendida unidade tenha uma qualquer permanência, seja minimamente concertada, ou de algum modo actue de forma eficaz nos palcos internacionais. Ao cometer a imprudência de dar crédito a estas asserções, 50 A convicção da iminência de uma “reforma” islâmica, longe de ser uma especulação “selva- gem”, é muito geral e é desde há muito anos partilhada por inúmeros analistas e observadores de coisas muçulmanas. Está, talvez, posicionada a meio caminho entre uma extrapolação comparativa linear e o puro wishful thinking. Para uma sua versão moderna cautelosa, é interessante a leitura do esplêndido ensaio, que atrás referi, de E. Gellner (1992), no qual o notável especialista britânico aborda e entrelaça a Razão, o efémero pós-modernismo, e o Islão. No que toca à importância crescente das comunidades das diásporas, ver N. Tiesler (1999) e M. Tozi (1997), ambos atentos ao seu poder criativo e regenerador. Tanto Tiesler como Tozi, a primeira alemã de origem protestante, o segundo muçulmano marroquino, piscam o olho à eventualidade de um movimento de reforma modernizante a ter início nas comunidades emigrantes hoje a residir no Mundo não- muçulmano. Não me surpreenderia se essa reforma viesse a ter origem onde menos pode parecer plausível: no Irão. 51 Será difícil sobrestimar a importância do pequeno livro de B. Anderson (1991) para uma melhor compreensão das “condições de pensabilidade” a que estão sujeitas noções de comunidade (como, por exemplo, a de Nação). Uma lufada de ar fresco no conjunto, já densíssimo, dos estudos recentes sobre o nacionalismo e a construção nacional. 66 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Huntington perde de vista um facto bem mais interessante: a evidência de que a unidade muçulmana imaginada é uma simples figura relacional de afirmação, numa transição dolorosa e voraz para uma nova ordem internacional pós-westphaliana; de que essa unidade é, no fundo, uma fabricação (construtivista sem dúvida, mas conjuntural) de uma certa agenda política; e de que se trata de uma formulação puramente utópica. Com as devidas alterações, o mesmo se poderia dizer no que toca às outras chamadas “civilizações”. Todas são construções, objectos culturais mais do que, em sentido estrito, descrições sócio-históricas ou políticas. São instrumentos. Fica, no entanto, uma questão em aberto: se tais unidades não têm efectiva “realidade”, pelo menos enquanto peças de uma descrição objectiva da ordem internacional, como explicar a persistência e o aparente crescendo de numerosas “guerras culturais”, ou religiosas, nos palcos internacionais contemporâneos? O problema é especialmente pertinente, dado que a plausibilidade (senão o apelo) do paradigma huntingtoniano se funda, precisamente, nessa hipotética constatação. É com efeito difícil tomar contacto com a tese de Huntington sem que se produza um considerável “efeito de revelação”. Dos conflitos endémicos entre a Índia e o Paquistão (quanto a Cachemira, ou relativamente a aviões “desviados” para aeroportos afegãos) às escaramuças entre muçulmanos e cristãos na Indonésia, da intransigência mútua entre russos e chechenos ao terrorismo que assola todo o Mundo, passando pelas disputas na Irlanda do Norte entre católicos e protestantes e as lutas mais artesanais pelos “direitos indígenas” que cada dia alastram e ganham fôlego, o Mundo de hoje parece oferecer um nunca acabar de corroborações que o modelo simples e estilizado de Huntington parece tão apto a “explicar”. Mas fá-lo-á verdadeiramente? Creio que não. O relativismo que está no Espírito do Tempo, os nossos medos e as nossas expectativas, são as forças que verdadeiramente produzem esse efeito; trata-se de uma mera ressonância “ideológica” com as nossas convicções prévias. Verificar empiricamente anomalias na tese huntingtoniana, não é complicado. Se nalguns desses conflitos espreitam de facto “guerras culturais” ou religiosas (o que não é surpreendente, dado exactamente esse Zeitgeist), é imprescindível ter presente que a grande maioria o não colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 67 são. Nuns casos (a Rússia e a Chechénia, por exemplo; ou os massacres recentes perpetrados por indónesios no grande arquipélago sudeste asiático, das Molucas a Lombok), são no essencial lutas entre elites levadas a cabo por entrepostas pessoas. Noutros casos (o da Índia e do Paquistão, ou as disputas por indigenous rights) trata-se de meros subprodutos da arbitrariedade do traçado de fronteiras políticas, em cujo interior muitos Estados exercem o seu poder soberano. Nalguns (o caso da Irlanda é um destes) nem sequer podemos falar em quaisquer “civilizações”, já que tanto protestantes quanto católicos, na arrumação huntigtoniana, estão obviamente do mesmo lado das barricadas postuladas: todos são Western. Explicações alternativas são não só possíveis mas, também, evidentes. Seria laborioso entrar em detalhes relativamente a disputas muito diferentes umas das outras. Mas que exibem, em todo o caso, denominadores comuns. Para quase todas as instâncias contemporâneas aduzidas, com efeito, é apropriado sublinhar evidências factuais como as seguintes: dois terços dos conflitos actualmente ateados, e em consumação mais ou menos branda, são guerras civis separatistas típicas. Vivemos todavia num Mundo52 no qual só dez por cento dos Estados podem invocar ser etnicamente homogéneos; e em que só metade dos Estados existentes conta o grupo etnolinguístico maioritário (e, em geral, dominante) com mais de três quartos do total da população. Acresce, como ouvi Oliver Sparrow (Director do Royal Institute for International Affairs britânico) lamentar numa entrevista dada em finais do passado mês de Janeiro à BBC, que no decurso do século XX houve 290 milhões de vítimas directas de conflitos violentos, dos quais um total aterrador de 170 milhões foram “mortos pelos seus próprios Estados”. Mais ainda: muitos das chamadas “guerras culturais”, ou das fault-line wars, eclodem efectivamente ao longo das “fronteiras sangrentas do Islão”, sobretudo porventura nas frentes mais proselitistas, ou naqueles pontos em que muçulmanos mais se sentem acossados pelos seus inimigos tradicionais: os animistas e os 52 No que toca a estes e outros dados quantitativos, bem como para uma análise geral do que ele chama uma hybrid World Order, ver as últimas páginas do magnífico texto introdutório, já citado, de J. Nye (1997: 191-194). 68 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS cristãos. E se bem que muitos conflitos não ocorram por enquanto ao redor da China, a clausura e o exclusivismo que lhe tem sido habitual adicionam-se neste caso a um crescente imperialismo regional para servir de alerta aos mais atentos. Com algum recuo é óbvio que tudo isto escapa à tese huntingtoniana: mas que, num relance, pode parecer militar a favor do seu paradigma, sobretudo se estivermos predispostos (historicamente, por exemplo) a temer a diversidade, os muçulmanos, os cristãos, os animistas, ou os chineses. Trata-se porém de questões evidentemente melhor abordadas caso a caso. Porque é claro que em todos estes casos, outras questões que não as “civilizacionais” entram em jogo. E note-se que de maneira nenhuma se trata, nestes exemplos, de questões marginais, ou secundárias, para uma compreensão da ordem internacional. Representam, quero insistir, parcelas absolutamente primordiais para uma qualquer explicação cabal da dinâmica do sistema. Não é obviamente minha intenção sugerir que os conflitos típicos de que hoje em dia somos espectadores (e quantas vezes participantes) decorrem de um qualquer exclusivismo étnico primordial, ou que seriam efeito secundário de defeitos “genéticos” dos Estados. Nem que “muçulmanos” ou “chineses” sejam, por natureza, gente mais agressiva ou truculenta. Hipóteses catastrofistas destes tipos (ainda que de alguma verosimilhança residual) são, sem qualquer dúvida, muitíssimo fáceis de refutar com contra-exemplos. Aquilo que pretendo é chamar a atenção para o contexto específico dessas “pré-formatações”: há que manter presente que (feliz ou infelizmente, provavelmente feliz e infelizmente) assistimos, no Mundo contemporâneo, a mudanças alucinantemente rápidas; transformações registadas a vários níveis, inovações múltiplas contra as quais são muitos os que reagem mal e muitas vezes com um conservadorismo agressivo e violento. Mudanças incorridas que, ao induzir alterações nas configurações sociais anteriores, favorecem novas afirmações relacionais fervorosas. E não podemos esquecer que uma das armas que temos disponíveis para resistir, para fazer frente a mudanças, é precisamente a de “imaginar comunidades” retalhando identidades e refazendo fronteiras e linhas de divisão. Que outros o façam não é, infelizmente, controlável. Que o façamos nós, é. O risco incorrido é o de que o paradigma huntigtoniano se preste a poder ser colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 69 arvorado (decerto à contre sens) como uma das justificações dadas para novas exclusões, investindo-as assim de mais uma aura legitimadora: a de mitos já antigos, mas agora sedutoramente vestidos com roupagens académicas à la page. 6. No que precede, preocupei-me com alguns dos pressupostos menos polémicos de Samuel Huntington nos seus Clash of Civilizations. Nomeadamente, com a sua presunção central: a de que seria exequível circunscrever “civilizações”, enquanto unidades de conta do sistema internacional. Acima de tudo, tentei além disso mostrar a estreiteza de um modelo (no essencial) estático para explicar uma ordem internacional cada vez mais caracterizada pelo dinamismo. Num trabalho anterior, já citado53, tomei como tópicos preferenciais a ambivalência, a um tempo centrífuga e centrípeta, da progressão contemporânea nos palcos mundiais: uma interacção dinâmica activada pelo jogo de processos como a globalização e a tribalização, respectivamente. Nesse contexto, insisti nos déficits metodológicos da análise de Huntington; na sua alguma pobreza teórica, por exemplo no que diz nomeadamente respeito a noções como as de religião, etnicidade ou nacionalismo. A nível do dispositivo explanatório utilizado por Huntington, uma pobreza aliada à excessiva secundarização para a qual o paradigma relega a clássica power politics. Na presente comunicação, troquei esse acento tónico por outro dele complementar. A minha atenção, agora de acordo com preocupações mais “liberais” e menos “neo-realistas”, tem permanecido sobretudo focada na descontextualização genérica de que o notável trabalho de Huntington me parece sofrer. Para o efeito, retomei aliás algumas das linhas de força das minhas ponderações anteriores. Mas fi-lo noutro âmbito: ensaiei uma reperspectivação mais ampla. Resta-me recapitular. 53 Armando Marques Guedes (1999), op. cit., sobretudo nas suas secções inicial e final, na qual tentei descrever algumas das regras do moderno jogo de tribalização-globalização. 70 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Simplificando e metaforicamente: num Mundo cada vez mais interdependente, é compreensível que grupos até aqui assaz senhores de si mas encalhados na situação difícil de estar geográfica e culturalmente próximos uns dos outros, recorram a afirmações relacionais estridentes. O Jihad de Barber, deste ponto vista, não é senão (sem qualquer desrespeito, ou desprimor) um momento passageiro de um género de “política de bairro”, o equivalente funcional (mutatis mutandis) de uma “agitação de rua” expressa numa aldeia global que implacável e inexoravelmente vai sendo erigida por pressões sistémicas. Uma espécie caricatural de conservadorismo. Uma busca de identidade. E um canto de cisne. Paradoxalmente, exclusivismos ciosos deste tipo têm muitas vezes o efeito perverso de agravar as coisas: protestos violentos e separatistas54 desencadeiam por via de regra reacções generalizadas, políticas e jurídicas, cuja consequência é precisamente a de ajudar e acelerar a sedimentação do Mundo globalizado, tão ferozmente combatido. Na conjuntura actual, exclusivismos separatistas irreconciliáveis são muitas vezes tiros que saem pela culatra. Nada disto nos deve surpreender. Nem as acções, nem as reacções. A Modernidade, como tão contagiosamente lhe chamou Anthony Giddens (que a caracterizou como “uma experiência”), está a alterar o Mundo a olhos vistos. O que antes eram segmentos e entidades bem localizadas perde-se, hoje, em novos arranjos de conjunto. A divisão nítida entre um Primeiro, um Segundo e um Terceiro Mundo, já não é o que porventura foi. A miséria, a corrupção, o crime, e a desorganização, tradicionalmente vistos como apanágio dos países em vias de desenvolvimento, podem agora ser encontrados no centro mesmo das grandes capitais ocidentais. Enquanto que, nos países pobres, elites riquíssimas vivem ao nível das europeias ou das norte-americanas. As imagens antigas com que nos 54 Para um apelo à moderação (pela compreensão) nas reacções “antiterroristas”, é ainda refrescante o pequeno estudo de E. R. Leach (1977). Em duas conferências realizadas na Universidade de Edimburgo, Leach como que instalou as traves-mestras das análises sociológicas dos mecanismos conceptuais de exclusão dos “terroristas”. Para um fascinante estudo comparativo do papel preenchido por perspectivas ideológicas no que diz respeito ao combate ao terrorismo urbano, ver o artigo de P. Katzenstein (1993) sobre a evolução das normas de segurança interna no Japão e na Alemanha. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 71 habituámos a representar o Mundo estão velhas; nos novos panoramas, há que as descartar, ou pelo menos, que as relativizar. Não é por isso estranho e não nos deve causar surpresa que (com o intuito de evitar sérias dissonâncias cognitivas) haja quem tente reimpor à força as configurações anteriores, e insista em avançar para o futuro às arrecuas, com os olhos teimosamente postos num passado que a distância vai doirando55. De há muito que sabemos haver dois tipos de Messianismo: o que vê no futuro a Redenção; e aquele que a vê no regresso ao primordial. “Sebastianismos” do segundo tipo sossegam-nos muitas vezes sob a guisa insinuante de uma revelação, uma ficção bem-vinda porque tranquilizante. Os fundamentalismos no entanto, sejam deste ou do primeiro tipo, têm sempre uma curta esperança de vida porque não são verdadeiras soluções. Esmeram-se em respostas demasiado simples e respiram atitudes inconsequentes. Tenderão rapidamente a esbater as suas cores. Já que a globalização, naturalmente, tem também sido cultural, tais miragens salvíficas são reacções “místicas” cada vez menos aceitáveis, mesmo para aqueles em cujo nome ocorrem. A “realidade” cada vez mais se impõe de acordo com formatos relativamente homogéneos; e por muito que a encaremos de ângulos e perspectivas diferentes (como sem dúvida o fazemos) estamos condenados a nos virmos a saber entender, ainda que isso redunde num simples “concordar em discordar”. Um entendimento assim, “multivocal,” como diriam os semiólogos, foi já há muito encetado; muitos são os portugueses que se orgulham de nele termos sido pioneiros. Com avanços e recuos, é certo, cada vez mais longe, por isso, estamos da fragmentação em blocos civilizacionais irredutíveis que Huntington advogou estar em alta. Dois exemplos, mais anedóticos e ilustrativos do que propriamente analíticos, bastarão. Um, relativo à morte de uma notável antropóloga norte-americana, Marjorie 55 Para este e outros pontos conexos, julgo incontornável a leitura do mais recente livro de Anthony Giddens (1999), uma edição das suas Reith Lectures sobre a globalização; em particular a secção (ibid.: 36-51) intitulada “tradições”. Apesar de partir de pressupostos bastante diferentes dos de Giddens, apraz-me verificar que o meu balanço genérico das exigências que a situação de crescimento cosmopolita contemporâneo nos impõe não é, no essencial, muito diferente daquele delineado pelo notável sociólogo inglês. 72 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Shostak. Outro, respeitante a uma base de lançamentos de foguetões aventada há uns anos para a Austrália. Ambos, edificantes. Qualquer deles, uma ilustração da tendência para um galope dia-a-dia mais acelerado da globalização ética e normativa que está, com teimosia, a formatar o sistema internacional anárquico. Em finais de 1996, morreu em Nova Iorque uma investigadora (uma notável antropóloga) especialista nos bosquímanos!Kung do Botswana. Membro insigne do muito justamente célebre Kalahari Research Group baseado na Universidade de Harvard, foi uma feminista famosa pelos seus trabalhos sobre as mulheres san. Com um cancro fatal diagnosticado, Marjorie Shostak decidiu corajosamente passar o grosso do tempo de vida que tinha (algumas semanas) entre os nómadas de que tanto gostava, no Kalahari. Gravou conversas no deserto. Voltou para Nova Iorque e morreu. De entre as conversas transcritas e postumamente publicadas, destaco uma. Numa noite tranquila à volta de uma fogueira, um velho!Kung levantou os olhos das flechas de caça cujas pontas estava a recobrir de veneno (insectos esmagados) e inquiriu, em!Kung: “então e tu, Marjorie, achas que o O. J. Simpson é culpado, ou inocente?”. Todos podemos imaginar a gargalhada de encanto de Marjorie Shostak. Uma universalização ética ou um crescendo nas identificações étnicas transnacionais? A ascendência do McWorld ou a do Jihad? O Mundo está mais pequeno do que aquilo que parece. Em 1991, numa pequena cidade do extremo norte de uma pequena península do Mar de Arafura, na Austrália (não muito longe de Timor), foi levado a tribunal um caso “moderno”. Um consórcio russo, ao que parece suspeito de ligações obscuras a uma das Mafias de Moscovo e São Petersburgo, tencionava construir, em coligação com know-how técnico britânico e californiano, uma série de gigantescas rampas privadas para o lançamento de satélites comerciais. Os objectivos eram os de tirar partido das vantagens da localização equatorial da plataforma espacial, do baixo preço dos terrenos, e da disponibilidade de um empreendedor Mayor australiano, preocupado com a promoção de investimento em infra-estruturas numa região economicamente deprimida. O projecto falhou. As causas do fiasco de tão magna empresa são surpreendentes: um agrupamento de Aborígenes reivindicou, perante as instâncias judiciais da região, que o local seleccionado faria parte colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 73 integrante da Terra dos Sonhos dos seus antepassados, tão importante a nível das cosmologias tradicionais. O juiz deu-lhes razão. O investimento abortou. Jihad ou McWorld? 7. Contra esse pano de fundo, podemos então concluir delineando muito cursoriamente os contornos de um balanço genérico do paradigma de Samuel Huntington. No que precede, e pese embora a indubitável sofisticação do modelo do Clash of Civilizations, tentei sublinhar e pôr em relevo algumas das suas insuficiências. Esbocei-as, em Julho de 1999, em termos largamente avulsos. Fi-lo, nesta comunicação, recorrendo a comparações-contraposições sistemáticas com o que considero uma modelização mais dinâmica, talvez mais conflitual, e certamente mais conforme com os factos empíricos. Nos dois casos, esforcei-me por pôr a tónica na “frugalidade analítica”, chamemos-lhe assim, do paradigma do notável especialista norte-americano. E não deixei de trazer à tona o que considero como algumas das dificuldades (que creio serão cada vez maiores) em gerar previsões plausíveis (ou mesmo interpretações convincentes), com que depara o paradigma huntingtoniano. Recapitulando: nas sociedades modernas, e ao invés do que muitos previam, o boom económico, que alterou para muito melhor o nível de vida da larga maioria das populações, de maneira alguma levou à secularização, e ainda menos ao desaparecimento das religiões. Pelo contrário, muitas vezes a religiosidade intensificou-se. A escalada subiu de tom logo que, em Estados delimitados por fronteiras etno-culturais relativamente arbitrárias e implantados num Mundo cada dia mais interdependente, processos relacionais de afirmação étnico-identitária começaram um empolamento ruidoso e generalizado: sem surpresas (dadas as afinidades intrínsecas existentes), não raramente as religiões têm servido de veículos para asserções relacionais violentas. Como insisti em Julho de 1999, vivemos rodeados de bombas-relógio deste tipo. E as consequências têm sido visíveis, com a eclosão de numerosos conflitos étnico-religiosos no Mundo, 74 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS sobretudo desde o fim do quadro bipolar que os continha; um enquadramento que ademais, em simultâneo, atenuava a velocidade dos processos de globalização que, como vimos, propendem precisamente a potenciar explosões dessas. Não é surpreendente que, neste género de cenário conjuntural, tanto se tenha universalizado a “tribalização” como reacção generalizada; e que, por isso mesmo, numa espiral ascendente, o processo de degradação dos relacionamentos étnico-religiosos se venha ainda hoje como que a alimentar a si próprio. Daí à precipitada reificação teórica desse processo por modelos paradigmáticos como o de Huntington, não vai senão um pequeno passo. Que essa teorização tenha emergido no Ocidente não será grande surpresa. Com eficácia variável, os “ocidentais” desde há muito que se “inventam” a si próprios como formando uma “civilização”, um bloco, uma entidade de alguma forma coerente e dotada de traços distintivos comuns. Tal como de resto, mutatis mutandis, se “imaginam” os muçulmanos. É milenar, para além disso, a tendência para a demarcação-oposição mútua (histórica, étnica e religioso-cultural) entre estes vizinhos desavindos. “Ocidentais” e muçulmanos, em muitos sentidos, entredefinem-se. E, previsivelmente, a conjuntura actual favorece (sobretudo em agrupamentos em posições estruturais relativas deste tipo) a circulação de representações agonísticas polarizadas que insistam na irredutibilidade e na incomensurabilidade últimas das “entidades em confronto”. A resultante “ideológica” está à vista. Para muitos muçulmanos (quantas vezes para tal acicatados por elites preocupadas em reter as rédeas do poder em situações imprevisíveis de mudança acelerada), como decerto para muitos “ocidentais” (e, obviamente, para muitíssimos “ortodoxos”), “guerras culturais” generalizadas mais do que um risco são uma inevitabilidade. Este tem sido, por infelicidade, o Zeitgeist. A meu ver, foi precisamente esse “Espírito do Tempo”, e não a realidade empírica de uma ordem internacional em formação, aquilo que Huntington tão bem logrou capturar e cristalizar com o seu paradigma. Num primeiro momento, Huntington produziu o que chamei um “efeito de revelação”, ao aparentemente disponibilizar uma arrumação fácil de acontecimentos superficialmente tão policentrados, complexos e ameaçadores, em termos que tanto se adequam aos nossos pressupostos profundos. Mas, num segundo momento e com algum recuo, a tese colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 75 huntingtoniana não deixou de despertar um sóbrio sentimento de hesitação, nomeadamente em sectores cosmopolitas ocidentais e “islâmicos”; o perigo pressentido era de que o paradigma se tornasse numa self-fulfilling prophecy, ao ser tomado como inevitável. Este risco é decerto cada vez menor. Como tentei demonstrar por meio de exemplos que alinhei nos termos de contraposições que me esforcei por encadear a vários níveis, a progressão rapidíssima da interdependência e da globalização têm vindo a tornar dia-a-dia menos verosímil o modelo huntingtoniano. O Mundo escapa-lhe cada vez mais. E o “excesso” do Mundo face a um modelo no essencial redutor e estático tende a manifestar-se por numerosos processos, e a gerar inúmeros acontecimentos, que parecem “sair em tangente” em relação a este último. Listei alguns casos disso mesmo. Assumindo todos os riscos que tal implica (mas sem menosprezar as vantagens das conjecturas), não é difícil ilustrá-lo, agora em termos prospectivos. Quero terminar com uma reperspectivação que, não sendo talvez muito positiva, será decerto mais construtivista. Propor senão um paradigma, sempre em riscos de anacronismo numa ordem internacional em transformação acelerada, pelo menos uma linha de fuga, um horizonte. Uma interpretação de um alvo em movimento. Por uma questão de coerência, mantenho a atenção poisada no par soberania-globalização. Como alternativa ao “mapa” huntingtoniano, quero sugerir uma leitura possível dos processos de erosão das soberanias westphalianas tradicionais, e da globalização em curso. Propor, não tanto um paradigma, quanto um algoritmo. Em súmula, e retomando o que disse: da intervenção Aliada no Kosovo ao affaire da extradição do General Pinochet, da anunciada reforma de fundo das Nações Unidas à Bósnia-Herzegovina, a Angola, ao centro da África (Ruanda, Burundi e arredores), à Serra Leoa, à Somália, ao norte e ao sul do Iraque, ao Cambodja, a Timor-Leste, tem crescido a intrusão da comunidade internacional em regiões que até aqui o provecto dogma da soberania nacional reservava como coutadas. Perante uma cada vez mais nítida redimensionação ética e normativa de um sistema internacional tradicionalmente anárquico, é difícil evitar a impressão de que uma sua estruturação política se começa enfim a cristalizar. Não um Leviathan hobbesiano: uma hipotética integração global, 76 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS mesmo que um dia possa vir a ocorrer, ainda está, talvez felizmente, muito longe. Mas decerto que a cada vez mais intrincada interdependência genérica não se compadece com a antiga formatação unidimensional, saída da Paz de Westphalia, em 1648, que sob o peso de tantas vicissitudes a Europa legou ao sistema internacional que sob sua égide se foi construindo. Não cabe aqui tentar um qualquer rastreio de um processo tão complexo e com tantos meandros como esse. Quereria tão-só focar, a traço grosso, um dos seus aspectos mais relevantes para a minha linha de argumentação. O desmembramento do Império Otomano, tal como aliás o rescaldo da Primeira Grande Guerra, concorreu para multiplicar no Mundo os Protectorados, regiões e países cuja soberania foi transferida ou suspensa, e entregue à guarda de outrém. O direito de ingerência foi, na prática, ampliado. Depois da Segunda Guerra Mundial, o processo seria retomado: Protectorados foram criados em todos (ou quase todos) os continentes, sob a égide de um ou outro dos Estados vencedores. Com a luta político-ideológica que acompanhou a clivagem bipolar, o processo de algum modo estancou. No percurso, deu-se uma sensível erosão: as descolonizações dos anos 50, 60 e 70 do século XX pareceram, durante alguns anos, fazer retroceder esses e outros mais clássicos sistemas de tutela, que tanto a ambição quanto a implacável “balança do poder” e os mecanismos wilsonianos de collective security tinham distribuído pelos Estados. Mas as fundações da arquitectura do sistema internacional (a distribuição neste do poder) não tinham sobrevivido indemnes; uma explicação do Mundo em termos da lógica dos Estados revelava-se cada dia menos satisfatória. No calor da Guerra Fria, e sem os benefícios da retrospecção, isso não era porventura óbvio: a bipolarização dos cenários políticos internos como dos externos acentuou paradoxalmente a imagem do protagonismo destes últimos (ou, em todo o caso, de dois deles, as “superpotências”) num sistema internacional cada vez mais complexo e mais interdependente. Vista retrospectivamente, esta progressão, ou melhor esta retrogressão, talvez tenha no entanto sido mais aparente do que real. Sobretudo se deixarmos de ver os Estados soberanos como os únicos “verdadeiros” protagonistas de um sistema internacional em que muitos novos actores (dado que a crescente interdependência se compadece pouco com fronteiras territoriais) têm vindo a contracenar. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 77 A direcção sugerida pelas mudanças recentes na “ordem internacional” contemporânea (tanto quanto conseguimos entrever um sentido), parece ser persistente. E não é a de um regresso ao passado. Ultrapassados os momentos iniciais de uma transição que se adivinha prolongada, assente alguma da poeira levantada, vislumbra-se a silhueta de uma nova ordenação; a emergência rápida de uma nova configuração do sistema internacional em lugar da aritmética de um mero somatório de Estados ou da geometria de uma coagulação em “blocos civilizacionais”. Antes uma topologia. Um alastrar de novas manchas um pouco por todo o Mundo, a cobertura de zonas e regiões por uma nova tutela: a de uma comunidade internacional cada vez mais constrangente, com a qual, por pressões políticas globalizantes inexoráveis, todos estamos a ser obrigados a cooperar. Não se trata de verdadeiros Protectorados, já que não são seus atributos nem uma submissão permanente, nem a anexação por um qualquer Estado (ou agrupamento) mais poderoso. Não é seu motivo primordial (ou em todo o caso a sua causa primeira) um eventual interesse de um qualquer grupo em mão-de-obra barata, em recursos naturais valiosos, em maior peso específico próprio, ou em melhor posicionamento geo-estratégico. Há, antes, um objectivo básico: o de garantir mínimos normativos que assegurem a integração do agrupamento em que é levada a cabo a intervenção (ou, pelo contrário, a salvaguarda disso mesmo face à prepotência do Estado soberano de que faz parte), sem desacatos, numa nova ordem mundial pós-westphaliana56 em gestação. Não será talvez por isso total- 56 Na obra recente citada, Nye (1997: 192-194) advoga uma mediação interpretativa interes- sante entre as posições que denomina respectivamente de “liberal” e de “realista”, no que toca à evolução dos dispositivos de balance of power e dos de collective security, no Mundo pós-bipolarização. A linha de argumentação de Nye é a seguinte: o potencial wilsoniano liberal implícito em organizações como as Nações Unidas, só agora que terminaram muitos dos bloqueios-veto (tão típicos do cenário bipolar da Guerra Fria) se está a tornar evidente. Para uma cabal descrição deste “novo Mundo híbrido”, defende Nye, nem os pressupostos do paradigma liberal nem os dos paradigmas realistas chegam; há que saber produzir modelos sincréticos mais latos e mais inclusivos. Uma posição que partilho e que creio rica em implicações. Parece-me interessante, por exemplo, ponderar a hipótese de vir a generalizar-se, neste novo contexto, o conceito de negative sovereignty desenvolvido pelo já citado canadiano R. Jackson (1990) para dar conta do que chamou os “quasi-Estados” do Terceiro Mundo: Estados que dependem, para a sua própria sobrevivência, do apoio 78 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS mente infundamentado conjecturar que aquilo a que assistimos seja uma efectiva transformação da estrutura e da natureza da comunidade política internacional, porventura pela delineação progressiva de um novo “contrato social” fundador. Sem que tal implique um qualquer utopismo. A interdependência complexa e a polaridade multidimensional que subtendem a ordem mundial contemporânea acarretam, sem sombra de dúvida, consequências ambivalentes. A globalização, por outras palavras, tem avessos. Um deles é a marginalidade a que até aqui tem condenado os que ficam de fora. Outro espelha-se nas desigualdades internas que exponencia. Mas desenrola também frentes boas. Inviabiliza (pelo menos nesta fase inicial) hegemonias unipolares duradouras. E, pace Huntington, ao fomentar movimentos de integração-fragmentação, desencoraja blocos que sejam estáveis em mais do que uma das suas dimensões. O que hoje lemos, pela negativa, como “ingerências”, “perdas de soberania”, “erosão dos Estados-nação”, ou “sistemas de tutela” e “soberanias vigiadas”, amanhã talvez vejamos como primeiro momento, incontornável, de uma narrativa histórica de construção e criação57. As intervenções “humanitárias” que têm pautado esta continuado da ajuda externa e de um quadro jurídico internacional consentâneo. Uma situação de fundo hoje em dia bem mais generalizada, como aqui defendo. 57 Nada disto é particularmente heterodoxo. Inúmeros têm sido os analistas, cá como lá fora, que têm vindo a equacionar em termos conexos algumas das alterações em curso no Mundo contemporâneo. Nem esta perspectivação parece exibir particulares afinidades com quaisquer escolhas político-ideológicas que possamos preferir. Em Portugal, num livro sobre a emergência de um constitucionalismo europeu publicado alguns meses antes da sua morte repentina, Francisco Lucas Pires (1997: 14ss.) escreveu sobre a deslocação “para cima”, para uma localização “supra-estadual”, do exercício do poder soberano: aquilo que, muito graficamente, chamou “o transbordo do poder”. Mais: Lucas Pires previu mesmo a invenção, no século XXI, da “fórmula da passagem de Estado-dirigente a Estado-subsidiário”(ibid.) que, segundo ele, marca a Modernidade. Noutro lado do espectro, Boaventura Sousa Santos (1998: 47-48) escreveu também (e também num estilo inconfundível) sobre “a exigência cosmopolita da reconstrução do espaço-tempo da deliberação democrática”, que previu irá impor “um novo contrato social…moderno, [que] não pode confinar-se ao espaço-tempo nacional estatal e deve incluir igualmente os espaços-tempo local, regional e global”. Talvez a visão estritamente contratualista não seja já a mais adequada. Mas certamente que a generalização de asserções deste tipo, vindas um pouco de toda a parte, sublinha uma consciência crescente de que no Estado westphaliano e na soberania à la Jean Bodin, cabem hoje mal muitas das realidades internacionais intrincadas de um presente cada vez mais globalizado. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 79 passagem de Milénio não são boas nem são más. Talvez nem sejam inevitáveis. Mas desenham, a luz forte, o Mundo que temos. Não será muito especulativa (nem particularmente inovadora) esta conjectura. Mas excede claramente todas as previsões geráveis a partir do paradigma (cada vez mais datado) de Huntington. Assegurar que a lógica sistémica (e a vontade política), que sancionam e exigem ingerências “policiais” desse tipo, se consubstanciem na criação progressiva de uma sociedade internacional que seja democrática e pluralista58, em que a diversidade seja de regra e as identidades específicas que tenhamos por bem arvorar não sejam nem excluídas nem neutralizadas, um Mundo em todos os recantos do qual vigore o valor supremo da Liberdade, parecem-me ser as mais meritórias das “guerras culturais” que é urgente que nos saibamos preparar para empreender. 58 As dimensões disso não têm passado despercebidas. Numa colectânea recente (Lensu e Fritz, 2000), são aventadas várias modelizações e “soluções” teóricas para um problema inevitável suscitado pela progressão recente da ordem internacional. Um problema que Lensu enuncia do seguinte modo: how can we encounter “otherness” or difference in an ethical way? A questão resulta da situação de claro value pluralism do Mundo em globalização; e redunda na óbvia existência daquilo que ela apelida de diverse ultimate values (op. cit.: xviii). Segundo a autora senior, a maioria dos debates entre defensores ocidentais de Direitos Humanos e os adversários não-ocidentais destes ilustra the fundamental question facing normative theory in International Relations: how to reconcile value pluralism with an appropriate ethical orientation (good/right/fair/just) (ibid.), num Mundo no qual as opiniões divergem muito no que toca, nomeadamente, ao conteúdo e extensão de “valores” básicos e fundamentais desse tipo. Uma postura mais negativa face a esta situação é igualmente possível. Já no princípio dos anos 90, num curto mas incisivo artigo redigido segundo uma cartilha mais historicista que sociológica e muito mais político-ideológica que ético-filosófica, I. Wallerstein (o célebre teórico norte-americano do “Sistema-Mundo”) tinha sublinhado a inevitabilidade do que chamou cultural resistance, na luta moderna contra the falling away from liberty and equality; uma contenda que (com algum pessimismo “pré-Huntington”) considerava estar na ordem do dia, dada a ascensão em flecha do “global” (1991: 105). 80 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Bibliografia Aguiar, Joaquim (1998), “A crise asiática e as suas repercussões”, Política Internacional 2: 115-141. Anderson, Ben (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of nationalism, Verso. Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the World, Ballantine Books, New York. Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world community”, em (ed.) Booth, K. e Smith, S. International Relations Theory Today: 90-110, Cambridge. Buchholt, Helmut (1998), “Southeast Asia: the way to modernity”, em (ed.) J. Schouten, A Ásia do Sudeste. História, Cultura e Desenvolvimento: 97-105, Vega. Bull, Hedley (1977), The Anarchical Society: a study of order in world politics, McMillan, London. Chomsky, Noam (1999), The New Military Humanism. Lessons from Kosovo, Pluto Press, London. Gellner, Ernest (1992), Postmodernism, Reason and Religion, Routledge, London. Giddens, Anthony (1999), Runaway World. How globalization is reshaping our lives, Profile Books, London. Goldstein, Judith e Keohane, Robert (ed.) (1993), Ideas and Foreign Policy. Beliefs, institutions and political change. Cornell University Press. Held, David, McGrew, Anthony, Goldblatt, David e Perraton, David (1999), Global Transformation. Politics, Economy and Culture, Polity Press. Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25. ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. ____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, 78(2): 35-50. Jackson, Robert (1990), Quasi-States: sovereignty, international relations and the Third World, Cambridge University Press ____________ (1993), “The Weight of Ideas in Decolonization: normative change in international relations”, em (ed.) Goldstein, J. e Keohane, R., op. cit.: 111-139. Katzenstein, Peter (1993), “Coping with Terrorism: norms and internal security in Germany and Japan”, em (ed.) Goldstein, J. e Keohane, R., op. cit.: 265-297. Keohane, Robert (1995), “International Institutions: two approaches”, em Der Derian, J., International Theory: critical investigations: 279-307, MacMillan, London. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 81 King, Anthony (ed.) (1991), Culture, Globalization and the World-System. Contemporary conditions for the representation of identity, MacMillan. Knutsen, Torbjörn (1999), The Rise and Fall of World Orders, Manchester University Press. Kolko, Gabriel (2000), “Kosovo, leçons d’une guerre”, Manière de Voir 49: 17-21, Paris. Krasner, Stephen (1999), Sovereignty: Organized Hypocrisy, Princeton University Press. Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University Press. Lensu, Maria e Fritz, Jan-Stefan (eds.) (2000), Value Pluralism, Normative Theory and International Relations, Millenium, London. Linklater, Andrew (1998), The Transformation of Political Community. Ethical foundations of the post-Westphalian era, Polity Press, Cambridge. Lucas Pires, Francisco (1997), Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Almedina, Coimbra. Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18(2): 45-79. Marques Guedes, Armando (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena. Nye, Joseph (1991, tradução 1992), “O Mundo pós-Guerra Fria: uma nova ordem no Mundo?”, Política Internacional 5(1): 79-97. ____________ (1997), Understanding International Conflict. An introduction to theory and history, Longman. Ramonet, Ignacio (2000), “Ingérence et Souveraineté”, Géopolitique: 51-55, Paris. Sousa Santos, Boaventura (1998), Reinventar a Democracia, Gradiva e Fundação Mário Soares, Lisboa. Strange, Susan (1996), The Retreat of the State. The diffusion of power in the world economy, Cambridge University Press. Tiesler, Nina (1999), “New Social Realities and Religious Consciousness. Theological concepts of ‘home’ and the cognitive relationship between European Muslims and the Islamic World”, University of Sussex, trabalho não publicado. Tozy, Mohamed (1997), “Recomposition identitaire et migration religieuse internationale. Le cas de jama’at at-tabligh wa da’wa”, Maghreb Studien 10: 259-266, München. Wallerstein, Immanuel (1991), “The National and the Universal: can there be such a thing as world culture?”, em (ed.) King, A., op. cit.: 91-107. Walz, Kenneth (1959), Man, the State and War: a theoretical analysis, Columbia University Press. Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London. 82 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3. O Funcionamento do Estado em Época de Globalização. O Transbordo e as Cascatas do Poder59 1. Há cerca de um ano [ou seja, em 1999] tive o gosto de escrever duas comunicações sobre um assunto aparentado com este, que apresentei noutra instituição, o Instituto de Altos Estudos Militares. Numa delas, que li num colóquio subordinado ao tema Religiões, Segurança e Defesa, coube-me levar a cabo uma ponderação “neo-realista” (como então a caracterizei60) das célebres teses de Samuel Huntington sobre o Clash of Civilizations: essa divisão do Mundo em grandes blocos culturais que, segundo ele, constituiria o pano de fundo de futuras confrontações, desde que a ordem internacional bipolar se eclipsou com a dissolução da União Soviética. Na minha segunda palestra, revisitei o mesmo paradigma huntingtoniano, adoptando, porém, uma perspectiva61 muitíssimo mais “institucionalista” e “construtivista” nas críticas que então lhe formulei. Nos dois casos, discordei do modelo tão brilhante e lucidamente proposto pelo especialista norte-americano; e em ambas as oportunidades contrapus-lhe uma visão mais “globalista” da ordem internacional emergente. Quero agora retomar esse tópico, deixando definitivamente de lado (pelo menos para este efeito) a obra de Huntington. O tema que aqui trago aflora a chamada globalização. Tenho plena consciência de que se trata de um termo polémico, ambíguo, e bastante carregado e 59 Comunicação apresentada como parte do Curso de Reciclagem dos Auditores do Curso de Defesa Nacional, na manhã de 19 de Abril de 2001, no Instituto da Defesa Nacional. 60 Armando Marques Guedes (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena. 61 Armando Marques Guedes (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 83 conotado, que alguns preferem, por uma, outra, ou várias dessas razões, não utilizar de todo. Devo começar por dizer que questões terminológicas me interessarão muito pouco no que se segue. Sei da importância delas, mas conheço também os seus limites; a questão, por isso, não me inquieta muito. Não será, em todo o caso como conceito, mas tão-só como denominação que, por economia de linguagem, utilizo o vocábulo. A natureza dos objectivos que tenho permite-mo. Não pretendo empreender uma qualquer ponderação de fundo da sua hipotética natureza essencial, sobre as coordenadas nocionais e porventura políticas das utilizações que dele são feitas, ou quanto ao seu alcance geral enquanto processo. Mais modestamente, tenho antes por objecto o impacto concreto deste(s) processo(s) nos Estados contemporâneos. E, mesmo isto, tão-só num sentido indicativo: não me irei deter em mais do que meia dúzia de “frentes”, até para não maçar em demasia quem me queira ouvir. Talvez valha a pena enunciar com clareza o meu intuito nos termos do método de exposição que aqui vou seguir. Tomarei como pontos pivotais de referência dois tipos de palco e cenário, duas configurações, (bastante diferentes uma da outra) da ordem mundial e da organização política no Mundo moderno contemporâneo. Por um lado, aqueles associados com as relações até há pouco tempo tradicionais entre Estados, os seus relacionamentos geopolíticos “clássicos”, por assim dizer. Por outro lado, aqueles outros ligados às ordenações emergentes da política e da governação62 global. Vou, de algum modo, comparar estas duas conjunturas, a tradicional e a presente63. Nessa comparação, ater-me- 62 Governação é termo que aqui utilizo no sentido de governance, uma palavra inglesa difícil de traduzir. 63 Uma salvaguarda. No título original desta comunicação, apresentada no Instituto de Defesa Nacional no dia 19 de Abril de 2001, era feita alusão à “função do Estado”. O que entendi de uma maneira que convirá que torne explícita. Não vejo que aos Estados incumba uma função especial, mas sim funções; não quereria em todo o caso restringir as minhas considerações a um qualquer Estado em particular (o português, por exemplo), mas antes a Estados contemporâneos de vários tipos; e, por último, encaro função não como missão, mas, em termos mais funcionais, como “articulação de uma parte com um todo”. Por outras palavras: o meu tema, em boa verdade, é não “a função do Estado em época de globalização”, mas essencialmente “o funcionamento dos Estados em época de globalização”. Coisa que, não fugindo ao título proposto (nem sequer levando a cabo, 84 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS -ei a impactos políticos e a impactos jurídicos. Deixo assim largamente de fora escalas tão centrais como a económica, a cultural, ou, stricto sensu, a militar; excepto quando estas dimensões (como é tantas vezes o caso) se mostram indissociáveis de algum dos todos em que me quero deter. O encadeamento que escolhi para aquilo que irei expor é simples. De uma forma muito positiva, quereria começar por delinear um breve esboço genérico daquilo que considero como algumas das principais traves-mestras da ordem mundial contemporânea. Um esboço de uma ordenação cuja estrutura, devo em todo o caso vincar, me parece marcada, por um lado, pela multidimensionalidade e, por outro, pela complexidade. O que proponho aqui tentar levar a cabo, pode ser visto como de alguma maneira encarar as questões de fora para dentro, por assim dizer. A partir de uma caracterização estrutural do sistema internacional contemporâneo (by and large aquele que o fim da Guerra Fria e a implosão da ex-União Soviética nos legaram), gostaria de tentar equacionar algumas das consequências (umas delas mais notórias, outras porventura menos) impostas, pela nova ordem internacional em gestação, sobre Estados que na prática vieram do Mundo anterior. Não vou ser muito ambicioso. Mais do que inovar, ensaiarei fazer uma arrumação. Tenho, em relação a estas questões, o que creio ser uma postura moderada. Como se irá verificar, não sou de opinião que estejamos hoje perante mudanças tão rápidas e profundas que, em consequência, as fundações elas mesmas da ordem internacional devam ser imediata e radicalmente revistas. E muito menos penso que tal esteja a acontecer em direcções previsíveis e unívocas: sejam elas de uma total integração económica do Mundo, ou de uma criação iminente de uma comunidade mundial generalizada (o que me parece uma hipótese remota), stricto sensu, uma verdadeira re-interpretação, já que me ative a uma sua leitura possível), em todo o caso certamente o modula. As minhas razões para o ter feito são simples de enunciar: pareceu-me mais interessante (tanto do ponto de vista científico, como do didáctico) e, em termos genéricos, mais eficaz a esses níveis, ponderar a arquitectura que subjaz às novas estruturas das ordens nacionais e internacionais, do que produzir um eventual policy paper, não-encomendado, para o Estado português. Sobretudo, pareceu-me ter sido nesse sentido que o amável convite para estar no IDN me foi formulado. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 85 contando com ou sem a dominação “imperial” dos Estados Unidos da América enquanto potência hegemónica. Mas também não acredito muito nas reticências dos analistas mais cépticos; nomeadamente, nas daqueles que não vêem, no andar da carruagem, senão uma forma soft de uma internacionalização comparativamente mitigada; nos que se recusam a reconhecer senão um processo módico, em que blocos comerciais cada vez mais pesados e Estados nacionais incólumes (pior, alguns deles cada vez mais poderosos e articulados em entidades regionais fortíssimas, sejam elas políticas, económicas, ou civilizacionais) estejam a manter um Sul (dia-a-dia mais empobrecido e marginalizado) como um triste cativo das suas conveniências e beneplácito, concedidos ao sabor de interesses nacionais (estreitos, e por via de regra muito cautelosamente camuflados) de meia dúzia de beneficiários ricos e do Norte. Esta versão das coisas parece-me exagerada e descabida, parece-me enfermar de um reducionismo que mais entorpece do que esclarece. A minha atitude é (penso eu) mais comedida. Partilho do sentimento de que está de facto em curso uma grande transformação, profunda e não trivial, das fundações estruturais da ordem internacional. Não é a primeira vez que isso ocorre, e noutros casos terá tido, nalgumas das suas dimensões, impactos e consequências maiores64. Nunca porém elas ocorreram com a intensidade ou a extensão de hoje; e nunca de uma maneira tão sistemática e coordenada. Não creio, todavia, que as transformações em curso sejam acquis irreversíveis, numa qualquer narrativa épica de integração-orquestração do panorama dissonante daquilo que realistas e neo-realistas chamam (na esteira de Thomas Hobbes) a anarquia internacional65. Nem me parece, aliás, que os Estados contemporâneos 64 Para uma comparação, pormenorizadíssima, do contraste entre as transformações globais hoje em curso e os seus antecessores históricos avulsos, convém a consulta de D. Held et al. (1999), sobretudo pp. 32-87 e 414-436. Held demonstra que, tanto quantitativa como qualitativamente, estão hoje em curso transformações globais coordenadas nunca antes vividas. 65 Para uma elucidação de conceitos básicos como este, de anarquia internacional, é útil a leitura de Hedley Bull (1977). Para uma defesa acérrima de um hobbesianismo estreito, ver Kenneth Walz (1959). Para uma crítica mordaz desse reducionismo, ler João Marques de Almeida (1998). Em Joseph Nye (1997), há uma perspectivação bastante equilibrada do tema geral. Para uma crítica de 86 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS tenham vindo, pelo menos em termos absolutos, a perder poder: bem pelo contrário, têm-no ampliado em quase todas as suas vertentes, ainda que, em termos relativos66, lhes seja hoje em dia forçada uma partilha deste em várias direcções, uma repartição forçada que muitas vezes têm tido alguma dificuldade em digerir. A minha impressão é compósita, por assim dizer. O que me parece, isso sim, é que, por via dessa transformação coordenada de fundo da ordenação global que creio está em curso, estamos a assistir a uma reconfiguração sistemática das formas tradicionais de soberania dos Estados (mas sem que aquela, ou estes, se estejam realmente a desvanecer) e a uma profunda reordenação, concomitante, do sistema vigente de relações internacionais. Em consequência disto (e como seu corolário): tenho a forte convicção de que a ordem internacional contemporânea é melhor compreendida como uma ordenação complexa, multidimensionada (e, por isso mesmo, compreensivelmente muito contestada), de interdependências crescentes; uma ordem com que o clássico sistema internacional de Estados (a tradicional ordem westphaliana) convive mal; e uma ordem na qual os Estados se apresentam como cada vez mais imbricados em teias regionais e globais de todo o tipo, que os atravessam e lhes são muitas vezes transversais. fundo, de muito mais fôlego, convém ver o amplíssimo estudo de Andrew Linklater (1998), cujo pressuposto de base é exactamente o de uma transformação, no sentido do alargamento, das “comunidades políticas” na ordem internacional contemporânea, logrando porventura uma reformulação crítica habermasiana profunda daquilo a que o seu mentor académico na London School of Economics, Hedley Bull, chamava (como abaixo iremos ver) the new medievalism. É interessante notar que muitos autores, nomeadamente David Held (1999), falam em termos de “democratizar e civilizar a anarquia”, quando se referem aos processos de globalização. 66 Para uma esplêndida discussão deste ponto, que inclui uma viva denúncia do utopismo daqueles que quereriam ver na linha de horizonte um fim precoce dos Estados, é imprescindível a leitura do tão citado artigo recente de Michael Mann (1999). Num mesmo sentido, e para uma análise geral do que ele chama uma hybrid World Order, ver as últimas páginas do magnífico texto introdutório de J. Nye (1997: 191-194) sobre a natureza do sistema contemporâneo de relações internacionais. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 87 2. Justifica-se decerto esmiuçar um pouco tudo o que acabei de afirmar em termos tão categóricos, ainda que fazendo-o apenas a traço grosso. Delinear, para aquilo que observamos no Mundo, a mecânica de um modelo generativo. Propor, para a análise da globalização, uma morfologia e uma fisiologia, por assim dizer. Para repetir, sem grandes alterações, o que escrevi há cerca de um ano, em 1999: vários são os pares de forças em tensão, representemo-lo assim, que me parecem subjazer à configuração de relações segundo a qual reconhecemos neste momento a dinâmica característica daquilo a que se convencionou chamar a “ordem internacional”67. Trata-se de forças por vezes antagónicas, que não raramente competem e se degladiam e que talvez por comodidade convenha conceber como constituindo “campos de forças” (como decerto diriam as personagens de outras ordens internacionais imensamente mais amplas, como a do Império Galáctico do Star Wars); campos esses que constrangem as formas, e os blocos, que vão emergindo e as configurações que se vão cristalizando (sem necessariamente muito durarem…) nos palcos mundiais contemporâneos. E são forças e campos que, naturalmente, não deixam de exercer pressões enormes sobre a própria natureza e estrutura (e logo a forma ela mesma) dos Estados, até há bem pouco tempo os únicos verdadeiramente consequentes elementos de um sistema internacional hoje a incorrer em enormes transformações. Pormenorizá-lo mais não é nada complicado. Por uma questão de método, e antes de entrar em força em questões que se prendem, directamente, com uma ponderação de pormenor de parcelas da interacção estrutural dos Estados contemporâneos com o sistema internacional, talvez valha a pena começar por uma espécie de retrato-robot da mecânica dos processos que entrevejo. Para simplificar, não vou trazer aqui mais de duas ilustrações (das várias possíveis), das numerosas tensões estruturais que subjazem ao sistema internacional pós-bipolarização. 67 Para uma colectânea relativamente recente sobre questões conexas, é recomendável a leitura de (eds.) T. V. Paul e J. A. Hall (1999), International Order and the Future of World Politics. 88 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Temos assim um binómio (apelidemo-lo de Jihad versus McWorld, para utilizar a terminologia vívida e gráfica de Benjamin Barber68) que se manifesta, por exemplo, pela competição entre a visão westphaliana clássica de um imperium pouco questionado da soberania e autonomia dos Estados, por um lado; e, por outro lado, pelas incontornáveis interdependências de todo o tipo a que temos vindo a chamar globalização, que têm conduzido ao seu questionamento endémico. Uma das imagens da contemporaneidade: a homogeneização e a tribalização são posturas de estilo assumidas num duro degládio, num pas de deux sofisticado que na última dezena de anos tem subido à cena. O que tem alguma razão de ser empírica, já que são tendências que têm efectivamente tomado a ribalta em arenas de um conflito de fundo com várias frentes, uma tensão cuja resultante geral, a nível de uma forma renovada para os Estados, não é talvez ainda óbvia. Mas trata-se, como veremos, de um conflito charneira, de uma disputa crucial que actua de maneira decisiva nas reconfigurações de natureza e estrutura a que os Estados modernos se tem vindo a ver sujeitos na reordenação global das coisas que julgo estar em curso. Aludirei também a mais, no que se segue. Para um qualquer observador atento, destacam-se, no Mundo de hoje, os fossos escavados entre os Estados clássicos e diversos dos novos actores internacionais, e entre antigas e mais recentes localizações do poder. Mais uma vez (agora a este outro nível) julgo que se verificam realmente inovações de monta nos palcos internacionais contemporâneos. São novidades que, no concreto, redundam, por exemplo, em conjunturas de tensão entre velhas alianças e coligações tradicionais e as novas, mais pragmáticas, que defrontam. Há, pura e simplesmente, mais actores nos novos palcos internacionais: o cartaz adensou-se. E há novos mecanismos em operação: o seu elenco também foi enriquecido. Surpreendente seria, convenhamos, se o enredo da narrativa internacional se tivesse mantido. E, com efeito, não se manteve. Não é nada difícil perceber porquê. As várias forças que acabei de apontar obviamente interagem em profusão. Mais ainda: 68 E exposto com maestria na obra de Benjamin Barber (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the world. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 89 estes dois grandes pares de oposições (e muitos outros, sem dúvida), cada um deles com uma dinâmica própria intrínseca (porque em desequilíbrio, ou no que os engenheiros apelidam de um equilíbrio instável), naturalmente reagem entre si. Todas estas são tendências, por outras palavras, que se potenciam mutuamente. E aí reside a sua fecundidade, o seu poder construtivo: na sua interacção cambiante, geram configurações arquitectónicas (figuras virtuais e passageiras, mas sempre novas) da ordem internacional69. Sugiro que, no que se segue, retenhamos apenas estes dois pares de oposições, já que interagem em combinações múltiplas e complexas, baseadas em binómios eles próprios complexos. Não deixa de ser, contudo, interessante o descrevê-la em pormenor. Deixem-me, mais uma vez, começar por delinear dela um primeiro esboço. Sem naturalmente buscar aqui uma qualquer exaustividade, o que não teria cabimento70, comecemos assim pela tensão soberania-globalização a que em termos genéricos aludi. Uma tensão que resulta do simples facto de cada vez mais as questões sociopolíticas contemporâneas excederem os âmbitos territoriais circunscritos 69 Configurações que, muitas vezes, nos agrada (ou nos convém, para evitar dissonâncias cognitivas) reificar, tornar absolutas. Ou que, pelo menos, sentimos durante algum tempo que podemos com utilidade e justificação erigir em paradigmas. Configurações que, no entanto, são meras figuras de transição. Que são só, por assim dizer, imagens (ou flashes) fugazes. A New World Order de que George Bush (pai) tanto falou na altura da Guerra do Golfo, um Mundo aparentemente unipolar é um exemplo paradigmático desse tipo de reificação; outros serão o Clash of Civilizations de S. Huntington, ou os múltiplos modelos (mais efémeros) que só viam no Mundo pós-bipolar, “caos”, “turbulência” e “desordem internacional”. 70 Um maior pormenor quanto aos processos de globalização é oferecido na sinopse do sociólogo australiano M. Waters (1995). Para uma análise de muito mais minúcia e muito maior fôlego, ademais exímia, é imprescindível a consulta do magnum opus colectivo de quatro britânicos, David Held, Anthony McGrew, David Goldblatt, e David Perraton, (1999), intitulado Global Transformation. Politics, Economy and Culture. No que toca a problemas associados à globalização económica, é de recomendar o longo artigo técnico de Joaquim Aguiar (1998), que inclui uma interessante discussão sobre os traços distintivos (e a complexidade) daquilo a que chama a “onda” actual de globalização. A respeito da emergência de novos actores internacionais, do consequente retrocesso do monopólio de protagonismo dos Estados e, talvez sobretudo, em relação ao utilíssimo conceito de structural power, é aconselhável a leitura do último livro, publicado pouco antes da sua morte, de Susan Strange (1996). 90 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS pelos Estados tradicionais. Vejamo-la primeiro, de modo sucinto (e a título meramente indicativo) no plano económico-financeiro, que é talvez o mais óbvio dos pontos de partida. A abertura generalizada de cada vez mais mercados (com ou sem o antigo GATT, hoje transmutado em OMC), os novos fluxos mercantis viabilizados por sistemas de transporte cada vez mais eficientes, o desenvolvimento de meios de comunicação e informação que redundam numa contracção crescente (passe a antinomia grosseira) do espaço (a chamada “abolição da distância”) e do tempo (a “instantaneidade”), são factos incontornáveis e traços distintivos da vida moderna. Teorias (mais ou menos mercantilistas) de soberania económica tornam-se, em consequência, cada vez menos convincentes; estão até sob ataque concertado, dir-me-ão que oriundo de partes interessadas que indevidamente se comportam como juízes em causa própria. Talvez. Mas noto que, mesmo quando são consentidos, os proteccionismos tendem, no Mundo interdependente contemporâneo, a ter cada vez menos pés para andar. O crescimento explosivo desses novos e tão importantes actores internacionais que são as empresas transnacionais (“as multinacionais”) aí está, há uma boa quarentena de anos, para o corroborar. A resultante da interacção dos campos de força de que falei não é porém apenas essa, de um descentramento centrífugo. Convém também tomar em linha de conta o acelerar mais recente (pós-bipolarização), daquilo a que Francis Fukuyama chamou a “common marketização” do Mundo: o congregar de esforços e de protagonismos em blocos económicos multinacionais (por via de regra regionais, dada a consequente redução de custos) como a União Europeia, o MERCOSUL, a NAFTA, a ASEAN, ou o SADCC. E ainda incluir no composto o crescente comércio electrónico (via Internet, por exemplo) num mercado à escala planetária, um circuito em que (como Bancos e Bolsas de Valores já tinham há várias décadas prenunciado) o Sol nunca se põe. Tudo isto redunda afinal numa constatação fácil: estamos também perante diversas tendências centrípetas em operação no sistema. E a este processo não se vislumbra em boa verdade uma qualquer reversão possível, por muito que um slump nos pareça desde há alguns meses estar a bater à porta. É disso sintomático que há menos de três anos, em 1998, quando a crise vitimou em série a Tailândia, a Indonésia, a Coreia colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 91 do Sul e o Japão (e que atirou ao tapete os “tigres asiáticos”, ou pelo menos os denunciou como sendo autênticos “tigres de papel”), a receita foi expedita e consensual: aquilo que era preciso para resolver o impasse era, no fundo, mais integração. Não é só no mundo da economia e das finanças que se sente o confronto profundo Jihad-McWorld, e as concomitantes tribalização e homogeneização. A nível político (ou político-militar), tal como a nível sociocultural, a operação de processos paralelos (e no essencial funcionalmente equivalentes) não é difícil de detectar. Mais uma vez, limitemo-nos a um curto rastreio: não é só a rápida universalização de critérios ético-jurídicos (como a dos Direitos Humanos, ou aquela a que a rápida multiplicação de Tribunais internacionais especiais tem dado corpo), nem a ruidosa fragmentação tribal, aquilo que está em jogo, a este nível, à escala planetária. São suscitadas interrogações ao mesmo tempo muito mais latas e muito mais concretas71 que as que daí advêm. Os problemas são de raiz, são estruturais. Por um lado, cada vez mais são as questões e crises (da BSE à hoof and mouth disease, da clonagem humana à exploração espacial e aos armamentos de destruição maciça, da SIDA ao “buraco do ozono”, do aquecimento global ao terrorismo e aos cartéis da droga) cujas coordenadas de fundo e cujos pontos de aplicação (e por isso cujas soluções) excedem largamente as velhas fronteiras dos Estados nacionais. Os palcos de inúmeros acontecimentos foram de facto ampliados. Questões como as do acesso a água potável ou a segmentos utilizáveis do espectro electromagnético requerem, exigem, não só conhecimentos técnicos amplos e pluridisciplinares, mas ainda a organização de painéis de brain-storming e toma- 71 Para apenas aflorar uma das dimensões destas questões que aqui não abordo, a cultural, cito John Comaroff (!996: 170), e uma sua perplexidade: where now does, say, Turkish ‘society’ begin and end? At the borders of Turkey? Or does it take in Berlin? If the latter, which seems undeniable, how do we portray its topography? What […] is ‘the culture’ of farm workers who spend half a year in Mexico and half a year in the United States? Where is Senegalese ‘culture’ produced? Paris, Lyon, Marseille, rural Senegal, Dakar? If all of the above, which appears to be the case, wherein lies its integrity? Indeed, what is ‘it’? E Comaroff conclui, inasmuch, then, as the contemporary world order is no longer reducible to a nice arrangement of bounded polities, our spatially centered, conventionally derived constructs will do no more. 92 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS das de decisão que se compadecem mal com restrições paroquiais e circunscrições antigas de competências. As consequências, melhor, as resultantes genéricas? O círculo tende a alargar-se; muitas são as forças que empurram “para cima”. Mas, paradoxalmente, é por outro lado também verdade que há forças que “puxam para baixo”, que exigem mais transparência, mais vezes, perante mais gente, e relativamente a mais coisas. À ampliação ascendente soma-se assim uma nova subsidiariedade: as melhores (no sentido de as mais legítimas e as mais acatadas) decisões são aquelas em que maior inclusividade seja conseguida; mas, em paralelo, parecem ser também aquelas que sejam tomadas mais perto do utente final. Será isto um sinal de desordem, prenúncio emblemático de contradições insanáveis, indício de um excesso de democraticidade que desmascara o lugar dos limites do sistema? Julgo que não. Tocamos aqui no que considero um ponto nevrálgico essencial. Um ponto que, a meu ver, se prende com a própria natureza e estrutura do conjunto de processos que, bem ou mal, conformamos como globalização, e que se prende com as transformações ocorridas e em curso. Uma rápida justaposição torna-o nítido. Com o fim da bipolarização e a dissolução dos dois grandes blocos antagónicos, que cautelosamente se entre-olhavam contra um pano de fundo de países ditos não-alinhados, passou-se quase abruptamente a uma nova ordenação, policentrada e multidimensional, dos palcos internacionais. O Mundo tornou-se, de repente, mais opaco, como que mais fosco, mais difícil de compreender. Apesar de num primeiro momento daí ter parecido resultar um Mundo unipolar, com os Estados Unidos como único hegemon, cedo se verificou esse modelo não ser muito satisfatório, quanto mais não seja pela sua excessiva linearidade. Porque, se é indubitável que em termos tecnico-militares veio à tona na nova ordem uma clara hegemonia norte-americana, a nível económico o Novo Mundo viu-se forçado a partilhar essa posição de preponderância com a velha Europa e o novíssimo Japão. Mais grave ainda para esse hipotético modelo unipolar: todo um variado universo de entidades transnacionais (de corporações comerciais a instituições financeiras, passando por mafias e grupos terroristas) constitui um nível suplementar que não olha às fronteiras dos Estados e no qual colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 93 a hegemonia está ainda mais repartida72. Um outro eixo, ou um outro plano, numa ordem compósita, híbrida. A unipolaridade tem assim de conviver com multipolaridades diversificadas73 num Mundo cada dia mais complexo porque como que composto por camadas várias que se entrecruzam. Confirmar a multidimensionalidade do cenário que vai sendo montado não é árduo. Por muito convidativa (e retoricamente tentadora) que possa ser a imagem de uma ordem unipolar, fácil é concordar que tal hipótese não tem grande correspondência empírica com o observável, pese embora, em 1991, quando da eclosão da Guerra do Golfo e para quem trazia os olhos habituados ao Mundo bipolar, a inevitável contraposição nocional que involuntariamente todos fizemos com a ordem anterior a possa ter sugerido. Não será essa, seguramente, a progressão. Longe de se subdividir em Estados avulsos, e de sobreviver com placidez à sombra dos Estados Unidos ou de uma qualquer benevolente Pax Americana, o Mundo pós-bipolarização reordenou-se com rapidez em blocos e coligações de vários tipos, tamanhos e feitios. Uns, como a ASEAN ou o MERCOSUL, blocos mais económicos que políticos. Outras, da União Europeia à SADCC, entidades mais político-económicas do que militares. Outros ainda, como a NATO ou a UEO, unidades mais político-militares. Quase todos são unidades, no fundo, associações de Estados, cujos documentos fundadores repudiam explicitamente quaisquer hipóteses de que venha em seu nome a ser desafiado o estatuto soberano dos seus membros; nas Nações Unidas são disso um exemplo típico. Como já disse noutro lugar, a excepção é a União Europeia, num continente mais uma vez pioneiro: na realidade não é uma federação, uma confederação, ou um simples conglomerado de Estados; parece tratar-se antes de uma forma nova de governação transnacional em que, volun- 72 Tal como de resto a nível cultural. Não posso deixar de citar D. Held et al. quanto ao que escreveram na sua obra monumental sobre a globalização (1999: 373): não obstante as transformações contemporâneas, the announcement of the eradication of national cultural differences seems highly premature. 73 Esta perspectiva não é nova, evidentemente; e é partilhada por autores tão díspares como Joseph Nye (1997), Susan Strange (1996), e por Samuel Huntington (1999), o célebre autor do Third Wave e do Clash of Civilizations, que recentemente caracterizou o Mundo como uni-multipolar. 94 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS tariamente, os Estados-membros abdicaram de uma parte da sua soberania. Em todo o caso, estes novos blocos ou coligações têm vindo a assumir um imenso protagonismo nos novos palcos internacionais. Como atrás referi, esses conglomerados recentes têm nisso acompanhado o aparecimento de vários outros novos sujeitos nos cenários da globalização: as pessoas (os povos) e as organizações não-governamentais (as ONGs), também elas com um protagonismo crescente e já de um certo peso específico. Em ambos os casos, note-se, trata-se de entidades explicitamente excluídas dos palcos westphalianos. Com tudo isto no horizonte, não é decerto de estranhar que o Mundo se tenha tornado menos fácil de perceber. As alterações foram com efeito profundas; e foram multifacetadas. Nos diversos exemplos que até aqui forneci, entidades maiores que os Estados tradicionais foram trazidas à baila. Nestas duas últimas instâncias que aduzi, trata-se, ao contrário, de entidades menores (pelo menos no sentido institucional), por assim dizer a um nível hierárquico tradicionalmente tido como abaixo do dos Estados. Não estamos nisso só perante uma moda; o processo tem uma história longa e intrincada. Mesmo no que toca ao Direito Internacional, uma evolução no sentido de essas entidades deixarem de ser tão marginais como da Paz de Westphalia até aqui, é sensível desde há pelo menos74 um século: com um grande impulso dado pelo liberalismo de Woodrow Wilson seguido de um segundo empurrão de Franklin Delano Roosevelt, e outro pelo fim do Mundo pós-bipolar, tem havido um movimento gradual de distanciamento relativamente ao princípio (westphaliano) de que a soberania dos Estados é um considerando sempre mais importante que quaisquer desaires que possam ocorrer a indivíduos, grupos, ou associações; movimento esse que tem significado um respeito cada vez mais regulamentado pela autonomia dos sujeitos individuais, pela da sociedade civil, e que se consubstancia na criação de regimes internacionais cada vez mais densos e extensos (por exemplo, mas é um exemplo paradigmático) de 74 Já em 1977, Hedley Bull aflorou esta tão nítida evolução do Direito Internacional. É interes- sante notar, neste contexto, que um dos títulos do último livro de John Rawls, o célebre filósofo do Direito da Universidade de Harvard, sobre Direito Internacional, é The Law of Peoples. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 95 defesa dos Direitos Humanos, essa figura que o Liberalismo foi repescar no Cristianismo. Acresce que estas transformações não se vieram substituir à ordem anterior: adicionaram-se-lhe. Seria assim um erro presumir, por exemplo, (como muitas vezes tem infelizmente sido feito) que estamos perante uma erosão, uma diminuição, ou uma verdadeira perda de poder pelos Estados. Representações deste tipo parecem-me falaciosas75. Porque se é verdade que, em sentido relativo, o poder dos Estados já não é o único, muitos são os desenvolvimentos dos cenários globais que não são adequadamente explicáveis nos termos estreitos dessas imagens de erosão, diminuição, esbatimento, ou apagamento, do poder dos Estados: seria absurdo, por exemplo, não reconhecer um activismo crescente de muitos Estados (bi- e multilateralmente) nos domínios económico-financeiros da globalização, ou no da emigração e da imigração, ou na frente política activa da criação e institucionalização de formas de governação regional e global. Em termos absolutos, nunca os Estados tiveram tanto poder, tantas competências e nunca estas foram tão amplas no seu alcance. Só não o vê quem não queira. O que me parece verdade, isso sim, é que são cada vez maiores as exigências que lhes são feitas. Como é certo (e como iremos ver, consequente) que se alteraram profundamente as condições de exercício dos poderes que lhes são reconhecidos. Depois desta primeira demão sobre a natureza das transformações globais em curso na ordem internacional, viremo-nos agora para a interacção de pormenor entre os Estados contemporâneos e este sistema internacional compósito e em fluxo. 75 Como escreveram D. Held et al. (1999), op. cit.. 440, a utilização deste tipo de linguagem e imagens involves a failure to conceptualize adequately the nature of power and its complex manifestations since it represents a crude zero-sum view of power. No artigo que atrás citei, M. Mann mostra em pormenor que os Estados contemporâneos detêm, em virtualmente todos os aspectos que sejam tomados como importantes, muitíssimo mais poder do que os seus antecessores. 96 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3. Uma palavra de caução. Não quereria que a visão que aqui propugno fosse tida como implicando um qualquer pessimismo ou um qualquer utopismo. Pela simples razão de que os não advogo. A interdependência complexa e a polaridade multidimensional que subtendem a ordem mundial contemporânea acarretam, sem sombra de dúvida, consequências ambivalentes. As transformações globais têm aspectos bons e outros menos bons. A famigerada globalização, por outras palavras, tem avessos. E avessos sérios. Um deles é que muitas das transformações estão longe de ser universais e estão-no de uma maneira acintosa: a marginalidade a que até aqui tem condenado os que ficam de fora é não raramente radical. Outro espelha-se nas desigualdades internas preexistentes, que muitas vezes tanto exponencia. Mas o processo de transformações apresenta também (talvez até sobretudo) frentes promissoras. Inviabiliza (fá-lo pelo menos nesta fase inicial) hegemonias unipolares duradouras. E, pace muitos analistas, sou de opinião que, ao fomentar movimentos de integração-fragmentação, o processo com que tant bien que mal convivemos, desencoraja blocos que sejam estáveis em mais do que uma das suas dimensões. Creio mesmo que alguns dos defeitos que lhe imputamos consubstanciam, em boa verdade, vantagens. O que não tardará, julgo eu, a manifestar-se com toda a nitidez: aquilo que hoje lemos de algum modo, pela negativa, como “ingerências”, como “perdas de soberania”, como “erosão dos Estados-nação”, ou “sistemas de tutela” e “soberanias vigiadas”, amanhã talvez venhamos a encarar como primeiro momento, incontornável, de uma narrativa histórica “organicista” de construção e criação. As intervenções “humanitárias” que pautaram esta fulgurante passagem de Milénio não são boas nem são más. Talvez nem sejam inevitáveis. Mas desenham, a luz forte, o Mundo concreto que temos. Repito que nada disto é particularmente heterodoxo. Inúmeros têm sido os analistas, cá como lá fora, que têm vindo a equacionar em termos conexos algumas das alterações em curso no Mundo contemporâneo. Nem esta perspectivação, a meu ver, exibe particulares afinidades com quaisquer escolhas político-ideológicas que possamos levar a cabo. Para retomar um modelo a que colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 97 há pouco fiz alusão: em Portugal, num trabalho sobre a emergência de um constitucionalismo europeu publicado alguns meses antes da sua morte repentina, Francisco Lucas Pires76 escreveu com elegância sobre a deslocação “para cima”, para uma localização “supra-estadual”, do exercício do poder soberano: aquilo que, muito graficamente, chamou “o transbordo do poder”. Mais: Lucas Pires previu mesmo a invenção, no século XXI, da “fórmula da passagem de Estado-dirigente a Estado-subsidiário”77 que, segundo ele, seria a grande marca da Modernidade. Num outro lado do espectro, Boaventura Sousa Santos78 escreveu num sentido confluente (e também num estilo inconfundível) sobre “a exigência cosmopolita da reconstrução do espaço-tempo da deliberação democrática”, que previu irá impor “um novo contrato social…moderno, [que] não pode confinar-se ao espaço-tempo nacional estatal e deve incluir igualmente os espaços-tempo local, regional e global”79. Talvez, como insiste Sousa Santos, a visão estritamente contratualista não seja já a mais adequada; o que é possível que seja efeito, como defendia Lucas Pires, de uma redefinição do lugar de inserção do poder. Mas o que é certamente evidente é que uma tal generalização de asserções deste tipo, vindas um pouco de toda a parte, sublinha a tomada crescente de consciência, à tradicional esquerda e à tradicional direita, de que, no Estado westphaliano e na soberania à la Jean Bodin, cabem hoje mal muitas das realidades internacionais intrincadas de um presente cada vez mais globalizado. Voltarei a este ponto no final da minha comunicação. 76 Francisco Lucas Pires (1997: 14ss.) Para uma muito interessante discussão desta e de outras ideias deste malogrado constitucionalista português, é de recomendar a leitura do longo estudo (curiosamente publicado em forma de recensão) de Duarte Bué Alves (2000), que tem a vantagem de contextualizar este e outros conceitos no âmbito geral da evolução do pensamento deste “federalista” europeu; o estudo de Bué Alves, naturalmente, não substitui a leitura de F. Lucas Pires, servindo de mera introdução-ponderação a parte do seu quadro analítico. 77 (ibid.). 78 Boaventura de Sousa Santos (1998: 47-48). É de sublinhar a grande densidade analítica (bem como a grande actualidade) das posições de B. De Sousa Santos, aliás tanto nesta como em várias outras das suas numerosíssimas obras. 79 98 (ibid.). ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS A surpresa maior quanto a estas mudanças reside talvez na rapidez com que tudo isto tem vindo a acontecer: é o que tem sido chamado “a vertigem da modernidade”, naquilo que Anthony Giddens tão graficamente apelidou de o nosso runaway world. Mas a grande novidade relativamente aos anos mais obscuros da Guerra Fria, é efectivamente o verificar que a nossa atitude perante as transformações não depende já tanto das nossas preferências político-ideológicas “clássicas”. À esquerda e à direita, entre nós como lá fora, houve quem apoiasse e quem denunciasse a Guerra do Golfo, a intervenção da NATO no Kosovo, a das tropas multinacionais em Timor ou, para sair da área militar, a conferência do Rio, os encontros mais recentes de Seattle e Quioto, os meetings anuais em Davos, ou as cimeiras do G7 (ou do G8, para quem prefira chamar-lhe isso). O que, insisto, sublinha a cada vez maior inadequação das velhas coordenadas político-ideológicas80 pelas quais durante tantos anos nos pautámos e regemos, face à nova ordem trazida pelas forças da globalização. Num Mundo contemporâneo como aquele em que participamos, é porventura inevitável que algumas (talvez mesmo muitas) das ideias políticas a que mais nos temos apegado (tradicionalmente centradas, virtualmente em exclusivo, nos Estados e nas comunidades nacionais) precisem de ser repensadas e reconfiguradas. As razões para isso abundam. Tal é inevitável, nomeadamente, se com o vocábulo globalização quisermos fazer referência (como me parece que devemos) àquele feixe multidimensional de processos (convergentes mas largamente dissociados uns dos outros nos seus ritmos e alcance) que dão corpo a uma expansão e interconectividade da nossa acção e das nossas actividades, de tal forma que estas têm passado a incluir quadros de referência supraregionais e supracontinentais (o que não creio que possamos evitar), para além dos nacio- 80 O que sublinha bem, creio eu, o ponto a que se chegou durante a Guerra Fria num combate em que ideias e conceitos eram temidos como perigosas armas de guerra E a que alguns, pese embora o nítido anacronismo, insistem em se apegar. De há muito que é sabido que não largar mãos de preconceitos é factor de desajustes cognitivos que, de uma ou outra maneira, se acaba por ter de pagar: there is really no such thing as a free lunch. O tom levemente paranóico de muito do discurso pós-moderno parece-me ser por vezes pouco mais que uma herança pesada carregada por Cold Warriors. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 99 nais que enformavam as velhas tradições políticas. Enunciar isto por outras palavras, e pela positiva, põe-no melhor em evidência: tanto as tradições políticas nacionais como as legais são postas em cheque de uma maneira radical por um Mundo caracterizado por políticas globais e por múltiplas polaridades, que exigem uma governação multidimensionada81. Face à inevitabilidade dos factos, não querer saber acaba por redundar, na prática, em querer não saber: uma curiosa estratégia de avestruz que, em política, tem sempre (mais cedo ou mais tarde) um preço alto. Com efeito, seja qual for a natureza específica destes desafios fundamentais e seja qual possa ser a postura que perante eles escolhamos assumir, não parece fácil (ou sequer sensato) ignorar que a natureza e a qualidade das relações democráticas entre comunidades são cruciais; que estas estão (quer isso nos agrade, quer não) densamente imbricadas umas nas outras, e que, se queremos que tanto a Democracia como as comunidades políticas enraízem e medrem, se pretendemos que prosperem, então novos mecanismos jurídicos e organizacionais têm de ser criados para o lograr. Foi (e é) assim com a União Europeia, será assim num âmbito internacional mais alargado. Mas, insisto mais uma vez, parecer-me-ia disparatada a ideia de tirar daqui a ilação de que, a par disto, a dimensão política das comunidades locais e a das comunidades nacionais esteja a ser (ou vai ser, ou até possa, ou deva, ser) subsumida pelas novas forças e formas de poder trazidas à baila pela globalização. Prevejo que vamos, antes, assistir a um sobe-e-desce. Onde há McWorld há Jihad, e é claro que muitas questões permanecerão no âmbito das responsabilidades dos governos locais e nacionais, aumentando até quantas vezes o clamor (eivado de “paroquialismo” mesclado com “provincianismo”, segundo Benjamin Barber82) de uma maior aproximação entre a governação e os 81 D. Held et al. (1999), op. cit.: 450, num sentido muito próximo (mas fazendo apenas referência a Estados democráticos), exprimem-no de maneira enxuta e depurada: if we live in a world marked by global politics and multilayered governance, then the efficacy of national democratic traditions and national legal traditions are fundamentally challenged. 82 B. Barber (1996): 169. Na tese deste autor norte-americano, o que reputa como “versões pálidas” dos jihad europeus (dos Jihad na Europa e por europeus) têm, por via de regra, assumido 100 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS governados. Mas porque também é verdade que onde há Jihad há McWorld, muitas outras questões virão a ser reconhecidas como dizendo respeito (e devendo por isso fazer parte do acervo das suas respectivas responsabilidades) a regiões particulares; e outras, ainda, revelar-se-ão globais (para me repetir, algumas das vicissitudes da ecologia, temas de saúde e genética, problemas de segurança global, e de regulação – ou de desregulação – económica, etc.), porque exigem novos arranjos institucionais para lhes fazer face. Ou seja, à medida que processos fundamentais de governação se irão escapando por entre os interstícios do Estado “clássico”, as equações e as soluções habituais das teorizações políticas tradicionais tornar-se-ão cada vez menos pertinentes83. O que acarreta riscos. O meu ponto é o seguinte: se esses novos processos e essas novas estruturas não forem devidamente reconhecidos e tomados em linha de conta, o risco, inevitável, é o de que mais tarde ou mais cedo venham a saltar por cima dos mecanismos democráticos tradicionais de regulação e responsabilização. O perigo é iminente84. Enquanto a desterritorialização do poder político não for plenamente assumida, enquanto os seus novos sujeitos (sublocais, regionais e globais) não forem reconhecidos e não forem (como dizem os anglo-saxónicos) devidamente empowered, correr-se-á o risco de estes (que quantas vezes representam as mais poderosas forças geopolíticas nos palcos internacionais contemporâneos) se arrojarem a resolver questões pura e simplesmente em termos dos seus próprios objectivos estritos e estreitos e sem se deterem senão nos limites duas formas que se intersectam, e que infelizmente mesmo em Portugal reconhecemos: o “provincianismo”, que vira as periferias contra os centros; e o “paroquialismo”, que desdenha o cosmopolita. Para Barber trata-se todavia nestes casos de um Jihad aguado, já que a Europa, bem posicionada no centro, não é, em sua opinião, senão um fraco microcosmos (e um microcosmos particularmente anémico) dessas novas confrontações. 83 Para tornar a citar palavras de Held e dos seus co-autores, formuladas no que creio ser o mesmo sentido, mas relativas apenas aos Estados democráticos: as fundamental processes of governance escape the categories of the nation-state, the traditional national resolutions of the key questions of democratic theory and practice look increasingly threadbare (D. Held et al., 1999, op. cit.: 447). 84 E é também eminente. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 101 das correlações de forças em que, condenados pelas circunstâncias, calhe encontrarem-se embrenhados. Será por outro lado de contar com que muitas entidades façam finca-pé em assumir o protagonismo que julgam ser-lhes devido, proporcional às novas posições estruturais que detêm no sistema, e que, não lhes sendo isso concedido, o possam querer exigir à viva força. Não fazer face a estes riscos, ou não tomar as suas legítimas reinvindicações em linha de conta, parece-me uma receita para o desastre, para dizer o mínimo. Há, no eventual desfasamento que tudo isto significa, espaço para posturas políticas criativas, militantes e cada vez mais mobilizadoras, como os mais avisados não tardaram (há já alguns anos) a descobrir. Posturas políticas essas que é imprescindível que comecemos a reconhecer, e relativamente às quais convém que nos saibamos bem posicionar, já que tocam questões que nos afectam a todos. Voltarei a aflorar também este outro ponto na parte final da minha comunicação. 4. Pormenorizemos o que até aqui foi afirmado. Daquilo que já disse parece iniludível pelo menos uma implicação: a de que um dos aspectos (eu diria mesmo, uma das dimensões diacríticas), da crise dos Estados contemporâneos perante a globalização, se tem vindo a manifestar como uma crise de formatação. E, aí, talvez seja útil vislumbrá-la como uma crise dupla: a um tempo política e jurídica. Razões para isso podemos aduzir muitas; a questão de fundo prende-se porém porventura (pelo menos em parte) com a incapacidade das fronteiras territoriais clássicas em circunscrever questões cada vez mais regionais e até globais, que tem levado à emergência de centros supranacionais (supraestaduais) de poder. Estes centros são muitas vezes estruturas alternativas que se opõem aos Estados. Noutros casos, limitam-se a suscitar-lhes novos problemas de difícil solução. E são uma espécie de metástases: aparecem por todos os lados, por assim dizer. Trata-se de novos centros de poder ligados à ecologia, a mafias, ao 102 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS comércio da droga, ao terrorismo, à Internet, às emigrações generalizadas, às novas possibilidades de uma sistemática projecção geográfica da força político-militar, ou a uma deslocalização permanente do capital – sobretudo do financeiro, que de algum modo nasceu nómada. O efeito corrosivo (ou diluente, se preferirem) que estas inovações exibem é temível. Nenhum Estado (nem mesmo os mais poderosos) consegue, sozinho, fazer frente aos desafios e às ameaças que soletram esses múltiplos duelos travados em tempo real. Mais uma vez, as implicações são óbvias. Às pressões políticas abstractas, que exigem reconfigurações de peso, soma-se deste modo, por conseguinte, o imperativo urgente de levar a cabo modificações de fundo nas próprias coordenadas e especificações da máquina, por assim dizer. E como se essas razões não bastassem, isto não é tudo. Há outros constrangimentos a actuar. A globalização é centrífuga mas também é centrípeta; funciona em patamares macro, mas não deixa de agir sobre domínios micro. Puxa o poder para níveis hierárquicos mais altos, mas puxa-o ao mesmo tempo para outros mais baixos. O resultado está à vista: num sentido simétrico e inverso ao que atrás esbocei, mas dele complementar, novos centros de poder têm também vindo a surgir a nível infra-estadual. Redimensionado o enquadramento que os continha, alteradas as relações de força, as tutelas e os equilíbrios firmes e estáveis tradicionais, actores políticos antes menores (uns provinciais, outros sectoriais, todos em todo o caso até aqui subalternos) têm vindo a explodir em protagonismos inusitados. É o que atrás chamei (a frase não é minha) “a tribalização do Mundo”. Uma fragmentação que, do meu ponto de vista, redunda na abertura de novas frentes de luta pela sobrevivência (e pelo protagonismo) da parte de Estados modernos cada vez mais acossados por pressões sistémicas avassaladoras. Por causa da globalização, o Estado tem sido vítima de múltiplas pressões vindas de cima e de baixo, então. As consequências disso, como não podia deixar de ser, são muitíssimas. Comecemos a arrumá-las. De um ponto de vista político, tal tem significado alterações no papel dos Estados contemporâneos, que passaram, quase imperceptivelmente, de orgulhosos Estados “autónomos” a mais modestos Estados “condicionados”, quantas vezes sem a isso se saberem resignar. E muitas vezes também o insulto parece adicionar-se à injúria. Da triste “exigui- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 103 dade” relativa a que um sistema internacional muito mais interdependente os condena, muitos Estados “clássicos” assistem impotentes a um aumento em flecha da porosidade das suas fronteiras e cidadanias, e a modificações de vulto nos seus perímetros de segurança e nas suas moedas. São poderosos como nunca, mas vedam-se-lhes muitos dos domínios (que se vinham tornando coutadas habituais) do seu cioso exercício de soberania. A transição tem não poucas vezes sido dolorosa e encerra perigos: em termos genéricos, esse “transbordo do poder” (mais uma expressão que faço minha) indicia o (e resulta do) surgimento de centros de poder político que não aqueles, tradicionais nas Democracias, legitimados pela participação popular nos moldes herdados dos finais do século XVIII e inícios do XIX. Aparecem em seu lugar novos lobbies, novos grupos de pressão e interesses, novos potentados que há que aplacar. A “pressão política reformatadora” (chamemos-lhe isso) exercida sobre os Estados contemporâneos é facilmente inteligível em termos estruturais, em termos da arquitectura do novo sistema internacional. Vejamos como. Nas democracias liberais tradicionais do Mundo westphaliano, tanto a legitimidade como o consentimento em relação, respectivamente, à governação e aos governos dependem em larga escala de votos e de processos eleitorais. Tem-se tratado de uma dependência localizada: as fronteiras nacionais dos Estados têm tradicionalmente traçado a linha de demarcação que inclui ou exclui pessoas de uma participação activa em decisões85 que irão afectar as suas vidas. Para reiterar o óbvio, é precisamente aqui que se põe a nova questão de fundo: se muitos dos processos socioeconómicos, e das consequências das decisões que sobre eles 85 Para uma fundamentação política, baseda na tradição democrática tradicional, do right to be included in the demos pelo simples facto de ter uma participação permanente na association que lhe sujaz, ver o texto clássico de Robert Dahl (1989), no seu Democracy and its Critics, sobretudo pp.: 118-131. Para uma fundamentação jurídica deste ponto, é de recomendar a leitura do artigo de Rut Rubio Marin (1998), publicado na Ratio Juris. Will Kymlicka (1995), o famoso cientista político canadiano, oferece, na sua monografia intitulada Multicultural Citinzenship. A liberal theory of minority rights, uma argumentação político-sociológica rigorosa da questão. Para uma perspectivação histórica desses mecanismos de exclusão, creio que o melhor estudo (levado a cabo numa perspectiva habermasiana) é o de Andrew Linklater (1998), no seu The Transformation of Political Community. 104 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS tomamos, transbordam (para usar o termo que é de Francisco Lucas Pires) para além das fronteiras nacionais, isso põe em cheque categorias básicas como as de consentimento e legitimidade, e até ideias como a de Democracia. O que é trazido à cena é a própria natureza e limites do que consideramos uma comunidade política. O que está longe de ser inconsequente. Deixem-me tentar rapidamente demonstrá-lo. Equacionar isto da perspectiva estrita e estreita daquilo que é hoje a distribuição do poder, permite-nos vislumbrar alguns dos pontos de aplicação de novas representações político-ideológicas que, sem sombra de dúvida, irão fazer o seu percurso nos próximos tempos. A adequação das nossas ideias políticas às novas realidades assim o exigirá. Por exemplo: nem a ideia de governo nem a de Estado (democráticos ou não) podem hoje em dia, face aos factos esmagadores da globalização, ser de maneira convincente arvoradas como adequadas tão-só a comunidades políticas espacialmente bem delimitadas, a Estados-nação do tipo “clássico”. Muitas são as forças e inúmeros os processos, como vimos, que já não podem em boa verdade ser circunscritos à área de influência e actuação de uma só das comunidades políticas tradicionais. Mais, a emergência de entidades novas prenuncia (e indicia) a formação rápida de uma cada vez menos marginalizável e mais poderosa “sociedade civil internacional”. Insisto: o sistema (westphaliano) composto por uma colecção de Estados nacionais, mantém-se; mas a sua eficácia (ou talvez melhor, a sua procedência) está hoje em estreita ressonância relativamente a estruturas e processos económicos, financeiros, administrativos, jurídicos, políticos, e culturais que em simultâneo o ultrapassam e constrangem. Talvez, no entanto, essas pressões de reformatação política sejam mais evidentes na sua acção sobre Estados não democráticos; e na exercida sobre Estados fracos. Uma olhada rápida sobre boa parte da África contemporânea torna claro o que estou a querer dizer. Tal como indiquei noutro lugar86, parece-me interessante, por exemplo, ponderar a hipótese de vir a generalizar-se a aplicabilidade, no novo contexto da globalização, do conceito de negative sovereignty desenvol86 Armando Marques Guedes (2000), op. cit.. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 105 vido pelo canadiano Robert Jackson87 para dar conta do que chamou os “quasi-Estados”, essas entidades existentes um bocadinho por toda a parte no Terceiro Mundo. Entidades cuja soberania é (et pour cause) definida como negativa: porque se trata de Estados que dependem, para a sua própria sobrevivência, do apoio continuado da ajuda externa e de um quadro jurídico e político internacional consentâneo. Uma situação de deficit hoje em dia cada vez mais generalizada, desde o fim das “clientelas de sustento e sustentação” (apelidemo-las assim) tão comuns, dos dois lados, durante o período da bipolarização. Uma análise pormenorizada recente da operação e consequências, na África dos anos 90, desta negative sovereignty é-nos oferecida pela leitura dos quatro estudos comparativos (relativos à Libéria, à Serra Leoa, ao Congo ex-Zaire, e à Nigéria) publicados pelo norte-americano William Reno88. O argumento de Reno é simples e fascinante na articulação vislumbrada (que ele minuciosamente cartografa), do local e do global, nestes quatro casos. Segundo Reno, o problema principal com que deparam hoje em dia os líderes dos aparelhos de Estado destes países, é inicialmente logístico-administrativo; mas torna-se depois, com muita rapidez, político. O fim da Guerra Fria teve para eles consequências drásticas: à retirada de grande parte da protecção sob que se albergavam no longo período bipolar, adicionam-se os impactos de ambientes regionais e globais cada vez mais competitivos e predatórios. Novos contextos que os Estados “negativamente soberanos”, e os respectivos Chefes de Estado, não estão de modo nenhum preparados para enfrentar com sucesso. O resultado: um empurrão “para cima”. Como se não bastasse, com isso cresce um controlo cada vez mais ténue da situação política interna, já que muitos destes Estados fracos, ou shell States, não têm nem uma tecnologia administrativa nem meios económico-financeiros para capaz e eficazmente exercer a sua soberania interna. Ou seja: um puxão “para baixo”. Em inúmeros casos (e não só nos quatro sobre que escreveu Reno), junta-se a isto o desafio muito real e palpável constituído pelo poder cada dia maior (e 106 87 Robert Jackson (1990). 88 William Reno (1998). ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS cada vez mais ameaçador para o poder central), que opositores políticos internos vão acumulando. No seu afã de aceder ao poder estes adversários políticos caracteristicamente recorrem a “ligações directas” às potências circundantes: nuns casos países vizinhos, noutros agrupamentos etnico-linguísticos irredentistas, e/ou grupos económicos estrangeiros ligados a plantações (de oleaginosas, cacau ou café, por exemplo), ou a interesses mineiros (que podem ir da exploração de metais pesados, à extracção de petróleo ou diamantes, nomeadamente). Tais bases de poder alternativo contam muitas vezes com uma protecção militar efectiva, um apoio que pode incluir turbas mal armadas mas numerosas, organismos bem treinados de guerrilha, a forças armadas de países das redondezas, ou até contratos com empresas especializadas como a famosa Executive Outcomes de génese sul-africana. O Estado (e o Chefe de Estado), para sobreviver, têm de reagir. Reno mostra que, tipicamente, fazem-no (dado serem esses os únicos recursos à altura e verdadeiramente disponíveis) jogando o jogo do adversário: fazendo também eles uma ligação directa aos novos focos actuantes de poder. Têm nesse jogo uma vantagem: o reconhecimento internacional do seu exercício de soberania, que no contexto funciona como uma espécie de valor (nacional) acrescentado. Como representantes de um Estado, tiram disso uma vantagem: o reconhecimento como “legítimos”. E usam-na. “Alugando a soberania” (para inventar um conceito), lá vão sobrevivendo. Fazem-no porém a um preço alto: transformam os seus Estados naquilo que Reno chama warlord States, tornam-se em pouco mais do que primus inter pares, e efectivamente transmutam (ou pelo menos consideram que o fazem) as instituições estatais em recursos pessoais seus. A nitidez da imagem dispensa, julgo eu, quaisquer comentários. Trata-se, repito, de exemplos extremos, (mas infelizmente comuns. São nossos conhecidos vários outros casos, muitos deles também em África, em que a narrativa adequada variaria muito pouco relativamente a este enredo básico, que Reno retrata), de pressões políticas profundas advenientes das forças da globalização a actuar sobre alguns dos Estados contemporâneos. Não é porém só a nível político que a “pressão reformatadora” se tem feito sentir. A nível jurídico, ou jurídico-constitucional (decerto um nível mais funda- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 107 mental), não foram menores as consequências: cada vez mais competências se têm visto deslocadas ou transferidas, e conceitos básicos como os de cidadania e soberania têm vindo a sofrer distensões, torções, e outras deformações, que não faziam parte do design de fabrico e para as quais a plasticidade, ou a resistência, dos materiais de origem talvez não seja a maior. Em termos jurídicos mais genéricos, essas reconfigurações imprescindíveis (e tantas vezes forçadas) dão pleno fundamento a afirmações como a seguinte, vinda há bem pouco tempo de Coimbra: “nenhuma leitura constitucional poderá razoavelmente defender que a supranacionalidade e as amplas e sucessivas deslocações de competências deixaram incólume o Estado constitucional clássico”89. O que os britânicos chamariam decerto um cautious understatement. A “pressão jurídica reformatadora” (chamemos-lhe também assim) opera a variadíssimos níveis, e com graus diferentes de eficácia e de visibilidade. Mas não será talvez exagerado caracterizá-la como uma inundação. Sem me querer alongar demasiado, tocarei (muito ao de leve) apenas duas das suas faces90: a questão genérica das oscilações e da fragmentação do poder, incluíndo os correlatos jurídicos desses movimentos; e outra, mais concreta, da eventual inadequação do próprio formato “constituição” para dar conta das novas realidades emergentes (e a consequente busca dos ditos “substitutos constitucionais”). Começo por esta última. As Constituições que ordenam os Estados modernos “clássicos” são instrumentos com uma progressão histórica fascinante. Configuraram, num primeiro momento, um modelo de relacionamento (em forma de pacto, como no caso da Constituição norte-americana, de finais do século XVIII) entre um poder central 89 J. J. Gomes Canotilho (1998), Direito Constitucional e Teoria da Constituição: 229, Almedina, Coimbra. 90 Uma outra questão jurídica interessante, que aqui não irei abordar, diz respeito aos nume- rosos problemas tecnico-jurídicos ligados à harmonização e à integração de ordens normativas quantas vezes bastante diferentes umas das outras, e aos riscos e oportunidades que isso representa: para um tratamento minucioso destas questões, é aconselhável a leitura do curto artigo de Mireille Delmas-Marty, sobre “a mundialização do Direito”, publicado, em 1999, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. 108 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS e outros poderes mais regionalizados ou especializados. Num segundo momento, deram corpo a uma variação sobre este tema, alterando os seus pontos de aplicação: passaram as Constituições a de algum modo consagrar uma partilha de poderes entre o princípio monárquico e o princípio de representação nacional (sobretudo a partir do século XIX europeu). O parentesco ou a afinidade entre estes dois momentos parecem-me indubitáveis; em ambos, constituições são o que ordena as relações existentes de poder. Os processos de globalização vieram introduzir alterações profundas neste cenário. O campo e o raio de acção dos Estados, e os domínios que os afectam e que sobre eles agem, fragmentaram-se, incorreram num fraccionamento; o que significou redimensionamentos profundos. A fronteira entre o interior e o exterior esbateu-se de maneira notória. O poder tem vindo a mudar de localização, e dividiu-se materialmente em oscilações verticais (e horizontais) que exigem marcadíssimas adaptações na estrutura interna dos Estados. O poder e os Estados desterritorializaram os seus múltiplos pontos de intervenção. Os últimos perderam e ganharam força: no fundo, sofreram algum esmagamento, em virtude dessas pressões de cima para baixo e de baixo para cima (aquilo que muitos autores anglo-saxónicos caracterizaram como a hard squeeze). O mundo “pós-nacional” (para usar uma frase consensual, utilizada por um número significativo de constitucionalistas de várias origens91), em muitos sentidos parece constranger os Estados de maneira que porventura torna as Constituições em modelos pouco adequados às novas formas de distribuição (tanto horizontal como vertical) do poder. Pode-se abrir uma garrafa com um saca-rolhas; com um abre-latas, não. Alguma coisa terá que mudar. E essa mudança irá ser, em larga escala, no âmbito constitucional. Não é particularmente complicada a linha de argumentação seguida por estes constitucionalistas do “pós-nacional”. A narrativa tem vários passos. De par 91 Para só nomear alguns: Joseph Weiler (Professor da Harvard Law School, hoje em Nova Iorque), Damian Chalmers (Professor do Law Department da London School of Economics), Joe Shaw (em transição de Leeds para Manchester), Jurgen Habermas (de Frankfurt), e Miguel Poiares Maduro (da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, hoje Advogado Europeu). Como é fácil de verificar, um agrupamento de algum peso. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 109 com os processos de globalização, o poder tem subido e tem descido. Divisões materiais dele têm vindo a multiplicar-se. A situação é já hoje (certamente é-o nos Estados democráticos ocidentais92) uma de nítido pluralismo normativo e sociológico. Instâncias várias, a diversos níveis e com distintos tipos de atribuições, características formais e competências, têm vindo a exercer (em simultâneo e quantas vezes de forma extraordinariamente eficaz) poderes regulativos. É a própria figura de Constituição que é posta em causa: pactos ou partilhas são configurações que dão mal conta de situações de pluralismo multidimensionado e de fragmentação do poder. No Mundo contemporâneo, tem vindo a ser defendido, será imprescindível, caso os objectivos se mantiverem de garantir uma ordenação dos Estados (e parece impensável que deixe de assim ser), que cada vez mais seja assegurado por substitutos constitucionais o papel que à lei fundamental tem cabido. Estes substitutos não são conhecidos, e diferentes analistas têm vindo a sugerir figurinos diferentes para eles. Alguns preferem modelos de redes de legitimação tecnocrática e deliberativa93. Outros privilegiam modelos de democracia cosmopolita94. Todos concordam que, quer queiramos quer não, esses constitutional substitutes estão já a nascer por geração espontânea: como, por exemplo, a crescente importância da “comitologia” (a proliferação de comités de peritos nacionais, entidades que dia-a-dia assumem mais poderes reguladores, a nível muitas vezes transnacional). É mais uma vez a Europa que parece estar a inovar, na criação de novas formas políticas, na vanguarda emergente de uma nova ordem internacional. Convenhamos que, se aquilo que está em curso redundar, realmente num ocaso por substituição do constitucionalismo tradicional do Mundo westphaliano “clássico”, estaremos perante um movimento tectónico maior. Uma autêntica revolução estrutural. 92 Em muitos dos outros já o é há bastante tempo, ou por uma multicefalia do poder, ou por pura e simples incapacidade de alguns Estados, como atrás pus em evidência, em administrar os seus próprios territórios ou em neles exercer plenamente a soberania. 93 Para uma excelente discussão desta subcorrente, é útil a leitura do artigo de Christian Joerges (1998), que cito na bibliografia. 94 David Held (1999) op. cit., e Andrew Linklater (1998) op. cit., são referências de fundo, no que toca a esta perspectivação do pós-nacionalismo. 110 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Em termos mais inclusivos e gerais: de uma perspectiva jurídica (e como poderia porventura ser de esperar), neste como noutros contextos, a progressão das coisas cedo acertou o passo com a da evolução noutros domínios. As formas particulares adoptadas têm, nomeadamente, progredido largamente em consonância com o que se verifica no âmbito da política, pese embora a inevitabilidade de (visto as suas finalidades serem regulativas) as formulações jurídicas tenderem a exibir, por via de regra, um carácter muito mais genérico e normativista do que as políticas. É mais fácil puxar e impossível empurrar, se estivermos a usar como utensílio um cordel. Uma simples tabelação das transformações ocorridas mostra à abundância o paralelismo a que me refiro. É assim por exemplo óbvio, mesmo para o menos atento dos observadores, que o squeeze dos Estados (a que antes aludi) se manifesta como uma tensão, de um ponto de vista jurídico: como uma convivência conflituosa entre, por exemplo, o crescimento, em espiral, de conflitos entre a fronteira constituída pelo estatuto de competências exclusivo de entidades infra-estaduais, por um lado e, por outro, a vinculação internacional tradicional existente a respeito de decisões tomadas por instâncias supra-estaduais. Uma tensão, esta, que tem sido fonte de inúmeras querelas. Se quisermos vê-lo em termos mais descritivos: a subsidiariedade (uma das expressões do jihad, como lhe chamei) causa uma cascata do poder na ordem descendente, mas a ordem jurídica internacional westphaliana (ainda vigente) não aceita um fraccionamento da soberania estatal; os Estados são, por conseguinte, “apertados de cima para baixo”. Na ordem ascendente, mutatis mutandis, a tensão repete-se, mas como que invertida: o transbordo do poder não é facilmente aceite, nem pela ordem jurídica “clássica” internacional, nem pela lógica tradicionalmente soberana da imagem estadual; ambas insistem numa soberania una e indivisível. O que leva a “apertos”, simultâneos, “de baixo para cima e de cima para baixo”, de que são alvos e vítimas os Estados “pós-nacionais”, Estados que se vêem condenados, como o fiambre, a ter de conviver com duas fatias de pão numa sanduíche que certamente por isso, muitas vezes lhes não abre o apetite. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 111 5. Para não perder o fio à meada, justifica-se decerto recapitular rapidamente os principais pontos do que até aqui tentei sublinhar. Comecei por um apanhado geral daquilo que entendo por globalização; e fi-lo no contexto de um subconjunto significativo das transformações que têm ocorrido na ordem internacional. Por uma questão de nitidez e de comodidade descritiva, equacionei a discussão em termos de uma comparação simples: uma contraposição sistemática entre a ordem tradicional, ou “clássica” e westphaliana, como tem vindo a ser denotado, e aquilo que apelidei de nova ordem pós-nacional globalizante, um processo ainda inacabado. Insisti, nesse contexto, na multidimensionalidade das transformações globais em curso, na sua complexidade intrínseca. De par com essas transformações, que os recontextualizam, verifica-se uma expansão dos poderes dos Estados. Uma tal sobreposição de expansão e recontextualização não pode senão soletrar um reformulação das condições do exercício do poder. Ampliando imagens precisamente aí, propus uma mecânica para o processo de transformações globais, na perspectiva dos Estados contemporâneos e em virtude das oscilações verticais a que, aleguei, têm sido sujeitas a localização e a natureza do poder. E nesse âmbito tentei alinhavar ideias quanto às funções assumidas pelos Estados contemporâneos em época de globalização: separei, no breve esboço que sugeri, o nível político do nível jurídico (como será claro, uma partição de águas de mera conveniência, já que não são instâncias verdadeiramente dissociáveis uma da outra senão a nível analítico), e abordei-os em paralelo. Em ambos os casos, tentei sublinhar como o funcionamento dos Estados e as transformações a que têm sido sujeitos podem, com utilidade, ser entrevistos em consonância com as relocalizações, em curso, do poder. Numa sequência natural, cabe agora projectar hipóteses para o futuro: não tanto num exercício futurológico (advinhar é sempre uma empresa pouco racional), mas para assim pôr em evidência linhas de força e tendências aparentes. Qual será, então, o andar da carruagem, o evoluir das coisas? Antes de concluir, quero continuar aumentando de algum modo novamente a resolução 112 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS de imagens, agora com uma perspectivação prospectiva. Uma opinião que, não sendo talvez muito positiva, será decerto construtivista. Propor senão um paradigma, sempre em riscos de anacronismo numa ordem internacional em transformação acelerada, pelo menos uma linha de fuga, um horizonte. Uma interpretação de um alvo em movimento. Um exercício intelectual misturado com advinhação q. b.. Continuo, naturalmente, focado nas alterações incorridas pelos Estados contemporâneos face às transformações globais. Por uma questão de coerência, mantenho a atenção poisada no par soberania-globalização, na emergência e eficácia de novas localizações (e até formas) de poder e, em termos mais genéricos, nas dimensões políticas e jurídicas daquilo a que se tem vindo a chamar globalização. Sem quaisquer pretensões historicistas, mas com risco de algum estrabismo, mantenho um dos olhos no passado. Como alternativa a outros “modelos”, quero sugerir uma leitura possível dos processos de erosão das soberanias westphalianas95 tradicionais, e do alcance da globalização em curso. 95 Razão essa que nem todos aceitam esteja realmente em curso: uma posição céptica deste tipo é a defendida num estudo monográfico recente pelo justamente célebre neo-realista norte-americano Stephen Krasner (1999). Para Krasner, nada de essencial mudou no Mundo, a nível da soberania. O argumento de Krasner (simplificando muito) é essencialmente o seguinte: a soberania, tal como tem sido abordada e interpretada pelos cientistas políticos e pela opinião pública, é uma ficção manipulada pelos Estados um mito cuja transgressão se tem desde sempre verificado sistematicamente. A situação contemporânea nisso inova pouco: ao contrário (do seu ponto de vista) daquilo que alegam “os teóricos da globalização”, para os quais a soberania estaria em retrocesso. Este autor faz porém distinções finas. Segundo S. Krasner, tem sido bastante cumprida (ainda que com excepções) a international legal sovereignty ou seja o princípio de que o reconhecimento dela pela comunidade internacional só deve ser concedido a Estados juridicamente independentes. Muito menos respeitada, alega, tem sido no entanto a Westphalian sovereignty, o direito dos Estados de excluir interferências externas nos seus respectivos territórios. Tem sido assim, argumenta, tanto a nível de direitos das minorias quanto ao de Direitos Humanos, ou ao da economia. Distinções deste tipo parecem-me artificiais e, no essencial, elaborações secundárias que se esforçam por proteger, por uma pura multiplicação de barreiras, posições teóricas que se sentem ameaçadas; o resultado é sempre a insinuação de um complot (que, neste caso, Krasner intitula de “hipocrisia organizada”). Outra distinção fina que creio pouco útil é a de “soberania limitada”, introduzida pelos juristas oficiais soviéticos para fundamentar intervenções na Europa de Leste e noutras regiões da sua esfera (real ou desejada) de influência. Estas últimas elaborações secundárias parecem-me ter visado finalidades pragmáticas de tipo mais “imperial”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 113 Propor repito, não tanto um paradigma quanto um algoritmo; mais do que esquissar um retrato, aventar uma linha de fuga. Retomo, no que se segue (com alguns acrescentos menores) aquilo que escrevi noutro lugar há um ano. Em termos daquilo que os historiadores intitulam “a longa duração”, o Mundo parece estar de alguma maneira, para lá de óbvios avanços e recuos, a convergir. Um processo que tem vindo a acelerar. Em súmula: da intervenção aliada no Kosovo à eventualidade de uma repetição da dose na Macedónia e ao affaire (ainda não concluído) da extradição e julgamento do General Pinochet, da anunciada reforma de fundo das Nações Unidas à Bósnia-Herzegovina, a Angola, ao centro da África (Congo, Ruanda, Burundi e arredores), à Libéria, à Serra Leoa, à Somália, ao norte e ao sul do Iraque, ao Cambodja, a Timor-Leste, tem crescido a intrusão da comunidade internacional em regiões que até aqui o provecto dogma da soberania nacional reservava como coutadas. Perante um cada vez mais nítido redimensionamento ético e normativo de um sistema internacional tradicionalmente anárquico, é difícil evitar a impressão de que uma sua estruturação política se começa enfim a cristalizar. Não num Leviathan hobbesiano: uma hipotética integração global, mesmo que um dia possa vir a ocorrer, ainda estará, decerto felizmente96, muito longe. Mas seguramente que a cada vez mais intrincada interdependência generalizada não se compadece com a antiga formatação unidimensional, saída da Paz de Westphalia, em 1648, que sob o peso de tantas vicissitudes (e tão sofridamente) a Europa legou ao sistema internacional que sob sua égide se foi dolorosa e laboriosamente construindo. Não faria grande sentido ensaiar aqui um levantamento de pormenor de um processo tão complexo e com tantos meandros como aquele que creio ser 96 É notável, neste contexto, o último livro de Zygmunt Bauman (2001), em que, na esteira, aliás, da sua obra anterior, é levada a cabo uma crítica devastadora das elegias comunitaristas tão comuns entre muitos dos círculos bem-pensantes dos panoramas nacionais (e cosmopolitas) contemporâneos. Bauman vê essas elegias como uma mistura sofisticada de formas de má consciência, reacção à percepção de uma insegurança crescente num Mundo em mudança acelerada, e algum conservadorismo hiper-individualista. Num artigo menos recente, Chris Brown (1995) traçou, com alguma mordacidade, a evolução da ideia utópica de uma world community no pensamento político moderno. A leitura conjunta destes dois textos é fascinante e muito sugestiva. 114 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS possível entrever na ordem internacional hoje em gestação. Quereria tão-só desenhar, a traço espesso, um dos seus aspectos mais relevantes: o que se prende com o crescimento daquilo que à falta de melhor termo chamarei “sistemas de tutela”. Outros exemplos poderiam aqui ser abordados, nomeadamente o crescente peso dos regimes internacionais de Direitos Humanos, ou o crescimento (mais aos solavancos) de instâncias penais internacionais eficazes. Por razões logísticas, preferi usar como paradigma o exemplo da progressão dos “sistemas de tutela” em época de globalização. O desmembramento do Império Otomano, tal como aliás o terrível rescaldo da Primeira Grande Guerra, concorreram para multiplicar no Mundo os Protectorados, regiões ou países cuja soberania foi transferida ou suspensa e entregue à guarda de outrém. O Direito de Ingerência97, antes de algum modo um Direito 97 É curioso notar que um dos momentos de arranque do Direito de Ingerência deu-se na segunda metade do século XIX (mais precisamente em 1860, 1866 e 1878), a pretexto do restabelecimento dos Direitos Humanos, e no sentido de alterar as normas constitucionais turcas, face às matanças e violações grosseiras do que eram tidas como normas básicas de conduta: intervieram no processo a Síria, Creta, a Bósnia, a Herzegovina e a Macedónia; uma lição da História, mal aprendida. A Convenção de Genebra, de 1949, faz-lhe alusão. Mas trata-se de um Direito novo. Os autores anglo-saxónicos parecem oscilar na terminologia a que, para a ele aludir, recorrem: falam de right to interfere, ou de right to intervene, do mesmo modo que, alterando o ângulo e a perspectiva, aludem a um duty to meddle ou a um duty of intrusion. Nas línguas latinas, esta ambiguidade mantém-se, sendo pura esimplesmente traduzida. O que (num como noutro caso) sublinha com ênfase o carácter inovador deste direito em gestação. Curiosamente, e apesar de o Tribunal Internacional de Justiça o ter com regularidade reconhecido como um direito positivo, foram os franceses, através de François Mitterrand, no discurso de Estado que proferiu a 14 de Julho de 1991 relativamente à protecção dos curdos iraquianos, quem primeiro formalmente declarou esse novo direito como isso mesmo: um direito positivo. Para uma visão de conjunto, mais ponderada que histórica, ver Mario Bettati (2000). Para uma perspectiva crítica da polivalência desastrosa de um conceito afim deste, o de “autodeterminação”, ver Paula Escarameia (1993); Escarameia considera este último como “uma adaptação acrítica” de um “ideal político” para o domínio (“muito diferente”) do jurídico, que leva a cabo “uma subsumpção” paralisante de “situações factuais” muito diferentes umas das outras, que vão da resistência iluminista contra as tiranias, às lutas proletárias, ao anti-colonialismo e ao nacionalismo irredentista; uma “reificação” que, segundo ela, resulta não só numa gritante falta de eficácia (comum a muito do Direito Internacional), mas ainda no agravamento conjuntural da sua ineficácia pela introdução de novas “vozes” dissonantes, o que, “multipli- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 115 residual, foi, na prática, ampliado. Depois da Segunda Guerra Mundial, como é bem sabido, o processo da sua ampliação seria retomado: Protectorados foram criados em todos (ou quase todos) os continentes, sob a égide de um ou outro dos Estados vencedores. Com as dissensões político-ideológicas que acompanharam a clivagem bipolar, o processo de uma ou outra forma estancou. No percurso, deu-se uma erosão sensível: as descolonizações dos anos 50, 60 e 70 do século XX pareceram, durante alguns anos, fazer senão regredir pelo menos retroceder esses e outros mais clássicos sistemas de tutela, que tanto a ambição quanto a implacável “balança do poder” (e até os mecanismos wilsonianos de collective security98) tinham distribuído pelos Estados. Mas em termos cognitivos, o mal estava feito: para um observador atento, as fundações da arquitectura do sistema internacional (a distribuição neste do poder) não tinham sobrevivido totalmente indemnes; uma explicação do Mundo em termos da lógica pura e simples dos Estados revelava-se, cada dia, menos satisfatória. No calor escaldante da Guerra Fria, e sem os benefícios da retrospecção, isso não se tornou porventura muito óbvio: a bipolarização dos cenários políticos internos, como a dos externos, acentuou paradoxalmente a imagem do protagonismo destes últimos (ou, em todo o caso, de dois deles, os EUA e a URSS, as “superpotências” de então), enquanto actores num sistema internacional cada cando o faccionalismo”, facilita uma fácil neutralização dos discursos que dele fazem uso (op. cit.: 63-83, 153-157). Embora não discorde do raciocínio “crítico” de P. Escarameia, sublinho que a argumentação que aqui desenvolvo não se desbobra em mais do que uma descrição de uma linha de fuga, sem grandes pretensões analíticas. 98 Não é preciso ser um teórico defensor da globalização para sustentar este ponto. Na obra relativamente recente atrás citada, J. Nye (1997: 192-194) defende o que considera como uma mediação interpretativa interessante entre as posições que denomina, respectivamente, de “liberal” e de “realista”, no que toca à evolução dos dispositivos de balance of power e dos de collective security no Mundo pós-bipolarização. A linha de argumentação de Nye é a seguinte: o potencial wilsoniano liberal implícito em organizações como as Nações Unidas, só agora que terminaram muitos dos bloqueios-veto (tão típicos do cenário bipolar da Guerra Fria) se está a tornar evidente. Para uma cabal descrição deste “novo Mundo híbrido”, defende Nye, nem os pressupostos do paradigma liberal nem os dos paradigmas realistas chegam; há que saber produzir modelos sincréticos mais latos e mais inclusivos. Uma posição que partilho e que creio rica em implicações, como julgo que a leitura do presente artigo demonstra. 116 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS vez mais complexo porque cada vez mais interdependente e multidimensionado. Vista retrospectivamente, esta progressão (ou melhor, esta retrogressão) talvez tenha no entanto sido mais aparente do que real. Sobretudo se deixarmos de ver os Estados soberanos como os únicos “verdadeiros” protagonistas de um sistema internacional em que muitas personagens novas (dado que, como antes sublinhei, a crescente interdependência e as oscilações e os novos focos de poder se compadecem pouco com fronteiras territoriais, a um tempo grandes demais e de menos num Mundo cada vez mais cosmopolita) têm vindo a contracenar. Se encaradas com os benefícios da retrospecção, as transformações parecer-nos-ão muito nítidas e porventura inevitáveis. Com efeito, a direcção sugerida pelas mudanças mais recentes na “ordem internacional” contemporânea (tanto quanto conseguimos entrever nelas um sentido) parece ser obstinada. E não é a de um regresso ao passado. Ultrapassados os momentos iniciais de uma transição que se adivinha prolongada, assente alguma da poeira levantada, vislumbra-se a silhueta de uma nova ordenação; a emergência rápida de uma nova configuração de relações no sistema internacional em lugar da aritmética de um mero somatório de Estados ou da geometria de uma coagulação em blocos (económicos, políticos, militares, ou, à la Huntington, “civilizacionais”). Antes uma topologia. Um alastrar de novas manchas um pouco por todo o Mundo. A cobertura de zonas e regiões por uma nova tutela: a de uma comunidade internacional cada vez mais constrangente com a qual, por pressões políticas globalizantes inexoráveis, todos estamos a ser obrigados99 a cooperar. 99 Uma polémica jusinternacionalista recente, relativa ao alargamento do Direito de ingerên- cia humanitária, opôs, nas prestigiadas páginas do European Journal of International Law, publicado em Oxford, Antonio Cassese (1999) e Bruno Simma (1999). O pretexto foi a intervenção da NATO no Kosovo. Cassesse (outrora Juiz Presidente do Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia, sediado na Haia), favorável à intervenção da NATO, viu nela um passo decisivo na gestação, que considera inevitável e desejável, de uma ampliação profunda dos Direitos de Intervenção e Ingerência, sobretudo se o objectivo for a salvaguarda de direitos (os Humanos, neste caso) de sujeitos já consagrados no Direito Internacional pós-westphaliano; insiste, no entanto, ser imprescindível estipular condições estritas para que essa ampliação seja legítima, por forma a impedir a sua intrumentalização, a título de pretexto, por interesses estatais estreitos. Simma assumiu uma posição mais crítica, embora não inteiramente dissonante da de Cassese. Para Simma, que concor- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 117 Como figuras, não são enxutas. Não se trata da instauração de verdadeiros Protectorados (no sentido clássico estrito da figura), já que não são seus atributos nem uma submissão permanente, nem uma verdadeira anexação, e muito menos o ser levada a cabo por um qualquer Estado (ou agrupamento) mais poderoso. Não é seu motivo primordial (ou em todo o caso a sua causa primeira) o eventual interesse de um qualquer grupo em mão-de-obra barata, em recursos naturais valiosos, num maior peso específico próprio, ou em melhoria de posicionamento em termos de segurança e defesa (o que, na época da bipolarização, era apelidado de interesses e imperativos “geo-estratégicos”). Há, antes, nesse alastrar de novas manchas, um objectivo básico: o de garantir mínimos normativos que assegurem a integração do agrupamento em que é levada a cabo a intervenção (ou, pelo contrário, a salvaguarda face à prepotência do Estado soberano de que faça parte), sem desacatos, numa nova ordem mundial pós-westphaliana em gestação. Não será talvez por isso totalmente infundamentado conjecturar que aquilo a que assistimos seja uma efectiva (e dou com o recurso à força como ultima ratio no chamou a hard case, não é líquido nem que a intervenção da NATO tenha sido legal (com argúcia, Simma escreveu que only a thin red line separates NATO’s action on Kosovo from international legality), nem que possa (ou deva) estabelecer um precedente, que teme would have an immeasurably […] destructive impact on the universal system of collective security embodied in the [UN] charter. Uma visão paralela, mas alternativa, é a de Ignacio Ramonet (2000); outra, mais crítica, fôra a defendida por Noam Chomsky (1999). Uma postura não muito diferente da de A. Cassese foi a adoptada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e conhecida como a Annan doctrine: uma doutrina formalmente articulada e anunciada perante a 54.ª reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de Setembro de 1999, com um tácito objectivo conjuntural: a legitimação da acção no Kosovo (e porventura como forma de pressão sobre o regime indonésio de então). Annan enunciou a sua doutrina com a insistência de que intervenções militares unilaterais seriam legítimo, mesmo “na ausência de uma autorização pronta [prompt]” do Conselho de Segurança, naqueles casos em que “o horror” estiver em curso. Os países “ocidentais” e alguns dos africanos saudaram a doutrina do Secretário-Geral. Muitos dos países em vias de desenvolvimento assumiram posturas ambivalentes. Uma oposição veemente coligou a China, o Vietname, a Indonésia, a Coreia do Norte, a Índia, a Rússia, a Bielorússia, o Iraque, a Argélia, o México e a Colômbia. A reeleição de Kofi Annan no ano de 2001 parece assegurada, tendo representantes diplomáticos ocidentais formalizado a sua intenção de votar favoravelmente a sua recondução, destacando precisamente a importância que atribuem à enunciação, por Annan, desta doutrina. 118 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS porventura profunda) transformação da estrutura e da natureza da comunidade política internacional.100 Não será demasiado especulativa (nem particularmente inovadora) esta tomada de pulso da evolução corrente da ordem internacional. Mas excede claramente todas as previsões geráveis a partir de paradigmas (cada vez mais datados) como os dos que persistem em ver no Mundo uma bipolarização (agora como complot secreto, ou oblíquo, de lobbies económicos, políticos, ou religiosos, subterrâneos), ou uma ordem unipolar hegemónica norte-americana, ou como os daqueles que insistem num “fim da História” à la Francis Fukuyama ou num “choque de civilizações”, na versão Samuel Huntington. E tem consequências, uma perspectivação destas; ainda que tão-só a nível etico-político. Assegurar que a lógica sistémica (e a vontade política), que sancionam e exigem ingerências “policiais” do tipo das que hoje em dia se generalizam um pouco por toda a parte (e que progrediram, com a surpreendente rapidez de um bom aluno que aprende, sem hesitar, com a experiência, de meras acções de peace-keeping para um mais musculado peace-enforcement, e tantas vezes agora o inevitável nation-building), se manifestem na criação progressiva de uma sociedade internacional que seja democrática e pluralista101, em que a diversidade seja de regra e as 100 Que (quem sabe?) pode vir a exigir, como assevera e defende com grande elegância Boaventura Sousa Santos, a delineação progressiva de um novo “contrato social” refundador. 101 As dificuldades em o conseguir lograr não têm passado despercebidas. Numa colectânea recente (Lensu e Fritz, 2000), são aventadas várias modelizações e “soluções” teóricas para um problema inevitável suscitado pela progressão recente da ordem internacional. Um problema que Lensu enuncia do seguinte modo: how can we encounter “otherness” or difference in an ethical way? A questão resulta da situação de claro value pluralism do Mundo em globalização; e redunda na óbvia existência daquilo que ela apelida de diverse ultimate values (op. cit.: xviii). Segundo a autora senior, a maioria dos debates entre defensores ocidentais de Direitos Humanos e os adversários não-ocidentais destes, ilustra the fundamental question facing normative theory in International Relations: how to reconcile value pluralism with an appropriate ethical orientation (good/right/fair/just) (ibid.), num Mundo no qual as opiniões divergem muito no que toca, nomeadamente, ao contéudo e à extensão de “valores” básicos e fundamentais desse tipo. Assumir uma postura mais negativa face a esta situação é, como será evidente, igualmente possível. Já no princípio dos anos 90, num curto mas incisivo artigo redigido segundo uma cartilha mais historicista que sociológica e muito mais político-ideológica que ético-filosófica, Immanuel Wallerstein (o célebre teórico norte-americano do colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 119 identidades específicas que tenhamos por bem arvorar não se vejam nem excluídas nem neutralizadas e em que a tranquilidade se respire a par de algum entusiasmo com o galope desenfreado das mudanças, um Mundo em todos os recantos do qual vigore o valor supremo da Liberdade, parecem ser as mais meritórias das batalhas que é urgente que nos saibamos preparar para empreender. Para essa e questões conexas de novos posicionamentos político-ideológicos me viro, num olhar rápido, na última parte desta já longa comunicação. 6. Entrevejo três grandes famílias, em fermentação, de novas posturas político-ideológicas activas. Três tendências em rápido crescimento no cadinho do que intitulei “a nova sociedade civil internacional”. Por comodidade, dar-lhes-ei três nomes (porque se trata de famílias, talvez seja mais apropriado falar de apelidos): seguindo uma tradição recente102, denominá-las-ei de internacionalismo liberal, de comunitarismo radical, e de democracia cosmopolita. Pese embora todas incluam formas activas de acção e intervenção, e todas elas estejam bem implantadas um pouco por toda a parte, como todas as movimentações políticas umas são mais agrupamentos que frentes, outras mais movimentos que organizações, de outro ângulo ainda, por vezes se comportam de maneiras menos e noutras de maneiras mais unitárias. Nenhuma destas famílias é grandemente homogénea, ou sequer o pretende ser: nos três casos, vêem-se a si próprias mais como “Sistema-Mundo”) tinha sublinhado a inevitabilidade do que chamou cultural resistance, na luta moderna contra the falling away from liberty and equality; uma contenda que Wallerstein considerava estar na ordem do dia, dada a ascensão em flecha do “global” (1991: 105). 102 Na obra citada, por exemplo, D. Held et al. (1999): 414-453, utilizam os termos liberal- -internationalism, radical republicanism, e global cosmopolitanism. O termo “comunitarismo” parece-me melhor (e mais descritivo) que o de “republicanismo”, para denotar a segunda família das que identifico. Quanto às outras denominações, o seu uso corresponde, de qualquer maneira, ao de muitos dos seus proponentes, que com estes termos se identificam. 120 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS projectos e processos do que propriamente como ideologias; já que todas consideram que quaisquer formas canónicas rapidamente deixariam de se adequar a um Mundo em constante mutação. Nisso aproximam-se bastante da “desordem ordenada” que (quando olhados de fora para dentro) é sempre a imagem que todos os processos democráticos103 aparentam ter. Nem todas defendem sequer o seu empenhamento num verdadeiro esprit de corps próprio, ou mesmo numa verdadeira e estável identidade, embora também nisso se distingam entre si. Tal como o Mundo em que se implantam, são formas novas. Repô-las no contexto que tenho vindo a descrever torna estas famílias políticas emergentes mais inteligíveis. A ideia de um Estado, de um governo, ou de um tipo de governação (sejam estes democráticos ou não) não pode hoje, em sentido estrito (e por meras razões empíricas, quer isso nos agrade quer nos repugne) pura e simplesmente ser equacionada em relação a comunidades políticas claramente delimitadas, ou a Estados-nação “clássicos”. Quem vive em países de pequena ou média dimensão (como é o caso de Portugal) desde há muito que tem disso uma consciência aguda. E se as comunidades que efectivamente temos (sem falar das que “imaginamos”104) não cabem já em boa verdade nos limites estreitos definidos para os Estados tradicionais (quanto mais não seja porque, como vimos, muitas — e cada vez mais — das forças e dos processos que as constrangem escapam largamente ao seu controlo efectivo), então alguma 103 E, certamente, é-o da perspectiva dos não-democratas, que persistem em nesses termos lançar críticas tão ferozes como descabidas a um processo (o democrático) que insistem em ver como um sistema. Como é bem sabido, era esta a pedra de toque da desmontagem que os propagandistas do Estado Novo se empenharam a levar a cabo quanto aos fundamentos políticos da I República. Uma versão soft deste viés perpetua-se na perspectiva daqueles que continuam em ver desordem e “balbúrdia” no que, num tom derrogatório, chamam “os lobbies”, e teimam em tomá-los como parte dos problemas e não como parte da solução para muitos dos impasses da infelizmente ainda jovem Democracia portuguesa. 104 Para uma discussão brilhante deste conceito (que aí introduziu) de “comunidades políticas imaginadas”, convém a leitura de Benedict Anderson, (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. Seria interessante ensaiar uma aplicação do método de análise utilizado por Anderson ao estudo da progressão recente da ideia de uma comunidade global; mais um texto que, a meu ver, é interessante ler de par com os de Bauman e Brown, que atrás citei. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 121 coisa está de facto a mudar. O Mundo, como todos notamos, mostra-se (bem ou mal, e muito provavelmente feliz e infelizmente) cada vez, em cada dia, mais complexo, interdependente, multidimensionado. Os centros de poder estão mais deslocalizados, mais desterritorializados. A grande questão que no fundo, hoje, se põe é a de saber onde, e a que nível, em que instâncias, e de que forma, fazer frente às novas e às velhas questões que nos afectam; e tentar para elas encontrar soluções. As três famílias políticas que listei dão substância a três projectos (talvez melhor, a três agendas), parcialmente sobrepostos, de regulação e de democratização dos processos de transformações globais; e, também, dos papéis, neles, dos Estados. São, no essencial, guiões com que os membros mais activos da sociedade civil internacional em gestação pretendem “civilizar”, e “democratizar”, as transformações globais, os processos de globalização. Identifiquemo-las uma a uma. A família liberal-internacionalista é de algum modo a que subjaz ao wilsonianismo, ao projecto rooseveltiano de criação do sistema das Nações Unidas, e às cimeiras de Davos, na Suíça. Trata-se de uma família heteróclita, para dizer o mínimo. É de matriz no essencial normativa. Advoga no fundo (e mais ou menos explicitamente) uma transposição, para a esfera global, da ordem política, económica e normativa da Democracia liberal estadual “clássica”. As suas palavras-chave são os tradicionais mecanismos de consulta, a transparência, a responsabilização perante as pessoas, os cidadãos, os contribuintes. A lógica do sistema que defendem é a de uma racionalidade individualista e maximizante, na convicção de que todos com isso acabam por ganhar. Uma das suas formas organizacionais preferidas são os think-tanks, muitos deles ligados aos Estados, sobretudo no mundo anglo-saxónico. Possuem lobbies poderosíssimos e muito bem estruturados. Os liberal-internacionalistas estão bastante bem posicionados, são activos e influentes: vimo-los em Davos, em Quioto, e em Seattle, nos painéis e nas tribunas de honra, ouvimo-los em entrevistas nas cadeias de televisão internacionais mais reputadas. O comunitarismo radical posiciona-se no que, tradicionalmente, chamaríamos um espaço político mais à esquerda. Onde os internacionalistas liberais propõem reformas, os comunitaristas radicais exigem o empowerment. Fazem-no seguindo, aliás, princípios republicanos clássicos: por intermédio, ou recurso, à 122 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS criação sistemática de meios alternativos de intervenção e controlo. Os agentes das mudanças, para estes republicanos comunitaristas105, são agrupamentos (de ecologistas, New Agers, feministas, pacifistas), apostados em mobilizar solidariedades transnacionais, como formas de resistência cujos objectivos são, por via de regra, igualitaristas. Muitos comunitaristas radicais opõem-se às soberanias tradicionais, preferindo-lhes formas de autogestão comunitária. A lógica daquilo por que pugnam tende a ser encarada como uma ética humanista, participativa, de ligação democrática directa e de partilha. Formam agrupamentos com pouca coordenação uns com os outros (quantas vezes mesmo, e com grande veemência, antagónicos entre si), mas que vocal e activamente têm feito sentir a sua presença. Os comunitaristas radicais tornam-se notados. Ouvimo-los e vimo-los em Seattle, no Rio de Janeiro, em Davos, em Berlim, em Quioto, nos écrans de todas as televisões do Mundo, em cimeiras alternativas paralelas, em protestos pacifistas, ou em duras confrontações com a polícia. O cosmopolitismo democrático contrasta com as duas outras famílias, pelo menos no sentido de se empenhar em construir (no sentido forte de o estar a inventar) o seu próprio espaço político. Menos organizada que as duas famílias anteriores, deve-o ao facto de ser um ponto de confluência de dois movimentos de criação: é um produto intelectual, elaborado, com compasso e esquadria, por académicos, em convergência com uma espécie de “ideologia espontânea” comum a uma mistura tão díspar como a formada por elites culturais, minorias étnicas, e adolescentes. A convergência não é nem acidental, nem efémera. A cidadania “por camadas” (multilayered) na sociedade democrática do futuro (parece ser esta, em todo o caso, a convicção partilhada) é uma simples consequência da evidência de que todos estamos condenados à mais profunda das multiculturalidades: para além de cidadão de um Estado, cada um de nós irá participar, em simultâneo, de outras cidadanias, locais, regionais e globais. Como 105 É improvável que os vários subgrupos desta família concordem tanto com a denominação de “comunitaristas”, como com a de “republicanos”, ainda que não pense que a sua eventual recusa se deva a mais do que uma forte repugnância por “etiquetagens”, sobretudo se tidas como “indiferenciadoras” e como “reificações”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 123 essa é a natureza do Mundo em gestação, argumentam alguns dos democratas cosmopolitas (os outros, sem argumentar seja o que for, limitam-se a senti-lo na pele), será só quando conseguirmos garantir um pleno acesso a uma cidadania múltipla: uma cidadania realizada, em simultâneo, em diversas comunidades políticas (e muitas delas comunidades de diferentes níveis de inclusividade) que tornará possível assegurar uma participação, um enpowerement face às novas formas de poder, um pluralismo. Numa palavra, a liberdade. A lógica defendida acaba por ser a de uma reconceptualização (intelectual ou espontânea, e provavelmente ambas) da autoridade política legítima. O meio mais comummente proposto para o conseguir, passa por uma desconexão entre essa autoridade e o seu lugar de inserção “clássico” (os Estados, no interior de territórios fixos e centralizados), ligando-a, em vez disso (e de algum modo em rede), a vários níveis que se estão a reconstituir como instâncias paralelas uma às outras e auto-reguladas: comunidades locais, cidades, regiões, Estados, grandes blocos regionais e o global 106. Argumentam os democratas cosmopolitas que essa deslocalização “para cima”, “para baixo”, e “para o lados”, já começou. Muitos estão no entanto apostados em tentar intensificar esses processos de difusão e disseminação, na condição de que o processo seja gradual, e envolva a conquista de novos direitos e deveres democrático-liberais. Defendem, de par uns com os outros, Estados, organizações internacionais, comunidades locais, e associações 106 Com algum fundamento, muitos dos mais importantes e influentes autores cosmopolitas democráticos, incluem na sua genealogia intelectual Hedley Bull (1977), um dos progenitores da escola britânica de Relações Internacionais; nomeadamente, a sua opinião (que data de, pelo menos, 1977), que estaria a despontar na ordem internacional aquilo a que chamou a new medievalism. Para citar Bull: it is familiar that sovereign states today share the stage with “other actors”, just as in medieval times the state had to share the stage with “other associations”…If modern states were to come to share their authority over their citizens, and their ability to command their loyalties, on the one hand with regional and world authorities, and on the other hand with sub-state or sub-national authorities, to such an extent that the concept of sovereignty ceased to be applicable, then a neo-medieval form of universal political order might be said to have emerged (H. Bull, 1977:254-255). Tanto Andrew Linklater (1998), como David Held (1999), sem sombra de dúvida os mais famosos dos teóricos do cosmopolitismo democrático contemporâneo, citam Bull como um antepassado neste contexto preciso. 124 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS transversais múltiplas. E são activos, nos cenários que privilegiam. Mais do que isso: os cosmopolitistas democráticos têm poder efectivo. Não os vimos nem os ouvimos nem em Davos, nem em Seattle, nem em Berlim, nem em Quioto. Mas será com base no que irão escrever sobre estas cimeiras que sobre elas iremos formar uma opinião. Serão porventura estes os principais objectivos das três famílias políticas com que hoje em dia, face à globalização, deparam os Estados (pelo menos os Estados democráticos107) contemporâneos: participar numa reforma de fundo da governação global que está em cristalização, por extensão para fora da sua ordem política interna tradicional; ceder lugar a uma forma alternativa de governação que os exclui enquanto sedes do poder ou, pelo menos, secundariza e vai esbatendo; ou ajudar a reconstruir os termos dessa governação, de acordo com as novas coordenadas emergentes de um Mundo em época de globalização. 107 Note-se que estas três famílias são famílias “de transbordo”: Mas, como seria de esperar dada a natureza dos processos de transformações globais, há também outras famílias, simultâneas e muitas vezes inimigas mortais destas, “de cascata”: e assim é, porque onde há McWorld há Jihad. Sem querer aqui mais que aflorá-las, não me parece mal a divisão tripartida que (noutro contexto, e com outras finalidades), John Comaroff (op. cit.: 175-177) delas faz; Comaroff descreve e distingue os Euronationalists (mais interessados, nas suas elaborações, em chronology do que em cosmology, muito próximos de um “nacionalismo cívico”), dos ethnonationalists (de fama balcânica e terceiro-mundista, segundo ele, para os quais, cosmology may take precedence over chronology), e ambas estas famílias da dos heteronationalists, que identifica com a obsession with the practices of multiculturalism própria dos norte-americanos. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 125 Bibliografia Aguiar, Joaquim (1998), “A crise asiática e as suas repercussões”, Política Internacional 2: 115-141. Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of nationalism, Verso. Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the World, Ballantine Books, New York. Bauman, Zygmunt (2001), Community. Seeking safety in an insecure world, Polity. Bettati, Mario (2000), “Théorie et réalité du droit d’ingérence humanitaire”, Géopolitique 68: 17-27, Paris. Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world community”, em (eds.) Booth, K. e Smith, S., International Relations Theory Today: 90-110, Cambridge. Bué Alves, Duarte (2000), “Recensão a Francisco Lucas Pires”, Themis, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa: 293-305. Bull, Hedley (1977), The Anarchical Society: a study of order in world politics, McMillan, London. Cassese, Antonio (1999), “Ex iniuria ius oritur: are we moving towards international legitimation of forcible humanitarian countermeasures in the world community?”, European Journal of International Law 10 (1). 23-31, Oxford. Chomsky, Noam (1999), The New Military Humanism. Lessons from Kosovo, Pluto Press, London. Comaroff, John L. (1996), “Ethnicity, nationalism, and the politics of difference in an Age of Revolution”, em (eds.) E. Wilmsen e P. McAllister, The Politics of Difference, The University of Chicago Press. Dahl, Robert (1989), Democracy and its Critics, Yale University Press. Delmas-Marty, Mireille (1999), “A mundialização do Direito: probabilidades e risco”, Studia Iuridica 41, Colloquia 3: 131-145, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra. Escarameia, Paula (1993), Formation of Concepts in International Law. Subsumption under self-determination in the case of East Timor, Fundação Oriente, Lisboa. Giddens, Anthony (1999), Runaway World. How globalization is reshaping our lives, Profile Books, London. Held, David, McGrew, Anthony, Goldblatt, David e Perraton, David (1999), Global Transformation. Politics, Economy and Culture, Polity Press. Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25. 126 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. ____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, 78(2): 35-50. Jackson, Robert (1990), Quasi-States: sovereignty, international relations and the Third World, Cambridge University Press Joerges, Christian (1998), “‘Good Governance’ through comitology?”, em (eds.) Christian Joerges e Ellen Vos, EU Committees, Social Regulation, Law and Politics: 311-338, Oxford, Hart Publishers. (ed.) King, Anthony (1991), Culture, Globalization and the World-System. Contemporary conditions for the representation of identity, MacMillan. Knutsen, Torbjörn (1999), The Rise and Fall of World Orders, Manchester University Press. Kolko, Gabriel (2000), “Kosovo, leçons d’une guerre”, Manière de Voir 49: 17-21. Paris. Krasner, Stephen (1999), Sovereignty: Organized Hypocrisy, Princeton University Press. (eds.) Lensu, Maria e Fritz, Jan-Stefan (2000), Value Pluralism, Normative Theory and International Relations, Millenium, London. Linklater, Andrew (1998), The Transformation of Political Community. Ethical foundations of the post-Westphalian era, Polity Press, Cambridge. Lucas Pires, Francisco (1997), Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Almedina, Coimbra. Mann, Michael (1999, original 1997), “Has globalization ended the rise and rise of the nation-state?”, em (ed.) T. V. Paul e J. A Hall, International Order and the Future of World Politics: 237-262, Cambridge University Press. Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18(2): 45-79. Marques Guedes, Armando (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena. ____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162. Nye, Joseph (1997), Understanding International Conflict. An introduction to theory and history, Longman. (eds.) Paul, T. V. e Hall, J. A. (1999), International Order and the Future of World Politics, Cambridge University Press. Ramonet, Ignacio (2000), “Ingérence et souveraineté”, Géopolitique: 51-55, Paris. Reno, William (1998), Warlord Politics and African States, Lynne Rienner Publishers, Boulder and London. Rubio Marin, Rut (1998), “National limits to democratic citizenship”, Ratio Juris 11 (1): 51-66. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 127 Simma, Bruno (1999), “NATO, the UN and the use of force: legal aspects”, European Journal of International Law 10 (1). 1-23, Oxford. Sousa Santos, Boaventura (1998), Reinventar a Democracia, Gradiva e Fundação Mário Soares, Lisboa. Strange, Susan (1996), The Retreat of the State. The diffusion of power in the world economy, Cambridge University Press. Wallerstein, Immanuel (1991), “The national and the universal: can there be such a thing as world culture?”, em (ed.) King, A., op. cit.: 91-107. Walz, Kenneth (1959), Man, the State and War: a theoretical analysis, Columbia University Press. Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London. 128 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4. Local Normative Orders and Globalisation: is there such a thing as Universal Human Values?108 1. Post-modernity109 has been ripe with the assertion of the recent death of the transcendental subject. Not surprisingly, one of the intellectual implications of this perceived state of affairs is a routine denial of the very possibility of assuming a transcultural standpoint; of occupying the kind of room with a privileged view which many successive generations of Kantians claimed as their own, and of placidly surveying things from that vantage. Hence, it is often felt, a truly universal compelling morality painfully (but irrevocably) eludes us all. For advocates of post-modernism, value relativism is an inevitable consequence of this demise. In my view, this perceived difficulty is linked in many ways to our images of the experiences we live through in the modern world. Power relationships have been thoroughly reshuffled, again and again. The very shape of order has had a 108 Comunicação apresentada a 13 de Dezembro de 2001, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no quadro de um Colóquio Internacional intitulado “Other Reasons, Other Cultures, Other Laws”, 109 Earlier versions of this text were given to read to Ana Cristina Nogueira da Silva, António M. Hespanha, António Marques, Armando M. Marques Guedes, Gabriel R. G. Benito, John Huffstot, José Carlos Vieira de Andrade, José de Sousa e Brito, Lurdes Carneiro de Sousa, Manuel Oliveira, Maria Lúcia Amaral, Pedro Duro, Rui Machete, Paula Escarameia, Rui Pinto Duarte, Susana Brasil Brito, Teresa Anjinho, Teresa Pizarro Beleza e Tom Svensson. Most of them were kind and generous enough in their often detailed commentaries, from which my paper has greatly benefited. I am also grateful for the rich discussion triggered during my oral presentation on December 13th, 2001, in particular for the constructive encouragements formulated by Tamar Herzog, Richard Hyland, José Reinaldo de Lima Lopes, Aldo Mazzacane and Gyan Prakash. The responsibility for the finished product remains, of course, entirely my own. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 129 turbulent late history, and the last three months or so have been an ugly, painful, reminder of that. Notwithstanding some successes, past and ongoing experiments with normative harmonisations of all kinds (legal as well as religious, ethical as much as political, particular or general in scope and ambition) are at best discouraging. Hopes of a universalising consent have consequently either simply evaporated or have tended to increasingly stand out as illusions born of the fantasies of other eras. The immediate horizon we brave most certainly does not seem too promising. Voices are daily making themselves heard throughout our postcolonial settings and arenas, indignantly demanding a full recognition of the autonomous forms of integrity which were violently denied them for such a long time. “Asian” forceful, but quiet, clamors for independent value and legal systems, have somehow echoed more subdued “African” ones, as well as much louder and more strident exactions coming from the “Middle East”. And this is a movement which is by no means restricted to the “zealotry” of people such as Singapore’s continuing strong-man Lee Kwan Yew, Malaysia’s Mahatir bin Mohamad, the notorious Osama bin Laden, Robert Mugabe in Zimbabwe, the frustrated George Speight from Fiji, or Iraqi Saddam Hussein. Even in small-scale “traditional” societies as disseminated as some of those in the Central and South American outreaches, or Canada or the Pacific and Indian Oceans, demands for sovereign cultural exceptionalism, as we can usefully call it, can be insistently heard. Such urges vary wildly among themselves. In many cases, they are uncompromising; in some, open to negotiations. What they do share is a studied rejection of what tends to be called “the West”. A rejection which sometimes slides down a slippery slope into an avowed repugnance, a trend which has been apparent for quite a while now. In such a conjuncture, finding a universal normative common denominator appears more and more as a remote dream. It seems unlikely, to say the least, that the recently empowered Chinese will abdicate their penal practices (which we so abhor), that the Afghan taliban militants (or what remains of them) will take in their stride our notions on the “equal worth and dignity” of males and females, or that Southeast Asian indigenous headhunters profess a collective mea culpa in relation to their ancestral traditions. 130 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS The difficulties perceived by post-modernists have been wide-ranging. The “localist” distancing which I briefly charted above has made itself felt both in what concerns any hopes of “universal” rights as in what has to do with “universal” values. It is perhaps in the more restricted field of contemporary legal universalisation, that some of the political, as well as many of the formal and technical, issues all this raises glaringly come to the fore. Again, a cursory overview may be useful. The new breed of “legal comparativists” which so successfully met in Paris in 1900, tended to believe a rapid uniformisation of some sort was not only possible and desirable, but also quickly achievable. Less than half a century later, the tune had changed. Of the many possible examples, let us stick to matters of human rights: the “universal” character of the 1948 Universal Declaration of Human Rights was challenged by a handful of those public and private actors (in ever growing numbers) who saw in it little other than the latest sign of Western “cultural hegemony” (a then new concept for an old reality, many felt). But those who voiced complaints (mostly non-Westerners, or only marginally classified as such) were not the only ones who resisted. The tale of this twist of rejection, of this twitch of separatism, is an instructive one. In an effort to avoid divisionist reactions, the optimistic Declaration did not separate or allow any hierarchies between civil and political rights, and economic, social or cultural ones. In 1966, in two United Nations Covenants, however, a dissociation of these two sets of rights was in practice effected, following the preferences of some of the member States. The outcome: universalism, but not quite. Regional mechanisms for the protection of human rights had started this fragmentation early on; a European Convention (1950), was followed by an American one (1969), in turn answered by an African Charter for the Rights of Man and Peoples (1981), with few built-in control mechanisms, and by an explicitly confessional Arab Charter (1994), with fewer still. So, rapidly, as could be expected, a wide dissemination deflected the voluntaristic pressures for uniformity. Moreover, many countries (namely the colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 131 United States of America) repeatedly sought to “renationalise”110 human rights by means of rather more devious tactics: by a very sustained, purposeful, and oblique game of systematic reservations and declarations of interpretation, formulated at the time of their ratification of those very legal instruments. More and more, hopes of any real form of “universalism” seemed like a dream shot down. On the face of it, none of this, indeed, is particularly surprising. Quite the opposite, it was surely to be expected in a politically still fairly anarchical international field. Unstructured political domains do render convergences tough businesses. Even in the neo-functionalists paradise of our mild European Union backyard, irreductibilities of various forms have made themselves felt. The net result: normative diversity of all kinds actually appears to be on the increase. Hopes for uniformisation are felt to be under threat. Concomitantly, a common concept of the good life often seems to be, if anything, receding fast. But, of course, this is only part of the story. That perspective is essentially incomplete. For there is most certainly another side to the narrative of which I have sketched but one of the sides. Ethical cosmopolitanism has also had a long (and just as turbulent) history, one the results of which operates as a counterbalance to some of the “localist” forces I have just touched upon. An ambivalence of sorts thus seems to prevail, notwithstanding the skepticism of post-modern discourses. In this communication I want to begin tackling some of the issues that all of this raises. My aim is rather wide-ranging. Ultimately, it is intended as an attempt at answering a simple but difficult question: are there universal human values? Does the question even make sense, in today’s world? Or, on the contrary, is it only in today’s world that it actually does? For all this I strive to find tentative answers. And I try to do so by briefly broaching some of the basics of these matters, basics which I believe need to be thought through in a far more careful manner. 110 The term (as many of the points made in this paragraph) is taken from the interesting article-conference of Mireille Delmas-Marty (1999). 132 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Up to this point I have mapped out a very thin and brief historical pinpointing of some of the contemporary resistance encountered by the ongoing ethical cosmopolitan project, if we may call it that. Before dipping into more substantial issues, I next want to just as briefly and lightly touch some of the movements of toing and froing suffered by that project. I shall then veer into a more theoretical discussion. In what follows thence, I will by no means attempt to cover the entire domain of pertinent questions all this brings up (and to my mind they are indeed many, and crucial ones at that), nor will I really try to suggest any real (in the sense of final, or definitive) responses, or recipes, for any of them. But I shall try to raise some doubts about the overall post-modern program. And I will try to do so from what I consider to be a neo-Kantian, in a sense even a Liberal (although not a “classical” one), perspective. In general and abstract terms (but not in substantive ones), I shall try to somehow answer, even if perfunctorily, the questions I posed above; and no more than that. But I am, of course, painfully aware that even this is too long a road for a lifetime, and thus wholly uncrossable in my allotted space and time. So I shall circumscribe my theme, turn it into something more handy and user-friendly. I will try to do so by remaining on a sort of high ground. I will briefly touch upon some normative orders; and then only superficially. Moreover, I shall approach normative orders in general, and confine my attention to their general relationships with global transformations: not the detailed mechanics, but rather the macro-links – how the latter engulf the former, but the former, in turn, pattern the latter. Obviously, given such restraints and limitations, my aim is only indicative. It could not but be so. I shall rest contented if I manage to equate some few of the relevant materials that I believe need to be brought into play in any cogent answers we may offer. Therefore, I will not be very ambitious here. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 133 2. As a first step (and in a more equitable recasting of the shifting balance between localism and ethical cosmopolitanism, even if I am to be very cursory here as far as origins are concerned), it is surely convenient to start at the beginning. The generalised conviction that there is indeed such a thing as universal human values is by no means a new one. From its remote origins as an original Christian idea, it slowly swayed into an explicitly political weapon in the XVIth century, with a visible and more narrowly focused instrumentality in its scope. It is perhaps not excessive to assert that the initial transition was swift. Novel Renaissance politics brought it about. Already in the dawn of colonial times, as the hard-fought dispute between the Castillian Jesuit Bartolomé de las Casas and the jurist Sepulveda111 abundantly and graphically rendered blatant, the brute facts of the forceful submission imposed on the many non-Europeans encountered and their subsequent subalternity tended to sharpen its cutting edge. The next couple of hundred years polarised relations ever further. The neo-classical humanism spurned by a growing urban bourgeoisie anxious to assert its right to a voice not based on privilege pushed it forward. The Industrial Revolution increased the pressure, directly as well as indirectly. When, from the middle of the XIXth century onwards, steamships and the then recently internationalised colonial boom rapidly shrank the world, its harsh political facies revealed itself most clearly in the transmutation of this religious construct into ethical universalism and its late 1700s’ Kantian Illuminist avatar, ethical liberal cosmopolitanism. 111 A wonderful discussion, of which we unfortunately (and rather curiously, I might add) do not know the conclusions; but we do know the story. As is well known, de las Casas enjoined the Castillian King to put a stop to the many “atrocities” being committed against the newly discovered Indians, the resulting loss in life of soul-bearing “Children of God”, and attributed it to greed. The King agreed at first. Sepulveda argued for the “bestiality” and soul-lessness of Indians, and thus thought it unfounded for the King to intervene on their behalf. Even in the absence of data on the actual outcome of the Disputación which ensued, we know what happened to many of the Indians. 134 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS From then onwards the tale has largely been a Liberal one. To cut a long story short: in the early XXth century this change reached its apex, when a motivated and very activist American President, Woodrow Wilson, led the march, with the famous fourteen points he presented to the delegates preparing what became the ill-famed and ill-fated Treaty of Versailles, and with the ensuing shortlived League of Nations. It was a swansong; rabid nationalisms on the rise and German and Japanese rather militant forms of exclusionary exceptionalism put a sudden end to that early dream. But ethical universalist yearnings did not die. A decade later, the hopes rose from the ashes, re-energised, if only for a brief flash. The narrative of this bout of revitalisation is not trivial: in a cycle that was to establish itself, the then historically rather recent political recasting of universal human values had become hegemonic, and its contaminating presence almost entirely transparent. For many intellectuals, at least, the long-awaited Allied victory in World War II brought a bright hope of a new ethical universalism, born both of the horrors of the conflict and of the shared solidarities fashioned by common suffering. For Europeans, at least for West Europeans, as we then called ourselves, this gave rise (for instance) to the grandiose political project which is now that of the European Union. For the world at large, it spelled even more ambitious and all-inclusive movements, of which the creation of the United Nations system was perhaps the most visible peak. But, unfortunately, the new enthusiasm was not to effervesce for very long. For the tide soon turned: at least in the first few post-War years, and throughout the first decade of reconstruction and political reframing, a bitterness slowly crept in as the gray bipolar world rapidly crystallised and what was to become the Cold War came to make itself felt. Albeit couched in a newfangled garb, the good old Hobbesian “international anarchy” (or so it seemed to many) had survived largely untouched, either by the rather monstrous enormities committed by the Nazis, or by the geopolitical reshufflings which flowed from the recent upheavals. A moral recession of sorts majestically settled on war-weary world shores. For, in point of fact, although intellectual ethical cosmopolitan feelings indeed initially seem to have soared in those short-lived heady times immediately colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 135 after the Armistices, this quickly led to a backlash of forlorn desillusionment. Commenting on the post-War all-too-easy reversal of opinion (or, at least, the habitual Machiavellian pose adopted in such circumstances) of politicians, in which the defeated Germans suddenly became new friends and the saviour-Russians suddenly transmuted into the dark enemy, Arthur Miller, the playwright, bitterly wrote, not all that long ago, in 1987: “[this is] an ignoble thing. It seemed to me in later years that this wrenching shift, this ripping off of Good and Evil labels from one nation and pasting them onto another, had done something to wither the very notion of a world even theoretically moral. If last month’s friend could so quickly become this month’s enemy, what depth of reality could good and evil have? The [contemporary strand of ] nihilism – even worse, the yawning amusement – toward the very concept of a moral imperative, which could become a hallmark of international culture, was born in these eight or ten years of realignement after Hitler’s death”112. Miller was of course right, if also slightly naïve. The “Western” public reaction of outrage was fairly generalised; and as bitter pessimism grew quickly in the new international civil society (as it came to be seen) forming there, the high bright hopes that had so coloured the animus (and the public kudos) of the reborn intellectual life of the immediate post-war months of heady euphoria receded too, and did so at a very fast pace. Historical fact appeared indeed to roll it back into a severe bout of disconsolation and a sad ethical desolation. So much so that this backlash was not inconsequent: a recession of cosmopolitan moral feelings was to ensue. As had been the case almost a century and a half before (in the endgame of the 1815 Vienna Conference which capped the Napoleonic Wars) the good old raison d’État, it became increasingly apparent, was alive and well; allegations of its recent demise were flagrantly somewhat premature. The new dark Zeitgeist was to last for much longer than ever before since universalist hopes had first entered the stage. The tale turned gloomy indeed. For almost half a century, the ill-fated Soviet regime threw its weight around on that front too. It held back the flow. Always 112 136 Arthur Miller (1987), Timebends: A Life, Methuen, London. ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS suspicious about “human rights”, Moscow made sure Helsinki waited a long time to arrive; and when it did, it was a welcome, but very cautious, step on what many dreaded was a lengthy and steep uphill road. Hopes, however, are resilient entities. As soon as a minimally conducive environment surfaces, they tend to undergo a rapid rebirth. And a new international milieu was definitely on the rise. It took the fall of the Berlin infamous Wall, the reunification of Germany, the end to Russian colonial domination of all lands along its lengthy western and southwestern frontiers, the final demise of the old Soviet Union, and the consequent erasure of a harsh half-century of a tense bipolar form of international order, for the sweet dream to be reborn anew; for ethical cosmopolitanism to reawake and gain a new lease on life. But it quickly did. We can perhaps see it, mutatis mutandis, as another ressurection of an old idea. Or we can envisage it as an essentially new figure, only functionally equivalent to the one of old. In any case, it was again an ethical dream reborn. In a sense, it clothes our own fantasy: it is certainly a universalistic dream under the spell of which we somehow (and perhaps more than ever) still live. Will it last for very long? And is it really just a dream? At any rate, the least we can say is the progression of ethical universalist yearnings is by no means a linear or unidirectional affair. To those who naïvely thought the post-Soviet, post-Wall of Shame and post-Iron Curtain thaw of “unipolarity” was the end of the story, History is once again clouding the issue. Much of the Islamic world, China, and what is curiously still known as exJugoslavia, took care of that, as soon as it dared to reawaken. The rise of the Afghan taliban students and the transnational al-Qaeda network of uncompromising anti-Western terrorists gave it soon afterwards what many see as its death-blow, its coup de grace. In the new international scenarios the post-bipolar stage unrelentingly offers us, a cohort of new and apparently insurmountable difficulties has been making itself incessantly felt. They are difficulties which raise a variety of novel issues. Many of these new issues concern matters pertaining to the “universality” of things as easy to recognise and as hard to define as “human rights and values”. In many cases, from colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 137 Afghanistan to Sudan, to China or Cuba, to name but a few, this has assumed the harsh clothing of explicitly cultural exceptionalist invocations, leveled in the name of the sovereign right to “self-determination” so rampant in contemporary political discourse. In others, it has either been cast in a more defensive shape (as an expedient means of “protecting the integrity of traditional communities” against the encroaching and predatory “individualist dissolution”113 of Westerninspired modern life), or else a more militant one of a plain cultural, religious, and political intolerance which refuses any “alien” value systems. Are they right? Or, at least, do they have a point, no matter how lamely it may have been put? Be that as it may, it is hard not to have the intuitive feeling that theirs are clearly not sufficient explanations for the “cultural” universalisation which is daily taking place and which we all can sense. Like it or not, it is clearly there, eating away at many localisms of old. What is in fact happening? And why is it unraveling as it is? It is tempting to blame good old cultural diversity, or the spectre of the political conveniences of power-hungry local elites for that seemingly novel predicament. And although that may hold some water, it clearly does not wholly unveil what is certainly a much more complex set of processes. At any rate, ignorance has never stopped us from action; although it often renders the action a fairly futile business, at least in terms of its stated objectives. Various sorts of adamant political exertions focused on actually reconciling fundamental cleavages in basic cornerstone aims and objectives (a heavy workload in the multi-centered world of today) have not lacked. And even some few academic efforts have been carried out of late so as to intellectually contain (in a manner of speaking) these divergences. The truth is that none of this has yet gone very far. Even a cursory look at the extant bibliography on such matters shows us the sorry state of affairs on that front; or at least an excessively linear one. Allow me to pick a few instances as a 113 As many others did before him, Thomas M. Franck, an American Professor of International Law, gave several rich (and critical) instances of this attitude in T. M. Franck, 2001: 195-196. His views on local elite-led pseudo-traditionalist versions of communitarism are a good example of what I am tempted to call his instrumentalist version of neo-realist liberalism. 138 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS more or less representative sample (and nothing but that) of contemporary tendencies. For example, in a recent and excellent collection of research articles on international theory (Lensu and Fritz, 2000), various rather simple models and “flat” theoretical “solutions” were put forward regarding some such inevitable “ideological” problems raised by the current progression of the international order towards a much closer level of interdependence of world actors, as well as their multiplication. This raises issues which, in a nutshell, Lensu characteristically enunciated in the following simple and straightforward terms: “how can we encounter ‘otherness’ or difference in an ethical way”? From her point of view (not surprisingly as this is really not a very contested question, at least at the level of “problematisation”)114, the issue is brought to the fore by the situation of clear and potentially troublesome “value pluralism” of the globalising world, and it both reflects and spells out the pervasiveness of what she calls the “diverse ultimate values” (op. cit.: xviii) often uneasily cohabiting in this progressively more interdependent world of ours115. 114 To announce in advance my own position on this, allow me to state that it seems to me that is nevertheless high time, though, for us to think matters through carefully and to recognise that the issues posed are complex and multi-layered. Consider just this one example. In her introduction to the series of articles I have referred to, Maria Lensu collapsed into a West-centered matter of “ethical logistics” (allow me to call it that, with all due respect) what are in fact various different levels of potentially interesting analyses: according to her, the wide majority of debates among Western defenders of Human Rights and their non-Western adversaries illustrates “the fundamental question facing normative theory in International Relations: how to reconcile value pluralism with an appropriate ethical orientation (good/right/fair/just)” (ibid.), in a world in which opinions greatly diverge concerning, namely, the content and extension of basic fundamental matters. 115 From this and other works one sometimes gathers the uneasy feeling that Samuel Huntington’s reifications in his Clash of Civilizations has had a pervasive toll in the current framing of such matters. In fact, Samuel Huntington argued along largely similar lines in a famous 1993 article, under the suggestive heading of “The Clash of Civilizations?”, published in Foreign Affairs 72(3): 1-25, later followed by an extensive monograph in 1996, with the quite similar title of The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. For Huntington, the ultimate irreductibility if “worldviews” signifies a welcome new form of balance of power in an otherwise chaotic post-bipolar order. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 139 Well, it is certainly the case that, from the perspective of the dominant West, the quandary faced is both internal and relational; and the issues raised are residually moral, as well as ostensively political. But that hides, rather than solves, the matter; it is surely part of the problem and not really of the solution. Even our posturing is revealing: for rather than seen as philosophical, or ontological, the problem is treated as logistical. Now, I personally have no doubts whatsoever that many Western and Western-prone radical normativists (let me call them that) might be inclined to look at things in such a linear manner. But I also think that in so doing they would miss much of the point of what is actually going on in the post-bipolar world; and I believe that therefore theirs is not really a useful strategy for the purpose of equating the new predicaments we find ourselves in, as we fend off uncertainty in the globalising arenas of today. For things appear to me to be much more complicated than that. In the Westphalian world of States brewed since 1648, strict, pure legal normativists had a field day, writing what appeared to all as the ultimate rules of the game. In our post-Westphalian sunrise, this is no longer enough. I shall return to this point. But first things first. To be fair, let me remark that quite apart from the tentative answers with which she actually comes up, Lensu appears to be moderately optimistic, for what that is worth: she seems to believe the “problem” she identifies really amounts to a temporary barrier encountered by her abstract and general “Western-style normative theory”, a passing affliction which a hitherto unknown rational solution will, sooner or later, come to heal. Of course such is by no means the only possible attitude to assume. And indeed a more negative pose than Lensu’s in relation to this issue is equally legitimate, or at least well founded. For one thing, others may not accept an explicit or even an implicit Western homogenising hegemony, no matter if only for “the benefit” of domains in which we deem it as “better for all those concerned”. One example may suffice of a different theoretical pose. Not all that long ago, in the early 90s, in a famous short and incisive paper written in a more historicist than sociological vein, and much more political and ideological than ethical or philosophical, Immanuel Wallerstein (the renowned American World System 140 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS theorist) had underlined the inevitability of what he termed “cultural resistance”, in our modern struggle against “the falling away from liberty and equality”; a fight Wallerstein thought lucidly to be in the order of the day given the rapid rise of the “global” (1991: 105). In his tone, he seemed to offer no hope for a solution: resistance flowed from a fragmentation which, Wallerstein believed, will always be there To be sure, both Wallerstein and Lensu are in the end probably right, or partly so. As is, of course (at least in my view), the more “classically” Liberal Thomas M. Franck, in his insistence on a connection between “modernity” and “universality”, as well as in his staunch defence of “individualism” against idyllic and often manipulative visions of “communitarists”: a third visionary on such matters to whose work I shall be returning time and again. But each of these thinkers seems to me to be entrenched into too partial a view of things. To conclude my first step, I thus want to argue that, to my mind, a new balance needs to be struck. More has to be brought to bear on these issues, and in a far more subtle fashion, if we are to hope to ever come to make sense of things in today’s apparently messy world. Many are the matters which need to be taken into account. I shall list but a few. Value matters are dynamic, not static; as such, they must be repondered taking stock of the ongoing social processes that actually affect them. For one, “cosmopolitan” universalist processes must not be seen as taking place freely, independently of parallel simultaneous processes of resistance and fragmentation. Moreover, homogenisation, no matter how beautiful a dream and irrespective of its “feel good” effect, is not around the corner, and it does not stand alone. “Individualism” and “communitarism” are not unproblematic polar opposites: they are, on the contrary, interconnected. And as if this were not enough, I strongly believe the flat, unidimensional and rather linear rationality inherited from the Enlightenment needs a fairly deep revamping (although not really a structural one) if it is to serve us as a tool for decrypting the de-centred and multi-layered world of multilevel and constantly negotiated identities of our emergent new forms of individuality. Only after doing so can we expect to be able to line up viable answers to the complexities of our global cul de sac. In what follows, I shall take these issues one by one. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 141 3. As a second step, let me endeavour, first, in a preliminary effort at focusing, to design the board, as it were. In my title I refer to human values, but I also allude (albeit implicitly) to human rights. And I suggest (or at least hint at) a connection between the two. I must therefore start, right at the very outset, by parting waters, by outlining a background distinction which I deem to be of the utmost importance as far as clarity goes: that between, on the one hand, human values and, on the other, human rights, a distinction embodying a contrast operative at many levels and certainly at the ones I shall here attempt some dwelling into. My aim in so doing (that is, in trying to establish such a connection) is by no means trivial, I believe. To be sure, values and rights are quite easily discernible as being indeed very different things. But although no one in their right mind would confuse them for a second, it is nevertheless true that, at least for the purposes of my line of argument, this patent distinction, particularly in its fine details, is relevant in a rather specific way: because it is based on a superficial contrast which in fact hides a fundamental similarity. Let me set that forth, however sketchily. Human rights is a legal-philosophical idea, an XVIIIth century Illuminist one at that116, with a strong normative content of sorts: in one way or another, it 116 There are actually two traditional strands in Western conceptualisations of universalism. As I pointed out earlier, one is rooted in Christian notions of Natural Law and its immanence. In this view, universal moral truths, which stem (flow, might be a better characterisation) from our common rational faculties, lie behind the apparent fluctuations in our cognizance of them. The other strand takes seriously the objection that considerations of universality are historical and the product of circumstances (this is, for instance, Rousseau’s position), and thus are always, inevitably, what we would today label “ethnocentric” (be they across time or space). This, of course, apparently takes away from our grasp any fixed points of reference we may have yearned for. One possible way out of this is relativism: we simply give up moral certainties, and deem all ethical claims as ultimately equivalent. Another path, more teleological, recognises some moral truths, but claims them to be a product of history or of culture: it is here most XIXth century philosophies of history took root (this is, e.g., the road taken by Hegel and the “evolutionists”). As I shall try to make clear, while I sympathise with this latter way out of the relativist’s quandary, I also recognise its severe teleological limitations. Accordingly, my “solution” is more skeptical; although (as I try to argue) that does not tie my hands in any way. 142 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS touches upon the imperative need for us to recognise that human beings are bearers of an intrinsic worth and dignity; and that, if only for these reasons, they have automatic claims on others’ attitudes towards them, irrespective of either’s age, gender, religion, cultural or national affiliation; or, for that matter, any criteria pertaining to any of them, other than their common belonging to the biological human species. At the time, quite a revolutionary idea; in many contemporary quarters, unfortunately, still an alien, unacceptable, one. While human values is a concept without such a strong normative or, strictly speaking (and on the surface), any specifically philosophical, content: it is mostly a description. It focuses on a common denominator between the ethical and moral foundations, upon which (it is postulated) in one way or another human beings ideally conduct their lives; and it does so, again, irrespective of any but biological criteria pertaining to those whose social or personal relationships it qualifies. If you will, it is a notion which feeds and prevails at the level of is and not of ought: its domain is Sein, not Sollen. So far so good, one would think. But beyond, or behind, these apparent and manifest differences, which somehow push these two notions apart, there is a grade of similitude: at some level, they somehow cohabit, they flow from a common substrate, and they thus partake of significant traits. This much is obvious. The assertion of human rights somehow mobilises a certain definite conception of an abstract universalism: if only the ultimate idea that there is such a thing as an abstract human being. And this somewhat hidden assumption underlies, too, any and all notions we may hold about human values, for they are, in the end, only conceivable against the very same sort of abstract universalism: the concept of an abstract human being. Although, to be sure, each of these notions entails much more too. So there is indeed a strong common denominator, a concealed shared element, somehow dwelling below or, if you prefer, spread out underneath, the obvious distinction between our (more normative) notions of rights and our (mostly descriptive) ideas about values: the partaken and tacit background persuasion (providing a generic notional opposition with these two figures, but also discreetly apportioned between these twin bundles of ideas) that there is colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 143 such a thing as an abstract, universal humanity; that human is a conceptual category. To my mind, this backdrop, this impensé, is crucial. No matter that human rights are allocated from on top, as it were, by a process of deduction down from more or less metaphysical constructs we indulge in for whatever sets of motives; and that, at another end and by other means, human values are effectively arrived at through an effort of induction up from systematic empirical comparisons we decide to carry out. The plain and obvious fact is human rights and human values are notions which have an elective affinity, to use an often useful Goethean concept. And this is it: both presume (the one as a sort of tertio comparationis, the other as a kind of deus ex machina) the pre-existence of the conceptual scheme we like to call Man, or Humanity. Now, we can certainly try to find explanations both for the advent and for the persistence of this embedded idea of a common, shared, abstract, and universal humanity. And, in so doing, we may choose different angles of approach. I shall enumerate a few. One can easily envisage it, historically, as the outcome of the end of an ancien régime marked by distinctions and privileges, and the rationalist victorious assertion of an interchangeable “citizenry” (British sociologist Anthony Giddens nicely called it a “modular” concept of individuals), precisely that which two centuries ago laid the foundations for the “one man one vote” basis of political democracy. And this much undoubtedly holds some water. Or we can assume a more genealogical pose: we can also look at it as something which was made possible by the universality claims of the Christianity of old, and was again turned actual (tant bien que mal, and certainly in an altered form) by the mid and late XVIIIth century Enlightenment philosophes. Or, more ontologically, somehow moving away and distancing ourselves and taking a bird’s eye view, we may prefer to ignore the time-depth and to embrace instead, with Michel Foucault (the noted French philosopher), the epistemological conditions subtending the simultaneous emergence of intellectual disciplines such as biology, linguistics, and economics, and rather glimpse there the uncontestable groundwork for the rise of a new structural and abstract humanism in 144 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS the West117: we may favour a somewhat more skeptical late XXth century angle, so to speak. Certainly, there is some cogency to all these points of view; as well as some overlap, as they are obviously not really mutually exclusive; and, they have some immediate practical usefulness too. Although they are far from transparent, namely regarding either motives or implications. Since, of course, nothing forces us to stop here: for example, by simple extrapolation, we may then (and we can do so with some plausibility) make the strong claim that the current pervasiveness of a latent ideological hegemony of Western values is beginning to impinge effectively onto the rest of the world, on the propitious slate so conveniently provided by globalisation118; more, we may advocate that it does so as a part and parcel of a form of “imperial” globalisation. And we may claim, therefore, that the process (whatever we decide its operation actually encompasses) is finally about to be completed, rendered truly universal in scope. For this we could perhaps adduce a political prime mover: the unipolarity of the world left to us by the 117 This (at any rate, as Foucault clearly emphasised over thirty years ago) is what, mostly in Europe and North America, fashioned as thinkable the very idea of social sciences, made it a viable hypothesis. Social (and human) sciences, in other words, depended, for their very inception, on this underlying abstract notion of a humanity. More, they actually built this into their constitutive schemes: as offspring of Illuminism, social sciences are really only engenderable against the background of this implicit presumption of something such as common abstract human beings. The thing is, all of this is far from inconsequent. To cut a long story short, we can therefore be certain that any inductive generalizations about “human values” we choose to carry out are nothing short of circular: they beg, as much as they answer, questions; and they ultimately assume the frame of reference of what they are putatively looking for. In other words (and in a weak sense), I can only in fact look for human values if I initially presume that they do somehow exist. In a stronger sense, my recognition of “stuff” (let us call it that) as “human”, as “values”, or even as “universal”, is built into my intellectual software as a petitio principii, since I am inevitably starting from the silent (in the sense of unstated) presumption that they are somehow part of the world’s hardware. 118 None of this, of course, should serve as an excuse for us to protest that, therefore, abstract human values, like universal humanity, are simply fabrications, inventions, something-which-was-not-actually-there-until-we-put-it-there… Not because that is not true (it patently in some way is), but rather because this is equally true of any background alternative notions we endeavour to come up with. In a very trivial sense, ideas are not until they come to be. So no news there; no special restrictions need apply. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 145 demise of the Soviet Union, which we may want to portray as the final triumph of Liberalism. The “end of History”, from this point of view, is perhaps rather to be seen as a global “birth of Man”, to give a twist to Foucault’s119 well know dictum. On the other hand, we can somehow move beyond (and behind) such apparent roots for universal values, and look elsewhere for they spread. We can see them as indicators of “modernity” rather than as indices of direct “Westernisation”. Taking the historical example of the West itself into account will help me drive home my point. Forms of non-universal (or even anti-universal) normative exceptionalism (let me call it that), both at the level of values and at that of rights, have a long European and North-American pedigree. The all-embracing freedom of religion we now deem as everywhere desirable is not more than a century or so old here. Women’s most basic democratic rights, such as the simple right to vote, is an even younger acquisition; the laborious plight of current banners as “equal opportunity” and “quotas”, or “positive discrimination”, betrays the extent to which such novelties have yet to find a full expression at the level of values actually upheld. Slavery was only finally abolished not that much longer ago. I could go on; but I think my drift is clear. The conclusion appears to me inescapable that overcoming those was not, in any really meaningful sense, actually due to Western cultural values. I think and am confident it is definitely not at all far fetched to argue, as Thomas M. Franck recently cogently did, that those like many other “progressive”, “cosmopolitan”, or “civilised” developments “were caused not by some inherent cultural factor but by changes occurring, at different rates, everywhere: universal education, industrialisation, urbanisation, the rise of the middle class, advances in transportation and communications, and the spread of new information technology”120. In other words, these were universal trends, driven by scientific and economic innovations and not by any imaginary timeless “Western culture”. 119 In spite of M. Foucault’s anti-humanist posture, which led him to see the “life” of this figure as ephemeral and a passing fad. 120 146 Thomas M. Franck (2001) op. cit.: 200. ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Following Franck and many others, we can easily advance more or less “deterministic” hypotheses as to the “mechanics” of such trends. The admission of women into the job markets and obligatory universal education were to a large extent driven by the requirements of the mid-XVIIIth century Industrial Revolution; slavery became, worse than obsolete, threatening for the newly freed competition economy and to the self-respect of an ever more worldly-aware and ethically awoken citizenry armed with education and much better informed. Deeper forces have surely also been at work. The advent of newspapers, radios, television and now the Internet has not left unhindered popular participation in political processes. If we look at things through these lenses, we come to the conclusion that the unleashing of new social forces, and not “Western culture”, are what in fact led, by channeling them, to what we today think of as “universal human values” and “universal human rights”. The point I am trying to make is that mechanisms such as these, the impacts of which the West was the first to feel, are spreading worldwide at ever faster rates. The leap is easy: both human values and human rights, from this angle, are, or so it appears, becoming universal, simply because (and this is ultimately a fervent Durkheimian because, to be sure), with globalisation, humanity is apparently growing to be one. So that what was once mere philosophical (and mainly Western) wishful thinking, is nowadays seemingly growing into (or being reified as, if you wish) hard empirical fact121. Not at all a silly idea, really, and one which I shall later on want to revisit, in the context of the growth of images of an international community. Now then, you may be wondering why this “philosophical excursion” of mine. Well, the answer is simple: it allowed me to bring to the fore two issues which I think are crucial for the points I want to put forward here today. First, all this nicely sustains an initial claim I insist on making, since I deem it an indisputable fact – that the simple recognition that such a thing as human 121 Notice that, unlike the philosophers of history of old, there is no claim that this is any way inevitable or the result of any unfolding. So there is really no ontological teleology here. Which, of course, in no way diminishes the parallel issue of hegemonic Western domination underlying such processes; but again, with no hint of any sociological ontology either. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 147 values is out there, is thinkable, is in the end a recognition contingent upon particular abstract notions which may (or may not) obtain in any particular time and place: even in the West, were it is now (once again…) a doctrinal dogma of sorts, such an underlying universal humanism, at least as a dominant political force, is actually pretty recent; and it still stands far from secure, really. The general lesson we can draw from this is, I guess, plain, and it is perhaps not overly surprising; something we knew all along, but which always bears repetition. Here it goes: other cultures, other societies, need not see things the same way; and indeed, they most often do not. This, in fact, is precisely one of the reasons why we class them as different cultures. But there are other advantages to my starting point, I think. Second, and more generally (also, less concretely), my little voyage philosophique fashioned the ground for a question, which I believe follows from the initial conditions I briefly set out: is the stage now set (with, say, what we call globalisation) for universal human values to emerge, triumphant, as a shared conviction; or, on the contrary, are centrifugal forces dominant in the world of today? This is, of course, quite different from my earlier general point. In my first issue, the anchor was on what is the given; in the second one, my focus is on that which may come to happen. But to my mind, at least, these two points are very strongly connected. So thinking them together, juggling them, makes a big difference in the way we frame the overall controversial question. In other words, we would best recast these matters as being both situational and diachronous, at once closely contextdependent and subject to change. The net upshot is that while the matter of universal human values (and human rights) is certainly both fascinating and à la page, I suspect a more well founded and far more interesting issue to be the following one: are we (by we, I mean all of humanity, of course) nowadays coming to believe that there is such a thing as human values, and human rights? Is this the direction the contemporary world is going? Cast from another angle, and perhaps more obtusely (or more “technically”): is globalisation actually producing a shared sense that we are all modular, abstract human beings, entirely comparable and (at least in so far as our intrinsic 148 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS worth and dignity go) ultimately interchangeable among ourselves, as the above quoted Anthony Giddens deems it to be essential for Democracy, Humanity, and the Humanities, to both become possible and thrive? Is this really the newly partaken format of identity, in our modern brave new world of interdependence? Has the West “won”, in the sense of “gone universal”? Or is it perhaps more appropriate to assert that “modernisation” is carrying with it both “the West” and “the rest”? These are the very specific questions I will next want to address (if only to touch on them lightly) in my next steps in this communication. So, really, my chosen path (at least as far as this issue is concerned) is not really dry and philosophical. I take, instead, a more colourful sociological road. I am not, in other words, that much interested here in framing abstract concepts per se, in rolling out more or less complicated layouts or systems of reference which would be somehow extrinsic to the world we live in, so as to then work down from that higher ground, as it were. What I mostly actually propose to look for, are hard, real-world mechanisms, of whatever nature or origin, that lead to the eventual grassroots emergence and progressive upward spread of such conceptual frames of reference. I will be focused, in what now follows, on evincing some of the sociocultural conditions for those notions to be thinkable. 4. In more substantial terms, allow me to introduce a significant variable: community, or rather, our utopian longings about it. Since at least Georg Simmel and Ferdinand Tönnies, “shared values” is something we tend to favour as the consensual means to circumscribe what we purport to signify when we use the term “communities”. Political integration defines States, empires, in brief societies in a harsh technical sense of what Tönnies and Simmel called “associations” of people; economic interdependence demarcates markets, collections of interacting producers and consumers. But community, in the sense of a moral unit or entity, colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 149 is a term we habitually reserve for a coherent group of people who in a sense or another partake of common values; people who stand, vis à vis one another, not necessarily in relationships of equality, but who nevertheless are equally bound to a certain commonality of ideas, beliefs and objectives – exactly that which we usually mean when we frame things in terms of values. Indeed, values and community are notions which we curiously tend to conflate, or at least link and bind together. Surely this is by no means a trivial appraisal. Yet we can go further. Note, first, that behind the idea of universal human values, therefore, two structured conceptual spaces are organised122. One of them is patterned as an abstract set of coordinates defining an all pervasive modular humanity. The other one, bringing up as it does the moral fibre, or texture, of community, is rather configured as a coincidence (or perhaps a convergence) of orientations, and denotes a commonality of perceptions, preferences, and priorities – in one word, it is organised as a congruency of life-projects. Now, these two structurings of conceptual space naturally interact with each other. And this allows me to bring in my point here: we recognise universal human values if (and only if ) all human beings are perceived as sharing mutually compatible life-projects in a meta-entity we imagine as a sort of “world community”. Of course, to be sure, such a world community123, in order to be thinkable, in no way needs to be a politically cohesive body, nor does it really have to weave (or knit) a politically integrated society of any sort – all that is required for us to be capable of even so much as picturing universally shared 122 Zygmunt Bauman (2001), in what is essentially an expansion of one of the chapters of a book he published in 2000, discussed the modern idea of community and pointedly underlined its more negative aspects, both as a yearning and as an instrument to regulate cognitive dissonance [my terms, not his] in “a fast changing world”. 123 Chris Brown, (1995). In an article entitled “International political theory and the idea of the world community”, and published in a collection on International Relations Theory Today, Brown critically discussed the progression of this essentially utopian idea and its formatting power in some contemporary political theorisations. Although written from quite dissimilar perspectives, this article makes for a fascinating read, particularly if coupled with the Bauman work I mentioned in my last note. 150 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS human values, is that we actually be faced with (in the sense that we perceive) a world moral community of one type or another. As in local cases, and irrespective of how people are materially held together with one another, we only truly recognise universal values if, and to the extent that, recasting some kind of a moral or ethically-based community is present, or is at least credited as being present. So do take note that even at this high, all-inclusive level, or so I would argue, community and values are notions that we, for in-built reasons, as it were, tend to automatically conflate. My generic point is this: our notion, any notion, that there are universal human values, in order for it to be a thinkable notion, presupposes a shared image of a community. The conflation of these two levels is, I insist, built-in. And, moreover, the link between these two levels (if that is what they are) is structural, in the sense of indelible. So much so, really, that the type of universal human values we favour tends to closely map the ideal of community which we tacitly or ostensively share. And it cannot but be so, since the one depends closely on the other124. They resonate. There is no lack of modern and clever theoretical frameworks in terms of which we can understand that readily. Here is one: Benedict Anderson, in his vigorous and very influential Imagined Communities, lists some of the conditions essential for a community to be imaginable. In beautiful pages, he ran through typography, dictionaries, novels, and newspapers. Mostly, however, Anderson offers us three cornerstones for the thinkability of a national community: the Census, the Map, and the Museum125. This is territory too well known for me to 124 Non nova sed novae. Writing about “the antithesis of utopia and reality”, in specific on the contrast between “the world of value and the world of nature”, around the dichotomy between “purpose and fact”, the noted (and seminal realist) British international theorist E. H. Carr wrote: “the utopian sets up an ethical standard which purports to be independent of politics, and seeks to make politics conform to it. The realist cannot logically accept any standard value save that of fact”. Carr was led to conclude that, “the absolute standard of the utopian is conditioned and dictated by the social order, and is therefore political”; thus, according to him, “morality can only be relative, not universal. Ethics must be interpreted in terms of politics; and the search for an ethical norm outside politics is doomed to frustration” (E: H. Carr, 1981: 19). 125 For a detailed discussion of these three guiding images, see Benedict Anderson (1991): 163-187. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 151 rehearse its topography here; at any rate, Anderson makes the convincing points that the Census is what rendered the notion of a population imaginable, that territories could only be thought once modern Maps were invented, and finally that Museums are what gave historical depth to our notions of a given population inhabiting a given land. So, as a way of briefly taking stock, let me just quickly and glibly suggest (somewhat tongue in cheek) that, for a world community to be imaginable in Anderson’s sense, the alternative cornerstones might well be the Computer, Space Travel, and the Social Sciences. Through Computers and the just started Information Revolution, we are progressively led to perceive reasoning (not Reason) as a generalised and distinctive human trait; from Space travails we rapidly gain an overall perspective of the entire human race; and the Social Sciences are there (and have been there for a while) to make us all feel we are indeed one and as a result of the fact we are already starting to do so. Thus a world community may come to be fully imagined. And hence, once again we begin its construction, now on a firmer notional basis. To weave such a thinkability together with what I suggested earlier: it is certainly not too difficult to articulate this with the links between “modernisation” and the processes of emergence of “universal human values”. Scientific, technical, economic and political developments of various sorts have both reduced dependency between people and augmented as much real as felt affinities and loyalties among an increasing number of us. Simultaneously, new problems and issues keep arising which largely exceed the limits and boundaries of old States and communities and which these are therefore incapable of solving by themselves – the typical type of situation for new, wider ranging, sets of representations and values to emerge. Whether such values, of a more universal scope (because they are anchored in a more inclusive world community) will, in turn, give rise to universal human rights of some sort, depends on the vagaries of power struggles. But they are becoming possible and, in many cases, they are becoming systematically unavoidable, for all sorts of reasons which I shall return to in a little while. 152 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 5. However, I want to first return to my prime theme, albeit through a sort of back door. And, in an effort to bring my points home clearly, I would like to start critically pulling together some of the strands of what I have been stating. Returning to what I indicated earlier, it is curious to note that the endeavour of carrying out a convergence, or a harmonisation, of normative orders in the world, appears to have started at the most difficult end, as it were. Without going back to an historical narrative, notice that in the cyclopic attempt to somehow bring together different peoples, different cultures, different mentalities and civilisations, we seem to have begun at the legal side of things. That was maybe inevitable. Notwithstanding early missionary efforts at a universal conceptual “normalisation”, and perhaps due to its relative inefficacy, we started with human rights, rather than with human values. The horrors of two World Wars, the absurdity of the Holocaust, the massive decolonisations, and the underlying strength (undoubtedly amplified by military victories) of Woodrow Wilson’s and Franklin Roosevelt’s legalism and Liberal ideals made that the preferred path. That certainly made fairly good sense in a (mostly) Westphalian world, in an order in which States were the sole recognised actors and law one of their prime chosen means of communication, but it is today probably a mistake, as that is not the path of least resistance126; quite the opposite, I believe. The community of States is no longer what it was in either Wilson’s or Roosevelt’s times; new voices have joined the fray, in what is now a much more heterogeneous type of 126 As good an example of this as any is, I believe, made plain by the noted transcultural human rights thinker, Abdullahi Ahmed An-Na’im, who wrote, for example: “the general thesis of my approach is that, since people are more likely to observe normative propositions if they believe them to be sanctioned by their own cultural traditions, observance of human rights standards can be improved through the enhancement of the cultural legitimacy of those standards” (An-Na’im, 1992: 20). This statement, hard to disagree with, shows that the choice of a path is harder than positivist hardline legal normativists claimed. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 153 “chorus”127. Moreover, even if (and where) States and “legalese” are undoubtedly still predominant, other actors and other dialects for international exchanges have gained circulation and have surpassed them in effectiveness. More on this later. Actually, now, what am I saying here? That formality is no longer the most efficacious strategy and that informality, in its stead, is? Or, more modestly, that such formal means seem to me to be, at this stage, a path of lesser resistance? Well, both of these, really. A rather playful analogy with a fine distinction underlying Ronald Dworkin’s elegant attack on Hans Kelsen’s model of rules (which, perhaps somewhat precipitately, he cast as an all out critique of legal positivism) will help me make my point more eloquently, or so I hope. Dworkin had a go at Kelsen’s model that reduced law to “rules”, largely by pointing out that, quite apart from rules, there are “principles” and “policies” which coexist with them in law and yet display another intrinsic logic128. Dworkin showed this difference in nexus by stressing the fact that “rules” and “principles” have very different relations to any “counter-examples” which can be thrown at them: rules do not survive contrary cases, while principles may actually be refined by them. Mutatis mutandis, the same distinction may be said to apply to the contrast between “rights” and “values”. We can quickly break this down into what I deem to be its main and more relevant constituent parts, so as to ensure my intended comparison is rendered 127 As Paula Escarameia has kindly made me notice. This is not surprising after the generalised decolonisations which occurred after World War II; it is also curious to note that many of the small new Caribbean and Pacific countries actually recruit their delegates, to organisms such as the UN, from among the NGO community. 128 R. Dworkin (1977): 22 ff.. In order to understand what Dworkin means by this, allow me to quote a wonderful Portuguese legal philosopher, José de Sousa e Brito (1996: 195) in his rigorous characterisation of this dispute: “a counter-example to a rule implies a contrary rule, which comprises the counter-example, and thus [engenders] a rule conflict. This conflict can only be solved by transforming one of the rules, which will include an exception to it, or by invalidating one of the rules. But a principle can give way to another principle or to a rule in the case of a counter-example without becoming therefore invalid or having to be transformed. This becomes understandable by a specific dimension of a principle, its weight, which can be weighed compared with other principles or rules”. 154 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS plain. Values do indeed have another relation to any counter-examples which can be stated against their formulation than do rights. Counter-examples refute the existence of rights, unless they are integrated into them as special exceptions; while, in the case of values, counter-examples can give way to another value, without becoming therefore invalid or having to be transformed: they simply render the values in question more complex. Thus, on the whole, it appears to me that values (very much like Dworkin’s “principles”) make for a more flexible, in the sense of being more coherently expandable, starting point than rights. My general point should by now be self-evident and it is the following: in an international stage with many diverse actors and multiple “voices” (as the great literary critic Mikhail Bakhtin would perforce have put it), reluctance to sediment a common language is obdurate and unrelenting; and when forced to do so, a typical kind of strategy is to insist on the dangers of incoherence. It is consequently more tractable, in such arenas, to build on values than on rights129. And in this sense it is unfortunate that we somehow stubbornly persist in applying, to a present-day deeply changed structural situation, a set of conjunctural, tactical, devices, which are now of no real use, at least if used by themselves. At least to my mind, our persistent blindness in relation to this compelling need to change tactics comes, I must say, as a surprise130. Why do we insist (or, at 129 Or on both together. Allow me to quote Richard Falk at some length on a connected theme: “without mediating international human rights through the web of cultural circumstances, it will be impossible for human rights norms and practices to take deep hold in non-Western societies except to the partial, and often distorting, degree that these societies – or, more likely, their governing elites – have been to some extent Westernised. At the same time, without cultural practices and traditions being tested against the norms of international human rights, there will be a regressive disposition toward the retention of cruel, brutal, and exploitative aspects of religions and cultural tradition. One objective of normative standards is the protection of vulnerable individuals and groups from harsh forms of local prejudice that have hardened over time into custom and tradition and thereby achieved a kind of provincial legitimacy” (Richard Falk, 1992:45-46). Surely a hard-to-disagree-with chart of interrelations. 130 If only our blindness in relation to it is a soft version, that of common denominators. To quote again from the work of A. An Na’im: “given the extreme cultural diversity of the world colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 155 least, why do those of us who trust the goodness of a belief and a practice of universal human values) on plodding the hard path? Is it because we astutely recognise that either States are involved or no game is playable? Or is it because (and these two are not mutually exclusive), we simply credit legalism with a sort of supernatural force? Or, instead, is it for the much more devious motive that we wholeheartedly buy the idea that cultural convergence, the nominal harmonisation of principles, if you will, is something which sort of automatically somehow takes care of itself, and therefore a matter which needs no pushing?131 Many of us, or so I fathom, actually give credit to the latter. Yet I believe that is so because of some of our fashionable, and in terms of our many historical, preconceptions. Again, I would like to indulge in some roundabout considerations so as to get to my point via a less ambiguous route. As the master American phenomenologist Clifford Geertz so forcefully wrote some forty years ago, our preconceptions rest on something which many think (believe might be a better word for it) and which most spent the 1980s theorising: that with “modernisation”, what we call “localism” will inexorably soon die of natural causes132, as it were133. community, it can be argued that human rights could be founded on the existing least common denominator among these cultural traditions[…]. This approach is based on the belief that, despite their apparent peculiarities and diversity, human beings and societies share certain fundamental interests, concerns, qualities, traits, and values that can be identified and articulated as the framework for a common “culture” of universal human rights” (op. cit.: 21). 131 This is, of course, not the case with rights, which must be institutionally pushed. For detailed discussions on the conditions for the success of human rights penetration in different social arenas, see (eds.) T. Risse, S. Ropp e K. Sikkink (1999: mostly 1-39), e R. Falk (op. cit.: 55-57), for similar but not identical comparative models. Also useful, but much more general, is David Forsythe (2000). 132 Clifford Geertz (1963). I believe Geertz has since then changed his mind about this. This is Geertz writing in 1984: “the objection to anti-relativism is not that it rejects an it’s-all-how-you-look-at-it approach to knowledge or a when-in-Rome approach to morality, but that it imagines that they [such kinds of approaches] can only be defeated by placing morality beyond culture and knowledge beyond both. This […] is no longer possible. If we wanted home truths, we should have stayed at home” (1984: 276). Incisive, and in a grand style as always, by one of the maîtres penseurs of contemporary cultural relativism. For all their esthetical and even ethical appeal, one cannot help but wonder what the notional place is from which such statements would conceivably be utterable. 133 This was most forcefully stated, for example, by Ernest Gellner (1983), a justly famous British philosopher cum social anthropologist, though many others could be adduced as proponents 156 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Surely, this is partly true. But it is also most certainly partly false. A somewhat flat theory of rationality underlies that sort of conviction. That is what I want to briefly turn to next. 6. In order to get to a harder core of our preconceived certainties, it is useful to try to break this belief open a little. An American legal anthropologist, John Comaroff, put things rather neatly when he wrote that “’modernity’ has classically been measured in terms of universalist criteria […]. Its teleology has always involved the removal of difference, the erasure of relativizing systems of value and knowledge in the cause of world historical processes of rationalization”. As a matter of fact, it is easy to agree that the omnivorous appetites of modernity (and this is Liberalism we are really talking about here) are notorious; as Comaroff himself concluded, rather whimsically, “hence the almost millennial faith, across all the grand theoretical traditions, in the inevitable demise of cultural localism”134. I think the point is worth generalising. And that can be formulated as follows: it is not so much that Liberalism inexorably leads to imperialism of one sort or another; in this view, I suppose it would be fair to say, the question is rather that the rational basis of Liberal programs always appear to hide a messianic belief in its (their) own unavoidability135. of such type of a position. Gellner was always an heroically incorrigible defender of rationalism and Liberal rationality. 134 J. L. Comaroff (1996): 162. 135 The already cited Richard Falk enunciates part of this in an exemplary manner: “these images of human rights have been principally generated in the West, evolving over time from the Enlightenment mind-set, including a confidence in the possibility of a rational social and political order based on individual rights that, over time, could facilitate progress and happiness for humankind as a whole. Underlying such convictions is a belief in the sufficiency of human reason, especially as it is manifested in science and technology, and a vestigial distaste for any intrusion on the terrain of human rights by recourse to religion, tradition, and emotion”(op. cit.: 45). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 157 Bear with me as I dig in a little, here. John Comaroff’s position on the whole issue is, I believe, inherently interesting (and most certainly not uninfluential). It also ventures down a path not too different from the one I chose; so, to my mind at least, it is worth our while for us to detain ourselves on his turf for a while. I certainly agree with most of what he wrote, but…. Going straight to the core of his argument, I shall start by noting that the position he takes is a somewhat maximalist one. That is quite easy to see. Directly contradicting the rather linear view of rationality many Liberals herald, he claimed that “there is no such thing as a universal symbol or image – notwithstanding the fact that ever more symbols and images circulate throughout the universe [his hyperbole, not mine; but the italics are my own]”. An apparently Saussureian point, actually, insofar as it relates to the ultimate “arbitrariness of signs”, as semiologists would undoubtedly put it. But is it really so? I would claim not really. And I would further defend that it only seems so because of our prejudices. To my mind, Comaroff surreptitiously conflated here two quite different levels: on the one hand, universality as a sine qua non point of departure for liberal abstract universalism (the claim I made right at the start) and, on the other hand, the Hegelian (allow me to call it that, without going further into it) presumption that universality is the ineluctable point of arrival of the rationality project. The subtle léger de main is interesting. For this is a conflation which neatly allows him to foreclose the whole issue by hinting at a circularity of a Liberalism which only finds at the end what it backhandedly put there at the beginning. Which, I believe, shows that rather than being fair to the Liberal program, Comaroff aims at throwing doubts on its solvency. But there is more. With an obvious taste for the odd aphorism, Comaroff then went on to stress: “denotation may be global. But connotation is always local: meaning is never inherently a sign, it is always filtered through a culturally endowed eye or ear. Indeed, the more we are aware of the global flow of words and images – that “Coke Adds Life” in New York and New Delhi and New Britain; that audiences the world over thrilled to Michael Jordan and the Chicago Bulls (Chicago Oxen in Beijing) – the more we are made aware that these things are everywhere understood differently”. Contrary to what would be old Liberal 158 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS expectations, Comaroff was led to conclude: “in other words, it is the very experience of globalism that underscores an awareness of localism – and, in the process, reinforces it”136. This point of his is, I think, a crucial one. The unearthed mechanism is not, for Comaroff (and he made that abundantly clear), the result of a local reaction to a growing global systemic power, or that of any other kind of subalternity; rather, it is an automatic and inevitable resonance, triggered by the simple brute fact that localism and globalism are complementary sides of the very same coin. Thus this complementarity is taken for granted, or at best explained away rather than explained; and therefore some of the most pregnant implications of it are not thoroughly followed through. The answer offered is nice, perhaps it even sits comfortably with our linear certainties, but it is consequently not a self-evident one. So all this would gain if it were made more explicit; something Comaroff does not do. For he actually calls forth two very different explanatory mechanisms. On the one hand this reasoning spells out the evidence that forces always entail counterforces: which may either be taken as an action-reaction physicist’s point of view or, more abstractly, as a Hegelian sort of metaphysics. But it also underlines, on the other hand, a quite different perception: the consciousness that one of the implications of globalism is the unintended engendering of new, unforeseen, and challenging local communities137. So which is it, the first, the second, or both138 of these explanations? I would probably, if pressed, argue for this last hypothesis139. Enunciating it is not difficult. 136 Ibid.: 174. 137 These are different mechanisms, of course, in spite of some convergences in their outcomes. Be it the creation of a novel framework, or the loosening of the old ones, the fact is that both the mechanisms Comaroff conflates lead to a kind of “recrystallisation”. Not so much as a reaction. Rather as the reshuffling which spontaneously results from the loosening attendant to the fall of the old ordering. My point here is simply that in fusing them, Comaroff does not see the complementary interdependence between them which I take to be crucial in their operation. 138 See the wonderful monograph by Benjamin Barber (1996) for one possible model of such types of symmetries: that of jihad and that of McWorld, as he memorably characterised them. 139 In this, my position is not very different from that of R. Falk: “one important consequence of the globalisation of social, political and economic life which often goes unnoticed is cultural colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 159 One possible way of doing so is stating that localism and globalism do indeed fly together. And I certainly believe that understanding the dynamics of the co-operation of these two apparently opposed (but actually complementary) pressures does help us in our efforts to make sense of the contemporary world. The notional, conceptual, difficulty all this raises is nevertheless pretty hard to tackle. For one thing, it is definitely counter-intuitive: we are not used to systematically thinking in terms of dynamic interactions which give rise to everchanging choreographies. And it does somewhat go against the grain, as it were, of our rather linear causal preconceptions. So we are bound to have a hard time picturing what all this effectively means. But, as is often the case in such circumstances, homely analogies and metaphors do help. Again, I want to indulge in some roundabout indirection here, paradoxically for the sake of intelligibility. Perhaps a useful image for the working resonance of these twin and mutually reinforcing processes (certainly a fascinating and very pretty one) can be harnessed from Renato Rosaldo’s “porosity” picture, which he got from a 1980 Harvard conference of an elderly Cora Du Bois140, a justly famous anthropologist. These are comments made by Rosaldo in the context of the elderly lady’s complaint against “the complexity and disarray” that she claimed were turning the social disciplines from “distinguished art museums” into unseemly “garage sales”. Indignant (but also noticeably delighted at Du Bois’ vivacious comparison) Rosaldo responded with the perceptive assertion that those types of statements result from “analytical postures developed during the penetration and overlapping, the coexistence in a given social space of several cultural traditions, as well as the more vivid interpenetration of cultural experience and practice as a consequence of media and transportation technologies, travel and tourism, cross-cultural education, and a logarithmic increase in human interaction of all varieties. Such a reality posits its own distinctive and opposing social demands: respect of difference (culture; to sustain diversity), acknowledgment of sameness (international law of human rights; to re-establish normative authority). The emergence and the implementation of international human rights embody both opportunities and obstacles arising from this always-shifting interplay between the valuing of difference and the quest for sameness” (1992: 46). This is a rather nice Durkheimian reflection on the ambivalence of globalising forces at an ideal level. 140 160 See R. Rosaldo (1989): 44. ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS colonial era [which] can no longer be sustained. Ours is definitively a postcolonial epoch”. What does this mean? As I am sure can easily be appreciated, what Rosaldo did was to bring out a hidden isomorphism: one between the world we live in and the way we picture it; an ultra-Durkheimianism of sorts. So far, so good, you would say, nothing new there. But then Rosaldo gave us what I see as the crunch of his point, his punch line, displaying what is surely a metaphorical rendering of modernity, one which we had perhaps not noticed yet, but which is nevertheless flagrantly embodied in its policies. This is Rosaldo writing: “even the conservative national politics of containment, designed to shield “us” from “them”, betray the impossibility of maintaining hermetically sealed cultures. Consider a series of efforts: police fight cocaine dealers, border guards detain undocumented workers, tariffs try to keep out Japanese [and other “foreign”] imports, and celestial canopies promise to fend off Soviet [now Russian, Chinese and, who knows, soon perhaps even Iraqi or Lybian ones] missiles. Such efforts to police and barricade reveal, more than anything else, how porous “our” borders have become”141. A rather nice tour around an isomorphism, really: the one between the “hybrid post-modern world” and our conceptualizations of it. Well now, enough roundabout detours. So please bear with me again as I try to bring this back to what I said earlier, welding things together, as it were. The modern world, as this just mentioned delightful symbolic embodiment of it brought out by R. Rosaldo so graphically displays, is perhaps more accurately thought of as a set of topologically interwoven multidimensional spaces than as the flat, checkerboard-type, old political maps so neatly delineated for us. Let me be clear as to precisely what I mean here, what exactly I am trying to get at. The point that should be kept in mind is this: “garage sales” are not jumbled expressions of disorder. They are manifestations of modern forms of order which we often still fail to recognise as such. And it is high time we do see them as such. This is what I alluded to at the very beginning of this communication when I wrote about “the shape of order” which, I believe, is itself undergoing profound 141 Ibid.: 44-45. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 161 changes. I can most certainly detail my point somewhat, and as a by-the-way justify my many metaphorical detours and walkabouts: in such a type of setting, I think, old concepts do little to help reveal to us the extant multidimensional style of ordering now surfacing as our new social arenas, if only because there are now, it is blatant, as many orders as there are perspectives. So they must be supplemented142. And that, I would certainly argue, is precisely that which the contemporary world provides us more copiously with and in a more sustained way. So how do we go about deciphering our brave new world, with which the old, flat, Liberal rationality appears to have some difficulties? 7. There is, of course, a general ontological cum sociological aspect to all of this, and now is as good a moment as any to expose it. We must move beyond and above our ways of pondering and evaluating things. For a long time now, we have laboured on minutiae, on details, on analyses. This has been the model we transferred from Science onto the “Humanities”: we have tended to studiously look down, for God, like the Devil, we believed to be in the details. Philosophers, jurists, social scientists, all mostly took their own cultural starting point as a point of departure and sort of dug into it, guided by more or less high and tight principles of whatever kinds of “normative coherence” they happened to favour. But this will no longer do, in our multidimensional “global village” world. We must now reverse course and look up, try to glimpse the upper reaches of generality and its realm. Subsumption may be a good term for the mechanism of turning ancient forms into contents of a modern and more inclusive one, a bigger form. We need 142 This is what the often cited R. Falk said: “to be effective at local and community levels, the imposition of the universal must be by way of an opening in the culture itself, not by external imposition on the culture” (op. cit.: 49). 162 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS to tackle and grasp the encompassing themes that pattern the ordering of the new world we live in. Which changes everything. Rather than presume the old world as a comfortable given, we shall have the face the uncertainties (moral and political) of the new one. This entails risks; but also opportunities for gains. What we face is a novel unsureness born of indetermination and perhaps manifold unknown contingencies. However, this will also allow us to establish our paths in far more interesting and exciting surroundings: ones ultimately indifferent to our moldings and our intransigence of old, and therefore offering us our maximum liberty to thrive, or to fail, but anyway to operate, in our own chosen way. A release. A new meaning to a venerable idea: that of Freedom. This is a point I shall, of course, return to. Why this will be so is not hard to portray; nor are the means to go about it such a perplexing question. Perhaps the key concept here is “dialogue”143. Or perhaps it is rather “multiculturalism”. That has certainly been the road out taken by many contemporary theoretically-minded social analysts. Jürgen Habermas, to cite an obvious name, leads one strand with his renowned preoccupations with anti-exclusionary mechanisms of “moral universalism”, and his push for a universal “ethics of dialogue”, in which the only force consented would be “the force of an argument”144. All of which reveals itself rather neatly as an optimistic version of neo-Liberal perspectives. Others, such as Boaventura de Sousa Santos (whom I briefly return to below) are somewhat suspicious of this alacrity, and often voice severe radical doubts about the efficacy of such “dialogic communities”; unless, that is, they sprout as “neo-communities” marked by their “oppositional postmodernism” and the associated radical “heterotopian” options. Those are meant to be quite unlike Habermas’s dialogic communities, characterised by Sousa Santos as creatures of an objectio- 143 Although, I would insist, such a dialogue must be a two-way affair, in the sense of being both external (between groups) and internal. 144 Expounded in many places, but perhaps most clearly and more thoroughly in his ever so thoughtful J. Habermas (1990). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 163 nable “celebratory postmodernism”. Such “neo-communities” advocated, are entities which aim at the “global repoliticisation of the collective life145” in a set of new political “spaces”, corresponding to the “new audiences” engaged in dialogic processes of “emancipatory rhetoric” within the emergent six new “configurations of political power” (“the household”, “the workplace”, “the marketplace”, “the communityplace”, “the citizenplace” and “the worldplace”) which, Sousa Santos defends, have substituted the old binary and very classical Liberal opposition between “State” and “civil society”. This picturing, in turn, reflects a more pessimistic anti-Liberal stance formulated in curiously unrecicled neo(or post)-Marxian terms. These are just two of the many contemporary authors putting these types of solutions forward. As could be expected, models vary greatly, and often following the old political-ideological take-off points of their proponents. But, among the now practically hegemonic “moderns”, many (by this, of course, I mean many in the Democratic camp, or at least everyone there but jihad-prone conservative diehards of whatever political inclination or tonality) seem to agree that the installation of a global cosmopolitan political community of democratic societies and transnational citizens is both desirable and a moral imperative in today’s world. In some ways, such seems to be the new “conventional wisdom”. Interestingly, this is true even for those who fear its colours, or of the incurable nostalgics who tend to reify the “local” as the source of “the real community”. For those who retain a belief in founding social contracts (and there are contractualists of all feathers), the bargaining of a new pact, compact, arrangement, or settlement, is urgently called upon, as both the coordinates and 145 Boaventura de Sousa Santos (1995): 350. My other quotations here come from various parts of this study. For a wonderful retake on these topics, see B. de Sousa Santos (1998), a short article in which the author responds to Eve Darian-Smith (an American anthropologist) detailed and thoughtful critique of his 1995 monograph. Sousa Santos differs from Habermas, for example, in their relative readings of the damages made possible by the Illuminist concept of “reason”; as he wrote in the context of the viability of an effectively liberative multicultural dialogue, “let us not forget that under the guise of universal values authorized by reason, the reason of a race, sex, and social class was in fact imposed” (1998: 131), and led to the eradication of uncountable modes of life. 164 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS the parts involved, on the one hand, and, on the other hand, the very terms of the covenant itself, have both been deeply altered. For those others who leave behind “modernity” and go for a more risqué “post-modern” solution (a contagious early 90s fad), new “politics of identity” and new “politics of recognition” are the chosen recipe. But disagreements should not be overstated. A new (and, this time, explicitly political) “Copernican revolution” of sorts seems to be a widely shared yearning, even if there is no obvious consensus as to its required point of application or desirable reach. The old certainties appear to have crumbled. We have indeed come a long way. Taking stock, what I am really trying to convey, I suppose, is this: the old, respectable, flat and linear rationality of the Enlightenment is no longer sufficient in our multidimensional world; or so it seems to more and more analysts, quite irrespective of their political and ideological standpoints. As a grid, it makes less and less sense of things. As a tool, it is of ever thinner use. To some, this means that a rather profound paradigm change is felt to be urgently needed; and it is sensed that it will surely come about, whether we like it or not, should we or should we not do something about it, and quite irrespective of our best efforts. And the sensation of rupture appears to be also a sensation of rapture. We are, it is perceived, under the throes of a topological shift, not merely an enlargement. For most, however, the change called for is not really very deep, and it is certainly not a real “paradigmatic Copernican turn”. What is needed is instead a forceful renewal; one which is urgently called for, but amounts more to a metamorphosis than to a full-fledged “epistemic break”. That this is so, that such premonitions and differences abound, is not perhaps difficult to understand. Globalisation is not, from a structural point of view, simply growth: it reconfigures both the world and local communities and how we think of each of these layers or conceptualise their interplay146. And it 146 A beautiful expression of this (a garage sale one at that) was provided by Sally Falk Moore, when she wrote: “when, at the foot of Mount Kilimanjaro, one meets a blanket wearing, otherwise naked, spear-carrying Maasai man on a back path in the Tanzanian bush, one notices that he has a spool from a Kodak film packet in his earlobe as an earring plug. That earring alone is sufficient to indicate that he is not a total reproducer of an integrated ancestral culture. His film spindle is made colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 165 rearranges and refurnishes how we identify ourselves, in the strongest possible sense: that of how we cast to ourselves our own subjectivity. It redefines both what we think of as us and how we have pinpointed the I for a long time. Not being able to dig too deeply into a matter I deem fascinating, I do not want to pass up the opportunity of briefly commenting on this last point, individuality; or rather, the contemporary notions of personhood and subjectivity which global transformations are, I think, producing. A theme deserving a much more detailed pondering than what is feasible here. Let me begin by noticing, anyway, that given its centrality in Liberal theory, individualism has been the focus of a great deal of attention. But that (paradoxically, precisely because it is so central) not too much critical scrutiny has been bestowed on the underlying concept of individual which subtends it. As could be expected, this has understandably given rise to endless arguments. These include discussions between self-styled “individualists” and self-styled “communitarists”, as those two positions are consequently taken to represent polar opposites, with paradigmatic Lockians on the one side, and “collectivity-minded” Benthamites on the other side of the artificial divide. Not wanting to be more than merely indicative, allow me to just assert that obviously things are by no means that simple: if only because both the idea of “individual” and that of “community” are socio-historical notions; and so not only their patterns but also their separability are constantly subjected to profound changes. In the case in point, it should not be taken for granted that the forms of individuality engendered by globalisation actually dissolve community. What appears instead to be the case is that once modern transformations release of extruded plastic manufactured in Rochester, New York, his red blanket comes from Europe, his knife is made of Sheffield steel. Dangling from a thong around his neck is a small leather container full of Tanzanian paper money, the proceeds from selling his cattle in a government–regulated market. The price of his animals varies with world inflation. The roads nearby have buses with tourists. The international economy has penetrated everywhere. Ideas and information have moved with it. All peoples live within nations and have seen the silvery side of planes flying over their lands. The definitions of social part and social whole have changed” (1986: 4-5). This was written almost a generation ago. It still rings true, with or without Osama bin Laden. 166 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS people from obsolete dependencies and constraints (while of course creating others, like modern variants of Weber’s “iron cage”), Durkheimian anomie is not the rock-bottom inevitable, fateful, result. But rather new, negotiated identities tend to emerge, multi-layered ones, new forms of individuality, with rich, complex and variegated novel interpersonal affinities and loyalties which, from historical experience, will very probably lead to redefinitions of political community without any overall loss of responsibility. These are redefinitions which will certainly entail deep alterations in both their terms and dimensionality, or so I would guess. But these changes do not necessarily demand abandoning the venerable Liberal agenda; although they do mean reformulating it somewhat substantially. The rationale for this is quite simple: for example, and as Will Kymlicka and Thomas M. Franck insisted, even when “liberated from predetermined definitions of racial, religious, and national identities, people still tend to choose to belong to groups”147. My general point is simple and it is the following: disorder is not necessarily what follows globalism. What we shall see, I suspect, what we are already witnessing, is a reshuffling, a redistribution, and a renaming. And this is what we need to find a new “grammar” for, a somewhat new rationality, political as well as formal: in order to render our ever-changing social world, as a new type of political community, intelligible and so to be able to live and work with it. There is another way of putting this. Liberalism is by no means dead. But it does indeed require a metamorphosis of sorts, if it is to survive as a politically 147 T. M. Franck, op. cit.: 201. W. Kymlicka makes much the same point in a slightly different context, in his authoritative Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights (1995). Other examples could of course be adduced; but let this one suffice. Now, this certainly alters the quantities, so to speak, with which Westphalian States, “traditional communities”, and old value and religious leaders and systems carried out their accounts. And so such redefinitions naturally trouble them, and as a result they resist these. But notice that even with new numbers, with new quantities, and with novel forms of interconnectedness, the terms of the equation between people, community, and responsibility need not be altered in any ontologically deep sense. Although, of course, the manner of their intertwining may need to be changed, as much as the means of achieving it in quicker and neater ways. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 167 pertinent program in which we can all recognize some value in the new world we appear to be entering. 8. Well, then, on my next and final leg I want to again make an attempt at pulling together and wrapping up some of the various separate points I have being trying to convey here. But, once more for the sake of clarity, I want to preface that with a brief summary of what I have suggested so far. In a series of initial steps which amounted to a fuzzy sort of framework to what came next, I started by delineating a series of motifs into which I think are cast the changing ideas of universal human values and rights, stressing their ever more prominent social and political aspects. After this, I underlined both the similarities and the differences between such notions of human values and those of human rights; my focus there was on their parallels, namely regarding the common pre-requisite they share – the underlying concept of an abstract humanity, which I naturally traced to a Liberal cosmopolitan epistemic transformation of Christian universalist principles. In this context, I underscored, on the one hand, the difficulties inherent in this perspective and, on the other hand, those of the manifold historicist attempts carried out in order to try to avoid its pitfalls. My posture was that of a skeptical constructivist. Throughout, my attention was firmly centered on the changing historical and political dimensions of such cosmopolitan sets of ideas, and on their twists and turns in terms of the changing patterns of world order (including its bouts of disorder). I went on to stress, fairly forcefully, the core idea that any notions of value universality and notions of a world community of some one kind or another have an umbilical connection to each other. I also insisted on the changing nature and range of concepts too readily taken for granted, like those of “individual” and “community”. Some doubts were also expressed as to the continuing efficacy of singling out legal convergence in a world in which globalising centripetal forces 168 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS lay the basis for an international civil society with more and more “homogenous” values but also a world in which, conversely, centrifugal forces appear to hit forms rather harder than principles. I then put a particular emphasis on the “modern” linear vision of rationality; in so doing, and perhaps most crucially, I tried to do this in the context of the dependency of the recurrent cosmopolitan ideas on the shared utopian images of an international community to which I had earlier alluded, and on that of the hybridism so characteristic of our contemporary settings. In a bid to avoid circular teleological models and their attendant trappings, I subsequently made an effort to maintain an open-ended perspective as to the future progression of such patterns of cosmopolitan universalist ideas: the future is unpredictable, no matter what we may think is the clarity of “trends”. I want to conclude by tentatively turning to the apparent available range of such options, given this indeterminate scenario. So let us finally get right down to the issue which forms my core point in this communication: is there such a thing as human values? Is it coming to be? And, if so, is either of these actually a good thing? Well, questions like those are, to say the least (and as I hope I have shown), pretty difficult to answer in any straightforward fashion. There is one level, at any rate (the most general and abstract one, the potential ideal level), at which universal human values do indeed exist. This means more than the trivial recognition that they are a possibility; or that they are coming to be. More than that, it is surely an idea which effectively engenders some convergences. For the sake of clarity, let me put this forward rather forcefully too, even if it means I shall have to water it down, to soft-pedal it, immediately afterwards. At an abstract level, universal human values must somehow be there somewhere. For it is surely the existence of such an implicit conceptual framework (even if it is entirely tacit) which allows us to not only arrange different values in different classes (that is, it is the genus which allows us to delineate its species), but surely also to even recognise different values (as it were beneath, or subjacent to, their variation) as precisely that, values. So a conceptual scheme of some sort colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 169 is there, in our conscience148. For we are indeed capable of doing all this taxonomic stuff. We talk about human values, we argue, we agree and disagree about them; but even when we dispute them, we know what they mean. Now, it seems self-evident that the mere fact that we all do all of these things (in other words, that we recognise similarities and differences, both major and minor) actually betrays the presence of such a shared set of notions. It implies and demands them; or, at the very least, it takes it for granted that they are at last being co-opted. Notice, though, that this simply means they are there as a part of something akin to what Émile Durkheim called the conscience collective: all it entails is that they exist as a set of concepts, as a conceptual scheme. It in no way means we accept them, or their “empire”. Which does not really go (or indeed take us) very far. This hesitation bears restating. Obviously, consciousness and conscience are not the same thing, so all this of course need not mean anything more than that universal human values are nowadays a recognised global idea. Nevertheless, this should caution us, anyway, not to underestimate its power; since this idea, to be sure, has gained a sweeping international, a far-ranging intercultural, or inter-subjective, currency in today’s world; so even when we refuse it, or when we try to refute it, we take it as a given. Its circulation does not in any way spell out the manifestation of a “categorical imperative”, of a “structural invariant”, a “deep structure”, an Ur-Struktur, or any other more or less material or notional variants149 of the eternal forms which we can find in the ancient Platonic realm of Hyper148 The point is little more than formal, unless we take an extreme nominalist position. But here it is, in other words: at least latently, or virtually, a pre-conception of universal human values must already be there, in our consciousness, otherwise we would neither be capable of identifying their kinship, nor of isolating their individuality. So some convergences are indeed engendered. But this only leads us so far; since it could hardly be cogently argued, of course, that the “word” makes the “thing”. 149 Perhaps the most influential modern refraction of which was the Marxist refusal to recognise what he called “human nature”, in his famous “Theses against Feuerbach”. Marx was, of course, absolutely right, in wanting to “sociologise” and “historicise” our notions of human nature; although, arguably, not recognising its immutable, a-historical, substratum was paid for dearly, throughout the XXth century, by peoples (and Marxist politicians) the world over. 170 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS -Uranus. It is somewhat akin to an epiphenomenom. It merely spells out, albeit very loudly, that it is an idea which is a parcel of contemporary international discourse. Whether or not those human values are out there, as a “thing in itself”, is quite a different matter. To be sure, the other concept of universal human values I alluded to earlier, the technical, the scientific, the deductible, the “structural invariant” one (to repeat the ultimately neo-Kantian term of the late Prague Circle of linguists and of Claude Lévi-Strauss’s early structuralism) is most surely there too. This stems from the verification that as human beings we are ultimately all alike, that there is a definite commonality to us all. However, this commonality is there most probably as just a collection of empty forms, forms into which values fit, but that are not indicative of any particular contents. So I do not think such an empty structural universalism can sustain any claims to prop up, or even to shore up, any particular moral figures. Moreover, the effort to detect that technical set of forms demands an investigative labour of a very different nature. There is no possibility of a field-research type of method of discovery there. This type of “structural” universal human values is merely formal (in a quite literal sense) and they are abstract entities which cannot ever be empirically150 ascertained, but may only be theoretically deduced. 150 Although, and to go back to my earlier comments, a moment of reflection shows us they clearly must exist at some level, and in some form or another: or else all translations would be (worse than treasons) utterly impossible, democracy would turn out to be either a mistake or a simple camouflage for pure power politics, and every single one of the social sciences as an absolute sham. At least since the philosophes, we all operate on the assumption that an all-embracing human common denominator is certainly there, at least insofar as no one really thinks that here are some of us surrounded by irreductibly alien others, that there are entities out there with whom all forms of dialogue are foreclosed, and that social life is (has always been and forever will be) somehow orchestrated by an elite of cunningly telepathic super-beings plotting against an indeterminate us somehow immersed in a sea of alien species groupings. Or some absurdity of the sort. There may be disputes as to the preferable, the most apposite, basis for such a common denominator. But no one I am aware of can seriously doubt that there are indeed (that there must be) universal human values at this deeper, more abstract, technically virtual, level. Otherwise, we are not just politically imposing on others, but also in a grievous way ontologically fooling our very selves. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 171 But, I repeat, these abstract formal universal human rights need not be (and they really cannot be, and thus they are probably not) in any way similar to, or even easily comparable with, the generalised human values which we all more or less share as a newly bundled set of global ideas. Unlike these latter they are technical constructs, not ideological representations. Such “structural invariants” dwell in academic, and social scientists’ minds, they do not circulate as shibboleths in the domains of high politics, or at the lower circles of international public opinion. So I suppose this means that we live in a world in which there are two interacting sets of notions about universal human values: the scientific and the social versions. They are two weak clusters of notions, so to speak: one, because it is a mere collection of empty forms; the other, as it is only a newly constituted bundle of shared ideals. Although they obviously interact, these two sets differ profoundly. The context for the contemporary coexistence of these two parallel sets, or complexes, of ideas is well known. International civil society, as well as a world society of States, are manifest, ongoing, ever-present, hardening social facts. Whether we like or dislike them, there they are, visibly blooming. Maybe they are just passing fads; it seems more likely they are here to stay. So universal human values as a global idea do indeed appear to have a propitious environment (their birthplace, really, if heavily modernised) in which to thrive. Whether they do so, we do not actually know, and we really have no way of ascertaining until we get there. The same applies to its worth: once there, shall we be able to argue if it is actually a good thing to arrive at a world with no acknowledged internal monsters. Utopianism is no good, here151. Let us hope that Jean Jacques 151 A clearly utopian path was the one taken by the UN. As early as in 1947, UNESCO decided to carry out a lengthy enquiry into member states’ views on human rights, which resulted on a flow of disparate calls on the pervasive dangers of ethnocentrism and a demand for an acute cultural sensitivity. This essential but perhaps too diffuse approach has had well-know consequences at the level of both the production of watered down international legal instruments and at that of a mobilisation of wills to affirm differences; it has had a much weaker impact as a mechanism for effecting a working approximation between cultural positions. 172 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Rousseau152 and the Venetian sage153 were wrong when they respectively warned us that in our affirmation of a universal love for all of Mankind we were hiding our lack of love for anyone, and that there can be no true friends in a world where there are no true enemies. Again, we must wait until we get there if we want to evaluate their wisdom. What I am trying to say is this: it is all very well to go into triumphalist detailed explications of the ponderous victories and doctrinal developments of universal human values in the contemporary world. That progression is all too visible, perhaps so much so that it is indeed inescapable; it is as if part and parcel of our cognitive furniture, so to speak. But so too is its relative inefficacy. For no more than a moderate dose of attention is necessary before it becomes abundantly clear that surely such developments are not in fact actually rendering atrocities and gross violations of benign universal sets of consensus any less likely or frequent. It does not take much to verify the unfortunate fact that, in spite of substantial convergences and the great strides taken towards a generalized propensity for a rapid and wide-ranging formalisation of norms, all sorts of brutal and systematic violations of those ideals do indeed continue apace in the world about us. The outcome is a sort of cognitive incongruence, a complex resultant. In other words, and bluntly: it is not at all certain that either the rise of universal human values or the growing international legalisation of human rights norms are in any way very really ameliorating the human condition; or, at the very least, legitimate doubts can convincingly be raised. A realization which, I believe, leads us into a skeptical pose. We must rapidly abandon the unproven and largely unexamined 152 Rousseau wrote what Andrew Linklater (1998: 55) accurately, in my view, called “a jibe” against the cosmopolitans whom, he denounced, boast of loving the whole world “in order to enjoy the privilege of loving no one”. A structuralist (or semiotic) statement avant la lettre? 153 This “Venetian demagogue”, in fact a fictional persona in Michael Didbin’s novel Dead Lagoon, is quoted in S. Huntington’s Clash of Civilizations (1996: 20) as saying: “there can be no true friends without true enemies. Unless we hate what we are not, we cannot love what we are. These are the old truths we are painfully rediscovering after a century or more of sentimental cant. Those who deny them deny their family, their heritage, their culture, their birthright, their very selves. They will not lightly be forgiven”. Good food for thought. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 173 assumptions that many of us often tend to engage in, according to which the transformation of aspirations into principles automatically and in itself spells an effective basis for minimizing suffering. Without any hint of pessimism (a “solution” which would of course be as unwarranted and unconvincing as any form of optimism), allow me to formulate my deep non-teleological skepticism as unambiguously as I can: it is by no means liquid that the sharing of universal human values that we witness in today’s world will in actuality provide a more effective normative basis for producing the good life than the recipes we just as eagerly tried in the past. We simply do not positively know if this is so; we cannot but guess. But although that should give us pause, it should not lead us into despair: as surely that sort of painful indetermination is inherent in the very nature of all open-ended processes. Well, where does this leave us, then? I shall rephrase what I argued before. The conundrum we are rapidly having to come to terms with today is both more general and more insidious that it might seem at first sight. And a great deal harder to solve, as well as entailing a greater amount of tensions, uncertainty, and suffering. It is, I believe, the following: there can be no doubt that the idea of a set of universal human values, even if it shows itself not to amount to a plain “imperialist imposition of Western ideas154”, most definitely is a Western cultural product turned into a worldwide ideological currency by virtue of a Western-led process of globalisation of a Western-triggered world system, and exhibits a largely Western-style shape, type of ordering, and political architecture. Although this is nevertheless only truly so if we take a proviso into account: that “Western cultural product” is a novelty in the West itself, and that the forces which brought it about here are now also acting, full-fledged, the world over. Which includes, of course, the West. As such, it is only 154 Héctor Gros Espiell (1998), “Universalidad de los derechos humanos y diversidades culturales”, Revista Internacional de Derechos Humanos, 158:15. This, of course, is just one of many possible quotations. The already cited Thomas M. Franck (op. cit.: 202), as we have seen, takes the radical view that “human rights [do not] represent Western cultural imperialism; instead, they are the consequence of modernizing forces that are not culturally specific”. From my point of view, this is only partially true, and then only in relation to only one of the concepts of universality. 174 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS “Western” in an indirect way; what it is, certainly, is a production of global transformations which affects the West as it affects everyone else. It is the outcome of growingly effective systemic pressures which are recasting the very coordinates and the fundamental nature of what we experience as political community in our globalising world of today. The implication of all this seems inescapable: the idea of universal human rights (as a crystallised expression of both latent global values and hollow universal forms) is most surely a necessary prior conceptual framework (although certainly not a sufficient one) which will allow us to bestow a sure and uncontested rational foundation (and thus, should we wish to, an eventual legal basis) to any worldwide policy designed for their protection and respect. It is an endeavour which, no doubt, will ultimately come to benefit all peoples and all cultures. If, that is, we manage to design the multidimensional type of substantive rationality155 adequate for this multi-centered world we are entering so fearfully. And thus we will manage to avoid ethnocentrism156. To exorcise this old trap, I believe, neither fear, stupefaction, nor again pessimism, are of any help. And defiance would risk throwing out the baby with 155 In the already quoted and fascinating lecture delivered at the University of Coimbra, the above mentioned French jurist, Mireille Delmas-Marty (op. cit. 1999: 141-142), in a somewhat similar vein (but in the much more restricted field of action, that of jural harmonisation in the globalising world), argued for the wide-spread use of “non-standard logics (like the logics of fuzzy sets)”. Her objective, again not too dissimilar to what I suggest here, is that of achieving “an ordered pluralism” (ibid.: 139, my translations), in the urgent and unavoidable modern attempts carried out so as to achieve either a plain “unification” or a weaker “harmonisation” of what are essentially multiple layers of “proliferating” norms derived from “multiple normative” domains. This is possibly a step (but only a short step) in the direction of the overall new political rationality which I here deem crucial for effecting the necessary changes which, in my view, the ongoing processes of globalisation demand; that is, if we want our common future to be duly “civilised” and “democratised”. 156 Or at least its more exclusionary and virulently inadequate forms. With the importance we all today tend to attribute to self-determination, some cultural sensitivity is indeed crucial. But not necessarily (or even desirably) as a limit or as a brake on cross-cultural value judgements; rather as a means of equating and designing both evaluations and actions. Not that a workable international order is radically impossible without a complete value unity and homogeneity. But what R. Falk called “a minimum cultural consensus” certainly makes an international order easier and more wholesome. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 175 the bathwater. Crises involve both dangers and opportunities. What we need is combativeness. Our post-modern conundrum lies precisely here, I think, and it is a political, a pragmatic, and an ethical one: unless we can effect a major power change in the extant world order, for once we must (again) swallow and adopt as our own (or at least as a general patrimony of everyone) this one more “Western” idea; or, at least, a “modernist” one which is only being pushed by the West since the West was the first to feel its growing impact. And we must do so, paradoxically, precisely if157 we value the prospects of our own survival as non-Westerners. To those of us who are Westerners, things are, if perhaps simpler, also imminently ethical and political in terms of the issues they raise. But they also require a dose of humility: again, we must export one of our very ideas (or at least one which was started up here by external forces) and we may lay back self-contentedly while we enjoy seeing it percolate through the world; but we must be ready to let this one break free158 of our preconceptions, and undergo alterations 157 Post-modernism seems to me to be of no real heuristic use, here. Consider this. I am painfully aware that, in what I am arguing, my own beliefs are involved. This is utterly unavoidable, and therefore it is not necessarily bad, or less objective, as long as I make my standpoint clear. And I have endeavoured, I think, to do so. Moreover, I know fully well that the line between giving an opinion, even if it is couched as an academic opinion, and plain interference shifts according to the side, or the angle, from which one observes. What, to one party to an exchange, seems to be entirely justified may depend on the nature and the strength of one’s own convictions and beliefs. And I also know (as a legal anthropologist how could I not?) that whether an assertion, or a series of notions, appears as a suggestion, a form of persuasion, a subtle threat, or an arrogant attempted command, is often set by our perception of a situation and by the respective roles of the participants on the exchange being carried out. In other words, I have no illusions as to the pervasiveness, in these contexts, of both partiality and politics; the latter in the form of a discourse founded on power. Unfortunately, there is nothing I (or anyone) can do about that. All I can claim here is a clean conscience, as far as my above assertions go. 158 Dealing with what in part amounts to a not too dissimilar problem (although in a very different light, as we saw earlier), Boaventura de Sousa Santos (2000: 31) recently reiterated the felt need for “a theory of translation”, as a parcel of what he called “a diatopical hermeneutics”, in turn as an integral part of any “post-modern critical theory”. In spite of his avowed pessimism (or, maybe, because of it), his is a worthy objective: an effective multicultural dialogue which assumes “difference without indifference”. Sousa Santos’ stress thus seems to be on the political urgency of a radically new intellectual effort, which will in turn lead to a liberation from the old (and now “indolent” and constraining) rationality we inherited from the “moderns”. 176 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS as it is deeply reshaped and reconfigured by other perspectives. This is exactly what I meant when I said we must start learning to look up. For we should be realistic. A set of paradigmatic alterations which will allow us to make sense of our changing and globalising world appears to be an inevitable development. In a sense, it is already under way. But a fast-approaching major world revolution leading to a looming grand paradigm shift is unlikely. The real choice we have is one between possibly self-redeeming, but ultimately empty, “liberative” rhetoric gesturing, and a more constructive and vehement pose of systematic and engaged containment of the brutal excesses of a set of processes which are certainly desirable, but which can only lead to the good life to the extent that they are not wholly out of our democratic control. In the real world, this is, I believe, a crucial point we must come to terms with. It should be a sobering consideration to ponder that all too often such apparently very promising liberative exceptionalisms are little more than expressions of the fears of (sometimes closet) conservatives who unwittingly “invent traditions” which were not really there, or the visible face of opportunist and populist strategising ruthlessly pursued by local elites159 desperate to hold on to their material, or their symbolic (and often considerable) powers. To my mind, this means we are, in all probability, heading for a struggle. If we manage to put on par this humility and that further resigned tolerance I alluded to, and then enter the fray, we shall be more comfortable in the positive assertion that there is indeed such a good thing as upcoming universal human values. It is something which I believe we have an ethical duty to fight hard for, to try to help construct. And fight for it we must, if we want to try and make sure (to the extent this is at all possible) that it will come about in a manner which spells a 159 Perhaps the most graphic map of the type of devious reaction often engendered by displaced local elites, at least concerning rights, is that sketchily drawn by R. Falk: “whether by samizdat, satire, or humour, the voices of dissent manage eventually to find arenas and forums, although not without risk, often with the help of religious institutions that under other circumstances have themselves exerted their influence to restrict the dissemination of dangerous knowledge” (op. cit.: 60). An interesting position, if we keep in mind contemporary Islamic integrism (or Islamic fundamentalism, as it is usually called). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 177 greater freedom for everyone. This is indeed something I deem as one of the major battles facing us, most acutely unfortunately brought publicly and very visibly to the fore by the relatively recent dramatic and brutal events in, first, New York and Washington, then Mazar-e-Sharif, Kabul, Kandahar, Jalalabad, Konduz, and so on and on. Although the future is both invisible and potentially threatening, the immediate background scenario is clear, at least at this level. A so-called international human rights regime, whether we like it or not, is fast becoming established the world over. If anything, the recent outbursts of anti-Western feeling seem to have accelerated that spread. It is true that its entrance took place a long time ago and that its spreading has often been far from smooth; mostly in staunchly non-Western societies, or in hardened anti-Democratic regimes (even those in the “cultural West”), it has as a rule taken the form of a non-linear step by step process of entrenchment, a “spiral” of sorts, starting from an external demand answered by the pretence of an acceptance, onto a full incorporation and alignment with the rights regime, quite often mediated by non-governmental international human rights organisations with a national foothold in the society in question160. But in the great majority of cases, with some concessions, such processes have been relatively successful, albeit it at different rates and with variable speeds of encroachment; in other cases, less so. Such processes of penetration, or so it seems, are not about to be abandoned. Moreover (and that is something which I think is already being insured, to the extent that that is possible), they should be studied carefully so as to strategically maximise the productivity of our efforts. At this level too, some sacrifices are warranted. And that too involves risks. And uncertainties are inevitably there also. 160 This is argued and shown is exquisite detail (under the heading of “the spiral model”) in the already cited collection by (eds.) T. Risse, S. Ropp e K. Sikkink (1999), The Power of Human Rights. International norms and domestic change, Cambridge University Press, a book which both gathers a score of national case-studies and provides a general comparative framework for the process of “entrance” and “establishment” of the international human rights regime in several different societies. It would be fascinating (but difficult to carry out) to engage in a study of the incorporation of universal human values in a score of different sociocultural groups. 178 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS But it is nevertheless a fray, as I called it earlier, that which we must engage in, on par with the dialogues and the deep multiculturalism so often called for. For what is at stake is indeed crucial. Despite the indetermination I alluded to, both ethically and politically, universal human values are a common good which can no longer be envisaged, or even tolerated, as a simple instrument of a few. A truculent fight for values is what is surely in reserve for us all. And there is really only one legitimate weapon we can coherently use. As has of late often been demanded, what we need is “a normative commitment to engage the systematically excluded in open dialogue”161. But we must imbue ourselves, too, with a heavy dose of realism. What we do need is an open (more than a radical) normative posture; but it should, it must, nevertheless be the expression of a firm determination, and an unrelenting one at that, a commitment surely necessarily anchored on the previous sharing of the values bestowed upon us all by the reach of the globalisation so far achieved. A commitment which, if it is to be more than an up-in-the-air sort of idealized collection of fantasies, must be given a concrete form in “hard” international institutions which will be capable of actually strengthening its credibility, increase real and effective compliance, and provide “rationalized” (to go back to a Weberian terminology) modes and appropriate public fora for adjudicating and resolving disputes: means for somewhat “domesticating” the international anarchy that so weights over us all. 161 A. Linklater, op. cit.: 107. It is worth it to quote Linklater more extensively on the wider issue of linking values to community, to the ongoing process of globalisation (although these are not terms he used) and to a renewed social contract: in his words, “no conception of ethics is satisfactory if it endorses the systematic exclusion of any individual member of the human species, on a priori grounds, from a communication community which has the potential to become universal. Universality here assumes neither the essentialism of natural law perspectives nor the teleology evident in the speculative philosophies of history associated with the Enlightenment. Universality takes the form of a responsibility to engage others, irrespective of their racial, national and other characteristics, in open dialogue about matters which impinge on their welfare” (ibid.: 101). In Linklater’s view (or so it appears), one of the more active fronts of contemporary political struggle certainly involves efforts to guarantee an unobstructed equal participation of all of humanity (although it is not clear who its units are – individuals, cultures, nations?) in a constructive and foundational multi-vocal dialogue. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 179 However, at least in my view, such a commitment and an ambitious institution-building policy are an effort warranted not necessarily as a means designed to settle our many differences: these are far too valuable for that, and surely they are far too resilient for such a project to have any chances of success. Rather, this decision should induce us to learn to be enthusiastic about them, a prospect which is by no means incompatible with a new, more open, Liberal program. And, from there, we can perhaps come to agree on carefully building a world in which that act of construction, that very creation we all ought to engage in, becomes a true empirical fact; and a world where, simultaneously, we progressively learn to recognise, to nurture, to cherish, and to honour, our ever-affirmed differences as but stupendous variations on a grand common theme. 180 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Bibliography Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of nationalism, Verso. An Na’im, A. A. (1992), “Toward a cross-cultural approach to defining international standards of human rights. The meaning of cruel, inhuman, or degrading treatment or punishment”, in (ed) A. A. An Na’im, Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for consensus: 19-44, University of Pennsylvania Press. (ed) An Na’im, A. A. (1992), Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for consensus, University of Pennsylvania Press. Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the World, Ballantine Books, New York. Bauman, Zygmunt (2001), Community. Seeking safety in an insecure world, Polity. Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world community”, in (eds.) Booth, K. e Smith, S., International Relations Theory Today: 90-110, Cambridge. Carr, Edward H. (1981, original 1939), The Twenty Years’ Crisis 1919-1939. An introduction to the study of international relations, MacMillan, London. Comaroff, John L. (1996), “Ethnicity, nationalism, and the politics of difference in an Age of Revolution”, in (eds.) E. Wilmsen e P. McAllister, The Politics of Difference, The University of Chicago Press. Darian-Smith, Eve (1998), “Power in Paradise: the political implications of Santos’ utopia”, Law & Social Enquiry 23, 1: 81-121. Delmas-Marty, Mireille (1999), “A mundialização do Direito: probabilidades e risco”, Studia Iuridica 41, Colloquia 3: 131-145, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra. Dworkin, Ronald (1978), Taking Rights Seriously, Harvard University Press. Falk, Richard (1992), “The cultural foundations for the international protection of human rights”, in (ed) A. A. An Na’im, Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for consensus: 44-65, University of Pennsylvania Press. Falk-Moore, Sally (1986), Social Facts and Fabrications. “Customary” Law in Kilimanjaro, 1880-1980, Cambridge University Press. Forsythe, David (2000), Human Rights and International Relations, Cambridge University Press. Franck, Thomas M. (2001), “Are human rights universal?”, Foreign Affairs 80, 1: 191-205. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 181 Geertz, Clifford (1963), Peddlers and Princes: social development and economic change in two Indonesian towns, Chicago University Press. ____________ (1984), “Distinguished Lecture: Anti-Anti-Relativism”, American Anthropologist 86: 255-278. Gellner, Ernest (1983), Nations and Nationalism, Oxford, Basil Blackwell. Gros Espiell, Héctor (1998), “Universalidad de los derechos humanos y diversidades culturales”, Revista Internacional de Derechos Humanos: 1-15. Habermas, Jürgen (1990), Moral Consciousness and Communicative Action, Polity Press. Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25. ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. Kymlicka, Will.(1995), Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights, Clarendon Press, Oxford. Lensu, Maria and Fritz, Jan-Stefan (eds.) (2000), Value Pluralism, Normative Theory and International Relations, Millenium, London. Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, in Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena. ____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162. Miller, Arthur (1987), Timebends: A Life, Methuen, London. (eds.) Risse, T., Ropp, S. e Sikkink, K. (1999), The Power of Human Rights. International norms and domestic change, Cambridge University Press. Rosaldo, Renato (1989), Culture & Truth. The remaking of social analysis, Beacon Press, Boston. Sousa e Brito, José (1996), “Law, Reason and Justice: questioning the modern triad”, in (ed.) Roberta Kevelson, Spaces and Significations: 191-205, Peter Lang. Sousa Santos, Boaventura (1995), Toward a New Common Sense: law, science and politics in the new paradigmatic transition, Routledge, New York. ____________ (1998), “Oppositional postmodernism and globalizations”, Law & Social Enquiry 23, 1: 121-140. ____________ (2000), “Porque é tão difícil construir uma teoria crítica?”, Travessias: 21--39, Rio de Janeiro. Wallerstein, Immanuel (1991), “The national and the universal: can there be such a thing as world culture?”, in (ed.) King, A., 182 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 5. O Islão, o Islamismo e o Terrorismo Transnacional162 Quer gostemos disso quer não, vivemos todos num Mundo renovado. As formas mais recentes do tipo de luta política a que chamamos terrorismo não são a tal alheias. O novo terrorismo sem fronteiras empurrou para longe o velho. É fácil compreender porquê. Tudo se prende com a ferocidade do seu impacto e a natureza dos alvos e objectivos escolhidos. Sem querer exagerar distinções, o “antigo e clássico” terrorismo europeu “doméstico” dizia respeito a coisas como a ETA, a Facção do Exército Vermelho (o célebre grupo Baader-Meinhoff ), as Brigadas Vermelhas, as FP-25, ou o IRA. O seu raio de acção era modesto. As acções levadas a cabo envolveram bombas em automóveis e restaurantes, bares e supermercados destruídos. Isso mudou. O terrorismo transnacional a que hoje assistimos envolve terror numa outra escala, com milhares de mortos de uma assentada e edifícios simbólicos gigantescos demolidos num piscar de olhos. O que pretende atingir e alterar é a própria ordem internacional existente. O nível de organização dos agrupamentos dedicados ao terror atingiu um novo patamar de complexidade e inexpugnabilidade. Os Estados Unidos da América foram atingidos. Em resultado de tudo isto, os movimentos “terroristas islâmicos” têm vindo a adquirir uma centralidade cada vez maior nos discursos sobre o terrorismo. Um facto em si próprio problemático: ao que se sabe, a maioria dos muçulmanos opõe-se aos actos terroristas perpetrados em nome da sua religião. Sem querer ser exaustivo ou sequer pretender mais do que aflorar estas várias questões, noto que não é abusivo dizer que, regra geral, a abordagem dos 162 Comunicação de abertura da Conferência Internacional que organizei a 2 e 3 de Abril de 2003, no Instituto de Defesa Nacional, em colaboração com o Profesor Doutor Diogo Freitas do Amaral, e em nome da A conferência intitulou-se “O Islão, o Islamismo e o terrorismo transnacional”, e foi co-organizada pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, pelo Instituto de Defesa Nacional e pela Comunidade Islâmica de Lisboa. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 183 especialistas quanto ao terrorismo internacional tem sido parcelar. Tanto nas causas como nos pontos de aplicação. Com efeito, vários temas e subtemas distintos têm prendido a atenção dos estudiosos. Ora têm vindo a manifestar interesse nele enquanto mero aspecto de uma fascinação mais genérica e bem-pensante com a emergência de actores não-estatais, encarando-os como uma espécie rara de ONGs extremistas, enquanto entidades que apareceram mais ou menos repentinamente na ordem internacional, sobretudo (mas não inteiramente) depois do fim da bipolarização. Ora têm preferido pôr o acento tónico nas redefinições que essa aparição implica no que diz respeito ao recorte de categorias jurídicas e políticas “clássicas” como a de “guerra”, ou a de “crime”, e na definição (penosa, muitas vezes, como em Nova Iorque ou em Guantánamo) dos estatutos a atribuir aos seus agentes e no tipo de jurisdição a que estes deveriam ver-se sujeitos. Não são essas as únicas preferências manifestadas. Outros investigadores têm vindo a preocupar-se com o papel de failed states (o Afeganistão foi disso um exemplo privilegiado) como viveiros potenciais de ONGs desse género, com o lugar da chamada “Internacional Jihadista” pós-bipolar, com o peso e importância do fundamentalismo wahabita financiado por sauditas, ou com as estruturas organizacionais sui generis que muitos dos agrupamentos que se dedicam a esses tipos de acções e actividades exibem (em células, numa espécie de holdings ou, de maneira mais difusa, como internet chatrooms ainda mais descentradas e só lassamente articuladas umas com as outras), formatações essas desenhadas para melhor resistir aos embates dos poderosos Estados contra os quais os agrupamentos terroristas transnacionais combatem. Em muitos casos, esses terroristas internacionais contemporâneos invocam as suas pertenças a sociedades islâmicas. Por várias razões, esse vínculo social tem formado um foco privilegiado dos estudos empreendidos. A perspectivação adoptada tem, por conseguinte, em muitos casos, sido político-sociológica. Numerosos analistas têm assim insistido no papel preenchido por ditaduras e pelas ambições ditatoriais de uns poucos líderes sem escrúpulos, que instrumentalizariam os sentimentos de revolta de muitos, sobretudo em regiões deprimidas de um Mundo em fase de globalização e todavia cada vez mais 184 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS desigual. Desigualdades e assimetrias, internas e externas, bem como oportunismos de grupos dominantes predatórios e parasitas estariam na base da emergência do problema. Os esforços interpretativos não se esgotam, todavia, nesse tipo de análises socioculturais. Com uma maior resolução de imagens, por assim dizer, e tendo em mente que as preocupações dominantes têm sido expressas em relação ao terrorismo islâmico, os estudiosos têm olhado para as bases sociais e/ou religioso-confessionais em que muitos dos movimentos terroristas tentam fundear tanto a sua implantação efectiva, quanto a legitimidade de que esta depende. E têm vindo a prestar alguma atenção aos mecanismos, ou processos, através dos quais estas novas entidades políticas têm tentado, e muitas vezes têm conseguido, ancorar uma legitimação. Mas têm-no feito sem grandes resultados: um ponto que importa realçar. Se algum sucesso as análises empreendidas têm logrado no que diz respeito ao terrorismo doméstico, como expressão seja de irredentismos nacionalistas, seja de despossessões gritantes, seja ainda de afirmações étnicas que a ambas essas coisas reagem, a verdade é que os esforços de reconstrução racional (e portanto de atribuição de inteligibilidade) do terrorismo transnacional têm sido bastante exíguos, comparativamente ténues na eficácia e com uma alçada intelectual de algum modo menos boa. Facto indubitável é o de que no Mundo moderno dos últimos anos, o terrorismo de “raiz” islamista tem tido um enorme protagonismo. O caminho tem sido longo e doloroso, desde os desvios de aviões internacionais que, nos anos 60 e 70 do século passado a Organização de Libertação da Palestina levou a cabo um pouco por toda a parte (argumentavelmente uma expressão, em palcos e com correias de transmissão internacionais, de questões do foro “doméstico”), até ao 11 de Setembro de 2001 em Manhattan, passando pela primeira operação de “martírio” que, em 1981, levou um iraquiano xiita a detonar-se a si próprio e a matar outras 27 vítimas na Embaixada do Iraque em Beirute, além de por inúmeras acções realizadas (sobretudo em finais do século passado) em vários lugares da costa leste-africana, um pouco por toda a parte no Médio Oriente, e até na América do Sul. Ao que tudo indica, ainda haverá muito para andar. A famosa “war against terrorism” que o Presidente George W. Bush declarou e lidera, colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 185 até agora fez pouco mais do que arranhar a superfície destes tão agressivos movimentos transnacionais de proliferação e crescimento acelerado. Para essa emergência e para o seu timing muitas explicações têm sido aventadas. Um efeito natural dos processos de globalização, dizem alguns: uma coisa compreensível tendo em vista a internacionalização que esse processo consubstancia e sobretudo dada a sua notória falta de regulamentação, que exclui, despossui e ameaça de maneira social, cultural, política e economicamente intolerável aqueles que tais processos inexoráveis de transformação global marginalizam. Serão essas razões suficientes para explicar a eclosão destes movimentos nos novos palcos mundiais? Muitos são os que discordam de tais modelos, apontando-lhes sérias insuficiências a nível das explicações-previsões que providenciam. Decerto com alguma razão. De facto, não têm sido os mais excluídos, os mais ameaçados, os mais despossuídos aqueles que nos palcos internacionais mais têm feito ouvir a sua voz por intermédio de actos de terror. Não parece em boa verdade ser dessas franjas e margens do Mundo que os terroristas realmente são oriundos. Nem, por via de regra, parecem esses movimentos ser orquestrados, ou conduzidos, por líderes de origem “subalterna”. As explicações lineares e mais óbvias, por conseguinte, fogem-nos. Embora com elaborações secundárias possamos talvez tentar salvar estes modelos. Com menos linearidade, tem assim por exemplo sido sugerido que, independentemente do estatuto sócio-económico dos terroristas eles próprios ou dos seus apoiantes financeiros, a questão de fundo poisa na consciência da marginalização, nas frustrações e nas humilhações dos grupos a que uns e outros se sentem pertencer. Os termos em que o têm feito invocam à cabeça ressonâncias de resistência cultural e identitária. Mas não só. Ao contrário daquilo que a “sabedoria convencional” nos poderia levar a supor, as suas lideranças tendem a ser gente instruída, por norma senhores com bastante sucesso económico e social na “nova desordem global” e, se “tradicionalistas”, pessoas com alguma exposição cosmopolita. As agendas que ostentam e com que acenam dizem respeito a nada menos do que uma reconfiguração da arquitectura da própria ordem internacional a que se opõem tão radical e brutalmente. 186 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Modelos baseados no desenvolvimento desigual, ou assimétrico, ou ancorados numa expressão “pré-Reforma” de uma religiosidade intransigente e “integrista” são porventura os mais comuns. Para além de razões de conveniência e adequação ideológica a preconceitos antigos, há para isso algumas corroborações mais neutras. Com efeito, não deixa de parecer haver regularidades nítidas, a esses níveis, no arranjo dos factos. Não é discutível, por exemplo, a constatação de que na maioria dos casos se trata de agrupamentos que, reivindicando vir do interior da Ummah muçulmana, transpondo aquilo a que Samuel Huntington (famosa e infamemente) chamou “as fronteiras sangrentas do Islão”, galgaram linhas divisórias e atacaram, cada vez mais perto do “centro” de uma ordem internacional liberal que, cada vez com maior clareza e nitidez, elegeram como o inimigo principal a abater. Quais os melhores níveis de análise, então? Os factos, ao que parece, dão uma no cravo outra na ferradura. No balanço, porém, casam mal, por assim dizer, com as ideias apriorísticas que espontaneamente ruminamos sobre a natureza essencial destes movimentos terroristas que nos assustam a todos, e que tanta dificuldade temos em compreender. Com efeito, nada nos agrupamentos terroristas transnacionais contemporâneos é, de facto, óbvio. Não se trata de movimentos religiosos puros e duros. Nem todos são, em boa verdade, movimentos “primitivos”, ou “pré-modernos”; na maioria dos casos são criaturas tão “modernas” quanto aquilo que desafiam. A olhos europeus ou norte-americanos, no entanto, em muitos casos muitos deles parecem-no. É mais uma vez fácil entender porquê. Muita da coreografia que os rodeia sugere a sua “pré-modernidade”. As designações, denominações e títulos que têm vindo a arvorar soam a fragmentos de litanias sócio-religiosas em que a nomeação de laços tribais se acrescenta às alusões cosmológico-litúrgicas em imagens tão vívidas quão exóticas, quanto ainda relevando de formas político-organizacionais e orgânicas provenientes ora da Extrema Esquerda “infra-vermelha” e festiva de raiz ocidental, ora da nossa Extrema Direita “ultra-violeta” e falangista: os agrupamentos nomeiam-se al-Qaeda, a Brigada dos Mártires de al-Aqsa, o Grupo Abu Nidal, o Abu Sayyaf, o Hezbollah, a Jihad Islâmica, al-Daawa, ou o Conselho Supremo para a Revolução Islâmica xiita no Iraque. A impressão colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 187 que fica, é a de que se trata de movimentos essencialmente políticos que, é certo, esforçam-se por ir beber legitimação à religiosidade muçulmana tradicional, e que mobilizam formas de participação e de acção dos seus membros, em termos social e culturalmente também em parte tradicionais. A oratória de recrutamento e mobilização, a retórica de agitação e propaganda, embutidas nos discursos de que vamos apanhando fragmentos, parecem confirmar essa nossa impressão: ouvimos apelos ao “espírito do jihad”, escutamos invocações a Deus para ajudar “os crentes” na “luta” contra “os infiéis”, absorvemos fatwas exaradas com a pompa e ritualização própria de circunstâncias em que se assevera uma perfeita realização, na Terra, de desígnios divinos e transcendentes. Os actos de terror perpetrados parecem encaixar bem nessa imagem cosmológica de intervenções que sugerem pretender manipular a estrutura profunda da realidade: suicidas sorridentes confinam, nas imagens que nos comunicam, com degolações “à moda antiga”, ladeiam feddayyin em pleno fervor do jihad que, com entusiasmo chiliástico, lançam aviões contra edifícios simbólicos do inimigo. Tudo se parece passar como se se tratasse de dar corpo a actividades carregadas de transições e de justaposições intrincadas, a clamar por interpretações de pormenor que lhes possam fazer justiça, por assim dizer. São imagens que à política dura e madura vêm, ao que parece, acrescentar camadas suplementares. Vistas as coisas deste ângulo, a ideia resultante é a de que, no que toca aos actos cometidos que apelidamos de acções de terrorismo transnacional islamista, estamos frente a enormes dramatizações rituais públicas e mais do que tão-só perante uma qualquer luta política instrumental. A segunda impressão com que ficamos é de que alguma coisa nos está a ser dita, para além daquilo (ou melhor, no interior daquilo) que está a ser feito. Como se para lá de actos de violência instrumental e simbólica estivéssemos na presença de formas discursivas sui generis. Formas essas que precisamos de saber “decifrar”, quanto mais não seja para assim melhor as poder neutralizar ou combater. Mas há mais. Também ficamos com a ideia de que nestas actividades terroristas estaríamos confrontados com práticas que de algum modo estão a meio caminho entre a linguagem e a acção, entre a intenção e o facto consumado, entre o dito e o feito. A nossa terceira impressão é assim a de termos sido 188 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS atirados para uma espécie de zona de penumbra em que o real e o irreal se esbatem um ao outro. É aqui que radicam, certamente, aquelas interpretações que insistem na curiosa coincidência entre a eclosão do terrorismo transnacional e a emergência dos meios de comunicação global imprescindíveis para veicular as suas acções-mensagens de violência, alteridade radical e morte real mas simbolicamente infligida. Como é porventura inevitável, tendemos a perceber o Mundo e as coisas de acordo com as pré-compreensões que de algum modo respiramos, e segundo as pré-formatações que lhes impomos. Isso é verdade para todos nós, quer sejamos ocidentais ou de uma qualquer outra origem, muçulmanos ou não. Não será por isso surpresa a constatação de que ordenamos as nossas perspectivações agrupando-as de maneiras previsíveis. Como preconcepções. Quero terminar delineando algumas delas. No Ocidente, designadamente (e seja como for que o definamos), tem havido uma forte tendência para encarar o Islão contemporâneo, e as práticas e representações “islâmicas”, de um de dois pontos de vista polares. É fácil esquissar os extremos do continuum, ou do gradiente se se quiser, destas conceptualizações. Em minha opinião, nenhum deles é totalmente convincente. Nalguns casos (e o exemplo paradigmático disto é decerto hoje em dia o trabalho académico de Bernard Lewis), olhando a fractura ostensivamente existente como sendo uma resposta “tradicionalista”, “nativista” e “pré-moderna”, a uma humilhação que decorreria da convicção dolorosa de um falhanço traumático de uma “civilização islâmica” que já foi grande, face a um Ocidente com o qual hoje não parece conseguir competir. De acordo com esta linha interpretativa, muitos muçulmanos estariam convencidos que tal descalabro resultaria do seu próprio abandono do caminho tradicional e responderiam a isso com um duplo movimento de regresso às origens e de recusa radical e brutal do Ocidente. Deste ângulo, o terrorismo seria uma espécie do género afirmação. Noutros casos (e aqui um bom exemplo é seguramente o ainda que de maneira indirecta disponibilizado pela produção universitária de Edward Said, um norte-americano de origem palestiniana cristã), preferindo argumentar, de maneira mais indirecta e talvez em consequência mais subtil, que “Ocidente” e colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 189 “Oriente” têm sido dois mundos que se excluem, e se entredefinem nesse processo de exclusão recíproca. Desse acto recíproco, Said sublinhou apenas um dos lados: a “orientalização” e “exotização” levada a cabo pelos “ocidentais”, as quais, na sua opinião, redundariam em pouco mais do que em racionalizações de conveniência segregadas para tentar legitimar o ascendente político daqueles que as enunciam. Visto desta perspectiva, o terrorismo islamista seria uma espécie do género político resistência. Parecem-me ser estas as coordenadas-mestras do “enquadramento ideológico espontâneo” em que tendemos a entrever as coisas no que diz respeito ao terrorismo transnacional, e nesse designadamente ao islamista. Não chega. Podemos (e devemos) ir mais longe. Aos espaços nocionais limitados que configuram o que pensamos sobre estas questões, há que abrir as fronteiras e saber evitar reducionismos. Importantíssimo parece-me ser o facto de que muitíssimos há, no interior do Islão, que combatem com todas as forças que têm contra as terríveis formas dos terrorismos que abusivamente invocam o nome desta religião. Que fazer de todos aqueles (sem dúvida a larguíssima maioria dos muçulmanos do Mundo) que, reclamando-se do Islão enquanto credo e modo de vida, e enfrentando as pretensões dos que alegam falar em nome dele, se opõem como podem a esses agrupamentos? Mais: que o fazem, convictos em todo o caso de que, todavia, por detrás destes movimentos políticos de tonalidades religiosas, haverá razões legítimas de revolta a que importa saber dar resposta se quisermos evitar o seu crescimento e a sua perpetuação. E que, no processo, põem na mesa questões de fundo incontornáveis relativas à ordem internacional que temos e aos lugares que, nela, encontramos uns para os outros. Serão estas algumas das questões que aqui iremos durante dois dias discutir. Que consigamos conversar. 190 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Bibliografia Asad, Talal (1993), Genealogies of Religion. Disciplines and reasons of power in Christianity and Islam, Johns Hopkins University Press. Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the world, Ballantine Books, New York. ____________ (2002), “Democracy and terror in the age of Jihad vs. McWorld”, em (eds.) K. Booth e T. Dunne, Worlds in Collision: 245-263, Palgrave, MacMillan. Cronin, Audrey Kurth (2003), “Behind the curve. Globalization and international terrorism”, International Security 27 (3): 30-58. Esposito, John (1993), The Islamic Threat: myth and reality, Oxford University Press. Etzioni, Amitai (2002), “Implications of the American anti-terror coalition for global architectures”, European Journal of Political Theory 1 (1): 9-30. Fukuyama, Francis (2002), “History and September 11”, em (eds.) K. Booth e T. Dunne, Worlds in Collision: 27-37, Palgrave, MacMillan. Gellner, Ernest, (1981), Muslim Society, Cambridge University Press. ____________ (1992), Postmodernism, Reason and Religion, Routledge. Harris, Lee (2002), “Al-qaeda’s fantasy ideology”, Policy Review 114: 1-13, The Hoover Institution. Held, David, et al (1999),. “The expanding reach of organized violence”, em (eds.) D. Held, A. McGrew, D. Goldblatt, e D. Perraton, Global Transformations. Politics, Economy and Culture: 87-149, Polity Press, Cambridge. Hendriksen, Thomas H. (2001), “The rise and decline of rogue states”, Journal of International Affairs 54 (2): 349-371. Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25, New York.. ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. Juergensmeyer, Mark (2000), Terror in the Mind of God University of California Press. Kurtz, Stanley (2002), “The future of ‘History’”, Policy Review 114, The Hoover Institution. Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University Press. Levitt, Matthew (2003), “Stemming the flow of terrorist finance: practical and conceptual challenges”, The Fletcher Forum of World Affairs 27 (1): 59-70. Lewis, Bernard (1993), Islam and the West, Oxford University Press. ____________ (2001), What went wrong? Western impact and Middle Eastern response, Oxford University Press. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 191 Mamdani, Mahmood (2002),”A political perspective on contemporary terrorism”, Ethnicities 2 (2): 146-149. Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena, Lisboa. ____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162, Lisboa. Mousseau, Michael (2002), Market civilization and its clash with terror”, International Security 27 (3): 5-29. Rasmussen, Mikkel V. (2002), “‘A parallel globalization of terror’: 9-11, security and globalization”, Cooperation and Conflict. Journal of the Nordic International Studies Association 37 (3): 323-349. Said, Edward (1978), Orientalism, Routledge and Kegan Paul. Sayyid, Bobby (1997), A Fundamental Fear. Eurocentrism and the emergence of Islamism, Zed Books. 192 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 6. O Terrorismo Transnacional e a Ordem Internacional163 1. Mais do que apenas uma memória terrível e um acontecimento dramático que o tempo vai fazendo receder para a relativa neutralidade de um estatuto asséptico de facto histórico, o 11 de Setembro transformou-se num símbolo. É hoje uma metáfora: para o grosso das pessoas e dos Estados ocidentais, representa os perigos das novas ameaças que se perfilam num linha desfocada de horizonte que “a névoa da guerra” e a imprevisibilidade do futuro não nos deixam ver com nitidez. A situação em que desde então vivemos tendemos a sentir como um encurralamento: por um lado, não há sombra de dúvida que temos de presumir que a 11 de Setembro de 2001, Osama bin Laden teria utilizado armas de destruição maciça se as tivesse e soubesse que as podia usar de maneira eficaz. Sabemos que vários grupos (o al-Qaeda é apenas um deles) estão a tentar obter esse tipo de armas, ou já as têm. Se e quando as tiverem, devemos supor por outro lado, usá-las-ão. Precavermo-nos contra menos do que isso envolveria assumir um risco inaceitável para os que estão em quaisquer posições de responsabilidade. As probabilidades de essa ameaça às cidades, às sociedades, e aos cidadãos ocidentais se concretizar, não nos podem deixar parados: o perigo da iminência de um drama em larga escala é provavelmente tão grande hoje como alguma vez o foi durante a Guerra Fria, de tão má memória. Bem ponderadas as coisas, a impressão com que ficamos é a de que vivemos numa espécie de nova “crise dos mísseis de Cuba” mais abrangente e muitíssimo mais difusa, translúcida e 163 Comunicação final do Seminário sobre “O Islão, o Islamismo e o Terrorismo Transnacional”, realizado a 2 e 3 de Abril de 2003, no Instituto da Defesa Nacional. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 193 experienciada como que em câmara lenta: de maneira dolorosamente prolongada. Um efeito de terror, stricto sensu. As ameaças não provêem só de agrupamentos terroristas islâmicos; não vêm apenas de grupos que, em nome de um religião espalhada um pouco por toda uma faixa que separa o Norte do Sul do planeta, tentam avançar agendas políticas globais. Há obviamente outros focos de perigo, num Mundo a que a globalização reduziu a escala e no qual diminuiu as distâncias. Mas, neste momento pelo menos, tudo se passa como se os islamistas fossem únicos: os riscos que em simultâneo se mostram mais iminentes e menos ponderáveis estão claramente focados nestes grupos que invocam o Islão para recrutar aderentes, para forjar alianças, e até para tentar legitimar as suas acções e métodos. Também nisso reside uma tensão. Para além das vítimas potenciais que atingiram e ameaçam atingir no Ocidente, esses agrupamentos terroristas vitimizam também (e fazem-no muito mais do que simbolicamente) a larguíssima maioria dos muçulmanos dos Mundo, em cujo nome alegam falar e cuja religião efectiva e decerto indevida e incongruentemente, desviaram e mantêm cativa. Fazer frente a estas ameaças (às reais e às apenas temidas) é o grande desafio do nosso tempo. Para a nossa geração é o equivalente de ir ao encontro das agressões do Kaiser, das blitzkrieg de Hitler, ou do expansionismo de Stalin e etc. que, de 1949 a 1990, Harry Truman, os sucessores, e os seus aliados na Europa, tiveram de enfrentar. Aos inimigos reais a confrontar acrescenta-se um “medo fundamental” nem sempre bem fundamentado. Os muçulmanos dirão ao que esta ameaça é para eles equivalente, nos termos da sua história recente: mas para as novas gerações que professam a religião islâmica, o terrorismo “em seu nome” constitui decerto um desafio que não é menor do que aquele em que defrontaram as potências europeias nas lutas duras anti-coloniais pela sua autodeterminação, frente aos soviéticos e à invasão do Afeganistão, na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo e na Tchechénia, ou nas duras confrontações que tiveram (e têm) contra os nacionalismos étnicos que o fim da ordem internacional bipolar acendeu na antiga Europa de Leste. Também aqui há um “medo fundamental” a ser suscitado, desta feita num outro sentido. 194 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS No que se segue irei tentar delinear um quadro muito geral relativo a uma parte daquilo que, nas duas últimas tardes, foi aflorado neste Seminário. Não vou repetir o que antes foi dito e defendido; não vou sequer resumi-lo, nem vou tentar contrapor-lhes quaisquer explicações alternativas. Fazer uma qualquer destas coisas redundaria inevitavelmente numa simplificação e numa perda de tempo. Mais do que um balanço, aquilo que vou tentar é dar outra demão. A minha conjuntura de referência será a da “war against terror” de que fala o Presidente norte-americano, George W. Bush. Para efeitos deste Seminário, interessa-me pouco apurar qual o significado preciso a dar a tal expressão. Far-lhe-ei alusão sempre contra o pano de fundo da ordem internacional. A minha finalidade primeira é a de tentar esboçar um levantamento de uma das dimensões mais importantes e menos focadas dessa guerra pelo futuro e pelo controlo da ordem internacional, que insisto em perspectivar no quadro, muitíssimo mais lato, em que ela tem lugar: o dos processos em curso de globalização. Quero começar por resumir de forma sucinta aquilo que sobre isso vou dizer, a este muito alto nível de inclusividade. Mais do que quaisquer verdadeiras reconfigurações pluralistas da ordem internacional liberal, uma ordem hoje em dia (depois do fim da ordem bipolar) bem assente164, parece-me que estamos neste momento a presenciar um conjunto de alterações, por substituição, do “uni-multipolarismo” que se seguiu ao “momento unipolar” consubstanciado pela primeira Guerra do Golfo de 1991. Mais do que à vitória quer de um pluralismo, quer de um sólido unipolarismo, por outras palavras, quero argumentar que estamos perante pequenos-grandes movimentos de reajustamento de forças no interior da ordem “uni-multipolar” existente. O que quero rapidamente aqui abordar, prende-se com um dos patamares, ou uma das camadas, dessa substituição: com as tensões a que têm estado sujeitas as forças, complexas e muitas vezes antinómicas165, que subtendem o 164 Ou, pelo contrário e se se preferir, para lá da cristalização de uma eventual hegemonia unipolar norte-americana, mais ou menos imperial, que alguns dizem estar em instalação. 165 Forças que, no seguimento daquilo que Benjamin Barber (1996) apelidou Jihad e McWorld, discuti em artigos anteriores, que arrolo na bibliografia do presente artigo. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 195 processo em curso de globalização. Forças que, seguindo Benjamin Barber, irei apelidar, respectivamente, Jihad e McWorld. Interessar-me-ão, sobretudo, questões relativamente “etéreas” (mas nem por isso menos importantes, bem pelo contrário), questões de natureza discursiva. Dessas, detenho-me em particular em duas: primeiro, nalgumas das barreiras discursivas erigidas, que inviabilizam quaisquer verdadeiros diálogos entre as parte envolvidas de maneira mais directa nesta Terceira Grande Guerra, a primeira verdadeira Guerra Mundial. Em segundo lugar, nos antípodas disso, interessar-me-ei também pela emergência, imponente e visível, de um espaço colectivo e “global” de diálogo público internacional sobre questões políticas que a todos dizem respeito. Num como noutro caso, serei breve e ater-me-ei tão-só ao nível indicativo: limito-me a ilustrar, a traço grosso, algumas das linhas de força do que refiro. Mantenho sempre em vista a ordem internacional, que afecta aquilo a que vou aludindo e que, por seu turno, é por isso afectada. Concluo com generalidades e perguntas. 2. Quero, brevemente, começar por dissecar aqui algumas das formas discursivas166 utilizadas na contenda, por um lado e por outro, por “nós” e por “eles”. Limitar-me-ei, nestes meus comentários, a uns poucos dos discursos oficiais. E irei começar por restringir as minhas alusões e exemplos ao período logo após o 11 de Setembro, para depois por meio de uma comparação com o presente, melhor poder pôr em realce a direcção da evolução das coisas nos últimos anos. O meu ponto é o seguinte: no período imediatamente subsequente ao 11 de Setembro havia escondido, e medrava na sombra, um segundo discurso, mais ou menos oculto, resguardado por debaixo ou por detrás, se se preferir, do discurso 166 Não quero deixar aqui de reconhecer o enorme prazer que me deu a releitura, no contexto em que hoje vivemos, do estupendo livro de Edmund Leach (1977) sobre o terrorismo e as representações que sobre os seus agentes construímos. 196 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS oficial de então. Tratava-se de um discurso formado por um outro conjunto de asserções, encadeadas umas nas outras de maneira muito sui generis. Era uma enunciação oblíqua que contradizia, de forma implícita e indirecta (e por isso porventura mais insidiosa), os termos das formulações narrativas “politicamente correctas” que publicamente eram então defendidas. Constituía uma espécie de discurso paralelo, clandestino e impensado, de que porventura os actores envolvidos não tinham sequer plena consciência. Um discurso que (no caso que irei esmiuçar) deu corpo a um conjunto de representações que uma das partes, a personificada por Osama bin Laden e pelos taliban, de maneira menos visível, advogava (como de resto lhe convinha e decerto continua a convir): representações de acordo com as quais estaria e está, de facto, em curso um Clash entre “o Ocidente” e “o Islão”. O curioso é que se tratou de um conjunto de representações que, pública e ostensivamente, a outra parte, personificada pelo Presidente George W. Bush, enfaticamente repudiava: essa mesma ideia, a que antes aludi, de que estaria a ocorrer uma guerra cultural. A esse nível “subterrâneo”, por assim dizer, desse discurso paralelo, ambas as partes pareceram concordar quanto ao retrato que fizeram da situação: estaríamos, efectivamente, perante um conflito civilizacional que o ataque perpetrado em Manhattan se teria limitado a tornar evidente. Gostaria de ser explícito e dar um exemplo concreto. Quero argumentar que há representações implícitas de “alteridade”, semelhantes entre si, em muitos dos discursos entretidos pelos líderes políticos nos media quanto à situação em curso. Um ponto ao qual vou dedicar alguns minutos, no que se segue desta comunicação. Uma rápida salvaguarda: como é evidente, não pretendo sugerir uma qualquer comparação entre George W. Bush, o Presidente eleito de um país democrático aliado, e Osama bin Laden, o líder autoproclamado de um agrupamento terrorista brutal. Sem sombra de “equivalências morais” (um exercício que tanto ética como politicamente me agradaria pouco) limito-me a comparar algumas das asserções relacionais de Bush com as de bin Laden. De uma forma muito rápida e sucinta, quereria enunciar duas séries, enumerar dois conjuntos de declarações, que todos lemos e ouvimos dia-a-dia, asserções colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 197 profusamente repetidas nos jornais e nas televisões167. Oiçamos primeiro o que, nessa época de que infelizmente todos decerto nos lembramos bem, dizia o porta-voz das vítimas, o Presidente George W. Bush: os membros do al-Qaeda, são “evil-doers, enemies of all civilization”, ver-se-ão “smoked out of their holes and caves”, juntos e com persistência e paciência conseguiremos “get them running”, e serão inexoravelmente “hunted down”. Era difícil ser-se mais claro. Isolar imagens-chave deste tipo, circunscrever aquelas que formam o que é, sem sombra de dúvida, o núcleo duro deste tipo de discurso, torna-o, creio eu, mais transparente: sem embargo do facto de que muitos dos esconderijos eram de facto em cavernas, o que estava a ser levado a cabo nestas asserções era uma primitivização e uma quasi-animalização performativa do adversário, dois temas típicos das representações do Outro tradicionais em agrupamentos modernos e desenvolvidos168, ou que como tal se consideram. Note-se que a relação, que neste discurso é postulada como a apropriada, entre “nós” e “eles” é a configurada como uma relação hierárquica entre um caçador e uma presa. E emerge como uma representação que é decalcada sobre o modelo abstracto de (ou que em todo o caso estipula como seu paradigma idealizado) uma relação de predação. As alusões tácitas são muito nítidas e inequívocas, julgo eu, para a maioria dos ouvintes e para o grosso das audiências destes discursos. Ouçamos agora aquilo que repetidamente afirmou Osama bin Laden169, o porta-voz dos agressores: os norte-americanos são “egotistical”, são “arrogant and 167 Dada a utilização profusa que destas frases e imagens é levada a cabo, e já que não tenho informação quanto ao contexto exacto e pormenorizado da sua primeira utilização (nem em todo o caso me parecer ser esse um dado relevante), não ofereço aqui quaisquer detalhes quanto aos contextos precisos de enunciação destas representações. Foram todas, no entanto, ouvidas em prime time e tiveram por isso seguramente vários biliões de pessoas como “receptores”. 168 Processo, aliás, a que o Presidente Bush parece muitíssimo atreito, já que desde então os tem repetido em profusão. E não apenas como peça de oratória política estilística e inócua: também os prisioneiros taliban em Guantánamo seriam uma espécie de “animais”, não se encontrando, por isso, protegidos pelo Direito Internacional e tendo caído, designadamente, fora da alçada da Terceira Convenção de Genebra. 169 As citações das asserções de bin Laden que aqui utilizo são traduções para a língua inglesa de originais em árabe. Não conheço as suas intervenções nessa língua, e não as entenderia caso as 198 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS evil unbelievers”, no fundo dão corpo ao great Satan contra o qual há que lutar. Temos que combatê-los, insistiu o chefe da al Qaeda, porque “the world is divided into two sides”: e nomeou-os, a esses dois lados: “the side of believers and the side of infidels, may God protect you from them”. E concluía, com algum fatalismo: “the winds of faith have come”. Se olharmos, por um segundo, para as imagens-chave e para o núcleo duro que em termos semânticos elas constroem, verificamos que também este discurso, em todo o caso mais explícito do que o de Bush (ainda que seja metafórico de maneira mais complexa) se torna relativamente transparente: o que estava a ser produzido é um conglomerado de flashes e representações do Outro enquanto uma espécie de entidade espiritual maligna. Note-se, uma vez mais, que a relação que, desta feita é neste discurso postulada como a apropriada entre “nós” e “eles”, se configura como uma relação de combate sem tréguas; como contenda empreendida com vista à liquidação, ao extermínio, de um adversário que connosco entretém uma relação hierárquica também de predação, mas em que “nós” somos as eventuais presas. Mais uma vez a mensagem era muitíssimo clara: tratou-se de uma demonização minuciosa, por sua vez típica de agrupamentos místico-religiosos marcadamente exclusionários que se considerem detentores, proprietários por direito inerente, ou representantes, de uma verdade encarada enquanto modalidade de “correcção político-cosmológica”. Podemos neste ponto, creio eu, ensaiar um rápido e fácil balanço das mensagens então (há já quase dois anos) expressas a este nível implícito de comunicação. Em termos mais genéricos, quereria sublinhar que o primeiro conjunto de asserções, as de George W. Bush, sub-humanizavam o adversário; as segundas, as de bin Laden, desumanizavam-no. Estamos perante construções-alusões simbólicas semelhantes mas não idênticas, parecidas mas diferentes170. conhecesse. Não deixa de ser óbvio que se tratou de transposições de um universo semântico para um outro muito diferente, um tipo de processo em que muitíssima informação é sempre (e mais ou menos subtilmente) alterada e alguma pura e simplesmente perdida. Nestes exemplos, porém, essa parece-me ser uma questão marginal e pouco consequente. 170 Para formas alternativas (ou melhor, complementares, pelo menos do ponto de vista funcional) ver os exemplos dados por Edmund Leach (1977, op. cit.), a respeito dos dispositivos colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 199 Antes de passar a um outro ponto, vale decerto a pena levar a cabo um rápido “updating”, um “refresh”, ou um “actualizar”, por assim dizer, daquilo que acabei de cartografar a traço grosso. Desde o 11 de Setembro até agora este tipo de discurso a dois níveis tem-se mantido. Do lado de George W. Bush, e embora o Presidente norte-americano faça também uso de muitas outras categorizações, têm sido constantes (e largamente comentadas) as alusões e referências bíblicas171, e a utilização (muitas vezes com alguma gaucherie) de expressões como a de “cruzada”, “missão”, ou “eixo do Mal”. A “final struggle between Good and Evil” redundaria numa “infinite justice” (o nome de início proposto para a intervenção levada a cabo no Afeganistão). Para um Bush cristão revivalista renascido, os Estados Unidos, como “God’s own country”, estarão idealmente posicionados para a dispensar. Os suspeitos do al-Qaeda presos em Guantánamo não estariam sob a alçada da Terceira Convenção de Genebra, não só por não se tratar de soldados ou mercenários, mas por serem “animais”. Do lado de bin Laden e, numa curiosa colagem discursiva, na oratória recente do laico Saddam Hussein, mutatis mutandis, a permanência dessa duplicidade discursiva parece ser uma regra imutável do jogo. A América seria o “grande Satã”, as forças norte-americanas “demoníacas”, mas a “intervenção divina” significará uma vitória final inevitável. Com uma religião tão avessa a antropormorfizações e espiritismos como a muçulmana, a diversidade destes modos de expressão depressa se torna escassa. Mas resta sempre o recurso a imagens e metáforas histórico-cosmológicas cuja alusividade simbólica (e, portanto, cuja força ilocucionária) é enorme: “com a ajuda de Deus”, “os crentes” discursivos de construção-elaboração de representações desumanizantes dos adversários, designadamente retratos circunscritos por ocidentais de adversários terroristas. A recorrência deste tipo de temas indicia estarmos perante um processo de construção de imagens de alteridade violenta e a-normativa que é de longa duração. Não tenho conhecimento de quaisquer estudos quanto à construção de uma imagética árabo-semítica que seja estrutural e funcionalmente equivalente; não tenho porém dúvidas sobre a sua existência e permanência. 171 Muitos analistas têm vindo a reparar nisto. Ater-me-ei a um só exemplo. Para uma curta e iluminada série de comentários recentes sobre este tipo de escolhas discursivas, ver o curtíssimo artigo do cientista político espanhol F. Vallespín (2003). 200 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS tratarão de “levantar as suas espadas” contra “os infiéis não-crentes” e as “mães chorarão os filhos que irão ser esfolados vivos e dados de comer aos animais do deserto”. Como Saddam afirmou na sua comunicação televisiva ao Mundo a 24 de Março último (há uma semana), “com a ajuda de Deus todo-poderoso” e animados pelo “espírito do jihad” iremos “causar enorme sofrimento” às “forças maléficas” que estão no Iraque. Talvez possamos agora puxar o fio à meada a esta última questão que acabei de aflorar. Vivemos num mundo de informação. O poder soft das palavras, das molduras ideacionais, das conceptualizações que uns aos outros comunicamos, não são de subestimar. São forças eficazes. São formas de poder: de um poder cuja alçada é hoje global172. Ainda que isto seja trivial e óbvio, não será talvez despiciendo equacioná-lo rápida e indicativamente. Mesmo quando não manipuladas em contextos propagandísticos, ou quando são meros erros tácticos e deslizes (como é manifestamente o caso nos exemplos que dei relativos às invectivas de George W. Bush, que me parecem fazer o jogo do agressor) trata-se de ideias que delimitam os “quadros” em que pensamos, julgamos, avaliamos, tomamos decisões. São representações que, mesmo as implícitas (porventura sobretudo as implícitas), formatam o que vemos. E aquilo que nos está a ser dado, o que nos está a ser comunicado ou inculcado nos discursos de ambos os lados, nas formas discursivas e narrativas neles subjacentes, oblíquas e clandestinas, utilizadas para repetir as metáforas a que atrás recorri, é talvez pior do que a imagem reificada de um Choque de Civilizações à la Huntington. E é, sobretudo, totalmente contrário ao modelo idealizado de um qualquer diálogo pluralista de culturas, já que delineia, a traço forte, uma visão radical e irredutivelmente polarizada do Outro, como um Outro que estamos condenados a 172 O que, como é evidente, se aplica tanto à acção comunicacional e aos discursos mantidos nos palcos internacionais como a quaisquer outros domínios sociais de utilização da linguagem. Para uma visão pormenorizada, ainda que de certa maneira incipiente, daquilo que chamou soft power, ver o excelente artigo de Joseph S. Nye (1992), numa boa tradução portuguesa de um capítulo de um livro que este cientista político publicou em 1990 sobre as mudanças, então sensíveis, no poder político exercido pelos norte-americanos no Mundo. O tópico tem sido retomado por Nye em todas as suas publicações posteriores. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 201 confrontar e a defrontar. Vale decerto a pena insistir um pouco neste ponto. Tanto desumanizações como sub-humanizações estão para além de serem construções nocionais insultuosas. São operações que erigem e propagam uma caracterização factualmente incorrecta, que somos infelizmente por vezes tentados a fabricar, sobre aqueles nossos interlocutores cujos comportamentos e atitudes nos parecem grosseiramente descabidos e intratavelmente anómalos. Redundam em gestos de recusa. Ou seja, visam desqualificar, de maneira veemente e de forma irreversível, as pessoas que de nós se distinguem de maneiras que, por uma ou outra razão, consideramos radical e terminantemente inaceitáveis: e fazemo-lo naturalizando as diferenças que, postula-se, delas nos separam173. O que é claramente o caso nestes dois exemplos que dei. E o que não deixou de ter um preço, ético e político. Mas, aqui, também um preço estratégico. Porque pior que o simples facto de se tratar de agressões verbais e de representações empiricamente erradas, o acto de remeter os outros para o domínio genérico do “não-humano” condena-nos a nunca os podermos vir a compreender. O que é grave: torna-os seres e agentes opacos, quando muitas vezes é para nós uma questão de vida ou morte o entendê-los, ainda que seja para assim melhor os combater174. 173 Ambiguidades e incongruências representacionais deste tipo parecem-me, para usar uma frase feita hoje muito em voga, formar parte do problema com que temos de lidar e não parte da sua solução. A um nível mais alto de generalidade é claro porquê. São ruídos que não contribuem em nada para o urgente esbater de diferenças e a sua tolerância. Servem, menos ainda, como quadros conjunturais capazes de promover um qualquer diálogo. E curiosamente, pelo menos num dos casos (o dos discursos da Administração norte-americana), esta estranha ambivalência (melhor, esta duplicidade discursiva) que tentei trazer à luz parece-me insidiosamente ter constituído (e continuar a fazê-lo) uma parcela (decerto indesejada) do jogo do agressor. 174 É, aliás, apenas neste quadro que podemos entender a curiosa ausência de uma qualquer reivindicação num tipo de ataque, como o do 11 de Setembro, em que por via de regra as organizações terroristas fazem questão de gritar bem alto a sua autoria do feito, para com isso ganhar dividendos em termos de propaganda e recrutamento: depois da manhã do 11 de Setembro, o silêncio gritou-nos que devíamos ter medo, porque o inimigo era invisível e porque recusava qualquer tipo de interlocução connosco. Como escreveu Thomas Risse (2000: 15), num contexto mais abstracto relativo ao problema de agency-struture na teoria das relações internacionais, “meaningul communicaton require that actors see at least some room for cooperation with their interaction partners and, thus, wish to overcome a world of sheer hostility”. O que claramente parece não ser o caso no exemplo que forneci. 202 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3. Contrasta, ou pelo menos contrasta aparentemente, com esta irredutibilidade discursiva a suposta emergência (por que muitos anseiam e aplaudem) de um novo espaço de diálogo nos palcos internacionais: o que pelo menos um autor chamou “o desenvolvimento de um novo forum público a nível global relativo a questões de governação global”175. Será esse o caso? Estaremos de facto perante movimentos na direcção oposta ao da irredutibilidade a que acabei de aludir? Movimentos centrípetos e não centrífugos? McWorld em vez de Jihad? Vale a pena equacionar a versão mais hard e bem fundamentada das que conheço que advogam estar tal tipo de processo em curso. Trata-se de uma leitura em grande parte habermasiana. As suas alegações são simples. O que os debates que surgiram em todo o Mundo depois do 11 de Setembro indiciam é a cristalização de um espaço comunicacional partilhado a nível planetário. Os debates veementes pró- e contra a recente invasão do Iraque, diz-se, vieram tornar essa evidência incontornável. Numa versão menos partisanne desta hipótese, não estão em causa quaisquer colorações político-ideológicas para esse espaço em formação acelerada: o que é de realçar é a enorme amplificação a que, nos fora de opinião, se têm visto sujeitos. As inúmeras Cimeiras e “cimeiras alternativas” dos últimos anos foram só um aperitivo; agora a figura do “público internacional” foi posta em marcha. Para os proponentes deste tipo de discurso, já não era sem tempo. Os processos de globalização, queixam-se, são gravemente “deficitários” em termos de controlo institucional. Ao que acrescerá uma notória “falta de regulamentação” que, alegam, torna a ordem internacional melhor concebível como um tipo de desordem. De nada serve, porém, que disso não gostemos ou que, pelo 175 A expressão [tradução minha] é de Joan Subirats (2003), um professor catalão de Ciência Política na Universidade de Barcelona, num artigo de opinião publicado no El País. Em Portugal, Adriano Moreira tem sido arauto de uma perspectiva pelo menos aparente e superficialmente semelhante, uma perspectiva que toma a “opinião pública internacional” como um “novo actor”, que se terá “começado por afirmar no caso de Timor” e com o qual “se tem doravante de contar”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 203 contrário, o possamos aprovar com convicção: na ausência de dispositivos institucionais e de modelos ideais sobre aquilo que queremos, estamos condenados a uma mera contemplação passiva das transformações globais que vão acontecendo. A política tradicional, atida aos Estados, não consegue já dar conta das novas realidades globais. Não tem para ela nem para eles conceitos que nos permitem decidir sobre a sua eventual desejabilidade ou indesejabilidade. Há por isso que a substituir. Mas não sabemos como176. Segundo Habermas, numa interpretação famosa, a opinião pública burguesa ter-se-á formado, no século XVIII britânico e centro-europeu, em jornais, “clubes”, cafés, salões de chá e associações literárias, culturais e recreativas variadas. A sua sedimentação foi lenta e progressiva, por camadas e restrita a apenas alguns. A opinião pública internacional estaria hoje em dia a ser formatada, de uma maneira muitíssimo mais rápida e socialmente generalizada, pelos jornais, pela televisão e pela Internet. De acordo com esta narrativa, o seu trajecto é conhecido. Depois de uma longa pré-história, teve um dos seus primeiros grandes arranques com a música rock, que depressa deu a volta ao Mundo. Passou por movimentos cívicos de contestação em finais dos anos 60 (tanto na Europa como nos Estados Unidos) e cristalizou com as imagens da Queda do Muro de Berlim e da derrocada das ditaduras da Europa de Leste, vistas, sentidas e aplaudidas em toda a parte e em tempo real. 176 Foi a pensar em conjunturas semelhantes que Jürgen Habermas (1989, original de 1962, e 1996) desenvolveu a sua teorização da “acção comunicacional”: as relativas à ascensão da “burguesia” na Europa central de finais do século XVIII, e aquela em que, nos anos 60 e 70 do século XX, emergiu uma opinião popular consensual a reagir contra os regimes comunistas de Leste. Habermas famosamente argumentou que o processo veio à tona em termos de uma cada vez maior disjunção entre os lifeworld (Lebenswelt) em que viviam e pensavam as pessoas e os domínios dos poderes instituídos, os domínios dos Estados. Baseados em princípios de “igualitarismo” e “persuação”, estes lifeworlds subjectivos contrastariam profundamente com a natureza hierárquica e coerciva do poder. Para Habermas, sociedades civis seriam a expressão institucional dos lifeworlds privados em que vivem e interagem os actores sociais, uma vez que estes começam a partilhá-los, e portanto eles se tornam públicos. Seriam as mais verdadeiras expressões dos demos. E estas sociedades civis, estes demos, iriam, no essencial, sendo produzidos pelos “diálogos” entre aqueles actores sociais mais motivados e activos que, em “espaços públicos” comuns, começam a encontrar referenciais comunicacionais partilhados. 204 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Com a invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 e com a Primeira Guerra do Golfo em 1991, descobriu-se, via CNN. A MTV e os seus clones depressa vieram substituir a música rock da geração anterior. O fim da ordem bipolar acelerou-lhe efectivamente o passo. Uma opinião pública internacional cada vez mais coesa e intricada (e também cada vez mais compósita) foi-se coagulando com o Massacre de Santa Cruz em Timor, com a Bósnia-Herzegovina, em reacção às brutalidades sérvias no Kosovo, e em Timor-Leste. O 11 de Setembro foi vivido como um momento verdadeiramente global: “we are all American”, “nous sommes tous des Américains” foi a frase que correu o planeta177. Cimeiras como as de Davos, Durban e as dos G-7, e Cimeiras Paralelas como as de Campo Alegre, manifestações em Seattle, Quebec City, Goteburgo, Praga e Florença foram catalizadores. Agora, com a Segunda Guerra do Golfo, os palcos instalados dos novos espaços públicos de opinião global são visíveis um pouco por toda a parte. Estaremos perante uma espécie de parto definitivo de uma demos global que desde há alguns anos estaria em gestação. Ou pelo menos estaremos face ao seu crescimento desenfreado: o espaço público cresce diariamente a olhos vistos. Note-se de momento que este modelo por muitos defendido (e quanto ao qual mantenho algumas dúvidas de pormenor, e apenas de pormenor, que aliás irei suscitar) não exige que tenha de haver quaisquer concordâncias naquilo que vai coalescendo na nova esfera pública. O que importa é que se comecem a verificar debates globais. Haverá seguramente posições alternativas quanto a temas semelhantes e até variações sobre esses temas. O que conta, porém, é que comece a surgir um sujeito colectivo cujas discussões e decisões se vão sedimentando a um nível cada vez mais universal. É claro que é fundamental que se vá constituindo um corpus comum, um “léxico”, um repertório, e uma “sintaxe”, um nexo, largamente partilhados. Sem esses referenciais comuns não há interlocuções nem diálogos. Mas, insisto, não 177 Num eco intertextual claro com o “Ich bin ein Berliner” de John F: Kennedy. A frase terá tido início nos títulos garrafais da primeira página do jornal francês Le Monde “nous sommes tous Américains”. Uma empatia, neste último caso, passageira. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 205 tem de haver nenhuma coincidência de pontos de vista; nem, aliás, convém que haja, sob pena de nos repetirmos ad nauseum sem nunca conversar. O que conta, insisto, é a emergência de uma esfera pública, de um efeito de diálogo, de um espaço comunicacional partilhado. Numa versão mais maximalista, é útil, para a abertura desse espaço ter eficácia, que aquilo que conte sejam opiniões, sem que nem a legitimidade dos interlocutores que se revelem ser eventuais opositores seja posta em dúvida. Aquilo que há a apurar e assegurar é o estabelecimento de regras consensuais de “racionalidade argumentativa”178. O argumento dos que defendem que assistimos hoje em dia à cristalização de uma opinião pública internacional, de uma ou de outra maneira presume ser esse o caso. Ou seja, supõe-se (melhor, afirma-se) que novos referenciais comuns e múltiplos diálogos estão a ser estabelecidos, o que amplia o campo da luta política, alargando não só o rol dos que nela participam, mas ainda redesenhando os domínios em que essa contenda tem lugar. E insistem: as batalhas, todas elas, travam-se também, doravante, noutras arenas: as de uma opinião pública internacional agora sempre atenta. Se esse for o caso, estaremos perante um movimento e uma pressão sistémica que puxam (ou empurram) numa direcção oposta ao da irredutibilidade comunicacional a que aludi na primeira parte desta comunicação. Uma pressão centrípeta, de par com a centrífuga. Será assim? E, se a resposta for sim, o que é que podemos daí concluir? 178 Note-se que a opinião pública (nacional ou internacional) de maneira nenhuma opera apenas como forma de soft power. Isso distingue-a claramente dos discursos de sub-humanização de que antes falei e que, esses sim, se restringem largamente a tal domínio. Pelo contrário, a opinião pública afecta directamente os sistemas políticos, designadamente os democráticos. Para além de ir consolidando um demos, uma eventual sociedade civil internacional, a opinião pública activa as coisas por intermédio de correias de transmissão mais directas e mais imediatamente eficazes: através de manifestações, interpelações, referendos e, em última instância, o sufrágio eleitoral. Apelando a formas de participação e acção política, actua no interior mesmo do sistema político. 206 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4. Quero prosseguir ampliando imagens de modo a circunscrever um quadro em que caibam as minhas parcelas. Para começar com uma asserção categórica prévia: não acredito que esteja em curso no Mundo o que num qualquer sentido útil possamos apelidar de um Clash of Civilizations. Não me é árduo especificar em termos genéricos as razões do meu cepticismo. Tive a oportunidade de em pormenor o fundamentar, em dois artigos que publiquei no último par de anos179, e não quereria ter de o repetir no fecho desta Conferência. Um bom resumo da célebre tese de Samuel Huntington é de que se trata de uma teoria geral do alinhamento político dos Estados contemporâneos baseada numa suposta identificação cultural (ou “civilizacional”) entre eles. Numa frase: não me parece que os alinhamentos a que temos assistido desde o fim da bipolarização correspondam ao que a modelização huntingtoniana prevê180. Não quer isto todavia dizer que não convenha, a muitos, retratar em tais termos aquilo que está a acontecer no Mundo. Não tenho quaisquer dúvidas de que seja esse o caso. O que creio é que rotular aquilo que se passou desde o 11 de Setembro do já distante 2001 e a reacção em curso como um “Choque de Civilizações” é (tem sido) um poderosíssimo utensílio propagandístico, uma espécie interessante de arma política de arremesso, manuseada e utilizada por uma das facções em refrega, interessada em mobilizar apoios externos. Uma arma que a outra facção tem naturalmente feito questão de neutralizar, de desmontar, de desconstruir, visto não lhe convir que o adversário generalize o conflito. 179 Para uma discussão detalhada das minhas concordâncias e discordâncias quanto ao modelo de Samuel Huntington sobre o Clash of Civilizations, ver a leitura que fiz em Armando Marques Guedes (1999) e em Armando Marques Guedes (2000), ambos textos de comunicações que nesses anos apresentei no Instituto de Altos Estudos Militares, e nos dois casos pelo Instituto publicados. 180 Nem, aliás, creio que a nova ordem internacional emergente seja integralmente descritível em termos dos alinhamentos dos Estados que dela fazem parte. Um ponto que discuti no segundo dos artigos que sobre o “paradigma civilizacional” de S. Huntington publiquei, e que aqui retoma de outra perspectiva, diferente mas complementar. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 207 Por razões óbvias, nunca como neste momento foi tão imperativo opormo-nos ao modelo-paradigma do Clash e este parece-me um contexto tão bom como qualquer outro para o asseverar181. O Mundo, e nele a ordem internacional, vivem hoje momentos complicados. Repensar uma arquitectura já não é trabalho fácil. Fazê-lo sem projecto à vista, sem garantias da adequação do desenho àquilo que queremos representar, sem critérios estéticos consensuais, e sem que a tarefa tenha sequer sido adjudicada à melhor proposta, não é coisa que tranquilize seja quem for. Uma política de pequenos passos, de reajustes avulsos, só faz sentido no quadro de uma agenda precisa, que neste caso, efectivamente, não existe. Ninguém sabe, em boa verdade, onde tudo isto irá parar. Raramente tal foi tão estrondosamente evidente como desde os dramáticos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e nas reviravoltas que se lhe têm seguido. A partir de então, tudo se tem vindo a precipitar em catadupa. A invasão do Iraque por uma coligação militar, liderada pelos Estados Unidos, mas sem o aval de um Conselho de Segurança que não soube encontrar a unidade necessária para dar um seguimento conclusivo (seja numa seja noutra direcção) a dezassete Resoluções que anteriormente sobre a questão tomara, foi o último acontecimento numa série que inclui uma fractura visível no seio de uma União Europeia que até aqui aparentemente concordara com discordar em surdina (uma gentileza que se perdeu) e, o que é de talvez pior agoiro, uma clivagem, na mesma linha de fraqueza estrutural, no interior de uma NATO que acabara de entrar na meia-idade com um alargamento de tamanho e alçada que lhe (e nos) augurava um futuro risonho. Temos o privilégio dúbio de viver um momento181 O que não quer naturalmente dizer que muitos não construam a sua visão do Mundo como um todo constituído, precisamente, por esse tipo de entidades. Talvez os dois exemplos históricos mais claros disso sejam o “Ocidente” e o “Islão” (tal como, aliás, a “China”), agrupamentos que se imaginam como unos e coesos, e que muitas vezes se entredefinem mutuamente. “Comunidades imaginadas” como estas emergem muitas vezes como forças activas nos palcos políticos. O que me parece é que estas noções são (pelo menos por enquanto) pouco mais do que construções místico-religiosas exclusivistas idealizadas, por via de regra com pouco “eficácia” directa no mundo concreto. Alguns são os que tentam dar mais corpo a tais comunidades, sobretudo nesta época de globalização. É o que julgo ser o que se passa com o chamado “fundamentalismo islâmico” e, em específico, com Osama bin Laden. 208 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS -charneira, com toda a desorientação que isso implica. A impressão que por vezes tenho é a de que estamos todos na situação incómoda de ter de conviver numa casa comum planetária cheia de minas, armadilhas e bombas-relógio. Nada de muito agradável. Depois deste rápido excurso prévio pelo “ecossistema”, gostaria, em guisa de etapa suplementar, de puxar alguns dos fios da meada. Com alguma frieza retrospectiva, talvez não seja demasiado arriscado formular hipóteses plausíveis relativamente às consequências, convergentes, de uma “war against terrorism” como aquela em que hoje em dia vivemos, e da reordenação das relações gerais de poder no Mundo que a superpotência remanescente, dolorosamente ferida, entende ser seu dever (interna como externamente) assegurar. Uma destas linhas de força, porventura a mais interessante e a mais convincente de todas, é aquela que acabei de referir: diz respeito ao crescimento de uma opinião pública internacional (uma curiosa coligação de forças que se tem manifestado em frentes variadas, que vão da imprensa escrita às televisões, da CNN ao al-Jazira à Internet); uma entidade que, alega-se, tem vindo a assentar arraiais nos novos espaços públicos disponibilizados pelos processos imparáveis da globalização. Uma opinião pública partilhada essa, note-se mais uma vez, que contrastaria de maneira radical com a recusa liminar de comunicação entre vários Estados e entre alguns destes e os agrupamentos terroristas. A constituição desse movimento de opinião, a abertura desse espaço e as formas de participação política a que ele tem dado azo, têm vindo a ser encaradas como um processo de sedimentação acelerada de uma autêntica “sociedade civil internacional” enquanto, argumenta-se, um novo actor (e um de peso) nos palcos globais182. Um actor, assevera esta narrativa republicana e cosmopolita de forma triunfal, que mais tarde ou mais cedo irá mudar o Mundo. Estaremos perante uma força de McWorldização, que contraria o Jihadismo das outras expressões que abordei, essas constitutivas de um novo tipo de exclusão, que 182 Para uma discussão recente sobre questões afins destas, ver Alejandro Colás (2002), que não só insiste na presença de uma “sociedade civil internacional” (de que faz uma definição sui generis), mas que a considera como genética de toda a ordem internacional pós-Westphaliana. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 209 operaria pela construção de uma alteridade radical e intransponível do “Outro” tradicional? Parece-me ser este o enquadramento mais fértil para equacionar a questão que enunciei: se esse for caso, poder-se-á tentar assegurar que estas duas pressões, uma centrífuga e a outra centrípeta, se contrabalancem?183 A questão da opinião pública pode ser encarada como um exemplo paradigmático disso. Talvez mais do que qualquer outra coisa, tem sido ela, ao oscilar, que nos tem induzido a ideia de que vivemos numa situação de um tipo particular de equilíbrio, que pode ser instável mas que é regular: uma espécie de oscilação em redor de um centro virtual, localizado algures entre um cosmopolitismo mais abrangente e um paroquialismo mais marginalizador, entre inclusividade e exclusão. Encontrar neste caso esse ponto estável de equilíbrio não é tarefa fácil. Requer um esforço que podemos melhor empreender seguindo, também nós, uma política de pequenos passos. Passos traçados a compasso e esquadria. Em primeiro lugar, há que lograr pôr em evidência tanto as forças como as fraquezas dessa nova torrente de opinião, e sobretudo as principais características de fundo, das coordenadas do espaço público criado e em abertura, e da reputada “sociedade civil internacional”, ou “comunidade cívica global”, que sociologicamente os sustentaria a todos. Fazê-lo implica esmiuçar primeiro, e depois tipificar, os movimentos políticos a que essas fraquezas e forças dão corpo, e as modalidades de participação e de acção política que tais movimentações consubstanciam. Só assim se pode aventar hipóteses minimamente fundamentadas quanto à sua coesão e estabilidade e, por isso, quanto à permanência que 183 Uma resposta possível é a de que talvez não. É admissível que uma delas leve a melhor sobre a outra e que a oscilação que parece estar em curso mostre ser apenas uma mera aparência. Tenho em todo o caso a convicção de que existe um ponto de equilíbrio estável entre, por um lado, a sub-humanização liminar, como dispositivo de exclusão intransponível e radical dos outros (com o consequente espaço a-normativo que ela produz) e, por outro lado, a igualmente excessiva e decerto também descabida (ou pelo menos prematura) unanimidade homogeneizante de posturas éticas e políticas que se querem universalmente partilhadas. Entre um extremo e outro ou, como gostam de dizer os anglo-saxónicos, “between a rock and a hard place”, há a meu ver que tentar traçar uma mediana menos insensata, mais credível e com mais pés para andar. 210 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS podem esperar ter, quanto às suas probabilidades de perdurar184. Como só deste modo podemos fundamentar as perspectivas que temos quanto à sua representatividade democrática. A esses níveis, como irei tentar demonstrar, aquilo que hoje se configura não é demasiado animador, mesmo para os observadores mais generosos e cosmopolitas. Para o entrever, uma módica dose de realismo leva-nos longe. Basta focar os processos de gestação dessa nova suposta “torrente cívica”. Um bom ponto de partida são, senão os seus lugares de gestação, em todo o caso as bases de sustentação em que se apoiam. Ponhamos os pés no chão: importa saber dar o devido realce à capacidade dos Estados e de várias outras entidades, instituições transnacionalmente organizadas, mas não necessariamente representativas, em constranger e regular (e portanto em fazer inflectir em direcções que lhes convenham) esses tais movimentos “espontâneos” de opinião. Importa em todo o caso não exagerar, não quer isto dizer, no entanto, que não esteja em fermentação um germe de opinião pública global. Trata-se de uma opinião atida às elites e dessas sobretudo às dos Estados ocidentais, sem dúvida, mas é uma entidade que está efectivamente a medrar; que o está e que tem vindo a ser reconhecida enquanto tal. Num certo plano, é por isso decerto bem verdade que um dos ingredientes da nova ordem internacional em gestação é precisamente uma opinião pública 184 Os dados recentes não dão grande base de sustentação a alegações de que estaríamos perante movimentos de uma opinião que seria expressão de uma sociedade civil internacional e do seu espaço de opinião. Um atributo (ou propriedade se se preferir) da opinião pública internacional de que se tem vindo a falar, é a sua esboroabilidade. Veja-se a reacção, ao nível desta opinião internacional, da aparente desaceleração na progressão da campanha da coligação no Iraque, o impacto das imagens dos prisioneiros norte-americanos capturados, o recuo perante o arrolamento de baixas militares aliadas e civis iraquianas. Segundo as sondagens levadas a cabo em diversos países, deu-se de imediato um refluxo sensível no já exíguo apoio à guerra. Foi no entanto uma questão apenas superficial: houve, de facto, uma mudança súbita e perceptível nas percepções quanto ao andar da invasão; mas foi uma alteração que não alterou de maneira significativa nem o apoio nem a oposição à acção liderada pelos norte-americanos. Não levou, fosse onde fosse, a quaisquer realinhamentos. Foi eficaz, ma non troppo. As viragens, ao que tudo indica, tocaram pouco de estrutural e nada de permanente. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 211 internacional que se vai, ainda que lentamente e aos solavancos, cristalizando a olhos vistos. Mas (sem quaisquer julgamentos quanto ao conteúdo que ela teria tido, e que poderia ter sido semelhante) não foi efectivamente essa a torrente de opinião aquela que realmente se manifestou185. Ou pelo menos, fê-lo de uma forma muito influenciada por manipulações políticas instrumentais externas, provenientes de entidades dotadas de agendas próprias aplicadas de maneira sustida e coerente. Um mínimo de atenção e o exercício de um esforço módico de destrinça revela-o. Atentemos ao lugar de origem das posturas assumidas nas movimentações a que assistimos nos media. Comecemos pela intervenção de entidades estatais no decurso da chamada “crise do Iraque”. O papel enfaticamente pró-activo do Estado francês na criação e formatação de uma opinião pública interna e externa no decurso da corrente crise iraquiana, não augura aos movimentos de opinião pública mobilizados um grande futuro de independência e autonomia. Nem, aliás, o auguram o papel também activíssimo e muito obviamente intervencionista da Administração norte-americana de Bush (pese embora a menor destreza “diplomática” por ela revelada) e o voluntarismo do regime iraquiano de Saddam ou do britânico de Blair186. Num como nos outros casos, a 185 O que, como irei argumentar, no mundo real e por detrás dos simulacros, acarretou consequências. Para avançar já concretamente o sentido de algumas delas: face à interdependência complexa em que se vêem envolvidos e perante a publicitação a que a sua actuação política se vê hoje em dia sujeita, nem os Estados Unidos nem a França ou a Rússia (para só aludir a três exemplos) assumiram, de maneira frontal, os reais motivos que os animaram. Tal como os não assumiram os variados “movimentos civis” transnacionais. Todos utilizaram formas de soft power. Na ausência de representatividade democrática legitimamente conquistada, refugiaram-se na obliquidade, por via de regra recorrendo a discursos éticos e a invectivas moralizantes. É curiosa a verificação de que, em espaços política e juridicamente “pouco texturados” e pouco coesos, as formas de autoridade e poder que se emergem e instalam se aproximam claramente das lideranças e movimentações “carismáticas e tradicionais” tão típicas de níveis organizacionais ralos e pouco elaborados e sofisticados. Aquilo a que temos assistido no Mundo nos últimos meses tem redundado num espectáculo de nítido subdesenvolvimento político dos palcos supra- e transnacionais. 186 As dificuldades com que, antes e depois da guerra, George Bush e Tony Blair depararam face a acusações, muitas vezes bem fundamentadas, de “exagero” e até “falsificação” de informações, levados a cabo para mobilizar as respectivas opiniões públicas, são disso exemplo paradigmático. 212 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS eficácia destas manipulações foi notável. Ao nível estatal, as interferências instrumentais foram grosseiras: uma infeliz “diplomacia de megafone”187 tem reinado suprema. Voltemo-nos agora brevemente para as entidades transnacionais não-estaduais que deram a cara e para o seu papel nessas movimentações. Comecemos por notar que as tomadas de posição pública relativamente à invasão do Iraque abundaram, provenientes por exemplo da hierarquia da Igreja Católica e da larguíssima maioria das denominações Protestantes aos partidos políticos e aos diversos meios de comunicação. Na maior parte das vezes, opondo-se-lhe; umas vezes alegando um rol de motivos, outras vezes outros. Nalguns casos, apoiando-a, novamente por razões variáveis caso a caso. Houve mais. Diversos “movimentos cívicos” se formaram na Internet, também eles fervorosos nas suas tomadas de posição. E também estes de uma grande variedade. Viremo-nos agora para os métodos utilizados. Salvo raríssimas excepções, nenhuma das entidades que interveio tinha um qualquer mandato democrático; na sua enorme maioria, tratou-se de uma erupção de agrupamentos que, não conseguindo obter voz e apoios suficientes através dos meios democráticos legítimos, exploraram a oportunidade mediática para tentar adquirir poder e ensaiaram exercer influência pública segundo formatos mais directos de acção política. Outras, designadamente partidos políticos minoritários, utilizaram as possibilidades criadas para tentar fazer avançar as suas agendas de maneira oblíqua e para se destacar marcando publicamente algumas das diferenças específicas que ostentam como traços característicos. Quase todas pretenderam falar “em nome da esmagadora maioria” dos cidadãos. Não deixa, no entanto, de ser evidente que foi conseguida assim uma inusitada coesão de uma “sociedade civil transnacional” emergente. 187 Como escreveu José Cutileiro (2003), num artigo recente de opinião, a França utilizou uma autêntica “diplomacia de megafone – falando na praça pública, para impressionar o povo, em vez de, à puridade, convencer a outra parte – e, em consequência, agravando deliberadamente a discordância que se diz querer diminuir”. Uma manipulação instrumental clara do “novo espaço público” por uma entidade estatal com capacidade, posição estrutural e know-how para o fazer. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 213 Que dizer de tudo isto? Começo por notar que, com efeito, uma opinião pública geograficamente muito dispersa foi mobilizável em redor de uma questão (ou de uma série delas). Nesse sentido, opiniões cívicas globais são um novo actor potencial das causas mundiais. Podemos ir mais longe. É fácil verificar que sejam quais forem as nossas preferências quanto a eventuais agendas e desfechos, em espaços comunicacionais incipientes como os que estão em causa nestes “movimentos de uma opinião pública global em formação”, só códigos de comunicação restritos e só referenciais muito simples (tanto em termos de “léxico” como de “sintaxe”) logram ver-se partilhados e por conseguinte conseguem estabelecer-se188. Essa simplicidade e essas restrições viram-se potenciadas pela multiplicidade de origens, posturas e agendas dos grupos sociais mobilizados. Os exemplos poderiam facilmente ser multiplicados. No entanto, o meu ponto é o seguinte: já que os vários Estados e diversos agrupamentos político-partidários, grupos económico-financeiros e outros religioso-confessionais (para só fazer alusão a dois de muitos casos paradigmáticos possíveis) não sofrem desse tipo de limitações a nível dos códigos utilizáveis, as vantagens comunicacionais que detêm são enormes. Operam como que por subsunção. As consequências não se fazem esperar. Com um mínimo de esforço, capturam para a sua esfera os discursos entretidos pelos agrupamentos “espontâneos” em formação: modelando-os, convertem-nos. Não tenho quaisquer dúvidas de que estes processos estão em curso, e que de algum modo assim se vêem, de forma subreptícia e muito eficaz, minadas as possibilidades de uma mais rápida cristalização autónoma de autênticos novos 188 Será sem dúvida por isso mesmo que os movimentos e formas de participação que se têm vindo a instalar, e que nos têm vindo a recrutar a todos, recorrem a formas organizacionais que redundam em simplificações drásticas e altamente formalizadas dos relacionamentos sociais e da interacção do quotidiano: em lugar de manter diálogos segundo códigos de comunicação elaborados, como o fazemos no nosso dia-a-dia, fazem uso de palavras de ordem que encapsulam invectivas que, de um ponto de vista comunicacional (ou seja, “lexical” e “gramaticalmente”), são bastante pobres; os activistas desses movimentos gesticulam teatralmente e organizam marchas ritualizadas. Mostrando, é certo, presença activa e coordenação (virtudes “político-militares” que, no contexto, paga dividendos asseverar); mas manifestando também severas restrições no repertório que têm disponível. 214 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS e pujantes movimentos internacionais de opinião pública189. Mas a hegemonia funcional destes dispositivos implica mais do que isso. Diminuem em resultado quaisquer conotações políticas e político-ideológicas190 que neles possamos pretender reconhecer191. Como decresce, também, a sua eventual capacidade de, 189 Ou pelo menos retardada no tempo a sua emergência e eclosão no campo político- -democrático legitimado e fortemente empobrecido o potencial conteúdo que poderiam ter. Longe de ser dada voz a expressões coerentes de uma visão do mundo partilhada, assistiu-se na maioria dos casos a coligações de oportunidade entre lobbies bem organizados, cada um dos quais representava interesses estreitos e muitas vezes pouco congruentes com os dos seus parceiros nessas coligações efémeras. Se bem que esse não tenha sempre sido o caso, muitas vezes as posturas políticas assumidas eram morais e bem-intencionadas, mas os mecanismos agressivos de afirmação política utilizados denunciavam tanto a ideia que tinham de estar a lutar contra um inimigo e não a favor de agendas positivas, mas também uma sua melhor caracterização enquanto formações políticas. A questão é particularmente gravosa em contextos de interdependências globais crescentes como os actuais, para os quais se torna urgente assegurar alguma “sindicância” democrática que encaminha uma sua maior e melhor regulamentação. 190 É verdade que, um pouco por todo o Mundo, a Esquerda “clássica” tem-se arrogado proprietária desses espaços como sendo seus, reivindicando por exemplo uma hegemonia no delinear da arquitectura política que os subtende, e alegando também serem sobretudo parcelas das suas próprias agendas as opiniões que se fazem ouvir. Noto que, historicamente, também a Direita “clássica” o fez (e o faz, ainda, designadamente nos Estados Unidos onde esta corrente política parece estar de vento em popa). Ambas as coisas seriam de esperar: invocações de um droit de territoire privilegiado são uma táctica comum de ocupação pre-emptiva como hoje em dia se dirá. Mas nem é óbvio que uma consistente moral majority “direitista” ou que uma qualquer fraternidade festiva “esquerdista” em boa verdade detenham um qualquer controlo real, efectivo e actuante sobre essa nova entidade (infelizmente ainda tão rala e incipiente, ao contrário das encenações que se lhe substituem, essas cada vez mais sofisticadas) que é a opinião pública global que vai despontando. 191 Mais ainda, e retomando de outra perspectiva a questão da representatividade democrá- tica destas formas de acção política: temos de saber distinguir entre esse novo basismo populista e a legitimidade (mesmo que tão-só residual) que ele decerto disponibiliza, e o seu efectivo potencial de transformação. Um potencial, reconheçamos, que não é nulo. A capacidade de um condicionamento dos processos políticos contemporâneos por forças menos “tradicionais” resulta claro para quem se detenha com um mínimo de atenção sobre o andar corrente da carruagem. Se nos pusermos acima da refrega política isso torna-se nítido. Um só exemplo. Os partidários norte-americanos de uma postura isolacionista (uma atitude com pergaminhos velhos na curta mas densa história política do Novo Mundo), viram-se surpreendentemente forçados a tentar canalizar os seus esforços e a sua impetuosidade através das Nações Unidas e do seu Conselho de Segurança (e isso teve um preço alto, do ponto de vista da ambicionada defesa intransigente dos seus interesses colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 215 por meio de formas de “desobediência civil”, fazer frente aos poderes e interesses instituídos face aos quais (em muitas das suas circunstâncias de gestação) se começaram por formar. As implicações de tudo isto parecem-me iniludíveis. Sem embargo da coagulação, tão progressiva quão inevitável, de um espaço universalizante de opinião (que não tenho dúvida que está em gestação-sedimentação desde há muito e que os recentes acontecimentos avivaram), não é de excluir que em consequência (e pelo menos temporariamente), em vez dos novos espaços internacionais de opinião pública, aquilo que estamos a presenciar e em que vamos participar redunde, de facto e por um lado, na abertura de novas arenas para as manobras de agitação e propaganda dos Estados; nesse sentido, estaremos apenas a testemunhar os seus esforços renovados de recrutamento e mobilização no plano internacional. E parece-me de manter simultâneo em mente que tal está por outro lado também a ocorrer de par com o agitprop e os esforços de mobilização de agrupamentos não-governamentais, infra-estaduais, tão variados quanto não representativos, quando estes entrevêem a possibilidade de fazer ouvir a sua voz192 nacionais “clássicos”). Os opositores de uma intervenção (com a França e a Rússia à cabeça) tentaram (em larga medida com sucesso, diga-se) que uma opinião pública internacional, cada vez mais atenta e coesa, encarasse os inspectores e as inspecções, cuja função sempre foi apenas a de supervisionar o desarmamento voluntário do Iraque sadamita, como se se tratasse de investigadores que tivessem sido encarregados da missão de descobrir processos de desenvolvimento de armas de destruição maciça e de lhes pôr cobro. Como escreveu, José Cutileiro num artigo notável intitulado “O fosso”, publicado no Expresso, na p. 24 do caderno 2, a 8 de Março de 2003. Os franceses recorreram a uma “diplomacia de megafone: – falando na praça pública, para impressionar o povo, em vez de, à puridade, convencer a outra parte – e, em consequência, agravando deliberadamente a discordância que se diz querer diminuir”. É interessante ainda verificar, neste processo, a instrumentalização da figura do General de Gaulle: o mesmo de Gaulle que, note-se, apoiou imediata e incondicionalmente o Presidente John F. Kennedy e a Administração norte-americana durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962; nada disso tem impedido Jacques Chirac de se apresentar publicamente como estando a assumir uma postura “gaullista”: uma palavra de código para a versão francesa moderna do unilateralismo. 192 Logo em Novembro de 2001, dois escassos meses depois do 11 de Setembro, Fred Halliday (2001) afirmou que “the third of the outcomes of 11 September [will be] the consolidation, to a degree latent but not present before that date, of a global coalition of anti-US sentiment. Just as US liberal writers have talked in the 1990’s of the importance for US dominance of ‘soft’ power – in media, language, 216 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS e sentem a oportunidade de fazer avançar as suas agendas corporativas de mudança193. Uma outra implicação é mais difusa e abrangente. Situações como estas exigem-nos que repensemos as nossas abordagens aos palcos emergentes da acção política transnacional. Até aqui, e salvo honrosas excepções194, a maioria lifestyle, technology – so the opposition to US power is forming above all in this domain”. Uma notável premonição do autor britânico. F. Halliday notou que, enquanto a tendência dos Estados foi a de “bandwagoning” atrás dos norte-americanos, muita da opinião pública internacional preferiu a resposta clássica de “balancing of power”. O meu argumento é que muitos Estados decidiram aliar-se a essa estratégia de equilíbrio de poder, mobilizando para isso sectores muito amplos de opiniões públicas nacionais e internacionais. Conquanto esta postura não ignore os novos papéis assumidos pelos movimentos transnacionais de opinião, relativiza-os: de actores internacionais de seu próprio mote, passam largamente a figurantes. Alguma cristalização de uma sociedade civil internacional, concluo, se tem verificado nos últimos tempos. Mas nada de muito profundo. Os defensores da primeira hipótese parecem-me ou padecer de “wishfull thinking” agudo, ou confundir eventuais avanços na sua própria coordenação de movimentos cívicos particulares e pobres em mandatos democráticos com a emergência concreta de uma efectiva, coesa e estável entidade cosmopolita. 193 É porém possível ir ainda mais longe. O que me parece mais interessante é o estreitamento em curso de formas múltiplas de concertação entre essas ONGs e os Estados, numa repartição corporativista de atribuições e competências e funções para que ninguém os elegeu, levadas a cabo sem qualquer forma de controlo democrático. Um desenvolvimento preocupante. Para uma discussão pormenorizada da emergência genérica deste muitíssimo pouco representativo (de um ponto de vista democrático) “corporativismo global” nos palcos internacionais contemporâneos, cujas consequências, dadas as desastrosas experiências históricas de fórmulas corporativas, são preocupantes, ver Marina Ottaway (2001). Como é óbvio, a presença activa destes agrupamentos nos palcos westphalianos clássicos é benvinda, “liberalizando” a ordem internacional. Mas, com insiste, M. Ottaway op. cit.: 286), “they can have the opposite effect, namely to give disproportionate influence to well-organized, tactically astute NGOs freely interpreting where the interests of silent populations lie”. Para além do seu deficit democrático intrínseco, o corporativismo, enquanto sistema político, tem-se revelado incapaz de fazer frente a assimetrias empíricas de poder, muitas vezes potenciando-as. Regressarei a este ponto em termos mais genéricos. 194 Ver, por exemplo, um extenso e minucioso artigo recente de Alexander Cooley e de James Ron (2002), sobre os constrangimentos sistémicos homogeneizantes que têm vindo a actuar sobre, e a constranger, a actividade das ONGs internacionais humanitárias e de ajuda pública ao desenvolvimento. É neste contexto que me parece mais útil ponderar a leitura de Marina Ottaway (2001, op. cit.) sobre o “corporativismo global” emergente na ordem internacional contemporânea. Muitos têm sido os estudos que, nos últimos anos (quantas vezes tão-somente en passant e com uma ou outra colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 217 dos analistas têm encarado os agrupamentos transnacionais que têm vindo a popular os palcos pós-bipolares e a crescer como veículos de uma nova e robusta sociedade civil internacional, como uma força liberal e democratizadora, à qual nos compete dar as boas-vindas pós-Westphalianas que se afirmam como a nova praxe. Apesar de ser em larga medida correcta, talvez esta visão seja excessivamente optimista. A emergência de mais e diferentes actores tem sem dúvida aberto novos canais de afirmação e acção políticas; mas as suas dinâmicas nem sempre tem sido consistentes com as expectativas daqueles observadores ou participantes que estão convencidos de que essa emergência e esse crescimento estarão a fomentar a instalação nos palcos transnacionais de uma sociedade civil internacional liberal e pautada por quadros normativos adequados. À medida que o peso, o volume e a intensidade do transnacionalismo pós-Westphaliano crescem, os analistas fariam bem em prestar atenção às relações concretas e materiais que se vão estabelecendo entre os novos actores emergentes e entre eles e os antigos195, e deixar de focar apenas as agendas nominais que aqueles pretendem defender. motivação), se têm debruçado sobre os limites democráticos das ONGs e dos movimentos políticos transnacionais que tanto impacto parecem estar cada vez mais a ter na vida política internacional. Trabalhos destes são fundamentais como correctivo para a inocência política com que muitas vezes encaramos essas entidades “civis” que a doutrina liberal aprioristicamente tanto valoriza. 195 Para reiterar o que antes disse: penso aqui em questões tão óbvias como as relativas ao deficit de representatividade democrática desses agrupamentos, à “mercantilização” cada vez mais nítida que lhes é imposta pelo “ecossistema internacional” em que actuam (o chamado “isomorfismo institucional”), seja ao nível do “mercado de ideias” seja ao do mercado tout court, e à corporativização crescente em que se embrenham em palcos internacionais cuja juridificação e politização não param de se adensar. Uma vez estabelecidos, estes novos actores, seja qual for a sua natureza e novidade, são instituições como quaisquer outras: como tal, adequam-se às regras sistémicas do jogo internacional; e sofrem deste, as mesmas pressões a que todas as suas congéneres estão sujeitas, nesses palcos rarificados. 218 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 5. Talvez seja agora de voltar finalmente à minha questão inicial. Contra o pano de fundo da globalização, no plano da “war against terrorism” e, aí, no que diz respeito à dimensão discursiva, como é que então podemos caracterizar a conjuntura em que hoje vivemos? Seremos todos testemunhas de um processo de radicalização tal que possamos nele ler indícios de que se avizinham alterações estruturais profundas na ordenação de uma “coisa pública” mundial de que desde o século XX ninguém tem dúvidas (porventura com alguma precipitação) ter vindo para ficar196? Por outras palavras, o que sugerem as práticas discursivas correntes quanto ao papel da guerra contra o terrorismo transnacional no que toca às reconfigurações em curso da ordem internacional? Escusado será dizer que numerosas têm sido as sugestões, quantas vezes radicais e self-serving, que aventam respostas rápidas e fáceis para estas indagações. Não quereria aqui perder tempo com elas, já que por norma redundam em pouco mais do que hipóteses mal fundamentadas, ou em expressões puras e simples de agendas político-ideológicas que se aproveita para tentar fazer avançar197. Prefiro começar a circunscrever questões da perspectiva que escolhi nesta comunicação. 196 Ainda que, obliquamente, sob nomes como “sociedade internacional”, “sistema-Mundo”, ou “ordem internacional”. Ou, num léxico diplomático ainda mais radical porque vinculado a objectivos pacificadores, “a comunidade internacional”. 197 Não quero com isto significar ser de opinião que nenhuma tem mérito senão a minha. Penso aqui em posições tão diversas como as daqueles que, por legalismo (ou anti-americanismo) e sem olhar às evidentes alterações de circunstâncias supervenientes, exigem um cumprimento estrito das disposições do Direito Internacional, como das dos que persistem em afirmar uma total adequação das organizações internacionais como a ONU ou a NATO, ou ainda das daqueles hawks norte-americanos (como Richard Perle, Paul Wolfowitz, Irving Kristol ou Charles Krauthammer) para os quais a conjuntura de crise disponibiliza uma oportunidade de afirmar uma hegemonia dos EUA que passa pela subalternização de instituições e institutos (das organizações internacionais ao Direito Internacional, por exemplo) de que sempre desconfiaram. Tal como ignoro no que se segue posturas de conveniência (que exprimem pouco mais que versões nacionais de unilateralismo mais ou menos richelieuiano) de vários líderes políticos, de Jacques Chirac a Megawati Sukarnoputri, passando por Vladimir Putin. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 219 Deste ponto de vista, uma das principais conclusões a que chego é de carácter muito genérico e é óbvia: é a de que, longe de estarem progressiva mas rapidamente a esvair-se numa globalização inexorável que estaria a dar corpo ao ideal liberal de um Mundo “dos indivíduos e dos povos”, sem fronteiras alfandegárias, económico-financeiras, político-religiosas, ou quaisquer outras, os Estados estão afinal de vento em popa. Os Estados têm vindo a receber sucessivos balões de oxigénio, dos quais o último (e o mais potente, ainda que dos menos óbvios) parece ter sido a eclosão do terrorismo internacional. Encará-lo do ponto de vista de uma restauração da longevidade dos Estados fá-lo sobressair: porque com este novo fenómeno terrorista global, note-se, a ordem internacional não mudou tanto como regrediu, no que toca ao grau da sua integração cosmopolita. É hoje trivial a observação, formulada logo após o 11 de Setembro, de que nesse dia (e desde então), ninguém se virou para a Microsoft a pedir ajuda ou a exigir apoios e reparações, nem para a Texaco, a BP ou a General Motors. Virámo-nos todos para os Estados. Ao reconhecê-los assim, demos-lhes força e alento: demo-los aos Estados Unidos como os demos à França e à Alemanha ou à Rússia. Demo-los aos Estados democráticos e aos não-democráticos. E eles usaram tanto um como a outra. Nesse sentido o al-Qaeda (e o terrorismo transnacional enquanto projecto político-ideológico de reconfiguração da ordem internacional pela violência) falhou e acertou. Acertou, porque o binómio liberdade-segurança desiquilibrou-se (pelo menos fê-lo temporariamente) na direcção da segunda e em detrimento da Democracia. Iremos decerto infelizmente senti-lo com cada vez mais intensidade. Falhou, no sentido em que, enquanto desafio organizado e sustido de uma ONG apostada em mudar o Mundo, fê-lo com ideologias, formas de participação política e um tipo de movimentos que só me ocorre caracterizar como híbridos, simultaneamente “pré-“ e “pós-modernos”198: os movimentos civis 198 Para uma discussão interessante, ainda que pela rama, ver Lee Harris (2002). Para duas leituras mais favoráveis da “pós-modernidade”, ver B. Said (1997) e Mahmood Mamdani (2002). Os movimentos terroristas transnacionais como o al-Qaeda são com efeito curiosos deste ponto de vista. Para parafrasear o balanço que Sir Winston Churchill fez do Nazismo: trata-se de um movimen- 220 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS a que dão corpo parecem-me por isso radicalmente incapazes de sequer tocar, directamente, a ordem internacional instalada. Quanto mais de a vir a verdadeira e radicalmente alterar... Com algum recuo, não é difícil concluir que o falhanço era decerto inevitável: a veleidade dos que imaginavam conseguir vir a derrotar os potentados estatais que elegeram como inimigos principais não pode senão ser encarado, na melhor das hipóteses, como uma presunção megalómana (ou messiânica) de um descabimento ingénuo das ONGs terroristas199. Um movimento entre o Jihad e o McWorld. A hipótese de que estes movimentos pudessem de algum modo vir a abrir um espaço próprio autónomo, uma espécie de pequena ordem internacional paralela só para eles, nem que fosse uma pequena frincha, redundaria na criação de um apartheid absurdo, impensável num Mundo que, quer se queira quer não, e decerto com inúmeros avanços e recuos, em termos sistémicos é cada vez mais multicultural, menos exclusionário, e que por isso se pretende mais abrangente. Um meu ponto mais geral resulta de tudo isto e é o seguinte: a crise recente do Iraque, tal como aliás todos os processos de tomada de consciência internacional desencadeados depois do 11 de Setembro, são acontecimentos que nos oferecem a oportunidade vantajosa de pôr a nu as enormes insuficiências estruturais da ordem internacional pós-bipolar. Como todos os conflitos, forçam-nos a pôr os pés no chão. A lucidez lograda impele-nos a aceitar a evidência de que a organização e a regulamentação são de facto realidades ainda exíguas a nível supra-estadual. É com efeito gritantemente pobre a estruturação existente nesses palcos semi-anárquicos, populados (numa co-habitação muitas vezes truculenta) por Estados e organizações inter- e transnacionais, por entidades não-estatais que vão de empresas multinacionais a ONGs de todo o tipo (incluin- to que conseguiu juntar “the latest refinements of science [with] the cruelties of the Stone Age”. O que os coloca, paradoxalmente, a um passo de uma eventual separação entre fé e razão, o caminho de um movimento como foi o da “Reforma” cristã ou o da “Haskallah” judaica. 199 Neste sentido, o terrorismo transnacional não é mais do que um mero expediente táctico, um levantamento de rua que tem tido lugar numa “aldeia global” pouco homogénea e pouco consensual. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 221 do al-Qaedas) a agrupamentos políticos ou religiosos transversais e aos seus clones. Nestas condições institucionais específicas, as pressões exercidas nos palcos transnacionais pelo sistema internacional nem sempre são as programadas e muitas vezes são até “disfuncionais”. Nem o Direito Internacional que temos nem as nossas organizações internacionais que temos ido criando sobreviverão sem urgentes reconfigurações de fundo. No último decénio, os estudiosos ocuparam-se e preocuparam-se com o estabelecimento de novos actores pós-Westphalianos e com a sua importância para as dinâmicas políticas globais. Chegou o momento de um corte epistemológico, como Thomas Kuhn lhe chamaria. Há agora que virar a nossa atenção para as pressões sistémicas da “terceira imagem” que reformatam e reconfiguram as suas acções. Só assim podemos esperar saber como melhor agir no esforço ainda tão inacabado de “domesticar” a anarquia hobbesiana em que vivemos. A solução talvez seja a transformação da ordem em que vivemos para uma nova ordem internacional200 mais assumidamente pluralista. Uma nova ordem em que um Direito Internacional mais adaptado aos discursos e às formas de poder do contemporâneo seja um verdadeiro instrumento de comunicação-negociação dos intervenientes num Mundo multicultural201, e em que as orga200 Em resposta ao 11 de Setembro, e designadamente à “coalition against terrorism” de George W. Bush, Amitai Etzioni (2002, op. cit.: 23 ss) sugeriu várias hipotéticas “linhas de fuga” alternativas (de plausibilidade variável), que poderíamos ver concretizadas num futuro “measured in generations rather than years”: (i) o estabelecimento de uma nova ordem internacional baseada numa vintena de “regional communities”, agrupadas em seis “supraregional ones”, “crowned by a global government and civil society”; (ii) a criação, “through a legislative feat” e por intermédio de uma Assembleia Constituinte, de um Estado global; (iii) de acordo com uma estratégia mais gradualista, a formação de um “expanded semi-empire”, porventura como uma “outgrowth of the [America-led] anti-terrorist coalition”. Especulações como esta, pecam inevitavelmente por alguma arbitrariedade. No entanto, importa sublinhar que, tal como foi o caso com a Paz de Westphalia, a Sociedade das Nações ou as Nações Unidas, ou a União Europeia, a criação de entidades supranacionais ou intergovernamentais envolve sempre um acto de deliberação e vontade política. 201 Uma leitura que não é nova, não muito distante, aliás, da perspectiva da escola britânica (a dos discípulos de Hedley Bull) de Relações Internacionais sobre os traços caracterísitcos do Direito Internacional e das organizações internacionais. Curiosa, mas não inesperadamente, uma posição 222 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS nizações internacionais se afirmem enquanto outros tantos fora realmente adequados para essa interlocução alargada. Uma ordem que dê corpo a uma sociedade internacional ainda mais orgânica nas suas interdependências, nos seus consensos partilhados, nos seus procedimentos e enquadramentos convencionais que tão lenta, mas tão seguramente, nos têm vindo a fornecer condições instrumentais na ausência, todavia, de quaisquer ideias e valores comuns, e ainda menos de uma hipotética perspectivação moral uniforme. Um objectivo meritório, é certo, mas hoje mais longínquo do que ontem. Há que ter a coragem de assumir a progressão dessa sociedade como morosa e difícil, sem que isso nos desmobilize a força da convicção que nos norteia ao continuarmos a nos esforçar em construí-la. “racionalista” (ou grociana) hoje em dia apoiada por muitos construtivistas. Como por exemplo escreveu Thomas Risse (2000: 15), “some issue areas in world politics, such as trade, human rights, or the environment, are heavily regulated by international regimes and organizations. A high degree of international institutionalization might then provide a common lifeworld. International institutions create a normative framework structuring interaction in a given issue-area. They often serve as arenas in which international policy deliberation can take place”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 223 Bibliografia Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the world, Ballantine Books, New York. Cooley, Alexander e Ron, James (2002), “The NGO Scramble. Organizational insecurity and the political economy of transnational action”, International Security 27 (1): 5-39. Cronin, Audrey K. (2003), “Behind the curve. Globalization and international terrorism”, International Security 27 (3): 30-58. Cutileiro, José (2003), “O fosso”, O Expresso, 8 de Março, caderno 2: 24, Lisboa. Etzioni, Amitai (2002), “Implications of the American anti-terror coalition for global architectures”, European Journal of Political Theory 1 (1): 9-30. Halliday, Fred (2001), “Aftershocks that will eventually shake us all”, The Observer, November 25, 2001. Harris, Lee (2002), “Al-Qaeda’s fantasy ideology”, Policy Review 114: 1-13, The Hoover Institution. Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25, New York. ____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. Kurtz, Stanley (2002), “The future of ‘History’”, Policy Review 114, the Hoover Instutution. Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University Press. Lewis, Bernard (1993), Islam and the West, Oxford University Press. ____________ (2001), What went wrong? Western impact and Middle Eastern response, Oxford University Press. Mamdani, Mahmood (2002),”A political perspective on contemporary terrorism”, Ethnicities 2 (2): 146-149. Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena, Lisboa. ____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162, Lisboa. Nye, Joseph S. (1992, original 1990), “O Mundo pós-Guerra Fria: uma nova ordem no Mundo?”, Política Internacional 5(1): 79-97, Lisboa. Ottaway, Marina (2001), “Corporatism goes global: international organizations, nongovernamental organization networks, and transnational business”, Global Governance 7 (3): 265-293. 224 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Paul, T. V. (1999), “Great equalizers or agents of chaos? Weapons of mass destruction and the emerging international order”, em (eds.) T. V. Paul e J. Hall, International Order and the Future of World Politics: 373-393, Cambridge University Press. Rasmussen, Mikkel Vedby (2002), “’A parallel globalization of terror’: 9-11, security and globalization”, Cooperation and Conflict. Journal of the Nordic International Studies Association 37 (3): 323-349. Risse, Thomas (2000), “‘Let’s argue!’: communicative action in world politics”, International Organization 54 (1): 1-39. Subirats, Joan (2003), “Iraq and the global space”, El País, 11 de Março. Vinocur, John (2001), “Taboos are put to test in West’s view of Islam”, Herald Tribune, 1 e 9. Zakaria, Fareed (2003), “The arrogant empire”, Newsweek, 24 de Março, 2003. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 225 226 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 7. Sobre a União Europeia e a NATO202 1. A União Europeia não é uma organização recente. É verdade que a sua coesão e o seu protagonismo têm vindo a crescer a olhos vistos: cada vez mais integrada, a União tem também vindo a afirmar-se de maneira mais audível como um actor relativamente activo na ordem internacional complexa e multidimensional203 que resultou da Queda do Muro de Berlim, do desmembramento da União Soviética e do consequente fim da bipolarização que durante uma cinquentena de anos manteve o Mundo num equilíbrio instável. Ainda que com outro nome, 202 O presente artigo é uma versão alargada de uma conferência, integrada no Curso de Comando e Direcção do Instituto de Altos Estudos Militares, dedicado à formação de Oficiais-Generais, que se realizou na manhã de 1 de Abril de 2003. A sessão foi intitulada “A União Europeia e o seu futuro”. Por isso se explica que o ponto focal do que redigi se mantenha posto na Europa comunitária, quando várias outras alternativas haveria. Levei comigo o meu Colega e Amigo Nuno Piçarra, que interveio para falar longamente sobre a “cooperação JAI”, uma área em que é especialista. Agradeço ao Senhor General-Director do Instituto, Tenente-General Cardeira Rino, aos outros Oficiais-Generais que nos honraram com a sua participação, e aos muito numerosos oficiais presentes, de todas as armas e de variadíssimas nacionalidades, as questões e os comentários suscitados, bem como a profícua discussão que connosco desencadearam. Não quereria deixar de agradecer ao Nuno Piçarra o seu interesse pelo tema, a sua colaboração no Colóquio do IAEM, e aquilo que com ele aprendi sobre os meandros de um futuro para o espaço europeu de liberdade e justiça interna. Versões anteriores deste texto foram também lidas (ou discutidas) e comentadas, no todo ou em parte, por Armando M. Marques Guedes, Constança Urbano de Sousa, João Marques de Almeida, José Cervaens Rodrigues, José Luís da Cruz Vilaça e Miguel Poiares Maduro. Muito beneficiei com os comentários que o presente artigo recebeu; a responsabilidade pelo produto final é, no entanto, integralmente minha. 203 Como se viu recentemente, com a “crise do Iraque”, o peso internacional da postura europeia (e até a sua coesão interna no que a isso toca) não é estável; a situação existente mostra que o recém-conseguido protagonismo internacional da União, enquanto actor efectivo que contracena nos palcos internacionais, está realmente em dúvida a não ser em termos abstractos e muitíssimo gerais. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 227 a entidade que com uma velocidade histórica surpreendente veio a tornar-se na União Europeia nasceu, no entanto, muito antes disso, nos já longínquos anos 50 do passado século. A União, convém em todo o caso começar por sublinhá-lo, é uma entidade caracterizadamente atípica. Enquanto forma política é dificílima de classificar: não sendo um super-Estado, uma federação, ou sequer uma confederação, partilha com essas várias figuras políticas canónicas, idealizadas, alguns traços característicos. As inovações interiores e exteriores a que tem dado corpo não param de emergir, em resposta a variadíssimos constrangimentos externos e internos. Tanto sincrónica como diacronicamente, as especificidades que exibe são muitas204. Aparentemente bastante bem integrada no meio internacional em que vive, a Europa comunitária moderna nasceu e tem-se desenvolvido sob os signos da inovação e da mudança. O que é fácil de compreender: as particularidades que na Europa se manifestam respondem às peculiaridades da posição estrutural que o Continente tem tido face às inúmeras alterações a que a ordem internacional se tem visto sujeita. Uma centralidade que, a traço grosso, se mantém. É assim de crer (e de esperar) que as especificidades europeias continuarão o seu percurso e a sua maturação em formatos sui generis, mas não muito diferentes do que tem sido o caso até aqui. E isto apesar das sombras que se perfilam no horizonte. Sombras tais como a chamada “crise do Iraque” (que opôs, e durante algum tempo ainda previsivelmente continuará a opor, alguns dos Estados-membros da União aos outros e aos Estados Unidos da América), ou como a tensão que vivemos no que toca à Convenção sobre o Futuro da Europa e ao seu projecto (o qual, se não nos dividiu a todos, nos tem em todo o caso posto de sobreaviso uns em relação aos outros). Devo ser claro: por muito preocupante que a situação nos possa parecer, em minha opinião não há muito, na conjuntura de crise difícil que hoje em dia a União Europeia vive, que indicie realmente que esta deixará de continuar o seu 204 Desses pontos de vista, mais uma vez a Europa tem vindo a inovar no que diz respeito a uma “ordem internacional liberal” como aquela em que hoje vivemos, e que foi largamente construída sob a sua égide e liderança e em muitos sentidos se apresenta à sua imagem e semelhança. 228 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS processo criativo de fruição. Acumulam-se problemas de maneira cada vez mais visível. Mas trata-se decerto de questões que, de uma ou outra forma, serão resolvidas. Tal não significa todavia, como é óbvio, que devamos ser de opinião que tudo está bem. Se em linhas gerais não tenho sobre os escolhos hoje enfrentados uma postura catastrofista, o que parece improvável é que tudo possa continuar como antes. Mais: é decerto ponderando as direcções plausíveis de mudança que podemos esperar aventar hipóteses credíveis quanto às transformações que seguramente se avizinham, ou que saberemos para elas receitar eventuais profilaxias. Questão prévia a essa ponderação é obviamente lograr empreender uma contextualização apropriada das mudanças anunciadas. Para encetar e começar a levar a bom porto esse esforço, será sem dúvida útil começar por fazer um rastreio (mais indicativo que descritivo nos objectivos) de alguns dos aspectos mais diacríticos da origem e maturação dessa entidade em crescimento, com o intuito de assim melhor equacionar uma visão de detalhe sobre estes processos complexos de formação (ou, talvez melhor, de formatação), acomodação, e desenvolvimento: para conseguir perspectivá-los de uma forma que nos permita aventar hipóteses minimamente plausíveis quanto ao andar da carruagem europeia, por assim dizer. No sentido em que é meu objectivo olhá-la sob uma luz nova, ou pôr em relevo ressonâncias menos óbvias, será evidentemente vantajoso revisitar esses processos de fruição em contexto, analisando-os enquanto os repomos no tempo. Desde logo é-o pelo que de novo nos traz. Um enquadramento cronológico-conjuntural de alguns dos aspectos hoje mais problemáticos desta curiosa União, ainda que breve e sucinto, põe em evidência mais nítida as traves-mestras principais nesses âmbitos, ou contextos, nela gizadas enquanto projecto. O que já, por si próprio, poderia ter alguma utilidade. Mas possibilita, em minha opinião, muito mais: permite-nos pô-la em paralelo com processos histórico-políticos e com outras organizações que de algum modo a par dela nasceram, cresceram e se têm vindo a transformar: entidades como a NATO (e outras congéneres, criadas depois da 2.ª Guerra Mundial para defender o Velho Continente), sem as quais, irei argumentar, muitas das condições de viabilidade da União Europeia colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 229 decerto não existiriam. Este ponto é crucial para a discussão que se segue: muito há, na União Europeia, que só se torna plenamente inteligível no contexto do crescimento paralelo da NATO e afins, bem como em termos da ligação que se estabeleceu entre a Europa do pós-2.ª Guerra Mundial e os Estados Unidos da América. Como iremos verificar, essa imbricação é complexa e em muitos dos seus aspectos tem sido efectuada por intermédio de ligações e laços indirectos. Não deixa por isso de ser profunda. Para utilizar duas metáforas que irei revisitar: tomar em linha de conta os respectivos processos complexos de formação, acomodação, e desenvolvimento permite-nos encarar a NATO e a União Europeia como dois pássaros que voam e evoluem em conjunto, ou como dois bailarinos envolvidos num pas de deux elaborado mas harmónico. Poderão parecer inesperados tanto o estabelecimento desses paralelismos entre a União Europeia e a NATO como a afirmação da interdependência de tais processos205. A surpresa é compreensível. Durante muitos anos habituámo-nos a pensar estas duas entidades e estes dois processos como inteiramente separados um do outro e a sua vizinhança pode por conseguinte não nos ter ocorrido. Em larga medida essa perspectiva tradicional é justificada: a NATO tem desde sempre sido encarada pela “sabedoria convencional” vigente na Europa como dando corpo a uma Aliança transatlântica muito particular e concreta, de base estritamente político-militar. Enquanto que, em contraste, a construção europeia tem sido carente precisamente dessas dimensões e nesse quadro geográfico alargado. Concebemo-las, por norma, como instituições, ou organizações, inteiramente diferentes uma da outra. Em resultado tendemos a “arrumá-las” cada uma para seu lado e propendemos, por isso, a pensá-las e a estudá-las como se de 205 Como iremos ver, nem Franklin Delano Roosevelt, nem Harry Truman, nem Winston Churchill, Josef Staline, ou mesmo Charles de Gaulle ficariam surpreendidos com este paralelismo. Aquilo que decerto os surpreenderia, seria a dissociação nocional a que nos habituámos. Em grande parte, a diferença de perspectiva advém da fase inicial, em 1945, que Fareed Zakaria (2003) recentemente apelidou de “the age of generosity”: “when America had the world at its feet, Franklin Delano Roosevelt and Harry Truman chose not to create an American imperium, but to build a world of alliances and multilateral institutions”. Uma atitude que parece ter-se modificado com a reacção norte-americana ao 11 de Setembro e a Administração Bush. Um ponto a que quererei regressar. 230 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS entidades totalmente distintas se tratasse. O que, como irei tentar demonstrar, não é na realidade verdadeiramente o caso; bem pelo contrário. Embora como é óbvio estejamos perante duas organizações distintas e separadas, trata-se de duas construções profunda e umbilicalmente ligadas entre si. Para o confirmar, basta entrevê-las no enquadramento maior providenciado pela ordem internacional existente, ou no contexto disponibilizado num quadro temporal de mais longa duração. Contra esses panos de fundo as articulações genéticas e as congénitas existentes tornam-se bastante nítidas. Esse enquadramento é fácil de traçar. Numa monografia recente, G. John Ikenberry206 levou a cabo uma análise detalhada das estratégias, cada vez mais elaboradas e procedentes, de reformulação institucional (e até mesmo “constitucional”) dos padrões dos seus relacionamentos externos, por meio das quais, desde pelo menos 1815, as grandes potências que saíram vencedoras de conflitos-chave têm vindo a tentar delinear ordens internacionais em simultâneo mais estáveis, mais amplamente convenientes para os seus próprios interesses genéricos, e mais aceitáveis para os Estados por elas derrotados. É, em minha opinião, precisamente no quadro de uma contextualização deste tipo que podemos esperar compreender as razões de base para uma ligação como aquela que, alego, existe entre a NATO e a União Europeia. É trivial afirmar que os Estados Unidos da América se empenharam em assegurar transformações profundas na ordenação do Mundo deixado num pós-1945 em que a distribuição do poder lhes concedia uma posição hegemónica difícil de contestar. Menos óbvia será a sugestão de que o desencadeamento da integração europeia e a 206 G. John Ikenberry (2001). Neste estudo comparativo, que de maneira sugestiva Ikenberry intitulou After Victory, foi levado a cabo um rastreio pormenorizado dos enquadramentos institucionais em cujos termos, segundo este Autor de forma crescente desde 1815, as potências vencedoras tentam reorganizar a ordem internacional nos momentos-charneira (1919, 1945, e no pós-Guerra Fria) a que esta tem estado sujeita. Sem que isso necessariamente signifique uma adesão integral às posições de Ikenberry, um quadro conjuntural (como indiquei, Ikenberry apelidou-os de historical junctures) genérico deste tipo parece-me um excelente ponto de partida para esforços como aquele que aqui tento levar a cabo. João Marques de Almeida (2003) publicou uma recensão crítica do estudo de Ikenberry que, ao que penso, aponta na direcção que aqui sugiro. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 231 edificação da aliança transatlântica, que a breve trecho começaram a ser gizadas, constituíam, senão duas peças da estratégia norte-americana então seguida, pelo menos dois processos desencadeados em paralelo que só em conjunto se tornam, a nível político de fundo, plenamente inteligíveis. Dois passos de um autêntico processo de constitucionalização, ao nível “regional” e como parte de uma agenda implícita de construção de uma nova ordem internacional. Para além de ressonâncias menos nítidas que me esforçarei em tentar pôr em evidência, basta atentar no facto de que tanto um como outro desses processos visava a dupla finalidade de pacificar uma Europa cujos desentendimentos internos pareciam insanáveis, e de conter uma União Soviética que emergia como uma ameaça para essa mesma Europa e para os próprios Estados Unidos. Com o fim da ordem internacional bipolar, o lone superpower norte-americano deparou mais uma vez com uma situação-charneira, e viu-se de novo na posição, dificilmente contestável, de exercer uma potencial hegemonia. Apenas neste enquadramento, irei defender, se torna possível perceber a perenidade das razões para essa velha indissociabilidade política estrutural entre a União e a Aliança. Naquilo que se segue, farei pouco mais do que tentar fundamentar razões de fundo para essa permanência. A um nível mais analítico, muita da trama estrutural de base para a ligação sugerida não custa a compreender. Comecemos por desconstruir modelos excessivamente idealistas. Releva da mais pura fantasia e do mais puro wishful thinking a leitura segundo a qual a integração da Europa resultaria apenas de uma qualquer tomada de consciência pelas nossas populações e governantes das suas vantagens intrínsecas, ou de um hipotético altruísmo e de uma complacência das grandes potências europeias tradicionais, a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha. Sem embargo de todos esses factores terem indubitavelmente estado presentes, o processo de integração da Europa foi no essencial encetado porque a preponderância dos Estados Unidos numa NATO que incluiu as maiores dessas potências do Velho Continente tornou possível que os Estados europeus deixassem de viver obcecados com o equilíbrio de coligações que garantissem a sua segurança uns em relação aos outros e a de todos relativamente a um Mundo 232 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS exterior marcadamente hostil207. Ao tomar a seu cargo a “anarquia hobbesiana”, os norte-americanos permitiram aos europeus erigir no seu interior protegido um inesperado mas bem-vindo “oásis kantiano”. Não será nesse sentido porventura abusivo afirmar que o processo de integração da Europa só continuará com a velocidade e a intensidade que tem enquanto o manto tutelar de protecção norte-americana se mantiver. Não é, por isso, surpreendente que existam algumas ressonâncias e paralelismos múltiplos nas várias fases da progressão histórica e geográfica da NATO e nas da União Europeia: já que esta última não seria em boa verdade, num sentido estrutural e material, inteiramente viável sem a primeira. Pode-se ir mais longe208. Abordo aqui uma estratégia de como fazê-lo. Parece-me importante sublinhar que a emergência, tão rápida quão surpreen207 Para uma defesa recente e acérrima desta perspectiva, é útil a leitura do artigo e do livro associado de Robert Kagan (2002 e 2003). Segundo Kagan (e este é um ponto que irei desenvolver mais à frente nesta comunicação) a “Paz Perpétua” kantiana, em cuja sombra a Europa tem sido construída só é possível porque os Estados Unidos decidiram ficar no Velho Continente depois da 2.ª Guerra Mundial, deliberaram assegurar a protecção deste, e se comprometeram a tomar a seu cargo as actividades necessárias de segurança e defesa no Mundo hobbesiano e anárquico, exterior a cada um dos Estados-membros e ao seu conjunto. Esta posição (com algumas modulações) foi recentemente defendida, em Portugal por Vasco Rato (2003) e, em termos algo diferentes mas em muitos sentidos equivalentes a uma das partes da interpretação analítica que aqui propomos por João Marques de Almeida (2003) e, ainda, por António Barreto (2003), para só citar três dos muitos exemplos recentes de autores portugueses que decidiram debruçar-se (por via de regra de maneira tão-só indicativa, ou pelo contrário mais “especializada”) sobre temas afins do meu. Para o tipo de leitura idealizada com que aqui me contrasto, ver, por todos, o muito bem ponderado artigo de Craig Parsons (2002). 208 O que, aliás, repito, tem sido tentado por muitos analistas em Portugal. Parecem-me porém algo exageradas e excessivamente genéricas as sugestões formuladas. Assim, por exemplo, Vasco Rato (2003, op. cit.) insiste em que “mesmo que fosse possível ultrapassar as desconfianças e as rivalidades históricas [entre os Estados europeus], os investimentos na defesa necessários para dar à Europa uma capacidade militar suficiente para “equilibrar” com os Estados Unidos levariam à destruição do modelo social europeu. Basta que façam as contas”. Isso pode ser verdade, se nos ativermos tão-somente ao curto prazo; para além de que não toma em linha de conta o potencial multiplicador e lucrativo, a nível económico e numa mais longa duração, de eventuais investimentos na área militar-industrial, contabilizando V. Rato na sua equação apenas despesas a fundo perdido. António Barreto (2003, op. cit.) esgrime uma variação sobre o modelo de R. Kagan, e conclui com colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 233 dente, de um “espaço europeu de liberdade, segurança e justiça” (a montante do Terceiro Pilar da União Europeia) só é verdadeiramente explicável em termos desse mesmo quadro que põe de par a União e a Aliança. Para o reconhecer, basta atentar na evidência dos factos. A livre circulação de pessoas, bens e capitais e a colaboração policial e judiciária alargadas apenas se começaram a tornar palatáveis para as grandes potências europeias quando, sob o manto protector e tutelar da NATO, estas deixaram de tanto se temer umas às outras. A abertura proposta a novas políticas de vistos, migrações e asilo, combate ao terrorismo e ao narcotráfico, também não teria sido viável sem o importante papel de guardião, assumido pela Aliança Atlântica, relativamente à “anarquia hobbesiana” que forma o pano de fundo sobre o qual a construção europeia se tem vindo a efectuar. No que se segue irei abordar estas questões na sequência em que foram expostas, seguindo sempre uma ordenação cronológica que, naturalmente, irá desembocar no presente. Porei na primeira linha das minhas atenções a progressão sincronizada dos vários organismos e organizações a que aludo, sublinhando a par e passo as confluências, convergências e concordâncias que se vão tornando notórias. Delinearei, em seguida, os termos em que, progressivamente, foi sendo gizado um “espaço de liberdade, justiça e segurança interna” na União. Concluo com algumas hipóteses relativas ao que o futuro nos reserva. O acento tónico das minhas análises será sempre essencialmente colocado em duas frentes, por assim dizer: por um lado, na formação de consensos; e, por outro, nas pressões sistémicas emanadas da ordem internacional que se têm feito sentir a pessimismo que “as torres gémeas” (a expressão que usa para aludir ao par NATO-UE) merecem um “requiem”; uma projecção futurológica pouco fundamentada e menos construtiva. O mesmo não se passa com o mais longo e didáctico artigo de João Marques de Almeida (2003, op. cit.); num trabalho mais académico e mais teoricista, Marques de Almeida começa por tipificar a situação actual de acordo com a modelização proposta por E. Kant, para depois acenar com os riscos de sedimentação regional de uma “federação hobbesiana” tirânica liderada pelos mais fortes, os franco-alemães, caso a presente crise acabe por afastar os norte-americanos da Europa. Parece-me no entanto mais útil melhor fundamentar modelos do que especular relativamente a cenários futuros, sempre imprevisíveis. 234 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS nível “regional”, e que se tornam visíveis ao nível do Continente europeu se o nosso ponto de vista for (como creio firmemente que deve ser) mais global e inclusivo. 2. Começando então pelas condições estruturais de possibilidade, não será talvez abusivo dizer que aquilo a que hoje chamamos a União Europeia se tem desenvolvido sobretudo em dois grandes planos (ou, como iremos ver, dois planos e um parâmetro de um deles) e sob a égide de vários tipos de pressões formatadoras, chame-se-lhes assim. Planos, parâmetros, dimensões e pressões em última instância indissociáveis uns dos outros209, como irei subsidiariamente tentar demonstrar. Por um lado, a Europa tem sido gizada em larga medida em resposta a condicionalismos político-militares ou, como hoje diríamos, de segurança e defesa. Delineá-lo é facílimo. Face à destruição maciça e às intoleráveis perdas humanas e materiais a que os Europeus tiveram de fazer frente depois de duas Guerras Mundiais rapidamente encadeadas uma na outra, muitas foram as vozes que insistiram num ponto que a todos parecia evidente: que o velho e já venerando balance of power, a solução legada pela Paz de Westphalia em 1648 como mecanismo de eleição para moderar conflitos e reduzir as guerras210, era 209 Uma rápida salvaguarda metodológica: não pretendo aqui expor uma qualquer teoria (muitas há já) sobre a emergência da União Europeia, ou sobre as suas condições genéticas causais; quero apenas delinear linhas de força nos seus processos de formação e desenvolvimento. Mais ainda, a ordem de exposição que escolhi para o levar a cabo não visa enunciar uma qualquer hierarquia de causas. A ordenação seguida foi preferida por meras razões pragmáticas: dado que as relações entre estes três planos e os tipos de pressões (ou constrangimentos se se preferir) que lhes são próprias, não têm todas o mesmo peso, descrevê-los-ei na ordem em que o seu entrosamento recíproco se torna mais sensível. 210 São muitíssimo numerosos os estudos dedicados ao papel fundador que a Paz de Westphalia teve na construção inicial das traves-mestras daquilo que se veio a tornar numa ordem internacional duradoura e ainda hoje em larga medida vigente. Para uma discussão recente e pormenorizada, redigida do ponto de vista em simultâneo histórica e de gestação do que hoje chamaríamos uma ordem internacional, ver, por todos, os dois capítulos a isso dedicados da autoria de Daniel Philpott (2001). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 235 insuficiente para manter um mínimo de paz, ou mesmo um semblante de harmonia, num Concerto da Europa que a História parecia tornar cada vez mais dissonante. O mote, curiosamente, fora dado muitos anos antes por um Presidente norte-americano, Woodrow Wilson, em numerosos escritos e, mais famosamente, nas suas intervenções e nos seus fourteen points enunciados nas negociações conducentes ao Tratado de Versailles211. Tratava-se, como é bem sabido, de um mote que decorria largamente dos pressupostos histórico-políticos do Liberalismo e nomeadamente da ideia programática de base segundo a qual eram povos e não Estados as “unidades de conta” do sistema internacional. Urgia testar uma qualquer nova receita: o sistema “clássico” de contrapesos deixara de ser eficaz. O descalabro do equilíbrio venerando era já antigo212, e a eclosão de uma guerra tão sangrenta e disseminada como a Grande Guerra, como veio a ser apelidada, demonstrava-o à saciedade. Alguma coisa iria ter de mudar. 211 Para uma discussão histórico-política clássica, se bem que marcada por uma perspectivação “realista” fria, ver Henry Kissinger (1994: 218-246). Para além de se tratar de uma das mais bem articuladas (apesar da sua brevidade) descrições factuais de um processo riquíssimo sobre o qual muito tem sido escrito, parece-me esta dar azo a uma análise particularmente bem conseguida das relações de forças presentes e dos vários níveis de interpretação possíveis para elas. Para um muito maior pormenor quanto a processo, que inclui um retrato exemplar de Woodrow Wilson, é imprescindível a leitura da monografia de Margaret MacMillan (2003), sugestivamente intitulada Paris 1919. 212 Relembremo-lo de maneira cursória. À aventura napoleónica que assolou a Europa no rescaldo da Revolução Francesa de 1789 seguiu-se, em 1815, uma Conferência em Viena, um congresso ambicioso e prolongado cujos resultados se revelaram ser sol de pouca dura. Os finais do século XIX tornaram a mergulhar a Europa em conflitos, agora mais mortíferos pelos avanços tecnológicos saídos da Revolução Industrial. O pesadelo recomeçara. Da Guerra da Crimeia que entre 1854 e 1856 aliou Franceses e Britânicos aos Otomanos num conflito com a Rússia, à guerra Franco-Prussiana que durou de 1870 a 1871 e envolveu uma invasão da França por uma Alemanha acabada de forjar por Bismark, desembocando numa curiosa e ameaçadora Tripla Aliança que em 1882 comprometeu de maneira pouco consequente a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e a recém-unificada Itália, o panorama não augurava nada de bom. E os mais pessimistas viram-se vingados. Tanto no centro da Europa como nas fronteiras entre este e os Impérios Russo czarista, o arquiducado imperial Austro-Húngaro e o sultanato Otomano, morticínios grassaram. À boca do século XX, a catadupa parecia não ter fim, a hemorragia parecia não querer estancar. 236 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os quadros intelectuais dominantes naturalmente serviram para adjudicar uma solução-quadro para essa mudança. Para um Presidente norte-americano de formação e convicções democrático-liberais como Woodrow Wilson, o descalabro que a todos entrava pelos olhos dentro soletrava, por um lado, a imoralidade intrínseca do modelo westphaliano “clássico” e, por outro, a sua incapacidade de dar conta de uma ordem mundial dia-a-dia mais complexa. A História parecia dar-lhe razão. A Primeira Grande Guerra e a cavalgada dos nacionalismos exclusivistas das primeiras décadas do sangrento século XX213, tiveram uma retoma ainda pior uma mera vintena de anos depois (menos de uma geração) num segundo capítulo: aquele a que se convencionou apelidar de 2.ª Guerra Mundial. No primeiro passo morreram mais de 15 milhões de pessoas. No passo seguinte o número de mortes saltou para 50 milhões. Se o Mundo ensanguentado de 1918 estava predisposto a aceitar uma receita supra-estadual, a devassa inimaginável sentida em 1945 dispunha-o a quase todas as experiências de pacificação. Em inícios-meados dos anos 40, a postura democrático-liberal do Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt encontrava ecos numa nova entidade que então se começava a afirmar: o que hoje chamaríamos “a opinião pública internacional”. Para um número crescente de cidadãos e políticos Europeus havia que pôr cobro à escalada infernal de violência em que a Europa ciclicamente mergulhava. Os Estados e as suas coligações reactivas de geometria variável manifestamente não pareciam saber dar conta da efervescência cíclica, e mostravam-se cada vez menos capazes de a conter. Para muitos deles, influenciados ademais decerto pelos projectos wilsonianos de collective security a que F. D. Roosevelt viera dar um novo fôlego na sua tentativa de (com os outros Aliados, alguns mais renitentes que outros, dadas as disparidades de agendas) “conquistar a paz” em meados dos anos 40 do passado século XX, a solução era a criação de mecanismos supranacionais fortes e minimamente “independentes”. Mecanis- 213 Para um contraste entre estes “nacionalismos exclusionários” e os nacionalismos mais construtivistas do século XIX é útil a leitura de Michael Ignatieff (1993) e de Benjamin Barber (1995). É extensíssima a bibliografia recente publicada sobre vários aspectos deste tópico. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 237 mos cujo papel seria, sobretudo (na linha de uma perspectivação liberal vincadamente “iluminista” que insistia de forma programática em ver a soberania e a legitimidade políticas como estando de facto sedeadas nos “povos”) o de “domesticar” a anarquia internacional, esse espaço política e juridicamente rarefeito que servia de palco aos Estados nacionais que nele contracenavam214. Vistas as coisas nesta perspectiva de segurança e defesa, foi contra este pano de fundo político-ideológico e de opinião que a Europa institucional moderna (aquilo que viria a tornar-se na “União Europeia”) nasceu. Nos termos desta primeira pressão, deste primeiro constrangimento, os Tratados de Paris (1951) e de Roma (1957)215, assinados não muito tempo após a 2.ª Guerra Mundial, foram celebrados no sentido de lograr assegurar uma institucionalização de condições jurídicas, políticas e socioeconómicas que esbatessem (ou ajudassem a esbater) o perigo de novas guerras numa Europa devassada vezes demais. O lugar geográfico de gestação deste processo não foi seguramente acidental. O eixo França-Alemanha, que então emergiu, e o papel preenchido pelo Benelux, podem ser vistos, com algum fundamento histórico, como ingredientes diacríticos deste processo – já que, indubitavelmente, constituíam uma espécie de núcleo duro dessa Europa ocidental que se queria finalmente pacificada. De fora ficou, nesta primeira fase, um Reino Unido cultural e geograficamente insular, por isso mesmo mais isolado, e que uma França (ciosa de lograr um ascendente, uma vez a Alemanha relativamente neutralizada) de qualquer maneira preferia manter à margem do projecto. A União Europeia foi, nos termos destas pressões e desde o seu início, um programa estratégico de contenção de mais e 214 Para uma discussão introdutória mas de grande pormenor, sobre a mecânica destes processos e os vários níveis em que a sua análise é possível e desejável, ver Joseph S. Nye, Jr., 1997: sobretudo pp. 50-71, 74-95 e 98-129. Para um excelente estudo recente sobre a génese muitíssimo laboriosa e bastante contestada da Organização das Nações Unidas, ver a longa monografia de Stephen Schlesinger (2003). 215 Em Abril de 1951, foi criada pelo Tratado de Paris a CECA, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que veio a dar origem à CEE. Um ano e um mês depois, em Maio de 1952, como iremos ver, foi criada a Comunidade Europeia de Defesa, uma estrutura militar federal que nunca passou do papel. 238 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS piores guerras no Velho Continente. Como tal, as pressões sistémicas foram no essencial exercidas sobre a região de tradicional eclosão dessas contendas. Mas os Tratados de Paris e Roma não foram nem por sombras a única resposta a essas pressões próprias do plano político-militar de segurança e defesa. Muitas mais houve. Os seus lugares de gestação e implantação não foram muito diferentes e vale decerto a pena enumerar alguns. Recuemos um curto par de anos: a 17 de Março de 1948, por exemplo, fora assinado o Tratado de Bruxelas pelos três países do Benelux (a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo) e por dois outros, a França e o Reino Unido, no qual foi criada a chamada União Europeia Ocidental (UEO). Tratava-se de uma entidade vaga e difusa, ancorada nos termos do artigo 51.º da Carta das Nações Unidas que pouco antes fora gizada em São Francisco: a UEO tinha em vista uma colaboração económica, social e cultural dos seus membros, mas talvez e sobretudo um objectivo de defesa comum216, face tanto a uma sempre possível re-emergência da velha “ameaça alemã” como frente aos novos riscos suscitados por uma União Soviética com pretensões tidas como cada vez mais assustadoras. Em Setembro de 1948, a UEO foi dotada de um órgão militar, a chamada Organização de Defesa da União Ocidental, chefiada pelo célebre General Montgomery. No que se iria revelar ser um distanciamento crónico, Paris hesitou e demorou a ratificação do novo organismo. A nova entidade parecia ter um parto difícil. A ideia de que tal medida seria suficiente foi todavia sol de muito pouca dura. Menos de um ano depois, a 4 de Abril de 1949, foi decidido que a UEO, tal como tinha sido gizada, não lograria fazer frente às novas ameaças que se perfilavam no horizonte: já não a da Alemanha, mas antes a da URSS. Foi assim fundada em Washington, nessa data, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (a NATO), em resultado de esforços conjuntos e, sobretudo, de Paul-Henri Spaak, o carismático Ministro dos Negócios Estrangeiros belga, e um inesperada- 216 São muito numerosas as referências possíveis quanto à União Europeia Ocidental [UEO], ou União da Europa Ocidental, como alguns preferem chamá-la). Para efeitos desta comunicação, é porém suficiente o curto estudo de José Manuel da Costa Arsénio, publicado em 1988 na revista Nação e Defesa. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 239 mente notável Presidente norte-americano, Harry Truman. Um breve ano e pouco depois, em Dezembro de 1950, os países co-signatários do Tratado de Bruxelas decidiram transferir para a NATO a responsabilidade pela defesa da Europa Ocidental (como então se passou a chamar)217. A Declaração de Washington, assinada a 14 de Setembro de 1951 foi decisiva, ao recomendar a participação da Alemanha numa nova Comunidade de Defesa Europeia, uma entidade do âmbito da NATO218. No palco entraram os Estados Unidos e a Alemanha Federal: o quadro que hoje conhecemos começava a compor-se. Uma vez as decisões políticas de fundo assumidas, a passada acelerou. Na frente da gestação paralela daquilo que se iria chamar a “União Europeia”, o Tratado da Comunidade de Defesa Europeia foi celebrado a 27 de Maio de 1952 pela Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e RFA: inicialmente fora imaginada como etapa na direcção da Federação Europeia que tinha sido idealizada no chamado Plano Schuman. Como vimos, o Tratado, no entanto, falhou: o Parlamento francês recusou (a 30 de Agosto de 1954) ratificar uma Comunidade a que uma Grã-Bretanha anti-federalista se recusara a aderir. Uma velha clivagem reacendia-se. Interesses estreitos dos Estados (nomeadamente do francês) opunham-se ao interesse colectivo europeu. Coligações que viriam a revelar-se ser sólidas e duradouras formavam-se ou afirmavam-se. O futuro iria demonstrar que se tratava de posicionamentos e configurações de comportamento de assaz longa duração. Sob nova guisa, como aliás seria decer- 217 As competências em matérias culturais, económicas e sociais foram mantidas na UEO, apesar da criação paralela do Conselho da Europa em 1949. Em arranjos institucionais multilaterais variados que iam sendo desenhados lado a lado, a Europa saída da guerra ia-se consolidando. 218 Entretanto, muito ia com efeito mudando, face às profundas alterações ocorridas nos cenários internacionais em fluxo então. Como escreveu A. da Costa Arsénio (1988, op. cit.: 4), em inícios dos anos 50 “um dos motivos determinantes do espírito do Tratado de Bruxelas – a ameaça alemã – passou a ser encarado sob óptica diversa”: o que levou à Declaração de Washington, de 14 de Setembro de 1951, na qual os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos, da França e da Grã-Bretanha manifestaram o desejo de incluir a Alemanha como participante activo na defesa do Ocidente, através de uma Comunidade de Defesa Europeia criada no âmbito da NATO; uma proposta francesa reiterada na reunião seguinte do Conselho do Atlântico Norte, realizada em Fevereiro de 1952 em Lisboa. 240 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS to de esperar, tais alinhamentos são os que se têm vindo a manifestar na conjuntura hoje (nestes finais de 2003) vivida. Os esforços de coordenação da defesa e os processos de integração não pararam no entanto, apesar do revés temporário sofrido. Mas os interesses exclusivistas e as ânsias de protagonismo não se calaram. Logo nos meses de Setembro e Outubro seguintes219, ainda portanto em 1954, sob o impulso de Anthony Eden, o célebre Ministro britânico, os Ministros dos Negócios Estrangeiros reuniram primeiro em Londres e depois em Paris para o efeito. Apesar de uma pesada e dolorosa demora causada pela exigência francesa em condicionar o rearmamento alemão (ainda que limitado e parcial, i.e. sem quaisquer armas “atómicas, químicas ou biológicas”) à resolução do “problema do Sarre”220, os Acordos de Paris (que formalmente deram à luz a União Europeia Ocidental) foram, enfim, devidamente ratificados pelos Estados co-signatários a 6 de Maio de 1955. Numa posição intercalar difícil, e como é bem conhecido, a UEO acabou por ficar aquém das expectativas. O seu esbatimento foi progressivo; mas a solução encontrada para o levar a cabo foi institucional. Um primeiro esvaziamento de conteúdo ocorreu em 1950, data em que, como vimos, as competências em matéria de manutenção e defesa de paz europeia foram transferidas para a NATO. Em 1960, dez anos mais tarde, a UEO transferiu as suas responsabilidades “sócio- 219 A reunião em Londres durou de 28 de Setembro a 3 de Outubro. Nessa Conferência participaram os cinco Estados signatários do Tratado de Bruxelas e quatro outros: a Alemanha e a Itália, e os Estados Unidos e o Canadá. Entre 20 e 23 de Outubro seguinte, em Paris, uma nova Conferência aprovou Protocolos Adicionais, estreitou os laços com a NATO, decretou o fim da ocupação-administração da Alemanha ocidental, criou uma Assembleia para a UEO e instalou mecanismos vigorosos de defesa colectiva para os Estados-membros da União. 220 Um processo moroso. Face à incapacidade bilateral dos Governos, francês e alemão, para encontrar uma solução, o Conselho Consultivo da UEO propôs uma fórmula conciliatória que passava pela atribuição de um Estatuto Europeu, no quadro da UEO, ao Sarre; em resultado, foi assinado um Acordo Franco-Germânico (em 23 de Outubro de 1954) e foi realizado um referendo (em Outubro de 1955) no Sarre. Face à rejeição do Estatuto uma vez este referendado pela população da região, o Sarre foi reintegrado na Alemanha num processo faseado prolongado começado no mês de Janeiro de 1957 e concluído no distante mês de Julho de 1959. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 241 -culturais” para o Conselho da Europa. Outra década depois, em 1970, entregou à então CEE todas as competências em matéria económica. Só em 1987 foi reacordada, com a chamada Plataforma da Haia221, na qual foi enfim asseverado que uma verdadeira integração europeia exigia a inclusão de uma dimensão de segurança e defesa, e na qual foi ainda reiterada a convicção de que a segurança da Aliança Atlântica é “indivisível”, pelo que a segurança e defesa da Europa terá de se manter em estreita conexão com os norte-americanos, os únicos que a poderão a médio prazo assegurar222. O que se seguiu é muito mais bem conhecido. Em calhas paralelas, os processos de integração prosseguiram na frente político-económico-social e na político-militar. As clivagens e afirmações individuais de alguns Estados também, na linha, aliás, daquelas que antes sublinhámos. Uma simples listagem põe-no em relevo. As negociações empreendidas em 1963 com vista à entrada da Grã-Bretanha na CEE esbarraram com o veto de uma França gaullista que se opunha terminantemente à ideia, argumentando, famosamente, que os britânicos, “entre a Europa e le grand large”, prefeririam sempre este último223; só em 1970 começaram negociações que apenas em Janeiro de 1972, com Charles de Gaulle já morto, levaram à assinatura tardia do tratado de Adesão da Grã-Bretanha à ainda CEE. Em 1966, num gesto paralelo, o General-Presidente retirara a França do Comando Militar Integrado da NATO; neste caso a atitude fizera já frente a britânicos e norte-americanos e baseara-se na opinião de C. de Gaulle de que era crucial manter uma capacidade francesa própria de dissuasão nuclear indepen221 Muitas vezes intitulada, algo hiperbolicamente, com “a Magna Carta da segurança e defesa europeias”. Para além de delinear papéis e interdependências no que toca a forças convencionais e a forças nucleares, a Plataforma alude ao desarmamento e controlo de armamentos e ao diálogo e cooperação “Leste-Oeste”. 222 Uma espécie de irmã gémea da Cooperação Política Europeia (um forum dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia), entidade ademais de algum modo também paralela à NATO, tem desde então tido altos e baixos que se prendem com as reduplicações de papéis que essas vizinhanças orgânicas implicam. 223 Uma frase sibilina que, segundo Charles de Gaulle, teria sido proferida pelo próprio Winston Churchill num almoço a dois, em Londres, quando da preparação da invasão aliada das praias da Normandia a 6 de Junho de 1944. 242 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS dente (a célebre force de frappe autónoma224) face a uma URSS tida como cada vez mais ameaçadora. As tensões de conjunto, com faces variadas, mas com pontos de aplicação bastante regulares, continuaram até hoje. Estes foram os sucessivos finca-pés do eixo franco-alemão; as constantes expressões de uma “special relationship” entre os britânicos e os norte-americanos; e a permanência intocada de um receio profundo da Alemanha e de um medo das pretensões político-territoriais da Europa Ocidental em relação à de Leste. Re-emergiram, em momentos-chave como os processos de alargamento da União Europeia nos anos 70 e 80, os processos de reformulação e alargamento da NATO depois da dissolução-fragmentação da URSS e, em casos avulsos como a contenção nos anos 90 de uma ex-Jugoslávia explosiva, na abertura “a leste” esboçada na passagem do milénio ou, hoje em dia, tanto na concretização disso quanto nas movimentações e nos alinhamentos que rodearam a questão do Iraque. O processo, é verdade, não tem sido linear: os avanços foram sempre sendo atenuados por recuos. Mas embora 224 Vale a pena aproveitar a oportunidade para estabelecer aqui uma comparação-contraste. Desde cedo que os franceses, no domínio do armamento nuclear, insistiram em reter uma force de frappe autónoma, até mesmo a nível tecnológico-industrial. Opôs-se-lhe a decisão britânica de usar tecnologia provinda do outro lado do Atlântico (primeiro a respeito dos mísseis Polaris e depois dos Pershing), o que muito aumentou a interdependência em relação aos norte-americanos, diminuindo os custos e, no essencial, ampliando enormemente a eficácia do sistema de segurança e defesa do Reino Unido, um dos pilares históricos da Europa. A reaproximação britânica culminou depois do fim abrupto da détente, em 1979, com a invasão soviética do Afeganistão e a subida ao poder, em 1980, de Ronald Reagan e a sua consequente ligação especial com Margaret Thatcher: iniciou-se aquilo a que muitos analistas chamaram “the New Cold War”, com uma aceleração inusitada em tempo de “paz” da corrida aos armamentos entre os dois blocos. Do lado norte-americano, em todo o caso, não houve nesse novo período nenhum desinvestimento na ligação estratégica à Europa, bem pelo contrário. Um exemplo disso (para além da reacção de mão pesada aos SS-20) deu-se logo a partir de meados da década de 70, quando a supremacia naval da NATO no Atlântico norte (essencial, tal como a base das Lajes, para reforçar a frente europeia no caso de eventual invasão do Continente com os famigerados tanques provindos do leste) foi posta em dúvida pela expansão das capacidades da Marinha de Guerra soviética, deslocada a partir de Murmansk, no mar de Barents. O eventual desequilíbrio (porventura mais sentido que real) foi sol de pouca dura; logo em 1981, Ronald Reagan, no quadro, aliás, do rearmamento generalizado que liderou, respondeu com um ressurgimento em força que ficou conhecido como “the Maritime Strategy”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 243 a progressão geral fosse inexorável, o facto é que a nível de defesa e segurança pouco foi aquilo que efectivamente aconteceu. Nisso, a distância entre as declarações retóricas de intenção e as práticas concretas manteve-se. O que não deixa de ser significativo. As involuções (no sentido de “os passos de dança”) deste verdadeiro minuete são nossas conhecidas. Um giro foi aquele dado com as negociações 225 conducentes à reunificação da Alemanha e à inclusão paralela e simultânea da nova unidade na NATO, mediante uma conjugação de restrições quanto ao estacionamento de tropas da Aliança no leste do país reunificado com a promessa de uma transformação programática desta última de coligação militar anti-Soviética para uma instituição cooperativa de segurança: o que redundou na delineação de uma nova arquitectura de segurança e defesa para a Europa226. A 225 As notáveis “Conversações Dois mais Quatro”, que decorreram entre finais de 1989 e Setembro de 1990 em diversas Cimeiras ao mais alto nível e culminaram com um longo encontro entre George Bush (pai) e Mikhail Gorbatchov, envolvendo as duas Alemanhas e as quatro potências Aliadas, a União Soviética, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França. Para uma discussão fascinante da “racionalidade argumentativa” destas negociações, ver Thomas Risse (2000: 23-28). Risse conta, designadamente, como G. Bush logrou convencer M. Gorbatchov (para grande desalento dos conselheiros deste último, que em resultado desencadearam uma discussão fervorosa ali mesmo, no decurso da reunião cimeira entre os dois Chefes de Estado) da bondade da unificação, apelando para o efeito a convicções que sabia serem partilhadas pelo líder soviético, nomeadamente o papel e os pressupostos da OSCE e o direito inalienável à autodeterminação dos alemães como de todos os outros povos. Descrições mais impressionistas (e que reflectem alguma selectividade nas reminiscências) podem ser encontradas nos volumes de Memórias de Mikhail Gorbatchov, James Baker, Hans-Dietrich Genscher e Edvard Shevardnadze. 226 Curiosamente, aliás, nessas a vários títulos extraordinárias conversações “Quatro mais Dois”, e face a uma conjuntura negocial em que todos pareciam temer as consequências de uma reunificação que reconstituísse uma Grande Alemanha e a deixasse em roda livre, os argumentos que parecem ter sido mais persuasivos foram precisamente os dos norte-americanos, que insistiram (neo-realisticamente) que uma Alemanha integrada na NATO e em que se mantivessem tropas norte-americanas ofereceria melhores garantias de segurança que uma Alemanha neutra, como desde os anos 50 o preferia a doutrina estratégica soviética. As partes concordaram com a solução liberal segundo a qual competia aos alemães, em virtude do princípio da autodeterminação consagrado entre outros pela OSCE, decidir se desejavam integrar a Aliança. Para uma discussão pormenorizada, ver Philip Zelikow e Condoleezza Rice (1995: 184) e Thomas Risse (2000, op. cit.: 25-28). 244 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS criação, imediatamente subsequente, pelo Tratado de Maastricht de 1992, de uma “unidade” política e económica europeia mais densa e intensa foi outro compasso harmónico importante. Tal como o foram, ao longo dos anos 90, as respostas político-militares europeias face às crises sucessivas que assolaram os Balcãs, e em reacção às quais se começou a esboçar o projecto (mas tão-somente o projecto) de uma política externa e de segurança e defesa europeias. A preponderância manifesta dos norte-americanos na condução militar e política das operações, primeiro em 1995 na Bósnia-Herzegovina, e depois em 1999, no Kosovo, acordaram a vontade de criação de uma capacidade militar europeia independente, que limitasse uma dependência que o fim da Guerra Fria tornara obsoleta aos olhos de alguns e que a vontade de nas novas conjunturas emergentes em delinear uma política externa própria tornara imprescindível. Nova fase do minuete parece ter sido iniciada perto do virar do milénio, numa conjuntura em que se tornara evidente tanto a descolagem tecnológica e armamentista de uns Estados Unidos cada vez mais bem equipados e apetrechados227 face a uma Europa militarmente cada vez mais enfraquecida, quanto à profundidade da alteração de circunstâncias nos panoramas internos europeus e internacionais num sentido mais global e abrangente. Era a própria essência das involuções emparelhadas que parecia ir mudar. Decerto denotando consciência dos riscos, um novo e arriscado passo de dança foi executado: em finais de 1998, numa iniciativa política audaciosa que surpreendeu muita gente, Tony Blair estendeu a mão a Jacques Chirac, numa 227 Não vale a pena fornecer aqui mais, a este respeito, do que alguns elementos diacríticos desta mudança. Com o fim da Guerra Fria, os países europeus diminuíram por norma as suas despesas militares. Não os Estados Unidos: em 2002, a mais bem armada das dezassete maiores potências do Mundo, os EUA, detinha mais poder de fogo do que as outras dezasseis juntas. Um “avanço” que tende a aumentar. No artigo já citado, F. Zakaria (2003, op. cit.) nota que “the crucial measure of military might in the early 20th century was naval power, and Britain ruled the waves with a fleet as large as the next two navies put together. By contrast, the United States will spend as much next year [2004] as the rest of the world put together (yes, all 191 countries). And it will do so devoting 4 percent of its GDP, a low level by postwar standards”. Uma claríssima hegemonia político-militar. Evidenciada, por exemplo, no desenrolar fulgurante da Segunda Guerra do Golfo. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 245 tentativa de agregar as duas potências nucleares da União Europeia em redor de um projecto comum de defesa gizado apenas em parte fora do quadro da NATO228. De uma forma surpreendente para muitos observadores e especialistas, assim se encetou o chamado “processo de St. Malo”, com negociações entre as duas potências nucleares da União Europeia. Mas a sua eficácia tem sido duvidosa; cinco anos depois, em 2003, nem os 60 mil homens tidos como imprescindíveis tinham sido mobilizados para a ambicionada e programada Força de Intervenção Rápida europeia229, nem a PESC (para dirigir os destinos da qual fora avisadamente eleito Javier Solana, até aí Secretário-Geral da Aliança Atlântica) realmente avançara, nem o projecto parecia já minimamente credível230. Pior, o processo de certo modo como que retrocedeu: como é bem sabido, em 29 de Abril de 2003, franceses e alemães (com o apoio de dois dos países do Benelux, a Bélgica e o Luxemburgo) ensaiaram a constituição de uma força militar conjunta autónoma, no seguimento, aliás, da reacção de repúdio antes esboçada em 228 Como também o Tratado de Amesterdão o fez. Mas, (de maneira significativa) apenas e não totalmente. E em subordinação explícita e absoluta em relação a esse quadro. O artigo 17.º, número 1, do Tratado de Amesterdão (2001: 11) declarava que “a política da União [...] respeitará as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico-Norte para certos Estados-membros que vêem a sua política de defesa comum realizada no quadro da organização do Tratado do Atlântico-Norte (NATO) e será compatível com a política de segurança e defesa comum adoptada nesse âmbito”. 229 Uma ideia adaptada do original norte-americano. O ano de 1979 (como antes o fora o de 1975) foi de algum modo um annus horribilis para a segurança ocidental. Nesse ano a URSS invadiu o Afeganistão. O regime do Xá da Pérsia, Reza Pahlevi, ruiu e foi substituído por uma teocracia liderada pelo Ayatollah Khoimeni. Assustados com eventuais intuitos hegemónicos soviéticos numa Ásia central de importância geoestratégica crescente (sobretudo para a URSS, cujas fronteiras confinavam com essa região na sua instável soft belly islâmica, e ademais desejosa de adquirir acesso aos “mares quentes” do sul), a Administração dos Estados Unidos desenvolveu o conceito de uma Rapid Reaction Force para eventual interposição na zona, dedicada no essencial à protecção do Irão. 230 Para uma discussão interessante dos motivos para este falhanço histórico, é útil a leitura de Robert Kagan (2003: 49-55), que os localiza “somewhere in the realm of ideology”, e com algum reduccionismo, como já indiquei, os vê como resultado da “fraqueza pós-moderna” de uma Europa kantiana por obra e graça de uma protecção assegurada pelos norte-americanos. Tudo se tornaria seguramente mais claro e inteligível se Kagan, em vez da sua alusão construtivista a uma “ideologia”, tivesse aludido explicitamente ao nacionalismo unilateralista que tem sempre sido apanágio da política externa moderna do Estado francês. 246 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS resposta ao “unilateralismo” norte-americano que franceses e alemães insistiram em vislumbrar na intervenção coligada levada a cabo no Iraque. Um terramoto? Um mero gesto retórico, inconsequente? Em finais do decénio, um analista norte-americano influente, Samuel Huntington (1999)231, pôde asseverar que uma Europa a crescer a olhos vistos viria a tornar-se num outro “pólo” de um mundo “multipolar” que se iria, em sua opinião, seguir ao panorama “uni-multipolar” existente desde o rescaldo da Guerra do Golfo em 1991. Foi uma ilusão que o papel rotundamente preponderante dos Estados Unidos na Bósnia-Herzegovina em 1995 atenuou e essa mesma centralidade (em 1999, quando da intervenção da NATO no Kosovo) estilhaçou, ao demonstrar que, longe de diminuir, o gap tecnológico-militar entre a Europa e os Estados Unidos tinha-se entretanto continuado a ampliar de forma substancial. Uma descolagem que o tempo e os acontecimentos dramáticos que se sucederam iriam aprofundar. Cedo isto se tornou claro. Depois do 11 de Setembro de 2001, numa situação em que os norte-americanos aumentaram em flecha a fatia do seu orçamento dedicada à defesa enquanto os europeus continuavam a diminuir as suas232 (com raras excepções, sobretudo a Leste), tornava-se cada vez mais difícil argumentar que a “estrutura da conjuntura” concentrada no pas de deux entre a Europa e os Estados Unidos não estaria verdadeiramente a alterar-se de forma qualitativa. Tratava-se, bem pelo contrário, de uma evidência que entra pelos olhos dentro. Cada vez mais é mais nítido o objectivo central da política externa norte- 231 Um artigo notável do célebre autor das famosas teses de que estaria iminente um Clash of Civilizations, em que parece ter havido algum recuo de Huntington no que toca à aplicação “mecânica” do modelo antes desenvolvido. 232 Para uma discussão construtivista sobre as pretensões da União Europeia em se tornar um actor militar global, baseada no essencial em documentação do Conselho de Ministros europeus e nas construções discursivas de Javier Solana, ver o artigo de Henrik Larsen (2002). Larsen conclui que o “discurso dominante” durante os anos 90, que se manteve no chamado “processo de St. Malo”, tem vindo a retratar a União como uma potência no essencial civil, que mobiliza meios de poder sobretudo políticos e económicos: uma modelização perfeitamente compatível, curiosamente, com as teses de R. Kagan, embora nenhum deles cite o outro. Segundo H. Larsen, um discurso construtivista como esse “explica” (no sentido em que é congruente com) o foco regional da União Europeia e o seu uso limitado de meios militares. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 247 -americana de assegurar a sua posição hegemónica na ordem internacional em mudança; em simultâneo com o novo unilateralismo a que isso dá corpo; e reemergem do outro lado do Atlântico teses isolacionistas que podem sugerir a eventualidade de um eventual rápido desinvestimento político-militar norte-americano na Europa. Enquanto a finalidade de muitos dos políticos europeus (não se pode, em boa verdade, aqui aludir num sentido útil a uma qualquer “política externa europeia”233) é a de contrariar precisamente uma ou outra dessas pretensões, muitas vezes abusivamente tomadas como sendo antinómicas. 3. No que precede, e sem de maneira nenhuma ensaiar um levantamento exaustivo de um primeiro plano, como lhe chamei, fiz até aqui questão de me deter um pouco mais no período coberto pela vintena de anos imediatamente posterior ao fim da 2.ª Guerra Mundial. Não o decidi fazer com a intenção de propor uma qualquer linha de desenvolvimento de uma “história” das instituições envolvidas. Antes ensaiei deslindar um fio condutor, por muito redutor que fazê-lo possa significar. Tentei um levantamento parcial e selectivo de algumas das linhas de força dos inúmeros acontecimentos e decisões tomadas neste intervalo de tempo, empreendido de maneira a melhor pôr em evidência os fundamentos em que se foi gizando a conjuntura actual e os mecanismos de expressão de uma fissura entre um eventual eixo americano-britânico e um hipotético eixo franco-alemão no contexto particular da interacção transatlântica. Não é no entanto o plano da segurança e da defesa o único em que tem tido lugar a gestação da entidade que viríamos a denominar União Europeia. Como houve oportunidade de verificar, um segundo plano, menos directamente histórico e político-estratégico e mais político-económico e financeiro, colocou-se-lhe 233 O que antes era mais um problema para os americanos do que porventura hoje em dia o será. No que dizia respeito ao tempo da Administração Nixon, Henry Kissinger desbafou lamentando-se de não ter “a single telephone number to call in Europe”. O facto é que, trinta anos volvidos, um “telefone vermelho” europeu continua a brilhar pela sua ausência. 248 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS a montante. Este segundo plano é conceptualizável como um domínio no essencial de natureza organizacional. Para o esboçar, importa sublinhar as propriedades específicas deste outro plano que tem condicionado em muito a progressiva constituição dessa nova entidade intergovernamental (e, nalgum sentido, supranacional) que os Europeus vieram introduzir nos palcos internacionais. Apesar daquilo que antes já sobre este plano tive a oportunidade de dizer, delineá-lo requer um esforço, menos linear, de repescagem de dados. No intuito de melhor o compreender, ou o cartografar, há que voltar atrás na sequência cronológica dos acontecimentos; para trazer à superfície os seus atributos e características é imprescindível retomar a questão político-militar como contexto, o que põe bem em relevo a hierarquia dos constrangimentos no que toca a estes tão complexos processos. Vale a pena mais uma vez começar pelo pano de fundo organizacionalhistórico, agora de um outro ângulo. Ao contrário daquilo com que os líderes Aliados, pela mão de Winston Churchill e de Franklin Delano Roosevelt pelo menos, tinham idealizado como modo de conquistar a paz, o Mundo do pós-1945 cedo descambou. O que veio à tona foi, não numa ordem internacional liberal e multilateral como fora sonhado e traçado a compasso e esquadria em Bretton Woods em Julho de 1944, ou em S. Francisco (Dumbarton Oaks) no mês seguinte de Agosto, e depois, em Fevereiro de 1945, em Yalta, sob a protecção de um sistema neo-wilsoniano de “segurança colectiva”. Não se tratou, em boa verdade, de uma entrada em força do sistema das Nações Unidas como “uma instância de governação global”. A ONU redundou no essencial num arranjo de Estados, que se saldava em pouco mais, no fundo, do que um upgrading da extinta e coxa Sociedade das Nações nascida em Versailles em 1919 pela mão de um Woodrow Wilson que com tanta vivacidade (e frustração, decerto, ao ver o Senado imprudentemente não ratificar a adesão a ela dos Estados Unidos) a imaginara234. 234 Cf. Henry Kissinger, op. cit.: ibid. e pp. ss., para uma descrição pormenorizada das posturas e tomadas de posição, dos acontecimentos e dos meandros político-burocráticos destes processos complexos que tão importantes foram para a instalação de uma nova ordem internacional no pós-guerra. Com muitíssimo maior resolução de imagens, ver o já antes referido estudo, monográfico mas multi-dimensionado, de Margaret MacMillan (op. cit.: 2003). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 249 O que depois de 1945 veio à superfície, e se instalou para ficar, depressa se cristalizou, antes, numa ordem bipolar. Em resultado, a grande organização internacional desenhada e instalada viu-se vítima de uma longa paralisia. A paz não fora afinal conquistada: com a clivagem que se aprofundou e opôs a União Soviética aos seus antigos aliados, segui-se-lhe uma Guerra Fria, para muitos (os menos atentos, diríamos nós hoje com os benefícios da retrospecção) uma contenda inesperada. Aos militares no terreno e aos diplomatas nas chancelarias, acrescentavam-se, na nova ordem internacional, vários tipos de Cold Warriors nos seus gabinetes. Perante uma ordenação inovadora das coisas, a nova distribuição do poder no Mundo pós-1945 não foi de facto inconsequente. Dois grandes blocos, fortemente armados e tanto política como militarmente hegemónicos nas suas respectivas zonas de influência, defrontaram-se um ao outro durante quase meio século. A estabilidade lograda por um equilíbrio bipolar simples revelava-se uma fórmula relativamente eficaz: finalmente, e apesar do paradoxal que tal possa ter parecido aos observadores liberais da época, alguma pacificação local fora conseguida na Europa. Longe de um equilíbrio conseguido por mecanismos supra-estaduais de collective security desenhados com fervor e cuidado idealistas, o que no fundo se saldava numa nova variante do antigo balance of power, o chamado balance of terror (um equilíbrio tenso, mas bastante estável, viabilizado e exigido pelos novos armamentos nucleares) foi o que manteve alguma ordem no Mundo do pós-guerra. Instalou-se, pelo menos na Europa Ocidental (como então era chamada) uma paz tensa mas aparentemente estável. Uma oportunidade doirada para reformas de fundo. E, de facto, políticos e cidadãos comuns das intelligentsias ocidentais, cedo reagiram a essa nova conjuntura regional e global. A situação de pacificação efectivamente favorecia-o. Numa Europa destruída e dorida, em processo de reconstrução acelerada (mas desigual) por obra e graça de um Plano Marshall norte-americano235 e sob a protecção de um nuclear umbrella cauteloso e firme, 235 Em valores actuais, o Plano Marshall envolveu investimentos públicos e privados norte- -americanos na reconstrução e reorganização económica da Europa no montante de 120 biliões de 250 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS cedo se começaram a sentir clamores, dentro e fora das sociedades civis, que urgiam uma reorganização social, política, económica, profundas. Do lado de cá de uma Cortina de Ferro menos simbólica do que dolorosamente real, muitos foram, entre políticos e cidadãos atentos, aqueles que sublinharam o imperativo de conciliar vontades como única fórmula capaz de minimizar riscos naquilo que viam como um futuro incerto236. Para além de uma solução político-militar, a saída consensual complementar encontrada foi de algum modo configuracional e prendeu-se com uma reorganização-reordenamento político-administrativo-económico do Velho Continente. Por razões políticas e económicas mais conjunturais do que as pressões histórico-políticas de fundo que se continuavam a fazer sentir (e de maneira até talvez mais aguda e premente), uma integração regional (a tantos níveis quantos possíveis) da Europa Ocidental, foi tida como sendo coisa imprescindível. Uma espécie de New Deal em versão europeia foi esquissada. O parto não foi difícil: no quadro da reconstrução empreendida, nascia a par e passo uma “Europa social” com laivos do welfare system que tantos, nos anos 30, tinham só visado ou invocado. A tomada de consciência foi ampla. Do “lado de lá” sentiram-se decerto pressões semelhantes e foram de modo consequente encontradas soluções parecidas; mas não idênticas. O modelo económico da COMECON era, naturalmente, convergente com as economias planificadas e a lógica implícita de divisão do trabalho que tal modelização sugeria. O modelo político também seguia de acordo com coordenadas próprias e conjunturais. Se o Bloco de Leste achou por bem, certamente no intuito de assegurar a sua própria sobrevivência, criar ao seu dólares US (sensivelmente o mesmo em Euros, à taxa de câmbio actual, meados de 2003). Ao invés do que muitas vezes se afirma, as iniciativas financiadas e o seu controlo couberam largamente aos recipientes europeus e não aos investidores norte-americanos. Constituiu um efectivo arranque para os projectos para uma futura União da Europa. 236 Da muita bibliografia publicada sobre temas relativos aos movimentos políticos e sociais desta época, aconselhamos a leitura da fascinante monografia de Frances Stonor Sunders (1999), sobre o papel, sobretudo nos difíceis anos 50 e 60 do século XX, das agências norte-americanas de informações na formatação de uma opinião pública europeia democrática que se opusesse às pretensões hegemónicas de uma União Soviética então ainda capaz de uma grande capacidade de penetração nalguns meios intelectuais, académicos e artísticos. Um contrapeso de peso. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 251 redor o que no fundo redundava num cordão sanitário, uma espécie de Linha Maginot em grande escala237, os Europeus Ocidentais preferiram organizar-se num bloco coeso e impermeável q.b., para assim garantir pelo seu lado alguma autonomia238. Nada disto é surpreendente: como seria de esperar, cada bloco reagiu em termos congruentes com os temores e as certezas que sustentava sobre o seu próprio futuro. A nível militar tout court, como vimos, reinava o mesmo tipo de convicções, ou pelo menos dominavam opiniões com implicações semelhantes239. Alguma razão havia de facto para isso. Aquilo que teve lugar foi uma espécie de rescalonamento face a uma nova ordenação internacional das coisas em que o tamanho e a dimensão relativas tinham a sua importância. Para além de ter sido (esta é pelo menos uma interpretação possível, que muitos não deixaram de fazer) um gesto sensato e cordato de resistência a ameaças múltiplas, executado, à boa maneira de europeus experientes em questões de diplomacias em conjunturas por alguns (nomeadamente os franceses) lidas como sendo de um balance of power, sem fechar quaisquer portas. Tratava-se, com efeito, de uma boa solução estratégica em várias frentes. Nos termos destas outras pressões e também desde o seu início, a União Europeia foi um projecto económico e sociopolítico de afirmação própria, de abrangência em relação ao cíclico “perigo alemão”, e de contenção da expansão 237 Exigência, aliás, da doutrina estratégica soviética que, nisso, seguiu de perto uma tradição czarista antiga. Uma doutrina, efectivamente, de longa duração: muita da oposição contemporânea da Rússia de Vladimir Putin ao recente acordo de alargamento da NATO corresponde a considerandos geoestratégicos que fluem das versões actuais dessa mesma doutrina. 238 Muitas outras eram as diferenças estratégicas e “texturais” existentes entre os dois blocos, e designadamente entre o par COMECON-Pacto de Varsóvia e o emparelhamento paralelo Comunidade Económica Europeia-NATO. Parece-me, no entanto, que a nível macro a distinção proposta tem algum fundamento já que encontra algum eco empírico nos factos e processos vividos. 239 Se isto foi verdade nos domínios organizacionais mais políticos como lhes chamei, é de frisar que um mesmo tipo de pressão se fez também sentir em áreas mais estritamente militares. Do ponto de vista da segurança e defesa, e face às resistências e renitências soberanas de muitos dos Estados europeus, a coligação com os Estados Unidos, senhores do umbrella e a grande potência deste lado das barricadas, uma coligação a que a Aliança Atlântica cedo deu corpo (logo em Abril de 1949), apareceu como uma solução providencial. 252 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS do comunismo no Velho Continente. Designadamente, uma fórmula que, em simultâneo, permitia aos europeus incluir os alemães, aplacar os medos dos franceses, erguer-se ao nível dos norte-americanos e distanciar-se dos soviéticos. Se a NATO foi celebremente definida por Lorde Ismay240, seu primeiro Secretário-Geral, como uma maneira to keep the Americans in, the Russians out, and the Germans down, talvez não seja totalmente descabido entrever a integração europeia como uma agenda delineada para, em paralelo, keep the Germans in and keep the Russians out by growing to an American scale and organizing up to an equivalent level of integration, while trying not to frighten away the French241. Antes de passar ao ponto seguinte, importa fazer aqui uma breve excursão a um tema lateral: o do papel preenchido pelos norte-americanos neste processo organizacional. Trata-se de um papel muitas vezes mal entendido na Europa. Com efeito, seria abusivo conceptualizar o rescalonamento e a organização almejados como tendo sido gizados em oposição aos norte-americanos. Nisso, e este ponto nem sempre é devidamente reconhecido, o projecto europeu desde sempre teve o apoio oficial explícito dos Estados Unidos da América. Basta 240 Um famoso General, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas britânicas durante a invasão da Normandia, e tal como primeiro F. D. Roosevelt, depois W. Churchill, um fogoso “inimigo de estimação” de Charles de Gaulle, que os Aliados consideravam um “oportunista” ignóbil e um “traidor” em potência à causa democrática. São bem conhecidas as hesitações firmes e o desprezo de F. D. Roosevelt em relação ao General de Gaulle. 241 Se bem que esse não seja o tópico do presente trabalho, vale a pena notar que o formato- -solução idealizado pelas potências vencedoras e proposto em 1945, depressa se mostrou desadequado: entretanto, a distribuição do poder no Mundo alterara-se e os arranjos estruturais internos da ONU já desde há muito tinham deixado de representar bem a nova geometria emergente. A relação Europa-Estados Unidos da América foi desde cedo disso uma vítima, infelizmente nem sempre como tal reconhecida. As dissensões, quando não as confrontações, multiplicaram-se. Nesse como noutros fora, arenas cada vez mais importantes num Mundo cada vez mais multilateral, muitos Estados europeus sentiram mais e mais que a sua representação avulsa se revelava insuficiente para garantir que os seus interesses fossem devidamente precavidos. Acresce que muitos nos Estados Unidos começaram pelo contrário a decifrar a nova ordem pós-bipolar como “um momento unilateral”, de que havia que tirar benefícios. Num Mundo palco de desigualdades crescentes e com perspectivas tão dissonantes, a aquisição de uma voz forte e grossa mostrou-se imprescindível aos olhos da maioria dos europeus. Uma voz que a Europa ainda não tem, mas de que tem nos últimos anos andado claramente (com PESCs e PESDs e Missões de Petersberg, etc.) à procura. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 253 ampliar imagens no que toca à história da política externa norte-americana do pós-guerra para o confirmar. Mais uma vez sem pretendermos ser mais do que indicativos quanto a processos intrincados e complexos: o Plano Marshall (posto em prática pela Administração de Washington em aplicação directa da famosa Vandenberg Resolution de Março de 1948242), deu um enorme estímulo à criação da República Federal Alemã e à gestação da NATO “por cima” de uma UEO que, como vimos, depressa foi considerada como sendo insuficiente. Do ponto de vista norte-americano interno tratou-se de uma clara vitória da Doutrina Truman, como foi crismada: uma longa fase de um isolacionismo que se revelava ser cíclico cessara243. O apoio público norte-americano à construção e solidificação de uma Europa democrática não deixou dúvidas a ninguém; como Henry Kissinger, um americano de origem europeia, hiperbólica mas certeiramente escreveu, “ajudando a reconstruir a Europa, encorajando a unidade europeia, criando instituições de cooperação económica e ampliando o quadro protector da nossa aliança, salvaram as possibilidades da liberdade. Essa erupção de criatividade é um dos momentos gloriosos da história americana”244. Havia decerto para isso fortes 242 Como notou num recente artigo de opinião o antigo Secretário-Geral da UEO, José Cutileiro (2003), mais do que simbólica, a data era apropriada: urgia fazer alguma coisa de concreto no mesmo fatídico mês de Março de 1948 em que os tanques e Estaline irromperam pela Checoslováquia adentro e Berlim se viu transformada numa cidade bloqueada, numa antecipação avant la lettre daquilo a que os soviéticos viriam a apelidar de tolerância de uma “soberania limitada” a Leste. 243 As novas conjunturas assim o pareciam aconselhar. Como lembrou R. Kagan (2002, op. cit.: 14), “when the Cold War dawned, Americans such as Dean Acheson hoped to create in Europe a powerful partner against the Soviet Union”. A essa função cedo se veio juntar o papel de “tripwire”, de primeiro palco para uma eventual confrontação com o bloco soviético. Contrasta com esta perspectiva (ainda que Kagan lhe não aluda) a curiosa interpretação “culturalista” de Thomas Risse-Kappen (1996), segundo a qual a NATO seria, no essencial, uma comunidade que congrega uma “família” cultural; um modelo que tem dificuldades em explicar a pertença à Aliança de Estados como a Turquia, ou a entrada nela de Portugal, da Espanha e da Grécia, todos eles então Estados não-democráticos. 244 Henry Kissinger (1979). Estas frases de Kissinger foram citadas num artigo de José Cutileiro, intitulado “O fosso”, publicado no Expresso, na p. 24 do caderno 2, a 8 de Março de 2003. Cutileiro, nesse curto artigo, intitula essa ajuda “a pedra sobre o qual o mundo livre assenta há mais de meio 254 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS pressões conjunturais. Durante mais de cinquenta anos, os Estados Unidos e a Europa colaboraram num grande projecto estratégico transatlântico cujos objectivos eram os de criar um Continente próspero, democrático e em paz, livre de ameaças internas e externas245. A ideia norte-americana de um partenariado europeu variou com o tempo e o andar das coisas; mas manteve-se. A visão, ambiciosa, integracionista e interessada de Harry Truman substituiu as intenções de Franklin Delano Roosevelt de arredar definitivamente a Europa dos palcos internacionais depois das duas guerras mundiais sucessivas por ela causadas. século”; uma pedra que, lamenta, “foi rachada da alto a baixo” com a crise recente que se saldou em numerosas tensões entre os Estados Unidos e o eixo franco-alemão a pretexto da questão iraquiana. É interessante verificar, neste processo, a instrumentalização da figura do General de Gaulle: o mesmo de Gaulle que, note-se, apoiou imediata e incondicionalmente o Presidente John F. Kennedy e a Administração norte-americana durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962; nada disso tem impedido Jacques Chirac de se apresentar publicamente como estando a assumir uma postura “gaullista”. Como com admirável lucidez escreveu Fareed Zakaria (2003, op. cit.), “France’s Gaullist tendencies are, of course, simply its own version of unilateralism”. Um ponto de que muitos francófilos não-franceses parecem não ter suficiente consciência. 245 Como à época foi afirmado, com o objectivo de retomar “uma tradição europeia de paz”. Tendo em vista a história da Europa, uma asserção verdadeiramente extraordinária no optimismo. Vale a pena aqui uma pequena excursão marginal. O interregno de pacificação relativa vivido no século XIX deveu-se segundo os defensores desta opinião a uma bem-vinda Pax Democratica, que por sua vez resultaria de uma reputada falta de propensão das Democracias para os conflitos de umas com as outras. Uma posição algo voluntarista que data da visão kantiana da “Paz Perpétua” e de uma “união republicana pacífica”, que tem sido desde os anos 80 ecoada por diversos especialistas liberais de teoria das Relações Internacionais, e nomeadamente por Michael Doyle (e.g. 1996). Para uma desconstrução sistemática desta asserção liberal clássica, ver Vasco Rato (1998). A nível das suas “condições de permissibilidade”, a expansão verificada decerto muito ficou também a dever à Pax Economica, ao reconhecimento, pelos poderes de então, dos alegados inconvenientes da guerra para um comércio internacional que a industrialização acelerara de maneira nunca antes vista. Mas a dívida também foi seguramente grande em relação ao “scramble for Africa” (e além disso “for Asia”) que as acompanhou. Para uma recontextualização ainda mais ampla do problema, fascinante nas implicações, no quadro dos processos de integração global e de uma redefinição “marxizante” de conceitos, ver Tarak Barkawi e Mark Laffey (1999). É extensa a bibliografia contemporânea mais recente a este respeito. Para discussões detalhadas, escritas de uma perspectiva favorável aos norte-americanos, ver Robert Kagan (2003), e ainda Ronald D. Asmus e Kenneth M. Pollack (2002), “The new Transatlantic Project”, Policy Review 115, The Hoover Institution. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 255 Ao apoio da Doutrina Truman seguiu-se a vontade explícita de Dwight Eisenhower de que emergissem os “United States of Europe” à imagem e semelhança dos Estados Unidos da América, a que o Presidente norte-americano aludia com frequência como a “terceira força”, no contexto da Guerra Fria246. John F. Kennedy era um quasi-incondicional de uma maior integração da Europa e, se temia alguma coisa, era um atenuamento e um esbatimento do supra-nacionalismo europeu uma vez removidas as objecções francesas à acessão da Grã-Bretanha como Estado-membro. É bem verdade que, no interlúdio Republicano que se seguiu, algumas dúvidas conjunturais significaram um módico retrocesso no apoio norte-americano à integração da Europa: Ronald Reagan, apoiando-se no “eurocepticismo” militante de Margaret Thatcher, não foi propriamente um entusiasta do “welfare State” que ambos atribuíam à “dupla socialista” Jacques Delors-François Mitterrand. Mas tratou-se de uma resistência leve, passiva e passageira. Empolgado com a implosão da União Soviética, a Queda do Muro de Berlim e a democratização das “soberanias limitadas” da Europa de Leste, George Bush (pai) via a Alemanha como o “líder natural” de uma “nova Europa”, aliada e coesa. Apesar de uma maior frivolidade247, a Administração Clinton não foi dissonante248, como o demonstraram tanto o apoio à Europa no que tocou à Bósnia-Herzegovina, em 1995, quanto a disponibilidade para liderar as acções da NATO no Kosovo, em 1999: em ambos os casos, tratou-se de intervenções em que 246 Ecoando, aliás, a célebre asserção construtivista de Sir Winston Churchill, que no pós- -Guerra insistira ser imprescindível que a Europa se transformasse numa “kind of United States of Europe”. 247 Um só exemplo, relativo a uma questão ligada ao que aqui discuto. Num artigo recente, Robin Harris (2002) escreveu que “the former US Ambassador to the Court of St. James, Ray Seitz, recalls in his autobiography preparations for President Bill Clinton’s first meeting with Britain’s then–prime minister, John Major. Sitting in the Oval Office, the president was reminded by one of his aides to mention the magic phrase ‘special relationship’. ‘Oh yes,’ said Clinton. ‘how could I forget?’. And he burst out laughing”. 248 Bill Clinton apoiou explicitamente, por exemplo, a criação da moeda única europeia, o Euro, apesar das vozes que na Europa insistiam que a primeira finalidade desta seria a de fazer frente ao Dólar norte-americano. 256 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS os Estados Unidos se embrenharam, contrafeitos249, em nome da estabilidade da Europa e em nome, de modo expresso, da ligação transatlântica. A anuência relativamente à vontade europeia de criação de uma força militar autónoma de intervenção rápida, esteve em sintonia com essa postura geral250 de uns Estados Unidos que continuavam a operar nos termos da mesma doutrina “clássica” legada por Harry S. Truman. George W. Bush, pelo menos nos primeiros tempos da sua Administração, não foi uma voz dissonante num coro que já vinha de trás: afirmou formalmente num discurso em Berlim, em 2002, que “when Europe grows in unity, Europe and America grow in security”. É certo que, se bem que a muitos níveis a diferença de atitude face a uma e a outra por via de regra tenha sido nítida, o amparo norte-americano à Europa nem sempre incluiu distinções finas entre a Aliança Atlântica e a União Europeia. Porventura porque, vistas do outro lado do Atlântico, as coisas não fossem de fácil dissociação251. Seja como for, hoje as pedras de toque estão no seu lugar. 249 Como o atesta a famosa recusa inicial do Secretário de Estado James Baker em intervir na turbulência que em meados da década de 90 começou a fervilhar na ex-Jugoslávia, com o argumento realista de que “we have no dog in that fight”. 250 Ao contrário do que muitas vezes tem sido aventado, não se encetou verdadeiramente um processo simples de compressão da Europa e das suas extensões pelos norte-americanos. Ou, pelo menos, não se tratou de um movimento unidireccional, se bem que esse tenha decerto sido um dos ingredientes; a atestá-lo está o famoso desabafo de Adlai Stevenson, a pensar no fim da hegemonia britânica e na tomada dessa posição pelos norte-mericanos: “now it´s our turn”. Essa perspectivação é todavia bastante parcial e muitíssimo reducionista. Uma outra boa maneira de pôr as coisas é afirmando que, pelo contrário, foram os europeus que, uma vez tornadas evidentes as vantagens da escala, apanharam o barco e se decidiram por adquirir um peso e tamanho semelhante ao dos Estados Unidos da América. Como, aliás, não podia deixar de ser se os europeus não fossem cegos. Bastava, com efeito, olhar para o Mundo para o compreender. Para um eficaz exercício de um novo tipo de poder, num Mundo simultaneamente maior e mais pequeno, e face a blocos com core powers enormes, como o norte-americano e o soviético, tornava-se imperativo aumentar de tamanho e peso. As lições sucederam-se. Acontecimentos de implicações cada vez mais globais, como a crise do petróleo de 1973, ou a implosão da União Soviética, em 1989, vieram pô-lo em evidência. Ao abrir-se, o Mundo regionalizara-se em grandes unidades. 251 Ou talvez como consequência da relativa indiferença com que a União Europeia sempre tendeu a ser olhada a partir do lado de lá do Atlântico, associada ao facto de para os estrategas norte-americanos a Aliança, durante o período da Guerra Fria, ter tido, ainda que decerto entre colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 257 Todas as grandes questões estratégicas que durante toda a segunda metade do século XX preocuparam os “trumanistas”, tanto de lá como de cá do Atlântico, parecem estar bem e seguramente encaminhadas: o “problema da Alemanha” e do seu lugar na Europa, uma articulação entre a Europa ocidental e a Oriental, a abertura a um gigante russo democratizado. Como escreveram R. D. Asmus e K. M. Pollack, “if Harry Truman and his European counterparts could look down upon us today, they would undoubtedly be proud of what has been accomplished in their name”252. Seguramente. Mas tratou-se, além disso, de uma manifestação de afinidade. Facto que, sem exagerar o seu alcance, importa afirmar. Para tornar a dar palco à postura voluntarista de Robert Kagan253: “the more important American contribution to Europe […] stemmed not from anti-European but from pro-European impulses. It was a commitment to Europe, not hostility to Europe which led the United States in the immediate postwar years to keep troops on the continent and to create NATO”. Por detrás do interesse norte-americano em conter uma URSS expansionista, vislumbrava-se sem dúvida algum esprit de corps. Talvez. Mas se foi esse o caso, outras, a função de assegurar a criação de um primeiro teatro de operações (a Europa) num eventual conflito com a União Soviética. Decerto em parte por esse tipo de razões (evitar a eclosão de conflitos no Velho Continente e fazer frente, primeiro à URSS e depois ao terrorismo internacional) desde o final da 2.ª Guerra que a América tem promovido a ideia de uma “ever closer union” na Europa. Em 1948 foi fundado um American Committee for a United Europe, ao qual pertenciam, por exemplo, Allen Dulles, o histórico Director da CIA (cf. Charlemagne, 2003a: 25); durante duas décadas, através de indivíduos e organizações, esse Committee canalizou fundos para a então CEE, ajudando a escorar a sua consolidação. 252 Op. cit.: 1. Numerosos autores têm vindo a circunscrever posições-leituras deste tipo. Uma perspectiva mais neutral e menos moralizante (mas também mais inclusiva) foi a oferecida por Martin Shaw (1997: 501 e ss) que, no quadro e uma interpretação weberiana “clássica” do Estado como centro autónomo e monopolista da força político-militar, argumentou que com a NATO viveríamos numa fase de criação de “um Estado ocidental” cuja edificação terá tido o seu início nos projectos pós-Guerra de reconstrução, ajuda e cooperação económica, política e militar. Para uma interpretação mais “imperial”, cf. Tarak Barkawi e Mark Laffey (1999, op. cit.). 253 Uma afirmação self-serving, apesar de no essencial autêntica, de Robert Kagan, 2002, op. cit.: 14. Para uma leitura histórica alternativa, de um neo-realismo puro e duro, são fascinantes as páginas anti-institucionalistas recentes de Kenneth Walz (2000: 18-26) sobre a evolução do papel da NATO e a sua reestruturação e inesperada permanência depois de terminada a Guerra Fria. 258 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS importa frisar que se tratou de uma afinidade que, seja qual for a fundamentação invocada, só com uma grande dose de idealismo poderíamos tomar como permanente254, como aliás a evolução subsequente das coisas tem vindo a evidenciar. Com efeito, mais recentemente tem-se verificado uma propensão que parece crescente para um acentuar de divergências entre os dois membros da parelha que identificámos, a União Europeia e a NATO. Indícios disso incluem desde o “processo de St. Malo”, à criação da PESC e da PESD, à turbulência associada à invasão do Iraque, ao “novo unilateralismo” e isolacionismo americano e ao reafirmar do fervor unilateralista tradicional francês. A nova conjuntura de divergência está, ao que tudo indica, a assentar arraiais255. Mais uma vez de algum modo indexando as questões políticas e organizacionais nas militares, de segurança e defesa. As questões suscitadas por esse esboço de uma reformulação fundamental das coisas são preocupantes. Pois que o problema de fundo mantém-se: para o futuro da Europa, muito no evoluir da situação depende do enquadramento que venha a ser logrado para fazer face à anarquia hobbesiana, interna e externa, como condição para que se possa continuar a delimitar, no Velho Continente, o oásis kantiano de “paz republicana” de que temos vindo a beneficiar. E mantém-se, agora num meio político e diplomaticamente muito mais hostil, em que tanto alguns Estados europeus quanto numerosas das opiniões públicas no 254 Numerosos têm sido os ensaios e estudos sobre o anti-americanismo na Europa. Menos estudado tem sido o anti-europeísmo norte-americano. Para um ensaio recente sobre este último tema, ver Timothy Garton Ash (2003). 255 Variadíssimos têm sido os estudos e ensaios que, de uma ou de outra forma, têm vindo a dar voz ora ao alargamento dessa fissura, ora ao unilateralismo das Administrações norte-americanas visto como dele concomitante. Citei já criticamente Robert Kagan, sobretudo os seus trabalhos publicados em 2002 e 2003. Para uma posição com pontos de partida em muito semelhantes, mas com conclusões divergentes, é útil a leitura do artigo e da detalhadíssima monografia de Charles Kupchan (ambos de 2002), bem como o longo ensaio anterior de Joseph S. Nye, Jr. (2002); esta linha interpretativa foi, evidentemente, inaugurada pelo magistral estudo comparativo sobre a mecânica da queda dos grandes Impérios redigido e publicado há uma quinzena de anos por Paul Kennedy (1989). colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 259 Velho Continente se vêem empurradas pelo cada vez mais claro e “arrogante”256 ascendente norte-americano a tentar contrabalançar o seu poder. As pressões são múltiplas. Romano Prodi, o então Presidente da Comissão Europeia, afirmou recentemente (em meados de 2003) que “um dos objectivos principais da União é o de criar uma superpotência no Continente igual aos Estados Unidos”. Jacques Chirac, na linha de uma “tradição” mais apoiada em Hubert Védrine257 e em Dominique de Villepin do que no General de Gaulle que prefere invocar, declarou que “precisamos de um meio de combater a hegemonia americana”. Como notou num artigo bastante recente o colunista do Economist, Charlemagne258, “given that the Bush administration’s security doctrine is explicitly aimed at preserving that hegemony, it is hardly surprising that the United States is now a little wearier of the process of European integration”. O eventual desenlace é assustador. E de pouco serve tentarmos atribuir responsabilidades, sobretudo se o fizermos com base em meras considerações político-ideológicas. A questão é, efectivamente, estrutural. Ainda que os problemas da União possam vir a encontrar soluções (nomeadamente no quadro da “constitucio256 A expressão é de Fareed Zakaria (2003, op. cit.), que lamenta o facto, enquanto comenta que “perhaps what is most surprising is that the world has not ganged up on America already”, dada a disparidade existente de poder e a nova e agressiva política externa da Administração Bush. Não é precisa uma grande adesão às teses do realismo, ou do neo-realismo, para compreender a preocupação das potências europeias. Porventura particularmente preocupante para muitos europeus (e poucas vezes frisado), tem sido a subalternização a que Bush tem condenado a NATO: a Casa Branca na prática ignorou a invocação unânime pelos Aliados Atlânticos do artigo 5.º do Tratado (que considerou o 11 de Setembro uma agressão a todos), marginalizou com deliberação a Aliança na campanha do Afeganistão e (ainda que de maneira sui generis) na mais recente acção no Iraque. Bush criou, para algumas das potências europeias, o que gráfica e porventura premonitoriamente F. Zakaria apelida “the America problem”. 257 O famoso Ministro dos Negócios Estrangeiros francês que caracterizou derrogatoriamente os Estados Unidos pós-Primeira Guerra do Golfo como uma hyperpuissance. Tanto um como o outro, parecem ter decidido retomar o ideal de um ascendente que a França não conhece desde Charles Tallyerand, desde o início de um século XIX pós-Revolucionário em que o país era o mais rico da Europa, a segunda potência demográfica do Continente e, com a célebre “levée en masse” (e um Napoleão que o Duque de Wellington, lamentou valer no campo de batalha por 40 mil homens) detinha as mais numerosas e eficazes forças militares de toda a Europa. 258 260 Charlemagne, 2003a, op. cit.. ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS nalização” em curso) e os da Aliança também, não é improvável que as respostas encontradas venham a acentuar de modo insanável as divergências hoje já tão sensíveis. O que soletraria estarmos perante uma alteração radical de “regime”: não seria nesse caso surpreendente que os dois pássaros se autonomizassem e voassem cada um na sua direcção. Ou se, para manter o meu cruzamento de metáforas, os dois dançarinos se fossem afastando um do outro em piruetas e passos de minuete cada vez mais independentes entre si. Sobreviveriam? 4. Proponho-me agora dar um passo suplementar, extraindo do que antes disse algumas implicações, no contexto de breves comentários sobre o comparativo sucesso que tem tido a solidificação de políticas comuns europeias no âmbito de justiça e dos assuntos internos. Darei realce a apenas umas poucas, e tão-só em termos genéricos: a livre circulação de pessoas (entendida na acepção da livre passagem das fronteiras comuns dos Estados-membros) e a cooperação policial e judiciária alargadas (em matéria civil e penal) que, alego, apenas se tornaram palatáveis para as grandes potências europeias quando, sob o que chamei o manto protector e tutelar da NATO, estas deixaram de se temer umas às outras. Não é difícil intuir mais do que isso: a abertura proposta a novas políticas de vistos, imigração e asilo, combate ao terrorismo e ao narcotráfico, também não teriam sido viáveis do mesmo modo sem o papel de guardião, assumido pela Aliança Atlântica, relativamente à velha “anarquia hobbesiana” que forma um dos panos de fundo sobre o qual a construção europeia se tem vindo a efectuar. A “protecção” não é total, nem é decerto o único factor em causa; mas tem sido decerto suficiente para alguns avanços notáveis em domínios sensíveis. Naquilo que imediatamente se segue, irei argumentar que a emergência, de facto tão rápida quão surpreendente, de um chamado “espaço europeu de liberdade, segurança e justiça” (o que Maastricht nos ensinou a apelidar de o Terceiro Pilar da União Europeia) só é verdadeira e integralmente explicável em colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 261 termos do quadro antes defendido que põe a par a União e a Aliança. O que complementa aquilo que implicitamente argumentei, no que precedeu, que o subdesenvolvimento do Segundo Pilar da União (a política externa e de segurança e defesa) e quanto às renitências suscitadas as quais, insisti, também só com esse enquadramento se tornam integralmente compreensíveis. Começo por um conjunto de factos bem conhecidos. O Tratado da União Europeia, comummente denominado o Tratado de Maastricht, entrou em vigor a 1 de Novembro de 1993. Trouxe ao projecto europeu um redimensionamento importante: institucionalizou laços de cooperação entre os Estados-membros aos níveis cruciais da justiça e dos assuntos internos. Ao articular esforços entre os então Doze, o Tratado aproximou com prontidão ostensiva uns dos outros os respectivos Ministérios da Justiça e do Interior. Foi assim não só potenciado o diálogo, mas viram-se também activadas formas múltiplas de ajuda recíproca que inevitavelmente começaram a desembocar em actividades conjuntas e em formas cada vez mais estreitas de cooperação entre Polícias, entre serviços alfandegários, serviços de imigração e os congéneres da justiça dos Estados co-signatários. Maastricht foi por conseguinte uma espécie de momento fundador, maior também nessa dimensão intergovernamental e supranacional que tanto tem contado para entrosar entre si os Estados europeus. Em boa verdade porém, a “Cooperação JAI” (como é vulgarmente apelidada esta colaboração mútua no plano “da justiça e dos assuntos internos”, de onde o acrónimo) vinha já de trás. O Tratado da União Europeia, e designadamente o seu Título VI (que abrange a cooperação policial e judiciária em matéria penal, que constitui o chamado Terceiro Pilar da União Europeia), deu seguimento e inovou num quadro de variadíssimas iniciativas sobre cooperação policial, aduaneira e judiciária que tinham tido início nos longínquos anos 50. O Conselho da Europa formara o seu âmbito e lugar de implantação. À margem do quadro institucional das então Comunidades Europeias, foram formados e reuniam, desde essa época, diversos agrupamentos de “peritos” especializados em problemas relativos a esses domínios. A base desses grupos era meramente intergovernamental. O Título VI não veio por conseguinte senão dar coerência, racionalizar e evitar uma dispersão excessiva de esforços ao criar um quadro formalizado e maior para essa 262 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS cooperação, disponibilizando-lhe o Secretariado Permanente do Conselho, concentrando esforços, nomeando agentes e definindo instrumentos comuns para o que muitas vezes eram questões sensíveis atidas a coutadas ciosamente guardadas daquilo que até à Segunda Guerra Mundial tinham sido expressões privilegiadas da soberania dos Estados europeus. A cooperação JAI incidia, nos termos do seu Título VI, sobre domínios como a política de asilo, as regras aplicáveis às passagens nas fronteiras externas dos Estados-membros, a política de imigração, as lutas contra a droga e a fraude internacional, e as já referidas cooperações judiciárias em matéria civil, penal, aduaneira e policial. Os instrumentos criados para lograr adoptar medidas conjuntas nestes domínios foram a “acção comum”, a “posição comum” e a “convenção”. Em poucos anos foi imprimida uma enorme aceleração ao processo com o Tratado de Amesterdão, assinado a 2 de Outubro de 1997 e entrando em vigor em 1 de Maio de 1999. A cooperação maastrichtiana nos domínios da justiça e dos assuntos internos viu-se reorganizada por uma nova linha de horizonte: a criação, a prazo, de um espaço único europeu de liberdade, segurança e justiça. Vários sectores destes três domínios foram transferidos para o âmbito comunitário (no jargão de Bruxelas, viram-se “comunitarizados”); e surgiram novos domínios, métodos e instrumentos especificamente desenhados para melhor permitir atingir as metas visadas, de par com a decisão de integrar, no quadro jurídico dos Tratados da União Europeia, o “espaço Schengen”, uma entidade criada também à sua margem como iniciativa de alguns do Estados-membros apostados em conseguir desenvolver a livre circulação de pessoas na Europa259. Para esses domínios comunitarizados, passaram com Amesterdão a aplicar-se instrumentos mais robustos, como “regulamentos”, “directivas”, “decisões”. 259 Em 1985, a França, a Alemanha e os Estados do Benelux celebraram, numa base estritamen- te intergovernamental, o Acordo de Schengen. Em 1990, esse Acordo foi completado por uma Convenção de aplicação. Tal como referi, o Tratado de Amesterdão integrou o acervo de Schengen no quadro da União Europeia delineada uns meros quatro anos antes em Maastricht. Dois dos Estados-membros não aderiram a Schengen, a Grã-Bretanha e a Irlanda; um terceiro, a Dinamarca, insistiu em disposições-salvaguardas específicas. Par contre, significativamente, dois Estados não-comunitários da NATO, a Noruega e a Islândia, aderiram a Schengen antes da inclusão deste no acervo da União Europeia. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 263 Para entrever a dimensão do passo dado basta enunciar as suas implicações no plano difuso da segurança e defesa. Um objectivo primeiro do processo de construção europeia foi a criação de um mercado único ao nível continental (ou, pelo menos, ao europeu-ocidental, como então concebido). A descompartimentalização consequente aboliu (ou reduziu) as fronteiras entre mercadorias, capitais e serviços, cujas circulações se passaram, a par e passo, a realizar sem entraves. A essas três liberdades veio juntar-se uma quarta, mais difícil, a liberdade de circulação de pessoas. Não é árduo ver a razão para esse acréscimo de dificuldade: essa quarta liberdade punha em cheque a forma “tradicional” de garantir a segurança interna de cada Estado por intermédio de fronteiras erigidas com objectivo instrumental (naturalmente entre outros) de controlar e filtrar a identidade, a entrada e a circulação de pessoas no território sob sua tutela soberana. Não será por isso surpresa que grande parte da oposição que então se manifestou em vários palcos políticos nacionais europeus tenha precisamente batido nas teclas dos riscos e das perdas de soberania que a criação desse espaço inevitavelmente acarretaria. E torna-se mais fácil de compreender porque é que foram rapidamente adoptadas o que se chamou “medidas compensatórias e complementares”, com o intuito de minimizar tanto a redução na segurança da população, da ordem e da liberdade pública, como a percepção de tudo isso por opiniões públicas nacionais muitas vezes atentas e vigilantes260. O facto, porém, é que os passos foram sendo dados, e foram-no com comparativa rapidez e eficácia. Ainda que, naturalmente, de forma cautelosa: dada a sensibilidade presente e sempre inevitável em questões que digam respeito à ordem pública, as matérias relativas à justiça e aos assuntos internos não são postas em prática do mesmo modo em que o são, por exemplo, questões 260 Por exemplo, o reforço das fronteiras externas da União (a célebre “Fortaleza Europa”), bem como uma cooperação reforçada das administrações da justiça e do interior, sobretudo no que toca aos serviços policiais, aduaneiros e de imigração. Emergiram assim com novos contornos questões como aquelas que se prendem com políticas de asilo, de imigração clandestina. A criação de um Serviço Europeu de Polícia, a Europol, sedeado na Haia, nos Países Baixos, dependeu formalmente da assinatura de uma “Convenção Europol”, que entrou em vigor a 1 de Outubro de 1998 e está a ser efectivamente aplicada desde 1 de Julho de 1999. 264 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS relacionadas com a política agrícola comum ou com a política regional europeia: naquilo que toca a JAI, o Tratado dá uma comparativamente grande importância aos Estados-membros e àquelas instâncias da União Europeia em que estes participam directamente; com uma ratio semelhante, foram no caso da cooperação JAI limitados os poderes da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu e do Tribunal de Justiça. Mais uma vez não demorou muito tempo para que um novo Tratado, no caso o Tratado de Nice, contribuísse para uma intensificação dos processos de cooperação JAI que Maastricht encetou. Nice fê-lo alargando às decisões tomadas nos domínios comunitarizados o voto por maioria qualificada. De fora ficaram, é verdade, as matérias ligadas à cooperação policial e judiciária em matéria penal, decerto em parte por motivos nacional-corporativos e pelo melindre que tais questões podem muitas vezes assumir para os Estados-membros. Mas deu-se, de novo, um passo largo. Os procedimentos para a célebre “cooperação reforçada” tornaram-se com Nice menos restritivos do que antes. E intensificou-se (constitucionalizando-se um dos seus elementos, o Eurojust) a tão importante cooperação judiciária, com todo o potencial multiplicador que isso tem. As barreiras existentes e que têm criado dificuldades são fáceis de arrolar: a cooperação JAI confronta tradições e interesses nacionais arreigados, bem como lógicas administrativas e ordenamentos jurídicos à partida nem sempre com facilidade miscíveis entre si. Não é por isso surpreendente que questões de harmonização e coerência, e aquelas ligadas à eficácia de processos decisórios (o que deu azo, como vimos, à criação, lenta mas progressiva, dos instrumentos apropriados para melhor agilizar a progressão dos relacionamentos nestes domínios) tenham vindo a ser suscitadas. Longe estamos, é certamente porém óbvio, do muito pouco conseguido no plano da PESC, do âmbito do Segundo Pilar. Em termos comparativos, note-se, para só fornecer um exemplo, que muito daquilo que nos Estados Unidos da América apenas se conseguiu nos anos 30 do século XX, ou seja, mais de século e meio depois da Independência, os europeus lograram numa curta geração. Não restam dúvidas, creio, que mesmo em áreas de grande melindre como o são as relativas à ordem pública, a Europa tem vindo a progredir a passos bastante colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 265 amplos, difíceis de explicar fora de um contexto alargado: designadamente aquele que resulta de uma ordem internacional em que a posição da Europa face ao resto do Mundo tem sido mediada por uma entidade como a NATO. 5. Com os olhos postos na História – designadamente na terrível herança de guerras e violência mútua que durante séculos a fio vivemos na Europa – muitos foram os analistas e políticos que, na última meia dúzia de meses, no Velho Continente como na América do Norte, têm vindo a manifestar temores quanto a um eventual reatamento dessa pesada “tradição”. Os medos desse regresso ao passado tendem a ser vislumbrados em formato narrativo, por assim dizer. Entre 1871 e 1945, é por via de regra lembrado, a Alemanha e a França estiveram em guerra. Esses quase oitenta anos, previne-se, foram pontuados por intervalos ilusórios de uma aparente tranquilidade. Apesar do mais de meio século de paz vivido desde 1945, vários são os factos dos últimos anos, alega-se, que nos deveriam pôr de sobreaviso. Alguns dos “indícios” que tendem a ser listados quanto à re-emergência do legado europeu são decerto assustadores: as sucessivas e sangrentas eclosões de brutalidades étnico-nacionalistas nos Balcãs, durante os recentes anos 90, as tensões “intestinas” ressentidas na Europa com processos como o da inicialmente tão contestada reunificação alemã, o associado ao processo truculento do estabelecimento de um espaço Schengen, ou aqueloutro ligado à longa batalha pela criação de uma moeda única. Todos eles, afirma-se com alguma plausibilidade, lançam uma luz preocupante sobre os palcos que hoje despontam. E fazem-no invariavelmente, insiste-se, enquanto expressão teimosa de posicionamentos divergentes de alguns dos Estados europeus mesmo quanto a questões de interesse comum: tal como aliás, diz-se, hoje em dia ocorre com as oposições e resistências que se manifestam relativamente às intervenções “unilaterais” norte-americanas na Ásia Central e no Médio Oriente, à eventual auto-suficiência europeia no que diz respeito a uma política externa geral e em particular à sua política de segurança e defesa, ou no que toca à natureza e alcance do processo, moroso mas em curso, de constitucionalização “local” da Europa comunitária. 266 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS As reacções de políticos e analistas face à percepção do perigo (tal como, de um ou de outro modo, a própria escala dele) naturalmente variam; mas é mais o que as aproxima do que aquilo que as distingue. Os mais optimistas têm afirmado ser ténue o risco. Para outros, mais propensos ao apocalíptico, o descalabro estará iminente. Os mais comedidos (ou menos seguros quanto à plausibilidade de quaisquer previsões baseadas na presunção de uma hipotética ciclicidade histórica) tendem muitas vezes a descartar estes tipos de especulações, preferindo-lhe análises conjunturais mais concretas e “presentistas” em que as regularidades históricas aparecem como meras linhas de força e tensão. Todos, no entanto, parecem estar de acordo relativamente à urgência de um diagnóstico que possa funcionar como um aviso sonoro e prudente à navegação. O mais preocupante é que a justificação aduzida para a necessidade desse alerta parece assentar numa pré-compreensão muito pouco convincente261: a ideia, infinitamente repetida, de que a paz, que por fim na Europa lográmos ter, se deve à obra e graça da União Europeia; e de que é por isso que, ao pôr em cheque a União, se joga também uma paz tão arduamente conquistada. O que dá voz a uma convicção arreigada que nas últimas décadas se começou a generalizar. Na Europa tem com efeito sido cada vez mais comum a perspectiva segundo a qual o “mais de meio século de paz” conseguido se deve, sobretudo, ao processo político-económico de integração continental que desembocou na União Europeia. Sem União, acredita-se, não há, não pode haver, paz. A litania de explicações fornecidas para esta relação causal tende a bater em três teclas. Em primeiro lugar, diz-se, a memória, partilhada no Continente, dos 261 Das muitas formulações deste tipo que a procuram fundamentar, atenho-me a uma só, por esta parecer bem encapsular o consenso existente entre os formadores de opinião europeus. Segundo um artigo recente de Charlemagne (2003b: 34), “an aid to Javier Solana, the EU’s foreign policy chief [recently mused] that there are three broad reasons for why western Europe has enjoyed almost 60 years of peace since 1945. The first is a shared memory of the horrors of war; the second is the deep economic integration that has been fostered by the EU; and the third is the intense and continuing political dialogue between the countries of the European Union, which means that ‘the way we talk to each other these days is so completely different. There is no longer a clear distinction between foreign and domestic policy’”. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 267 horrores da guerra tem trazido a paz. Por outro lado, a interdependência económica tem vindo a tornar cada vez mais “irracional” um qualquer recurso às armas. E, finalmente, o processo de consultas recíprocas, a insistência no diálogo intergovernamental e, em última instância, a efectiva integração política crescente da Europa, têm esbatido distinções e exclusivismos que antes separavam uns dos outros, contrapondo-os, os vários interesses nacionais. Vale a pena que nos debrucemos um pouco sobre esta racionalização, sobre esta autêntica convicção-crença, desmontando-a. Começo por notar que o primeiro argumento da tríade não é muito forte: apesar de tudo, e mesmo perante a memória dolorosa das carnificinas ocorridas na Grande Guerra de 1914-1918, a guerra voltou em 1939, uma geração apenas depois: regressou em força e numa versão agravada. Para além disso, e paradoxalmente para os defensores dessa primeira linha de argumentação, o país que porventura mais sofreu as agruras do conflito (a URSS) foi precisamente aquele que menos dúvidas teve (decerto por razões políticas, internas e externas) em suscitar logo de seguida uma Guerra que, apesar de “fria”, durou cinquenta anos e teve igualmente terríveis consequências. Também a segunda tecla é fraca: pese embora em finais do século XIX e inícios do XX tivesse havido um enorme adensamento de fluxos comerciais, uma intrincação cada vez maior dos investimentos estrangeiros directos e indirectos e gigantescas migrações, numa conjuntura que assegurou níveis “globais” de integração económica até aí desconhecidos, tal não impediu a eclosão do primeiro grande conflito, primeiro na Europa e depois à escala mundial. Bem pelo contrário, ao acicatar exclusivismos nacionalistas que reagiram, incendiou-os. Esmiuçados, nenhum dos dois primeiros argumentos, por si mesmo ou em combinação, acaba por produzir uma explicação particularmente convincente. Mais sedutora é decerto a invocação do papel pacificador da integração política europeia, aptamente apelidada de “the real insurance policy”262 do Conti- 262 Charlemagne (2003b, op. cit.). Charlemagne cita nesse artigo-editorial um funcionário superior da União (que não nomeia), que a terá descrito nos seguintes termos: “the European Union is the greatest peacemaking project in history”. 268 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS nente. Não é difícil arrolar êxitos em prol de um processo que tem viabilizado fora para diálogos permanentes entre os europeus, e tem vindo a criar referenciais comunicacionais comuns entre os Estados. Trata-se de um processo de integração, ainda que esta tenha sido bastante limitada, cujos sucessos têm sido retumbantes em questões tão potencialmente espinhosas como as transições democráticas levadas a cabo em Portugal, na Espanha, e na Grécia, nos anos 70 e 80; e, depois, durante os anos 90, nas dos inúmeros Estados leste-europeus em muitos dos quais a pacificação resultou em grande parte dos condicionalismos impostos pela União relativamente a uma sua futura acessão ao estatuto de Estados-membros. Este tipo de racionalizações assentes sobre esta autêntica convicção-crença, não é, de facto, inteiramente convincente. Como vimos, para retomar a terminologia que atrás utilizei, têm com efeito sido óbvias as vantagens político-militares soletradas pelas reconfigurações organizacionais que tiveram lugar na Europa. Mas seria seguramente abusivo ver, na integração política europeia, uma causa muito eficaz por si só. Trata-se, em todo o caso, de um processo exíguo e ainda severamente inacabado. Tem sido, ademais, e como fiz questão de sublinhar, um processo indissociável de um conjunto de factores externos: a ocupação Aliada da Alemanha em 1945, a Guerra Fria e a oposição coordenada à União Soviética e (porventura sobretudo) o papel crucial preenchido pela NATO e pela “garantia nuclear” norte-americana na ordem internacional emergente com a derrota do Eixo e, uma vez esta consolidada e de par com a progressão da cristalização da ameaça soviética que, de maneira inesperada, deu origem a um Mundo equilibrado numa tensa ordenação bipolar que se manteve durante quase toda a segunda metade do século passado. Em termos de uma pacificação do Velho Continente, quando são vistas as coisas num quadro mais amplo, parecem óbvios os ganhos que advieram de uma relegação, para segunda linha, de antigas grandes potências da Europa ocidental; finalmente “libertadas” da “necessidade” de competir por uma supremacia mundial, ou sequer regional, puderam, pelo menos em parte, escapar a um security dilema com que, manifestamente, não logravam conviver. Juntamente com eles tornam-se nítidas aquelas outras vantagens, essas mais comezinhas colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 269 mas também resultantes da reorganização interna e da comparativa insulação externa viabilizadas pela permanência norte-americana no Continente, que possibilitaram a uma Europa deixar de se preocupar com a sua segurança e defesa, e consequentemente adquirindo uma relativa tranquilidade que lhe permitiu dedicar-se, com ainda hoje o faz, ao seu próprio desenvolvimento económico e à sua imprescindível (e criativa) reconstrução política. Os ganhos foram evidentes. Mas as perdas também. Quase sessenta anos de uma “hegemonia tranquila e benevolente” da parte norte-americana deixaram os europeus (pelo menos os europeus ocidentais) prósperos, satisfeitos e pacíficos. Ficções como a de um “partenariado entre iguais” ou a de “interesses e objectivos comuns”, que nos habituámos prazenteiramente a sustentar, deram, durante meio século, azo a representações idealistas mas bem implantadas de ambos os lados do Atlântico, que convinha a quase todos alimentar. Num Mundo imponderável como aquele em que vivemos, era porém inevitável que mais tarde ou mais cedo a ilusão viesse a ser desfeita. E foi isso o que aconteceu. A “reactivação hobbesiana” de uns Estados Unidos menos pacíficos e muitíssimo menos displicentes do que a maioria dos Estados europeus, que foi desencadeada de maneira indirecta pelo fim do quinquagenário balance of terror bipolar e como correlato da eclosão de uma imprevisível war on terror, em simultâneo abriu o fosso e tornou-o visível. As ficções perderam plausibilidade e deixaram de convir fosse a quem fosse. O pessimismo instalou-se. 6. Em tons ora triunfalistas ora derrotistas, instalou-se infelizmente o hábito de pontuar a progressão do que hoje chamamos a União Europeia com “momentos constituintes” e “momentos de crise”. No primeiro caso, tende-se a recorrer a critérios “essencialistas” consubstanciados em datas a processos como, por exemplo, – para me ater a apenas alguns indicadores habitualmente trazidos à baila – a CECA, os Tratados de Roma, Paris, Maastricht, Nice e Amesterdão, ou os timings do alargamento da mancha geográfico-nacional formada pelo conjunto dos Estados que foram a par e passo aderindo a uma entidade cada vez mais 270 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS integrada. No segundo, ao invés, a tendência tem sido a de sublinhar as sucessivas crises – a muitas delas fiz alusão no que precede, do veto aos britânicos às agruras da gestação de uma política externa e de segurança comum mas muitas outras houve, das opt-out clauses ao “cheque inglês” – que têm ciclicamente vindo afligir esse aparente movimento “orgânico”. Em valorações agregadas, por assim dizer, alguns analistas têm, em consequência (e de acordo com as suas preferências pessoais), ora celebrado os sucessos, ora sorrido aos precalços associados aos esforços endógenos de “constituição” de uma “Europa”. Nuns casos alinhavando cronologias de tratados e batalhas vencidas, noutros encadeando perdas e derrotas, mas sempre nos termos de uma “história de feitos”, cujas limitações me escuso de sublinhar. Em minha opinião tudo isto tem de ser repensado. Por muito interessantes e reveladores que tais análises nos possam parecer, creio que ao levá-las a cabo perdemos de vista as incontornáveis dimensões relacionais de fundo que – e apenas elas o podem fazer – tornam inteligível a mecância complexa tanto da progressão em curso, como dos seus óbvios avanços e recuos. Dimensões essas que há que saber pôr em evidência, sob pena de cairmos em visões parcelares que recapitulam, no organicismo que patenteiam e nos timbres “heróicos” que nelas ressoam, a teleologia voluntarista que lhes deu alento. É precisamente um re-enquadramento deste tipo aquilo que proponho. Em guisa de conclusão: é dos ângulos que esmiucei, nesses outros tantos planos e face a esses (e certamente em virtude de muitos outros) múltiplos tipos de constrangimentos e pressões a que aludi que se tornam mais inteligíveis, defendo, os processos de integração crescente da Europa e os seus vai e vens. O meu ponto central é muitíssimo simples de enunciar. Só nos termos destas conjunturas complexas é que se pode compreender que Estados poderosos e ciosos da sua autonomia e dos seus interesses nacionais tenham voluntariamente decidido abdicar de parte da sua soberania, por apego a um projecto como o da União Europeia263. É também perante dificuldades e soluções como aquelas a 263 Cabe aqui um curto comentário. Com recuo, sem dúvida que em nome de uma preserva- ção abstracta e idealizada dessa soberania tradicional, alguns são os que têm vindo a suscitar colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 271 que fiz alusão que se tornam plenamente inteligíveis muitas das crises que hoje assolam o laborioso processo de construção europeia. Durante a Guerra Fria, a NATO desenvolveu recursos focados em consultas políticas recíprocas dos Estados-membros da Aliança, outros virados para as tomadas de decisão, outros ainda para planeamentos, coordenação e execuções militares. Depois de ter terminado a Guerra Fria, as adaptações incluíram uma redução no número de comandos, a formação de task forces conjuntas e a constituição de “forças de intervenção rápida”. Porventura mais expressivo da reorientação-reestruturação que a Organização sofreu, novos recursos foram criados tais como, por exemplo, o “Parceria para a Paz”264. Quando foi instituída em 1949, a NATO diferia dos tradicionais pactos de ajuda mútua e garantia: para além da sua missão de dissuasão e defesa em relação à União Soviética, a Aliança devia também ajudar a construir paz e segurança entre os seus membros como países democráticos. O ponto principal que venho tentando fazer ressaltar é o de que é no interior do espaço em expansão da Paz kantiana, que a Aliança delimita ao conter a Anarquia hobbesiana, que a União Europeia tem vindo a medrar. dúvidas quanto à exequibilidade do projecto. Muitos o têm feito em termos de um nacionalismo primordialista apriorístico. Muitos, formalmente em termos afins (nomeadamente norte-americanos de convicções realistas e neo-realistas), são ainda os que têm vindo a professar incredulidade na viabilidade de uma integração que parece desafiar o interesse estrito e estreito de Estados, enquanto, e como, unidades políticas independentes. Estados esses que tais oponentes tendem além disso, dando mostras de uma certa inércia, a reificar como os únicos actores internacionais possíveis numa ordem que seria imutável desde o limiar dos tempos, num estado de natureza, que seria um permanent state of war, inalterado pelo menos desde Atenas e a guerra do Peloponeso sobre a qual escreveu Tucídides – a velha anarquia hobbesiana revisitada. O facto, porém, é que a União tem vindo a progredir. Com avanços e recuos, é verdade; mas sempre num movimento cumulativo, pelo menos até à crise presente desencadeada pela intervenção no Iraque liderada por norte-americanos e britânicos e pela oposição radical e coordenada dos Estados francês e alemão. Veremos o que o futuro nos reserva. 264 Para uma excelente discussão institucionalista pormenorizada das transformações incorri- das pela NATO com o fim da Guerra Fria, o seu significado e o da sua sobrevivência para muitos inesperada, ver Celeste A. Wallander (2000). Não será exagerado afirmar que foi esse segundo papel, transformado e alargado, que desde então a NATO tem vindo assumir como função central. 272 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Em consonância com isto, insisti com alguma trivialidade na necessidade imperativa de não deixar de tomar sempre em linha de conta a dimensão de segurança e defesa se quisermos bem compreender a mecânica da construção comunitária da Europa. Tentei todavia pôr em evidência o facto de que, para além de as questões de segurança e defesa emergirem como problemas e motivações de motu próprio, por assim dizer, elas operaram também indirectamente em termos de uma causalidade estrutural menos evidente (mas nem por isso menos eficaz). Não é nada difícil comprová-lo a nível macro, pelo menos negativamente. Com efeito, de outra maneira tornar-se-ia impossível explicar a curiosa “dança sincronizada” que tem levado a fascinantes evoluções conjuntas e históricas nos vários processos paralelos de integração da Europa: a União Europeia e a NATO foram tomadas como dois pontos altos (porventura os mais altos) deste complexo processo. Para terminar, cabe-me novamente (agora em contexto devidamente alargado) trazer à superfície estas tão surpreendentes confluências sincrónicas. De forma muito cursória e indicativa: temporal como geograficamente, e tanto no arranque como na amplitude que tiveram, na delimitação dos diversos períodos que as integram, como ainda nos timings e na orientação das várias fases por que passaram sucessivos esforços de alargamento, a solidificação progressiva da Europa comunitária andou de mãos dadas com a cristalização daquilo em que veio a transformar-se a NATO de hoje. A União e a Aliança têm sido como que dois pássaros a voar em conjunto ou, na minha metáfora alternativa, como dois dançarinos a evoluir num pas de deux. Não quer isto, evidentemente, dizer, que as duas entidades se confundam: muito pelo contrário, trata-se de criaturas bem distintas. São todavia criaturas que evidenciam paralelismos fascinantes. Por detrás das óbvias diferenças, tanto de inclusividade geográfica como de âmbito funcional, a sintonização entre elas, nas várias conjunturas em que têm coexistido, foi sempre (e mantém-se ainda) muito nítida. Essa sintonização emerge também a nível do pormenor. Verificámo-la além do mais em todos os planos e parâmetros que atrás esbocei. Os lugares de arranque e implantação desse processo em duas calhas de cristalização-consoli- colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 273 dação foram semelhantes. As lógicas que subtenderam ambas como que formam veios confluentes. As inflexões que sofreram coincidiram largamente. Nos dois casos a emergência de um eixo franco-alemão não parece dissociável da de um outro eixo, esse anglo-americano265. As suas divergências também não. A evolução sincronizada em duas calhas tem sido de longa duração: no período pós-bipolar, uma simples observação superficial revela-o, e essas marcadas coincidências-concomitâncias de fundo mantiveram-se. Mutatis mutandis, mesmo uma resolução maior das imagens o põe em evidência. As frentes mais problemáticas têm sido as mesmas; os espaços de expansão também, tal como aliás as linhas de clivagem e de tensão. Para além das óbvias diferenças de finalidade e de natureza funcional, só por hábito e miopia ou distracção as poderíamos pensar como entidades verdadeiramente conceptualizáveis em separado uma da outra. É verdade que, nos últimos tempos, sinais fortes de clivagens e fracturas se têm feito sentir266. Não parece totalmente inevitável, no entanto, que as divergên265 Nem sempre, os factos mostram-no, de maneira totalmente não ambígua e linear. Um só exemplo, anedótico. Em 1956, a intervenção franco-britânica no Suez, contra as medidas precipitadas de um Nasser em pleno auge pan-arabista, foi bloqueada e efectivamente neutralizada por pressões económicas e políticas dos norte-americanos, que se lhe opunham. O historiador William Hitchcock (citado por Charlemagne, 2003) contou que quando Anthony Eden, o Primeiro-Ministro britânico, telefonou ao seu congénere francês, Guy Mollet, a informá-lo do facto e da decisão britânica de retirar, interrompeu este último, que estava num encontro com Konrad Adenauer, o Chanceler alemão. Ao regressar à sala, perturbado, e ao informar Adenauer do que acabara de ouvir (contou Mollet a Hitchcock) K. Adenauer retorquiu-lhe que “ingleses e americanos” não eram “de confiança”; e acrescentou: “agora é o momento de construirmos a Europa”. 266 Numa colectânea bastante interessante, Richard Haass (1999) já há alguns anos o vem anunciando com base em estudos de caso relativos a vários cenários internacionais em que as diferenças de perspectiva se começaram a tornar sensíveis. Como R. Haass então escreveu, a Europa e a América estão “divided by more than an ocean when it comes to designing and carrying out [foreign] policies”. Em resultado, afirmou premonitoriamente, “Americans and Europeans often work at cross purposes”. Muito antes de R. Haass ou de R. Kagan, já em 1997 Irving Kristol tinha insistido que as nações europeias eram “dependent nations, though they have a very large measure of local autonomy. The term imperium describes this mixture of dependence and autonomy”. E concluiu, provocadoramente, “Europe is resigned to be a quasi-autonomous protectorate of the United States” (I. Kristol, 1997, op. cit.: 1). Curiosamente, estas asserções não nos causam tanto espanto hoje como há cinco anos, 274 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS cias entre os percursos da União Europeia e os da Aliança Atlântica continuem a aumentar. Os Estados europeus “de Leste” que recentemente acederam, em termos formais, ao estatuto de membros de ambas267, podem tornar-se no ponto focal de uma pressão centrípeta importante para o que pode denominar-se, misturando metáforas, um realinhamento dos seus voos coordenados. Os motivos para tanto são simples de equacionar. Para os Estados europeus de leste as entradas na União Europeia, formalizadas a 16 de Abril de 2003, redundam em apostas políticas e económicas essenciais. Mas a nível de segurança e defesa, a proximidade espacial e temporal da Rússia fá-los olhar além-Atlântico na direcção da única entidade (a coligação transatlântica, que como é compreensível distinguem mal dos Estados Unidos da América) que os faz sentirem-se seguros. O apoio que vocalizam em relação à NATO tem sido por isso explícito e fervoroso. Na sua opinião virtualmente unânime, essa “lealdade” não se opõe à que desejam edificar e nutrir no que toca à sua pertença à União Europeia: complementa-a. Mais tarde ou mais cedo parece inevitável um acordar generalizado para a nova arrumação conjuntural, trazida pela crise recente, apesar de nem sempre haver hoje disso consciência política – uma consciência porventura mais óbvia em Estados histórica e geograficamente encostados ao colosso russo do que noutros Estados europeus em posição e situação sistémica de algum modo “isomorfa” (ou pelo menos estruturalmente equivalente). Bastará em princípio uma polarização da conjuntura para que as correlações mais macro de forças se tornem manifestas. Direcções e cenários plausíveis de mudança ir-se-ão tornar muito mais nítidos. Modelos credíveis quanto a hipotéticas transformações poderão ser formulados com um maior grau de segurança; ou pelo menos com uma época em que foram redigidas. Para um estudo magnífico e de algum modo avant la lettre quanto ao futuro da articulação entre os Estados Unidos e a Europa no contexto de uma NATO em mudança, ver o trabalho monográfico pós-realista mas também pós-institucionalista de Sean Kay (1997). 267 Muitos deles, aliás, antes incluídos tanto no “Parceria para a Paz” de NATO como na largamente co-extensiva revoada de pactos e acordos de associação, mais ou menos estreita, celebrados durante sensivelmente o mesmo período de tempo entre vários Estados não-comunitários e a União Europeia. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 275 menor margem de arbitraridade. E só então saberemos aventar eventuais profilaxias, no quadro de uma contextualização de uma ou de outra maneira afim daquela que aqui propus. Uma breve consideração final. No quadro do que apelidei o “processo de constitucionalização regional”, o momento que vivemos é daqueles que G. John Ikenberry apelidou historical junctures. Trata-se de um verdadeiro momento constituinte. Quando vistos nesse contexto, os sinais emitidos pelas partes são preocupantes. Dos dois lados do Oceano, da França e Alemanha aos neo-conservatives norte-americanos, algumas vozes revisionistas insidiosamente radicais se têm erguido, desfiando a velha Aliança transatlântica em nome de um mais antigo balance of power e de novas coalitions of the willing avulsas. Oxalá tanto uns como outros vão perdendo depressa a capacidade de mobilizar vontades colectivas. Nisso está indexada a possibilidade de uma participação europeia condigna na nova ordem “constitucional” internacional em construção. Nesta como em tantas outras frentes, muito dependerá dos futuros ditames da Realpolitik do Estado norte-americano. Tal como muito é também aquilo que irá depender da capacidade dos líderes europeus em compreender esta fase no quadro da dinâmica de um longo processo que para todos é crucial. 276 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Bibliografia Garton Ash, Timothy (2003), “Anti-Europeanism in America”, The New York Review of Books, February 13, 2003. Asmus, Ronald D. e Pollack, Kenneth M. (2002), “The new Transatlantic Project”, Policy Review 115, The Hoover Institution. Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the World, Ballantine Books, New York. Barkawi, Tarak e Laffey, Mark (1999), “The Imperial Peace: democracy, force and globalization, European Journal of International Relations 5 (4): 403-434. Barreto, António (2003), “Requiem”, O Público, 23 de Março de 2003. Charlemagne (2003), “From Suez to Baghdad”, The Economist, 20 de Março, 2003. ____________ (2003a), “Divide and rule?”, The Economist, 26 de Abril, 2003. ____________ (2003b), “Après EU, le déluge?”, The Economist, 25 de Julho, 2003. Costa Arsénio, António da (1988), “A União Europeia Ocidental: sinopse histórica e devir existencial”, Nação e Defesa 48: 3-16. Cutileiro, José (2003), “O fosso”, O Expresso, 8 de Março, caderno 2: 24. Dowd, Alan W. (2000), “NATO after Kosovo: toward ‘Europe whole and free’”, American Outlook Today, 1 de Janeiro, 2000. Doyle, Michael (1996), “Kant, liberal legacies, and foreign affairs”, em (eds.) M. Brown, S. M. Lynn-Jones e S. E. Miller, Debating the Democratic Peace, MIT Press. Harris, Robin (2002), “The state of the special relationship”, Policy Review 113: 1-11, The Hoover Institution. (ed.) Haass, Richard N. (1999), Transatlantic Tensions: the United States, Europe and Problem Countries, The Brookings Institution. Hudson Institute (2002), “NATO and the European Union’s defense and foreign policy identity: challenges and requirements through 2010”, Special Report. Ignatieff, Michael (1993), Blood and Belonging: journeys into the new nationalism, The Noonday Press, New York. Ikenberry, G. John (2001), After Victory, Princeton University Press. Kay, Sean (1998), NATO and the Future of European Security, Rowman & Littlefield Publishing. Kennedy, Paul (1989). The Rise and Fall of the Great Empires: economic change and military conflict from 1500 to 2000, Vintage Books, New York. Kissinger, Henry (1979), White House Years, Little, Brown & Company. ____________ (1995), Diplomacy, Little, Brown & Company. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 277 Kristol, Irving (1997), “The emerging American Imperium”, American Enterprise Institute for Public Research. Kupchan, Charles (2002), The End of the American Era. US foreign policy and the geopolitics of the Twenty-first Century, Alfred A. Knopf, New York. ____________ (2002a), “The end of the West”, The Atlantic Monthly, November 2002. (ed.) Kupchan, Charles (1998), Atlantic Security: contending visions, The Council of Foreign Relations Press. Larsen, Henrik (2002), “The EU: a global military actor?”, Cooperation and Conflict: Journal of the Nordic International Studies Association, 37 (3): 283-302. MacMillan, Margaret (2003), Paris 1919, London. Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18 (2): 45-79. ____________ (2003), “A Europa kantiana não sobrevive ao fim da Aliança Atlântica”, Nova Cidadania 16: 46-53. ____________ (2003), “Recensão do After Victory de Ikenberry”, Política Internacional 65, Lisboa. Nye Jr., Joseph S. (1997), Understanding International Conflict. An introduction to theory and history, Longman. ____________ (2002), The Paradox of American Power: why the world’s only superpower can’t go it alone, Oxford University Press. Parsons, Craig (2002), “Showing ideas as causes: the origins of the European Union”, International Organization 56 (1): 47-84. Philpott, Daniel (2001), Revolutions in Sovereignty, Princeton University Press. Rato, Vasco (1998), “Mas elas são mesmo pacíficas?”, Política Internacional 18(2): 93-115. ____________ (2003), “Portugal e a crise iraquiana”, O Independente, Sexta-Feira, 21 de Fevereiro: 47. Risse, Thomas (2000), “’Let’s argue!’: communicative action in world politics”, International Organization 54 (1): 1-39. Risse-Kappen, Thomas (1996), “Collective identity in a democratic community: the case of NATO”, em (ed.) Peter J. Katzenstein, The Culture of National Security: norms and identity in world politics: 357-399, Columbia University Press. Schlesinger, Stephen (2003), Act of Creation, the founding of the United Nations: a story of superpowers, secret agents, wartime allies and enemies and their quest for a peaceful world, Westview Press. Shaw, Martin (1997), The state of globalization: towards a theory of state transformation”, Review of International Political Economy 4 (3): 497-513. 278 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Stonor Sunders, Frances (1999), Who Paid the Piper? The CIA and the cultural Cold War, Granta Books, London. Vilaça, José Luís e –Henriques, Miguel Gorjão (2001), Tratado de Amesterdão, Almedina. Wallander, Celeste A. (2000), “Institutional assets and adaptability: NATO after the Cold War”, International Organization 54 (4): 705-735. Walz, Kenneth (2000), “Structural realism after the cold War”, International Security 25 (1): 5-41. Zakaria, Fareed (2003), “The arrogant empire”, Newsweek, 24 de Março, 2003. Zelikow, Philip e Rice, Condoleezza (1995), Germany unified and Europe transformed: a study in statecraft, Harvard University Press. colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA 279 280 ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS