colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
1
2
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
Armando Marques Guedes
Estudos sobre
Relações Internacionais
2005
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
3
Ficha técnica
Título
Estudos sobre Relações Internacionais
Coordenação Editorial
IDI - MNE
Edição
Colecção Biblioteca Diplomática do MNE
Ministério dos Negócios Estrangeiros, Portugal
Design Gráfico
Risco, S.A.
Paginação, Impressão e Acabamento
Europress, Lda.
Tiragem
1000 exemplares
Data
Outubro de 2005
Depósito Legal
233525/05
ISBN
972-9245-44-4
4
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Índice
Prefácio
7
1. As religiões e o choque civilizacional
9
2. As guerras culturais, a soberania e a globalização: o choque das
civilizações revisitado
37
3. O funcionamento do Estado em época de globalização.
O transbordo e as cascatas do poder
83
4. Local normative orders and globalisation: is there such a thing
as universal human values?
129
5. O Islão, o islamismo e o terrorismo transnacional
183
6. O terrorismo transnacional e a ordem internacional
193
7. Sobre a União Europeia e a NATO
227
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
5
6
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Prefácio
Nos vários Colóquios, Seminários e Conferências em que participei na última
dúzia de anos, uma cinquentena versaram áreas da Ciência Política, e em particular do âmbito mais restrito de estudo das Relações Internacionais. Numa boa
vintena destes encontros apresentei comunicações escritas ou orais, que depois
acabei por publicar aqui e ali, com uma preocupação por garantir uma dispersão
editorial que torna muitas delas hoje em dia dificilmente acessíveis. Nalgumas
voltei-me para a acção diplomática portuguesa. Num subconjunto maior voltei-me para o espaço da lusofonia, essa entidade em construção. Noutras, dediquei-me antes a discussões mais gerais e mais teóricas focadas em análises do
sistema internacional.
Decidi juntar num primeiro apanhado sete dos artigos deste último agrupamento de publicações: é isso que apresento. A colectânea – pelo menos assim o
espero – exibe uma forte unidade. Um denominador comum a todos os artigos
coligidos é uma marcada atenção aos enquadramentos proporcionados pelos
processos de transformação e integração-fragmentação à escala mundial que
têm vindo a ser apelidados de globalização. Não é o único laço que os une –
todos os estudos que coligi foram redigidos na última meia década. Mais ainda:
na maioria dos casos trata-se de trabalhos cujas primeiras versões podem ser
encontradas em publicações periódicas oriundas de instituições superiores militares; embora num ou noutro exemplo, não.
Num primeiro desses dois últimos casos, tenho o gosto de dar à estampa
uma longa comunicação em língua inglesa, até agora inédita, que apresentei e
discuti longamente numa Conferência Internacional realizada em 2001 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O segundo
diz respeito à publicação de um texto no prelo, cujo aparecimento na revista
Nação e Defesa, do Instituto da Defesa Nacional, está iminente. Ambos têm uma
óbvia semelhança de família com os outros cinco, que torno a publicar: pareceu-me haver uma suficiente sintonia nos artigos que agrego para justificar a sua
publicação conjunta num só volume.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
7
Por via de regra re-editei os sete artigos em versões idênticas às originais.
Exepcionalmente, fiz uma limpeza de gralhas, levei a cabo pequenas alterações
estilísticas e, mais raramente, acrescentei uma ou outra frase no intuito de melhor
esclarecer aquilo que quis passar como mensagem. Mantive sempre que foi caso
disso o tom coloquial que, por norma, caracterizou as minhas comunicações. Em
nenhum caso introduzi quaisquer modificações de substância que alterem, seja
no que for, o sentido que penso ter dado aos meus textos matriciais. A primeira
nota de rodapé que incluo em cada uma das secções da presente publicação
fornece o lugar de origem de cada uma das comunicações em que os expus.
Foram os seguintes os lugares de origem dos cinco artigos já publicados,
dos sete que aqui incluo:
(i)
“As religiões e o choque civilizacional”, em Religiões, Segurança e Defesa: 151-177, Atena e Instituto de Altos Estudos Militares, 1999.
(ii) “As guerras culturais, a soberania e a globalização: o choque das civilizações
revisitado”, Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares 51: 165-192, 2000.
(iii) “O funcionamento do Estado em época de globalização. O transbordo e as
cascatas do poder” Nação e Defesa 10, Instituto da Defesa Nacional, 2002.
(iv) “Sobre a União Europeia e a NATO”, Nação e Defesa 106: 33-76, Instituto da
Defesa Nacional, 2004.
(v) “O terrorismo transnacional e a ordem internacional”, Nação e Defesa 108:
169-199, Instituto da Defesa Nacional, 2005.
Como poderá ser facilmente verificado, a ordem de apresentação e a de
publicação, quando esta teve lugar, nem sempre coincidiram. O que me forçou a
uma escolha editorial, no que toca à presente colecção de artigos. Com o intuito
de disponibilizar como fio condutor a progressão das minhas perspectivas, edito
aqui os textos na ordem em que eles foram redigidos e apresentados e não na da
respectiva publicação.
Oslo, 3 de Agosto de 2005
8
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1. As Religiões e o Choque Civilizacional*
1.
Alguns cientistas sociais desde há muito produzem, e muitas vezes apoiam, as
chamadas teorias da secularização. Sob a capa de uma diversidade superficial,
estas são todas aparentadas; trata-se sempre, no fundo, de asserções segundo as
quais estamos perante as convulsões de morte das religiões, consideradas como
de alguma maneira incompatíveis com “a modernidade”. As inúmeras narrativas
teóricas para o efeito formuladas, em rigor não variam muito. Começam, por via
de regra, por uma soi-disante constatação: nas sociedades científico-industriais,
alega-se, a fé e a observância religiosas declinam. Para tal são por norma aduzidos
motivos intelectuais, ou razões intelectualistas: às doutrinas religiosas contrapõem-se por convenção as científicas, hoje mais prestigiadas, ligadas a enormes
sucessos tecnológicos; e, por essa via, também a vertiginosos desenvolvimentos
económicos. Postula-se que a religião em resultado decai. O princípio subjacente
que está implícito a estas formulações é simples: o seu prestígio e o da rival
variam em razão inversa um do outro. Razões sociológicas de fundo também não
faltam nessas variadíssimas elaborações teóricas: as religiões, sublinha-se num
tom durkheimiano, são na verdade celebrações de comunidades; e num mundo
moderno fragmentado e massificado pouca comunidade existe ainda para celebrar – a não ser a do Estado nacional, é comum a ressalva muitas vezes entoada
em timbres weberianos: mas essa tem rituais cívicos e valores próprios nacionalistas. Neste estilo de formulações o nacionalismo também varia em razão precisamente inversa da religião; substitui-a.
Se contextualizarmos os discursos teóricos deste tipo no cientismo
oitocentista em que eles tantas vezes efectivamente ancoram e se tentarmos
*
Comunicação lida como conferência de fecho, do Seminário “Religiões, Segurança e Defesa”,
na tarde de 16 de Julho de 1999, no anfiteatro central do Instituto de Altos Estudos Militares.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
9
perspectivar o Mundo, neste fim de Milénio, sem as lentes dessa sabedoria
convencional, é fascinante constatar a convergência, no panorama contemporâneo, de duas tendências, duas forças que à partida julgaríamos incompatíveis:
uma incongruência surpreendente e um estado de coisas paradoxal. Por um lado,
teses como as da secularização parecem efectivamente verdadeiras, empiricamente verificáveis, num Mundo cada vez mais laico; mas, por outro lado, soam a
totalmente falsas e não aparentam sobreviver a um escrutínio mais aprofundado.
Os indícios do dilema são muitos. As fés (as convicções, senão a observância)
parecem crescer. A sua diversidade não pára de aumentar. As seitas e as novas
religiões (quantas vezes com um enorme experimentalismo e criatividade) proliferam um pouco por toda a parte. A religiosidade, de mil maneiras, está
visivelmente a renascer. As tendências sacralizantes adicionam-se assim, ao que
tudo indica, a tendências opostas, laicas.
Testemunhamos, na modernidade, um rol de ambivalências. Os dois retratos
exemplares de algum modo coalescem. A par com o carácter galopantemente
asséptico da vida social, da substituição do Deus único pela Razão Suprema de
que falavam os positivistas, da “gaiola de ferro” da racionalidade omnipresente
sobre que pontificou Max Weber, do Big Brother global pós-orwelliano, vivemos
também um período que Michel Maffesoli (1992:181, tradução minha) caracterizou como de “um enraizamento no solo e um crescimento em direcção do céu”.
Ouve-se “um rumor de anjos”, como há uma boa vintena de anos anunciou Peter
Berger1. Se essa ambivalência não significa uma nova fase de maturação da
religiosidade, parece pelo menos evocar um crescendo na sua instrumentalização.
Com o fim do Mundo bipolar e com a quebra dos critérios político-ideológicos de
validação a que nos tínhamos habituado, estamos a ser canalizados para um
reenquadramento e para reorientações a um tempo mais locais e mais transcen1
Para isso podemos aduzir (muitos o têm feito) razões e motivos mais intelectualistas (como,
por exemplo, a ansiedade conceptual causada por inovações e modificações tecnológicas incompreensíveis, que colmataríamos, ou representaríamos, com bruxas, astrologias ou OVNIs), ou mais
sociologísticas. Não é porém esse o meu tema neste Seminário: o meu tópico é o do
redimensionamento político contemporâneo das religiões. A comunicação de Ignacio Ramonet
tratou de forma admirável a problemática referida.
10
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dentes – o que tem sido chamado a “tribalização do Mundo”. E que redunda,
quantas vezes, num crescimento explosivo, e coordenado, de teias nacionalistas,
irredentistas e imanentistas, ou até divinas, ou pelo menos em novas (e velhas)
“comunidades nacionais e religiosas imaginadas”, como as intitularia Benedict
Anderson. Talvez as duas forças (a profana e a sagrada), longe de antagónicas, se
complementem; e que, por isso, as imagens se acasalem. Vivemos num meio
internacional dado a nacionalismos ritualizados e propenso a religiões nacionalizadas.
Nada disto é particularmente inovador – desde há bastante tempo (uma boa
dezena de anos) que muitos sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e
historiadores, entre outros, o vêm a anunciar. Talvez valha a pena, em todo o caso,
reiterar o que já foi neste Seminário abundantemente abordado e que forma o
núcleo duro que subtende asserções deste tipo, as suas condições nocionais de
possibilidade. E talvez valha a pena fazê-lo reformulando perguntas: o que é que
torna a religião num veículo tão adequado para a identidade, nomeadamente a
identidade cultural, étnica, ou nacional? Qual é a natureza profunda da afinidade
electiva entre sistemas de ideias, representações e práticas desses domínios na
aparência tão distintos? No quadro internacional contemporâneo, afinidades
dessas estarão a ser potenciadas? E em que sentido é que, a partir da compreensão das razões de ser dessa iteração entre religião e identidade, podemos esperar
saber prever a eclosão de tensões e conflitos? Basta olhar em volta, auscultar o
Mundo, para compreender a urgência de para tudo isto encontrar respostas. Para
perceber a insensatez que seria, face aos cenários prospectivos que se parecem
impôr, não tomar as cautelas preventivas possíveis.
2.
Não será talvez exagerado asseverar que, na última meia dúzia de anos, as
discussões sobre estes e outros temas afins têm sido em grande parte
desencadeadas em função (e levadas a cabo no contexto) do brilhante quadro
teórico proposto, de Harvard, por Samuel Huntington e pelas suas célebres
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
11
(outros diriam notórias) teses sobre “O Choque de Civilizações”2. Sem surpresas,
verifico que grande parte do que foi discutido neste Seminário o foi muitas vezes
contra precisamente esse pano de fundo. Tal como seria de esperar: sejam quais
forem as críticas a que Huntington possa (e deva) ser sujeito, não há dúvida que
retratou bem o Zeitgeist, o espírito do tempo em que vivemos, ou em todo o caso
algumas das traves-mestras da maneira como temos vindo a olhar o Mundo
contemporâneo e as suas mais recentes transformações. O que o notável estudioso norte-americano disse e escreveu adequa-se bem ao observável e tocou
fundo em muitas das perspectivas convencionais que temos arreigadas. O que
não equivale naturalmente a dizer que tenha razão, ou pelo menos que a tenha
toda.
A posição teórica de Huntington é simples e clara e não será seguramente
preciso fazer aqui mais do que recapitular as linhas de força maiores da sua
argumentação. Segundo Huntington, o malogro da União Soviética, e a resultante transição de um Mundo bipolar para uma nova ordem internacional com
apenas uma superpotência (os Estados Unidos), trouxe consigo uma rápida
consequência estrutural: ao de cima, por assim dizer, vieram os “blocos
civilizacionais” básicos (são seis ou sete, não são muito claras as asserções de
Huntington quanto ao estatuto “tectónico”, digamos assim, do bloco africano
nem do latino-americano) que nos separam uns dos outros. Em resultado uma
nova ordem internacional, de base essencialmente cultural, rapidamente se
cristalizou. Primeiro num artigo notável publicado em 1993 na revista Foreign
Affairs e depois, em 1996, numa versão mais alargada (mas sem alterações
substantivas) numa monografia – ambos intitulados The Clash of Civilizations –
Huntington soletrou, em detalhe, a nova topografia política emergente.
Não vou reiterá-la, a não ser para relembrar imagens fortes como a relativa,
nomeadamente, ao que Huntington (memorável e, segundo muitos Muçulma2
Uma obra traduzida para várias línguas, incluindo o Português, bastante influente em
diversos meios académicos, políticos, e outros. Desencadeou, de imediato, várias reacções, algumas
das quais reeditadas em 1996 pela Foreign Affairs numa colectânea (The Debate), de que existe
também tradução portuguesa. Mais mediatamente, o modelo de S. Huntington tem sofrido reajustes, não obstante a sua enorme fecundidade heurística.
12
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nos, insultuosamente) apelidou as “fronteiras sangrentas do Islão”, por exemplo.
Ou para repetir ilustrações que o autor ofereceu, no que toca à irredutibilidade
das identidades religiosas umas às outras – como escreveu, é possível ser-se meio
francês, meio argelino, ou meio socialista, meio capitalista; não faz porém qualquer sentido alegar ser-se meio Católico, meio Muçulmano… Huntington tem
decerto razão. Religiões, de facto, expressam visões muito particulares do Mundo
(enquanto construtos conceptuais), vivências muito concretas (enquanto experiências colectivas), e, de um ponto de vista sociológico, como o revelou Émile
Durkheim com a sua boutade de que “Dieu est la societé”, são sempre representações simbólicas dos nexos de relações sociais em que nos vemos envolvidos.
Mapeiam-nos. Formam, como tal, uma parte integrante da nossa identidade mais
profunda; definem-nos, ainda que várias outras maneiras haja de o fazer.
Se é aí que reside a sua força, é aí também que reside todo o seu potencial
de risco para a segurança. Religiões são muitas vezes factores sérios de
desestabilização política, como muitas outras vezes o são de estabilização. À
partida, há que dizê-lo, Huntington parece ter posto o dedo numa ferida; aflorou
pelo menos uma parte da verdade, a mais negativa. Relembrou-nos (contra uma
perigosa amnésia) que se a experiência histórica nos ensina alguma coisa,
ensina-nos que as religiões, quando se sentem fortes, tendem, por infelicidade,
a lutar umas contra as outras. É, previsivelmente, quando se sentem fracas que se
unem (ou que parecem insinuá-lo) contra o que reconhecem e circunscrevem
como inimigos comuns. Tendem quantas vezes nesses casos porém a fazê-lo por
meras razões tácticas, na convicção (com certeza bem fundamentada) de que
juntar forças recruta e mobiliza energias úteis para programas políticos partilhados (sejam eles a luta contra o aborto, a remissão das dúvidas do chamado
Terceiro Mundo, ou a inclusão da religião nos curricula escolares, para só usar
exemplos3 recentes). Nesse sentido, o melhor testemunho para o implacável
3
Muitos outros exemplos poderiam decerto ser aduzidos que sugerem áreas de colaboração
possível entre religiões diferentes. E sem dúvida que são inelutáveis as vantagens políticas tácticas
de cooperações pontuais destes tipos, sobretudo as alegadamente gizadas em pretensões
programáticas de convergências teológicas. Mas nem por isso, creio, se torna muito convidativo o
exercício. Em primeiro lugar, e como insistiu em Oxford F. Fernández-Armesto (1997), tais alegações
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
13
cerco pressentido pelos líderes religiosos contemporâneos talvez seja a disponibilidade para, segundo dizem, “pôr de lado as divergências” e para colocar a
tónica, como alegam, naquilo que, insistem, “têm de comum”.
Não é a primeira vez, numa História truculenta, que a situação lhes é avessa.
Mas a ameaça é hoje mais geral. Os inimigos que se perfilam na linha de
horizonte são muitos e as frentes que abrem são muito variadas: do mais
baixo materialismo ao humanismo laico, os opositores recatam-se em posturas
antagonísticas que vão do desprezo científico às acusações de uma endémica
incorrecção política; ou assumem outra posição mais estrutural e por isso
mesmo talvez mais corrosiva, ainda que à superfície menos ameaçadora: escondem-se por detrás da interdependência crescente a que assistimos no Mundo
moderno e a que, bem ou mal, chamamos globalização. A maneira como
a globalização erode as religiões, lhes faz tremer as bases de sustentação, e a
forma como define novos pontos de aplicação para os desafios e constrangimentos a que elas estão sujeitas são questões na ordem do dia. Se bem que, a meu
ver, daí não lhes venham grandes perigos, antes pelo contrário. Voltarei a este
ponto.
Se confrontada com algum recuo, a situação de diálogo inter-religioso vivida
no presente, ainda que não seja inédita, é claramente de excepção. Em termos
puramente empíricos e quantitativos, parece incontornável a conclusão de que
religiões são, de alguma forma, inimigas naturais umas das outras. Por muito que
líderes e responsáveis o neguem (e por razões pastorais e teológicas muitos deles
o fazem muitas vezes), as religiões são como que mutuamente exclusivas. O que,
são em geral factual e intelectualmente bastante pouco convincentes; e, portanto, têm poucos pés
para andar. Em segundo lugar, consequências de convicções deste género tendem a distribuir-se à
volta de hostilidades intocadas, porque meramente deflectidas para novos canais de expressão; são,
por conseguinte, pouco cautelosas. Insistir, por exemplo, que o Deus do Cristianismo, o Alá Islâmico,
ou o Tetragramaton Judaico são “o mesmo”, não faz sentido senão num registo tão fraco que se torna
trivial e induz enormes “perdas de informação”; se introduzirmos na equação o politeísmo Hindu ou
o ateísmo Budista, persistir na ideia de uma comunalidade desliza para o puro nonsense. Da mesma
forma que, a meu ver, nos condenamos a perder de vista diferenças que fazem toda a diferença se
teimarmos em asseverar que, de algum modo, as vias, os meios, ou as finalidades de todas as
religiões são “idênticos”, ou sequer essencialmente semelhantes.
14
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
pelo menos de um ponto de vista analítico, é intrinsecamente interessante. Sem
querer entrar em grandes polémicas, é transparente que tensões e conflitos entre
religiões têm ocorrido por duas grandes ordens de razões, tanto quanto conseguimos vislumbrar. Primeiro, cada uma delas no essencial representa uma asserção,
uma visão particular, do Mundo, de um acesso privilegiado à verdade, quando
não ao seu monopólio. Todas as diferenças entre umas e outras tendem por isso
a ser retratadas como erros, enganos, ou mentiras, que urge desmistificar. Em
segundo lugar, como fenómenos sócio-culturais, ou sócio-políticos, religiões são
expressões fortíssimas de identidade; e se julgarmos pela sua disposição em lutar
por esta, nada é tão precioso para as pessoas como as credenciais emblemáticas
que têm de pertencer ao agrupamento social com que se embrenham. A esta luz,
para além de excepcional, a situação ecuménica contemporânea é mais aparente
que real, mais uma ficção conveniente que uma descrição convincente4. O facto,
teimoso, é que religiões continuam a ameaçar-se mutuamente (e quantas vezes
estridentemente) por debaixo do verniz de supostos programas de colaboração
bem intencionada. Pior: como muitos observadores têm notado, nos últimos
anos a situação geral parece ter-se vindo a agravar. Uma segunda constatação
que convém assumir com frontalidade.
4
Comecemos por olhar para o que nos está mais próximo e para o âmago da questão; e
façamo-lo simultaneamente arriscando um apelo ao bom senso e deixando a sugestão de que talvez
seja prudente evitar confundir desejos com realidades. Para os Cristãos, a propensão para desenfatizar
diferenças religiosas é apelidado de ecumenismo; acabámos de ouvir o muito ilustre Senhor D.
Januário Torgal Ferreira falar sobre isso mesmo. A nível superficial (e até em termos potenciais) o
ecumenismo intra-Cristão parece fazer bastante sentido, como poderia ser de esperar num qualquer
esforço de reunificação do que se reputa terem uma vez sido, in illo tempore, tradições comuns. Tal
como, com um esforço ligeiramente maior, pode parecer sensato (ou persuasivo) alegar a adequação (e logo eventual eficácia) a um ecumenismo mais lato que ancore os seus programas de acção
no âmbito de supostas convergências teológicas de fundo entre todas as (ou muitas das) religiões.
É fácil e tentador, com efeito, contemplar a História com lentes que nos levem a considerar todas as
diferenciações como cismas, cismas que (é tentador acreditar) seriam penosos obstáculos para uma
ansiada unidade sincrética, cosmopolita e até universalística, resultantes de miopias morais ou de
mal-entendidos baseados em preconceitos ultrapassáveis, arrogâncias idiotas, ou em falácias irracionais. É particularmente curioso, por isso mesmo que, num período com tantos canais disponíveis
de comunicação seja tão difícil manter o momento ecuménico por todos tão almejado.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
15
Esta constatação não é fácil de racionalizar e não deixa de ter uma pouco
cómoda e incontornável verosimilhança: muito, com efeito, a corroba. Tal como
Huntington insistiu e previa, com a dissolução do enquadramento bipolar que se
seguiu ao desmantelar da União Soviética, ódios incubados têm fervilhado e
saído à rua. Têm sido escavados novos fossos separadores, para além de terem
sido ampliadas linhas de falha arcaicas. A situação (melhor, a conjuntura) é
complexa: ao que verificamos, apesar de confrontarem inimigos comuns, as
principais religiões do Mundo (e seguramente muitas das fés menores) têm-se
insulado ou, pelo contrário, têm sofrido convulsões evangélicas ou proselitistas,
e têm-se muitas vezes entrincheirado umas contra as outras em processos cada
vez mais globais de competição feroz por lealdades. Muitos são os casos em que
a insegurança tem medrado num chão fértil.
Uma qualquer simples enumeração de casos funciona como uma espécie de
retrato singular do Mundo contemporâneo, uma tomada de pulso resignada: as
instâncias mais visíveis e alarmantes pela sua violência (ou violência potencial)
separam Muçulmanos de Cristãos ao longo de pelo menos três continentes (Ásia,
África e Europa), Hindus de Muçulmanos na Ásia Central, Xiitas e Sunis um pouco
por toda a parte, na Ásia do Sudoeste Sikhs de Hindus, Católicos de Protestantes,
Cristãos e Muçulmanos e grupos ditos animistas (na África Oriental, por exemplo), e na Europa, Muçulmanos de Ortodoxos e estes de Católicos. Não há
combinações que pareçam impossíveis; todos os continentes estão como que
afectados. Tal como não há “bloco civilizacional”, como Huntington lhes chamou,
que seja imune ao contágio. A religião, ao que parece, tem tido um papel
fundamental tanto na presença de velhas fronteiras e antigas linhas de demarcação, como na criação de novas. Religiões têm sido (e ao que tudo indica continuarão a ser) termos nos quais novas guerras são empreendidas. Nesse sentido,
nada evoluiu, ou se o fez foi para pior. As guerras religiosas têm tido o que Felipe
Fernandéz-Armesto chamou “uma história quase contínua”5: seria imprudente
pensar que fosse o que fosse nisso se alterou.
5
F. Fernandéz-Armesto (1997, op. cit.: 48-51), um pequeno estudo truculento sobre o futuro
da religião na “modernidade”, que aqui cito liberalmente e sem grande contenção.
16
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Bem pelo contrário. E aí uma perspectivação mais minuciosa e analítica
pode ser-nos útil: a persistência de conflitos religiosos violentos, aventar-se-á,
ensina-nos imenso sobre o poder, a natureza e o papel da religião, ainda que num
Mundo supostamente secular. Por muito que nos custe encará-lo, convenhamos
que as renitências e resistências das religiões umas em relação às outras afloram
ciclicamente. Não o fazem de maneira constante; mas as pausas são muitas vezes
pouco mais do que um trompe l’oeil. Mesmo um Islamismo por tradição
honrosamente pautado por uma grande tolerância, tem vindo a mostrar outra
face ao Cristianismo e ao Judaísmo mal os entrevê como ameaçadores. O Cristianismo, por sua vez, e não obstante o humanismo cosmopolita e as doutrinas
de Paz e Amor universais que advoga, tem sido vítima de episódios exclusivistas
violentos como as Cruzadas e as Inquisições. Até o Hinduísmo, internamente
estruturado segundo uma enorme inclusividade sincrética, vê hoje nos Sikhs e
nos Muçulmanos inimigos de morte. A intervalos (em muitos casos, longos
intervalos) algumas religiões são caridosas para com as outras (quase sempre
com alguma condescendência…), o que poderia instilar-nos esperança num
acatamento reencontrado. Mas face às numerosas recaídas, só uma fé optimista
incorrigível nos permitiria alegar que quaisquer alterações de fundo desse género
terão vindo para ficar. A irredutibilidade parece pandémica; os desacatos, uma
propensão estrutural. Muitas das religiões no Mundo de hoje são, infelizmente,
autênticas bombas-relógio.
Podemos lamentar o facto e nada nos impede de sobre ele formular considerações e juízos de valor. Se bem que não sejam de esperar, neste campo,
grandes concordâncias. Alguns serão da opinião (política) que essas infelizes
circunstâncias provam a propensão inata das religiões em fazer mais mal que
bem. Outros poder-se-ão recantar na convicção (mais confessional) de que
aderentes e oficiantes das religiões são falíveis, imperfeitos, e incapazes por isso
de absorver as lições de paz, caridade, resignação, tolerância e comunhão pelas
quais a maioria dos credos religiosos ostensivamente propugna. Muitos, com
porventura maior neutralidade, insistirão nos aspectos mais positivos e pacíficos
da maioria das religiões e verão no recrudescer da conflituosidade não uma
manifestação intrínseca da religião, mas antes uma prova conclusiva da força
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
17
gigantesca das afiliações religiosas como fontes e repositórios da identidade
social. E localizarão na crescente afirmação destas identidades, e não nas religiões, os reais perigos para o futuro.
3.
Neste fim do século, muitas das guerras têm efectivamente essas características religioso-identitárias. As suas frentes são conhecidas. A fragmentação da
Índia pós-colonial teve uma base religiosa, Muçulmanos contra Hindus, um
problema ainda não resolvido, como se vê nas tensões fronteiriças actuais em
Cachemira; os conflitos dos últimos com os Sikhs têm envenenado a paz social
naquele país, e a efervescência do mais recente renascimento hinduísta (que tem
tido como corolários ataques a Cristãos, entre outros), lança dúvidas quanto a
uma qualquer pacificação eminente. Na guerra surda (e já com barbas) de
Católicos contra Protestantes irlandeses, seria arriscado aventar soluções, não
obstante os aparentes compromissos recém-logrados. Nos Balcãs, confrontações
no mínimo tripartidas têm desde o princípio de decénio (e desde há vários
séculos) virado Católicos, Ortodoxos e Muçulmanos uns contra os outros, na
Bósnia-Herzegovina Ortodoxos contra Muçulmanos, com a mesma receita no
Kosovo. No Líbano, a forma mais económica de descrever a longa guerra é
decerto caracterizando-a como uma série de confrontações entre Cristãos, Judeus, Xiitas, Sunis e Druzos. Não é particularmente abusivo ver a religião como
uma dimensão activa nas guerras Israelo-Árabes, na dos Arménios contra os
Azeri, a dos Russos com os Chechenos, ou até nas (infelizmente mais próximas)
brutalidades dos Indonésios contra os Timorenses. Um novo espírito do tempo,
dir-se-ia, está a assentar arraiais. Os afegãos encararam a guerra com os soviéticos com um jihad dos mujahidin contra os invasores, tal como o têm feito as
minorias Islâmicas que nas Filipinas e na Tailândia, ou como, mais tarde ou mais
cedo, talvez o venham a fazer as da China, em Xinjiang.
Tudo isto augura com efeito corrobar o modelo de Huntington, ao acentuar
um crescendo sensível na preponderância daquilo que ele tão graficamente
18
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
apelidou de “linhas de falha civilizacionais”, que o fim da arquitectura bipolar teria
como que feito vir à tona. Mas tal está longe de ser pacífico. Porque não deixa de
ser verdade (como muitas vezes tem sido objectado) que cada caso é um caso;
e que, se o preço a pagar pela adequação de todos os casos particulares a um
mesmo quadro genérico é um apagamento de diferenças e distinções conceptuais
fundamentais, então o preço é demasiado alto6. Em causa estão problemas de
fundo cruciais como a questão, tão vexatória, da definição do que é “uma guerra
religiosa”, um conceito extraordinariamente árduo de desfiar. O que está em jogo
não é uma hesitação puramente formal, mas sim uma dúvida substantiva: se
subsumir eventos essencialmente diferentes sob a égide de um conceito unitário
é muitas vezes útil e tranquilizante (já que evita confusões e eventuais dissonâncias
cognitivas), o fazê-lo redunda num raciocínio circular se for baseado numa
petição de princípio. O risco, obviamente a evitar, é o de se acabar por concluir
precisamente aquilo que começámos por fabricar. Uma guerra é religiosa quando a sua motivação é religiosa ou, em rigor, é-o apenas quando as suas finalidades são religiosas? Ou ambas? E podemos considerar um conflito como religioso
se a religião for só um dos seus vários factores, ou deve o conceito ser reservado
estritamente para guerras de cariz integralmente confessional? E o que é que isso
quer dizer?
É difícil não ter a impressão de que as interpretações mais maximalistas do
modelo de Huntington, sem embargo da sua notável elegância intelectual,
ganhariam com uma muito maior sofisticação nestes domínios. Dificuldades
como esta são ademais agravadas pela evidência de que nem todas as religiões
exibem a mesma propensão para a conflitualidade. Mais, mesmo no seio de uma
única religião (por exemplo o Catolicismo) vivem-se períodos mais violentos do
que outros, como um mínimo de atenção torna evidente. Ao que se adiciona a
constatação de que, já que a religião e a identidade estão tão intimamente
interligadas, o redimensionamento político das religiões é tantas vezes um facto
insofismável. Por outras palavras e para voltar ao que atrás foi dito: conflitos
6
As explicações fáceis, a essa luz, saem a perder: não Huntingon, ele próprio um autor
cauteloso, mas algumas leituras que dele são feitas e que pecam por excessivas simplificações.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
19
religiosos são, não raramente, conflitos étnicos mascarados. O que suscita novos
problemas, já que recoloca e reposiciona as questões exigindo formulações
teóricas mais elaboradas e muito mais criteriosas.
Um outro bom sintoma desse déficit de elaboração teórica (com graves
consequências e implicações para a compreensão dos factos) tem a ver com o
esmiuçar imprescindível do que é, daquilo que significa, “um processo de identificação étnica”7. A dúvida está longe de ser simples; justifica-se portanto determo-nos um pouco sobre esta tão necessária redimensionação das questões político-religiosas abordadas por Huntington. Muitos exemplos de distorções resultantes
de simplificações depauperizantes (por não tomarem em linha de conta
considerandos destes) são possíveis. Ocorre-me um, muito geral: como escreveu
memoravelmente Ernest Gellner em 1992, “ao contrário do que as pessoas de
fora geralmente supõem, a mulher Muçulmana típica numa cidade Muçulmana
não usa o véu por a sua avó o ter usado, mas porque ela não o usou: a avó, na
aldeia, estava demasiado ocupada no campo, e frequentava os locais de culto
[shrines] sem véu, e deixava o véu para os seus superiores. A neta está a celebrar
o facto de se ter juntado aos superiores da avó, mais do que a sua lealdade à sua
avó” [1992:16, tradução minha]. A lição é bem aprendida: o conhecimento
detalhado do contexto sócio-cultural adequado, e da natureza precisa da acção
simbólica levada a cabo (neste como em muitos outros casos) põem a nu
7
Como escreveu há uma trintena de anos Abner Cohen, “a etnicidade, na sociedade moderna,
é um resultado da interacção intensa de diferentes grupos culturais e não o resultado de uma
qualquer tendência para a separação”. Ou seja, e por outras palavras, a identidade (qualquer
identidade, mesmo a étnica) é melhor concebida se tomada como um fenómeno relacional, um
campo cultural de acção que passa pela definição de uma pertença, de uma origem, ou de uma
orientação, estreitamente ligadas à construção social de uma comunidade. Trata-se de uma construção que tem sempre lugar no enredo de uma conjuntura sócio-política pré-existente; e que logo, por
isso mesmo, não pode de maneira nenhuma ser tornada inteligível a partir de puros e simples
pressupostos “primordialistas” que insistam, por exemplo, no “nacionalismo incipiente” de um
qualquer grupo etnolinguístico; ou que inventem uma imaginária propensão político-militar intrínseca a todas as religiões. É invariavelmente em termos do seu contexto preciso (e só nos seus
termos) que a etnicidade, ou o nacionalismo como uma sua expressão mais politizada, se tornam
plenamente compreensíveis. Para um estudo interessante elaborado sob esta perspectiva, ver J. de
Pina Cabral (1994), sobre a etnicidade em Macau.
20
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
inflexões causadas por interpretações apriorísticas8, e guiam-nos de forma segura na reconstituição do sentido e do alcance das asserções étnico-religioso-nacionalistas; tudo passos imprescindíveis, como tentarei cursoriamente demonstrar. Aventar generalizações sem as distinções finas que resultam de um
esmiuçar cuidadoso de mecanismos sociais complexos é sempre arriscado.
A articulação entre religiões e identidades, e a associação deste par ordenado com a violência política (uma ligação não necessária mas comum, nuns casos
naturalmente mais do que noutros) tem desde há muito suscitado um vivo
interesse académico. Numerosos estudos se têm debruçado sobre religião e
nacionalismo. Menos, mas em todo o caso bastantes, sobre religião e etnicidade.
Seria absurdo tentar neste Seminário uma qualquer recensão do muito que tem
sido produzido neste domínio; limitar-me-ei, por isso, a dois breves exemplos,
ambos passados, que me parecem pertinentes visto dizerem respeito a mudanças sociais algo semelhantes àquelas hoje em curso. Não pretendo com eles mais
do que simples avisos à navegação: não preenchem outra função senão a de
alertar para a intrincação da tríade religião-política-identidade.
Um primeiro é relativo às Filipinas de finais do século XIX e dos dois
primeiros decénios do século XX. Numa monografia excelente, publicada em
1979 e intitulada Pasyon and Revolution (uma refundição da sua tese de
doutoramento na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos) o autor, um
historiador filipino, Reynaldo Ileto9, debruçou-se sobre as rebeliões místico-políticas, chamemos-lhes assim, que lá tanto caracterizaram esse período. Numa
análise soberba no detalhe e exímia a nível epistemológico, Ileto mostrou que
movimentos nativos tais como o Katipunan, a Confradia de San Jose, ou a Santa
Iglesia (os três maiores movimentos independentistas locais), se sublevaram
contra a dominação espanhola utilizando armas conceptuais inadvertidamente
postas à sua disposição pelo próprio inimigo. Pensar a unidade, a nação, ou
8
O que para além de intelectualmente grave nos faria correr o risco de não conseguir
compreender plenamente este fim de Milénio em que, como tem sido notado, o Mundo padece
quase exclusivamente de guerras civis, pelo menos metade das quais secessionistas.
9
R. Ileto (1979), uma obra que creio essencial para a compreensão dos progressos do
nacionalismo timorense.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
21
mesmo o povo filipino, notou Ileto, era radicalmente inviável em culturas onde
tais conceitos não existiam; tal como impossível seria “imaginar” (para utilizar a
terminologia de Ben Anderson) alterações e transformações sócio-políticas que
melhorassem um estado colonial de coisas então comummente reputado pela
população nativa como insustentável. Os habitantes das Filipinas apenas dispunham de uma experiência colectiva, o Drama Litúrgico hispânico medieval (uma
encenação pública da caminhada de Jesus Cristo para o Monte das Oliveiras) e de
um guião em língua Tagalog (um texto para-litúrgico, o Pasyon Pilapil), para
retratar e estruturar em detalhe gráfico (como ainda hoje o faz) sequências de
transição como a composta pelo sofrimento, a morte e a redenção. Decalcando
discursos sobre este modelo, argumentou Ileto, os revolucionários filipinos elaboraram e deram corpo a uma espécie de Teologia da Libertação avant la lettre:
na organização da sua resistência, o líder político era visto como uma encarnação
de Jesus Cristo, os seus chefes político-militares como os apóstolos, a luta como
a caminhada da Paixão, e a Independência como a Redenção. Os grupos assumiam nomes explicitamente religiosos (Fraternidades, Confrarias, Igrejas). A sequência como que formatou a rebelião. A insurreição foi interminável e os novos
senhores coloniais norte-americanos herdaram-na em 1898; só a conseguiram
resolver em 1910. O preço: largas centenas de milhares de mortos, de um lado e
de outro. Um corolário: o nacionalismo filipino e a religião são indissociáveis.
Um segundo exemplo refere-se a finais do século XX e à luta de parte da
maioria negra Shona contra a minoria branca (política, militar e economicamente
dominante e hegemónica) na antiga Rodésia. Num estudo intitulado Guns and
Rain, publicado em 198510 por um antropólogo sul-africano, David Lan, foi
abordada a questão, complexa, da mobilização (iminentemente bem sucedida)
dos Shona Korekore pelos guerrilheiros revolucionários da Zanu. Dada a impossibilidade manifesta de recrutar ajudas locais com base nas cartilhas marxistas-leninistas, a guerrilha Zanu recorreu a alianças firmes com os “feiticeiros” Shona
fazedores de chuva. Os Korekore estão divididos em clãs, dos quais o principal é
10
D. Lan (1985), com esta monografia, ofereceu-nos uma grelha de análise brilhante, mas que
parece ter dado poucos frutos.
22
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
o dos Elefantes, de que saem sempre os chefes. A conquista dos Korekore pelos
pastores que viriam a formar este clã é contada, em longas séances públicas,
pelos espíritos dos chefes do passado, os mhondoro, que falam pela boca dos
feiticeiros possuídos. Lan mostra, em páginas vivíssimas, como a aliança entre os
guerrilheiros da Zanu e estes fazedores de chuva funcionou com toda a eficácia:
com uma legitimidade oferecida pelos mhondoro, os guerrilheiros como que se
transmutaram, aos olhos dos Shona, de outsiders em encarnações de antepassados da estirpe real dos Elefantes. O resultado, nessa zona de fronteira com
Moçambique: uma mobilização geral que, apesar de inúmeras mortes, não se
deu por satisfeita enquanto não conseguiu assegurar a sua quota-parte na vitória
final da maioria, e na consequente transformação da Rodésia em Zimbabwe.
Neste exemplo, como no anterior, são complexíssimos (e nos dois casos inesperados) os mecanismos sócio-religiosos de construção de identidades. E impossíveis, diria eu, de deduzir a priori.
4.
Insisti nos custos incorridos por teorizações como a de Huntington, que
resultam amiúde de generalizações que escondem tanto quanto revelam, e
que nos tendem a levar de volta ao seu ponto de partida. A par e passo tentei
ainda mostrar como, sub-reptícia e insidiosiosamente, generalizações desse
tipo reintroduzem quantas vezes uma dimensão política avulsa (pela porta
das traseiras, por assim dizer) na leitura que fazemos da acção religiosa. Este
dado parece-me nevrálgico: o que está em causa, deste ponto de vista, é o papel
preenchido, na própria estrutura das nossas explicações de clivagens, conflitos,
e outros processos relacionais, pela religião, por um lado; e, por outro lado,
pela etnicidade ou pelo nacionalismo – se se quiser pela política. O problema
não é linear: porque nos panoramas contemporâneos a política e a religião
muitas vezes não são termos que aludam a duas modalidades distintas de
pensamento e acção, mas sim conceitos operativos que não fazem mais do
que denotar dois aspectos, indissociáveis, de todas as acções e representações
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
23
sociais11. O que dificulta enormemente a compreensão de processos e está no
fundo na raiz de muitas das simplificações que somos em resultado tentados a
aceitar.
Mudemos de ponto de aplicação, mas retendo os cuidados. Ao nível da
elaboração de modelos analíticos que digam respeito ao sistema moderno de
relações internacionais, parte do que está em causa é, no fundo, a urgência de
uma reconsideração dos papéis respectivamente preenchidos pela cultura e pelo
poder. O modelo do “Choque das Civilizações” nisso ajuda, mas não chega. É
necessário, mas não é suficiente. Chama a atenção para o problema, mas não o
resolve de maneira satisfatória. Postula um papel crescente para entidades não
estatais (no caso supra-estatais), nos palcos internacionais de hoje, a par com os
Estados tão reificados pela tradição realista e neo-realista. Sugere uma
desconstrução saudável da imutabilidade a-histórica da “anarquia hobbesiana”,
mas no fundo substitui-a por uma visão sincrónica e igualmente estática de um
“estado de natureza”, apesar do tom spengleriano ou toynbeeiano das entidades
civilizacionais que afirma e erige. O que não lhe permite prever muitos dos
desenvolvimentos diacrónicos mais recentes dos cenários internacionais.
Ilustrá-lo é facílimo. A guerra da NATO no Kosovo pode servir como um bom
caso-teste, recente, do modelo básico de Huntington, e dos seus limites face a
possíveis explicações paralelas (ou complementares), paradoxalmente mais “clássicas”. Explicações, por exemplo, que ponham a tónica, não em clivagens culturais,
mas nas relações de poder. Com efeito, uma adesão estreita ao modelo de
Huntington (ele próprio, em trabalhos recentes, tem mostrado uma clara consciência do facto) levar-nos-ia a várias conclusões que os factos empíricos puros e
duros não verificam. Seríamos assim, por exemplo, conduzidos a considerar
como em última instância incompreensível que o cristianíssimo Ocidente possa
agir contra Cristãos (ainda que Ortodoxos) em defesa de Muçulmanos (ainda que
11
Para um ponto afim, ver o curto artigo de um investigador português, Miguel Vale de
Almeida (1999) sobre as políticas populares de “africanização” político-religiosa contemporânea na
Bahia, Brasil, nomeadamente no que toca à instrumentalização conjuntural da identidade étnica
num âmbito religioso-cultural.
24
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
também europeus). Desta perspectiva a “questão kosovar” transtorna o paradigma
huntingtoniano. A não ser que consideremos que haja objectivos secretos ulteriores, uma qualquer lógica insidiosa que leva a que as coisas sejam exactamente
o contrário do que parecem12. Mas não ficamos por aqui. É curiso notar, para além
disso, que, face às mesmas questões, nada nos impede de alegar precisamente o
contrário: ou seja que casos como o do Kosovo corroboram o modelo
huntingtoniano, como se pôde ver nas solidariedades grega (ortodoxos tal como
os sérvios) e russa (eslavos, para além de correlegionários). Nesta versão alternativa, houve de facto uma Clash à la Huntington, de que saíram derrotados sérvios,
russos e gregos. O meu ponto é este: já que ambas não podem ser simultaneamente leituras correctas, mas já que ambas são possíveis, então é porque o
modelo de Huntington não está completo – deixa alguma coisa de fora.
Parece-me claro que teorias de complot (que são por via de regra tão
dificilmente refutáveis como são indemonstráveis) se por um lado superficialmente confirmam e realçam as teses de Huntington, por outro põem em evidência o desconforto com que os huntingtonianos mais simplistas encaram alguns
dos factos do Mundo contemporâneo, factos ambíguos que não podem senão
aparecer-lhes como anomalias. Tal como julgo óbvio que declarações teimosas
12
Curiosamente, e como talvez fosse de esperar, muitos dos cidadãos de países árabes, como
o retratou um artigo recente do Economist, parecem sustentar um tipo de opinião que consiste na
fabricação apressada de elaborações secundárias construídas precisamente para negar essa
incompreensibilidade e para assim manter viva a interpretação “huntingtoniana”: segundo o
Economist, poucos árabes, com efeito, confiam na justificação da NATO de que teria decidido agir
dada uma genuína preocupação com os Kosovares; alguns têm por isso insistido que o que está
realmente em causa é a urgência europeia (e, sobretudo, norte-americana) em “mostrar quem
manda no Mundo”; outros, mais elaborados (entre os quais jornalistas, líderes religiosos e intelectuais), têm insistido que as acções foram desencadeadas por uma NATO plenamente consciente de
que os seus ataques iriam acelerar a infame limpeza étnica, sendo o verdadeiro objectivo final dos
aliados o de expulsar, em definitivo, os Muçulmanos da Europa; outros ainda, menos teleológicos
mas igualmente maquiavélicos, têm advogado nos jornais e televisão do Magrebe e do Médio
Oriente que o ataque aos Cristãos sérvios foi uma ignóbil táctica de sedução destinada a arrefecer
a indignação da opinião pública Islâmica relativamente a futuros (e iminentes) novos ataques ao
Iraque, à Libia e a outros países árabes.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
25
que insistam que Huntington tinha razão visto o conflito ter tido lugar essencialmente entre culturas e civilizações (e religiões) não são muito convincentes,
e deixam outras anomalias sem explicação. Sem sombra de dúvida a crise
jugoslava põe em cheque pelo menos a suficiência do modelo básico do Clash of
Civilizations. Um momento de reflexão, aliás, traz à superfície não só estas, mas
também outras, limitações; e fá-lo, creio, de maneiras interessantes, já que me
parece sugerem algumas das dificuldades epistemológicas específicas da grelha
explicativa de Huntington.
Um exemplo suplementar é o que nos é disponibilizado pela reacção
do Iraque e da Líbia à operação Aliada no Kosovo – países que apesar de
muçulmanos, imediata, vocal, e quase incondicionalmente, professaram “apoio
total” a Milosevic e aos nacionalistas sérvios, disponibilizando-lhes mesmo
(ou, pelo menos, assegurando fazê-lo) “especialistas” em guerrilha, medidas de
resistência anti-bombardeamentos, e até bem testadas tácticas propagandísticas e diplomáticas. Sem querer aventar quaisquer juízos de intenção, tratou-se
com toda a evidência de reacções que deram precedência ao ódio e à desconfiança anti-ocidental sobre eventuais solidariedades pró-Islâmicas ou hipotéticas preocupações religiosas ou culturais com atrocidades sérvias. À contre-sens,
note-se, relativamente ao predito pelo modelo de Huntington, ou em todo o
caso ao que diz respeito a uma aplicação maximalista por seguidores seus mais
radicais. Mais uma vez contradizendo as expectativas desse novo modelo convencional.
As posições grega e russa também foram instrutivas. Como previam os
huntingtonianos, a população da Grécia, esmagadoramente Cristã Ortodoxa,
apoiou vocalmente os correligionários sérvios. Mas foram sobretudo grupos
extremistas, ultra-nacionalistas e comunistas, por exemplo, os que mais activos
foram na sua solidariedade – precisamente aqueles que, por razões antes político-ideológicos que propriamente civilizacionais (tal como na Rússia Ortodoxa e
eslava) mais próximos se sentiram dos sérvios; ou mais distantes se sentiram dos
Aliados, nomeadamente dos norte-americanos… Em todo o caso, e contra as
eventuais previsões huntingtonianas, os Estados grego e russo, ainda que com
aparentes avanços e recuos, mantiveram firme a sua aposta, realista, numa raison
26
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
d’État que persistiu sempre em investir nas realidades do poder em detrimento
de uma qualquer identificação transcendente13.
Nestes como nos casos anteriores, não quero deixar de reiterar, o que está
realmente em causa (e explica as aparentes anomalias) é o papel muito real
preenchido nas relações internacionais (mesmo depois da fim da bipolaridade)
não só pelas relações culturais, mas pelas relações tácticas e estratégicas de poder,
bem como pelas estratégias dinâmicas do seu exercício. Clivagens e linhas de falha
culturais, ou civilizacionais, podem ser muito importantes e talvez tendam a ver a
sua centralidade aumentar na nova ordem internacional. Mas a velha power
politics continua, incólume, a canalizar as Realpolitik dos Estados sem prestar
grande atenção (que não a pragmaticamente útil) a quaisquer “linhas de falha”
prévias. Parece-me defensável argumentar, por exemplo, que (tal como tinham já
evidenciado na Guerra do Golfo) os Estados Unidos estão empenhados em
cimentar alianças transversais relativamente aos grandes blocos culturais, nomeadamente ao Muçulmano. Estão claramente apostados em criar acontecimentos internacionais públicos que desenfatizem, senão a unidade dos “blocos
civilizacionais”, pelo menos a sua percepção. Com algum sucesso: depois da crise
13
Os turcos, que conquistaram o Kosovo no século XIV e o abandonaram no século passado,
sentem em relação aos albaneses (por eles, otomanos, convertidos ao Islamismo) fortes ligações e
responsabilidades; pelo menos três milhões de cidadãos turcos, muitos deles influentes políticos,
militares ou líderes económicos são de ascendência parcialmente albanesa. Não surpreendentemente, os turcos foram, desde o princípio da última crise, apoiantes firmes da NATO. A Turquia
ofereceu a sua Força Aérea para bombardeamentos, disponibilizou para tal as bases do seu território
(o que não fez em Dezembro último quando dos ataques do Iraque) e manteve uma postura firme
e bem audível de solidariedade, a todos os níveis, no interior da Aliança Atlântica. Mas isto é só parte
de narrativa. Porque seria decerto absurdo, convenhamos, uma qualquer explicação do comportamento turco que descontasse (ou que secundarizasse) factores como a pertença da Turquia à NATO,
a urgência governamental em proceder a uma lavagem de cara junto aos países ocidentais no que
diz respeito ao tratamento que as autoridades turcas elas mesmo têm infringido aos Curdos e aos
militantes Islâmicos locais, a questão (então na ordem do dia) do julgamento do líder do PKK, ou até
a assunção de uma postura mais palatável, perante esta crise balcânica, que a dos gregos. Tudo
razões de poder, não de cultura…Tal como, de resto, o apoio professado pelo Vaticano às teses
sérvias, manifestamente mais atento a reaproximações a longo prazo do que preocupado com
humanitarismos mais lineares e imediatos.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
27
kosovar deixou de ser linear (ou até muito convincente) a visão afunilada segundo
a qual os blocos seriam monolitos inamovíveis. Mais do que isso: à insuficiência de
puras motivações prévias junta-se a importância de motivos ulteriores. Não será
seguramente muito especulativa a ideia de que a insistência norte-americana em
intervir na ex-Jugoslávia não é independente da sua urgência em substituir (ou
complementar) bases na Alemanha com outras, na Europa do sudeste.
Uma última ilustração das insuficiências de um huntingtonianismo radical,
mais anedótica e que revela de um cenário paralelo, diz respeito às sucessivas
posturas político-religiosas assumidas por aquele que foi o clérigo mais “graduado”
da Arábia Saudita até à sua morte em finais de Maio passado, o Sheik Abdel-Aziz
Bin Baz. O Sheik foi Juiz, Reitor universitário, Presidente da Comissão das fatwa (os
decretos religiosos islâmicos) e, finalmente, Grande Mufti, um posto especificamente reactivado pelo Rei em sua honra. Aliado dos revivalistas bastante radicais,
os célebres Wahabi, o Sheik Bin Baz colaborou durante decénios, como ulema
(especialista religioso), com sucessivos reis saudi, do Rei Saud a Faiçal, e finalmente
a Khalid e Fahd. Quando em Agosto de 1990 o Iraque invadiu o Kuwait, o Rei Fahd,
sempre prudente, viu-se obrigado a ter que tomar decisões difíceis: colaborar
militarmente com o Ocidente abria brechas entre príncipes e clérigos saudi; não o
fazer era pior, já que expunha o reino saudita às ambições territoriais hegemónicas
de Saddam Hussein. A entrada em cena do Sheik Bin Baz, foi providencial. Bin Baz
exarou uma fatwa que estipulava que, em casos de emergência extrema seria
permissível a um Estado muçulmano solicitar ajuda a não muçulmanos, assim
legitimando a solução preferida pelo Rei. Meio milhão de soldados Aliados entraram no reino. Meses mais tarde, o Sheik acrescentou uma segunda fatwa, redefinindo
a guerra contra Saddam como um jihad. Tudo isto de um líder religioso conhecido
por sempre insistir que a Terra é plana, que filmes e fotografias são gravosamente
imorais, e que mulheres que estudem em instituições mistas não são mais do que
prostitutas. Quando dos célebres Acordos de Oslo, mais recentemente, o Sheik Bin
Baz produziu uma outra fatwa, legalizando e aprovando o processo de paz israelo-árabe. O que não deixou de causar burburinho interno: Osama Bin Laden, por
exemplo, o dissidente saudita exilado, notório pelas acusações de montar o seu
próprio jihad contra Israel e os Estados Unidos (e responsabilizado por estes pelos
28
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ataques terroristas às embaixadas norte-americanas na África Oriental e na Ásia
Central durante o ano passado), insurgiu-se violentamente contra Bin Baz e exigiu
(sem sucesso, naturalmente) a sua demissão imediata.
Histórias de caso deste tipo (e haveria muitas outras) parecem-me sublinhar
o óbvio: que, por muita importância e centralidade que queiramos atribuir a
motivações culturais e religiosas no que toca a decisões em política internacional, fazê-lo sem reconhecer o lugar devido à pragmática da Realpolitik, à luta
nua e crua pelo poder e às suas involuções, independentemente de quaisquer
preocupações identitárias, éticas ou religioso-cosmológicas, é pura e simplesmente reducionista. Mais ainda e em termos gerais: perspectivações estáticas e
a-históricas deixam muito a desejar; encarar blocos civilizacionais como entidades impermeáveis e imutáveis inviabiliza previsões e uma melhor compreensão
dos acontecimentos. Pior: basear explicações (ou mesmo descrições) em modelos culturais abstractos e gerais é muitas vezes empobrecedor – logo enganador,
já que pode sugerir implicações e parece permitir inferências por defeito condenadas à nascença.
5.
Moderar, como estou a tentar fazer, os excessos de uma teorização huntingtoniana polarizada e simplista com o que considero uma sóbria constatação
da importância continuada da dinâmica das relações de poder, não constitui
propriamente uma desvalorização do excelente contributo que nos é oferecido
pelo Clash of Civilizations. Nem relativizar a capacidade das religiões (ou ancorá-las, tanto a elas como ao seu potencial político, no âmbito do social) significa, de
algum modo, uma qualquer minoração destas. As religiões sobrevivem facilmente
a isso e a muito mais14. Mas, como tentei mostrar, se suscitar dúvidas não redunda
14
E considerá-las como parte do social não derroga seja o que for do seu valor: antes lhe
acrescenta alguma coisa. Como escreveu em 1997, Felipe Fernandéz-Armesto, que já atrás citei, “o
futuro da religião, se há um, terá lugar no Mundo que conhecemos. O problema é de equilíbrio.
Quando as religiões são absorvidas pelo Mundo, deixam de ser religiões. Quando o ignoram, deixam
de ser eficazes” (1997, op. cit.:15, tradução minha).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
29
numa desvalorização nua e crua das teses de Huntington, não deixa por isso de
delas lograr uma reformulação, ou um esbatimento. O que me parece essencial, se
quisermos saber arrumar (e perceber) a multiplicidade de acontecimentos (aparentemente avulsos, mas com uma semelhança de família suspeita e sugestiva)
que podemos observar no palco internacional contemporâneo. Não se trata
propriamente de lhe fazer uma crítica, mas mais de dar uma achega a um modelo
lúcido e muito claro. Que uma reperspectivação deste tipo não é uma heresia,
corroba-o o facto de o próprio Huntington, num artigo recente publicado no
penúltimo número da Foreign Affairs15, com toda a evidência o assumir. Ao
escrever, há apenas meia dúzia de meses, sobre os Estados Unidos como The
Lonely Superpower, o autor do “Choque de Civilizações” alterou o acento tónico das
análises anteriormente propostas, sem no entanto lhes modificar grandemente a
substância, ou o conteúdo.
Tal como nos dois Clash of Civilizations, no recente Lonely Superpower
Huntington insiste que, durante o correr da presente década, os cenários políticos globais têm sido “substancialmente reconfigurados segundo linhas culturais
e civilizacionais”. Mas, agora, o foco é posto pelo autor no que considera “desde
sempre” a outra perna da política internacional: “a política global é sempre sobre
o poder, e as relações internacionais de hoje estão a modificar-se ao longo dessa
dimensão crucial. A estrutura global do poder na Guerra Fria”, escreve, “era
basicamente bipolar; a estrutura emergente é muito diferente” (1999:35 tradução
minha). Segue-se uma cartografia detalhada do que Huntington considera a
novíssima geometria de alianças e antagonismos. O resultado, curiosamente, é
um policy paper quase totalmente neo-realista, em que o “huntingtonianismo”
mal transparece. No Mundo em que hoje vivemos (e a que Huntington chama
“uni-multipolar”) para o nosso autor a única superpotência global sobrevivente,
os Estados Unidos, estará em competição directa com as grandes potências
regionais (a Alemanha, a Rússia, o Brasil e a China, por exemplo) e, em
consequência os norte-americanos previsivelmente aliar-se-ão às de “segunda
15
S. Huntington (1999), um excelente position paper, em que o autor simultaneamente faz um
balanço da sua teorização anterior e a modera com considerações políticas “clássicas”.
30
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
linha”, para lhes fazer frente: à Ucrânia, à Argentina, ou ao Paquistão. Longe das
famosas “fronteiras sangrentas do Islão”, nesta releitura os conflitos prospectivos
contra que nos devemos precaver serão nas várias áreas de influência multipolar.
E terão, como protagonistas, não turbas religiosas, mas antes líderes políticos de
Estados regionais de segunda apanha que, Huntington dixit, reconhecerão como
conveniente a coligação com os Estados Unidos (como potência global) na sua
resistência à hegemonia dos novos senhores da vizinhança. Mas o modelo, no
essencial, continua estático. Tal como o Clash of Civilizations, é mais sugestivo e
diagnóstico que útil para quaisquer previsões.
6.
Não queria acabar sem algumas considerações cursórias e sucintas. O Mundo contemporâneo, de muitos pontos de vista, apresenta-se-nos tão ambíguo
como perigoso; o prognóstico entra pelos olhos dentro. Se o Mundo moderno se
subdivide, também se une. Aos estretores centrífugos finais da bipolarização e à
fragmentação consequente do palco internacional em vários palcos locais, adicionam-se processos centrípetos de uma globalização acelerada, potenciados
por novas estratégias económicas, por inovações no campo das comunicações,
pela circulação fluída da informação, e pela entrada em funcionamento
consequente de mecanismos políticos poderosos que visam estruturar a nova
global village em construção16. Uma linha de fuga a que Huntington atribuiu
pouca importância, ao nível da arquitectura teórica que edificou.
Mas o que outros porém fizeram. Numa obra notável publicada em 1995 (e
revista em 199617), Benjamin Barber, da Universidade de Rutgers, intitulou estas
duas tendências simultâneas, respectivamente, de Jihad e de McWorld. Para
Barber, as duas forças em confronto (a de um McWorld centrípeto e a de um Jihad
16
Para uma visão panorâmica da progressão em várias frentes da globalização, é útil o livro do
sociólogo australiano M. Waters (1995).
17
B. Barber (1996) inclui na reedição do seu estudo, alguns dos comentários que sobre este
lhe tinham sido formulados, nomeadamente por Bill Clinton.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
31
centrífugo) encerram riscos. Riscos graves, já que para além de estarem em
despique uma com a outra, estas forças relevam intrinsecamente de tendências
pouco pacíficas. É fácil vê-lo. A “mão invisível” do mercado global, a neo-liberal,
está ligada a um “braço manipulador” que “se não for guiado por uma cabeça
soberana, é deixado às contingências da ganância espontânea” (1996:220, tradução minha). Enquanto que os “nacionalismos” e as “religiosidades” pós-modernas
por norma parecem identificar-se a si próprios pelo contraste com o “outro”
estranho, transformando a política num exercício de exclusão e ressentimento.
São forças que promovem comunidades, mas habitualmente à custa da tolerância e da mutualidade; logo, “criam um Mundo em que a pertença é mais importante que o empowerment, e em que fins colectivos impostos por líderes
carismáticos tomam o lugar de bases comuns produzidas por deliberações
democráticas” (ibid: 222, tradução minha). O futuro, visto desta perspectiva,
encerra seguramente muitíssimos monstros novos.
Os reais perigos do futuro, gostaria de sugerir, parecem-me no essencial
residir a nível dessas duas linhas de força. O idioma em que, impetuosamente, da
Sérvia ao Kosovo, da Flandres ao País Basco, do Quebeque à Tchetchénia, as
tribos reinventadas e as novas comunidades imaginadas levam a cabo os seus
jihad (sejam fundamentalistas cristãos, rebeldes congoleses, ruandeses, sul-angolanos, ou guerreiros divinos muçulmanos) continua a ser a linguagem dura da
política. A religião pode ser (e muitas vezes é) o refrão, a deixa, ou o tema de
fundo: mas o motor, o propulsor, é (continua a ser) o da etnicidade e o do
nacionalismo. Uma doença já antiga. A questão que se põe e que julgo mais
fascinante é a de apurar se se trata, nesses fogos novos que se ateiam, do mesmo
nacionalismo que o gestado na Paz de Westphalia e depois retomado e alterado
no século XIX, ou se é algo de radicalmente novo. Um tema que tem sido, no
fundo, abundantemente suscitado neste Seminário e que é pertinente. Os idiomas políticos modernos são atípicos: a retórica utilizada parece (muitas vezes e
em sentido estrito) demasiado mundana para ser a de verdadeiras religiões; e é
de longe sectária e exclusivista demais para ser nacionalista.
Para esta questão parece-me sem dúvida preferível (na esteia de Michel
Ignattief e de B. Barber, entre outros) uma resposta compósita a uma resposta
32
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
essencialista (segundo a qual só os velhos nacionalismos seriam de facto nacionalistas), ou a uma resposta fenomenológica (de acordo com a qual ambas as
variedades seriam de nacionalismos). Há alternativas. Podemos assim certamente asseverar que nacionalismos, quaisquer que sejam as suas cores, são sempre
decomponíveis em dois grandes “momentos”: um, de identidade do grupo e de
exclusão; um outro, igualmente importante, de inclusão e integração. Diferem no
doseamento relativo dos dois termos deste binómio, deste par de ingredientes.
É nisso que se distinguem os contemporâneos dos do passado. Os nacionalismos
westphalianos punham a tónica com firmeza no segundo “momento”, o de
construção, e lograram ultrapassar o feudalismo e implantar a eventual construção de nações-Estado; no século passado, na fase expansionista interna e externa, estes nacionalismos, em nome da tão almejada integração inclusiva, mantiveram à margem o identitarismo exclusionário18.
O século XX e os processos de interdependência, alargamento e, eventualmente, globalização, geraram, pelo contrário, “tendências do primeiro momento”, chamemos-lhe assim, forças voltadas para a desconstrução, a oposição e
a hostilidade ao Estado e aos “outros”. As suas manifestações são muitas e
variadas. Às vezes são duras. Noutros casos são apagadas. Na Europa, nomeadamente, (para só dar um exemplo e para tornar a citar Barber), ou pelo
menos nas democracias europeias, “a tentação de resistir à modernidade lê-se
no comentário nervoso que a modernidade faz sobre si própria” (ibid: 169,
tradução minha). As “versões pálidas” do jihad europeu (dos Jihad na Europa e por
europeus) têm assumido duas formas que se intersectam, e que infelizmente
mesmo em Portugal reconhecemos: o “provincianismo”, que vira as periferias
contra os centros; e o “paroquialismo”, que desdenha o cosmopolita. Trata-se
todavia de um Jihad aguado, já que a Europa, bem posicionada no centro, não é
senão um fraco microcosmos (e um particularmente anémico) dessas novas
confrontações.
18
Muitos são os estudos que sob este e outros temas afins nos últimos anos que se têm
debruçado. Retenho aqui um, de A. Linklater (1998), precisamente sobre a evolução e as transformações a que têm estado sujeitos mecanismos de exclusão.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
33
Em minha opinião, tendências destas são, no fundo, expressões das mesmas
forças sociológicas ambíguas que caracterizam a modernidade e cujas manifestações parciais, num reflexo, Huntington capturou no espelho fugaz da nova
ordem internacional que previu com uma nitidez tão convidativa. Uma visão
mais ampla, creio no entanto, contemplará com utilidade a perspectivação de
um Mundo dividido em blocos culturais com outra, uma segunda visão, a de um
Mundo em convergência acelerada. Um Mundo do qual blocos, quaisquer que
eles sejam, não são senão uma configuração relacional de passagem, um momento, porventura inevitável num processo de maturação, de resistência passageira. Blocos que, num canto de cisne, afirmam, no contexto da recente intensificação profunda de interacções, as suas pertenças, origens e orientação, em
estreita ligação com a construção (em plano inclinado e curso acelerado) de uma
nova ordem internacional. Num Mundo a caminho de uma integração global,
hoje económica, amanhã política, depois talvez sócio-cultural – a afirmação de
identidades étnicas é um processo relacional compreensível. De uma postura
meramente local, em que a especificidade de cada grupo era um dado adquirido
(porque embutido na própria divisão e fragmentação do panorama geral) transitou-se para uma nova situação estrutural, uma configuração mais dinâmica, em
que a posição de cada um e a divisão em partes, dependem do seu
posicionamento em relação a um todo global em movimento.
Perante estas alterações é compreensível que grupos etnolinguísticos tenham necessidade de se afirmar alto e bom som. Mais: porque religiões têm
dimensões sociais e cognitivas que fazem delas veículos de eleição para identidades, afirmações nestes termos têm estado em alta nos novos contextos
relacionais. Lutas religiosas ou, talvez melhor, a invocação de motivações transcendentes para afirmações político-identitárias, continuarão infelizmente a incendiar recantos e áreas centrais, compondo novos cenários nacionais e internacionais. Não são fáceis de prever nem será fácil contê-los. Mas estou convicto que
em bom rigor têm os dias contados, com a progressão inexorável das transformações radicais irreversíveis da própria natureza das comunidades políticas.
O que não quer dizer que possamos ficar parados. A verdadeira questão, a
frente de luta meritória, a tarefa dura e inacabada, julgo ser a de garantir a
34
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sobrevivência, no processo, de valores democráticos como a Liberdade. Será o
esforço imprescindível de assegurar uma progressão pacífica, tranquila (e tão
rápida quanto possível) para um pluralismo democrático que sobreviva a uma
nova ordem laboriosa que irá ser marcada pela unidade de um todo novo e
complexo composto por partes diversificadas que fazem ponto de honra em
assim se manter. Muito me surpreenderia se as religiões aí não vierem a ter um
novo papel, mais construtivo. Talvez isto não seja mais do que wishful thinking.
Antevejo porém esse novo papel, pelo menos para as religiões mais universalistas
que acredito irão encontrar num futuro mais globalizado um terreno fértil para
as suas vocações cosmopolitas. O que equivalerá, no fundo, num regresso a casa,
para muitas delas19. É bom não esquecer que a habilidade das religiões em
inspirar violência está intimamente ligada à sua capacidade, igualmente surpreendente e impressionante, de operar como forças a favor das igualdades, da
tolerância e da paz. Como muitas vezes foi dito (e mais vezes ainda esquecido)
terroristas e pacificadores muitas vezes crescem nas mesmas comunidades e
aderem às mesmas tradições religiosas.
19
Como mostrou M. Mann (1986: 223-227, 323ss.) no seu estudo magistral sobre a evolução
e transformações do poder, as religiões universalísticas e cosmopolitas (e.g., o Cristianismo) emergiram em grandes Impérios, como visões de comunidade política alternativas às do Estado
hegemónico. Se bem que tenha sido forçado a concessões, a sua postura utópica rapidamente o
tornou numa avant-garde para o grosso da população e para as elites bem-pensantes. O meu ponto
é o seguinte: num Mundo cada vez mais globalizado, esse tipo de religiões reencontrará o habitat
natural para os valores e discursos que defende. Um exemplo: ainda que a posição da Igreja Católica
quanto à interrupção voluntária da gravidez ou em desfavor da ordenação de mulheres possa ser
vista como contra a corrente da “modernidade”, passa-se precisamente o contrário na sua luta anti-restrições da livre circulação de pessoas, a favor de um esbatimento das dívidas dos países pobres,
ou em defesa de uma maior tolerância da diversidade, seja ela étnica ou cultural – tudo frentes
cosmopolitas, bem ao gosto universalista, em que a postura da Igreja é pelo contrário vista como
modernista.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
35
Bibliografia
Anderson, B. (1991), Imagined Communities. Reflections on the origins and spread of
nationalism, Polity Press, Cambridge.
Barber, B. (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping the
world, Ballantine, New York.
Fernández-Armesto, F. (1997), The Future of Religion, Phoenix, London.
Huntington, S. (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25.
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs 78(2): 35-50.
Ileto, R. (1979), Pasyon and Revolution. Popular movements in the Philippines, 1840-1910, Ateneo de Manila University Press.
Lan, D. (1985), Guns and rain. Guerrillas and spirit-mediums in Zimbabwe, Currey and
California University Press.
Linklater, A. (1998), The transformation of Political Community. Ethical foundations of
the post-Westphalian World, Polity Press, Cambridge.
Maffesoli, M. (1992), La transfiguration du politique. La tribalisation du monde, Grasset
et Fasquelle, Paris.
Mann, M. (1986), The Sources of Social Power, vol.1: A History of Power from the
beggining to AD 760, Cambridge University Press. Pina Cabral, J. (1994), “A complexidade
étnica de Macau”, Estudos Orientais 5: 209-225, Lisboa.
Vale de Almeida, M. (1999), “Poderes, Produtos, Paixões: o movimento afro-cultural
numa cidade baiana”, Etnográfica: 131-157, Lisboa.
Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London.
36
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
2. As Guerras Culturais, a Soberania e a Globalização:
o Choque das Civilizações Revisitado20
1.
Num muito interessante e útil Seminário que o Instituto de Altos Estudos Militares organizou no passado mês de Julho de 1999, coube-me a responsabilidade
de fechar o ciclo de Conferências. O tema geral do encontro prendeu-se com o
balanço da interacção entre três domínios hoje mais uma vez em ressonância
delicada nos palcos internacionais, Religiões, Segurança e Defesa; o que aliás deu
o título às jornadas. Nesse contexto, tive a oportunidade de levantar algumas
objecções ao notável e muitíssimo influente modelo analítico produzido por
Samuel Huntington no(s) seu(s) Clash of Civilizations21. Algumas das minhas
hesitações foram substantivas. Outras mais formais e até metodológicas. Na
comunicação que apresentei, o esforço levado a cabo foi sobretudo descontrutivista: justificou-o o conjunto e o encadeamento dos outros trabalhos
inscritos, tal como, a meu ver, o legitimou o empreendê-lo perante uma audiência que imaginei em geral bastante apegada ao paradigma huntingtoniano. Não
deixei, por isso mesmo, de sugerir alternativas pontuais a algumas das considerações do especialista norte-americano. E tentei levá-lo a cabo nos termos da
discussão geral então em causa: uma ponderação dos papéis que as religiões
poderiam vir a preencher nos conflitos futuros.
O contexto da presente exposição é no entanto outro, a um tempo mais
genérico e menos tópico. Trata-se de discutir a utilidade de uma adopção do
20
Comunicação apresentada num Seminário especial organizado no Instituto de Altos Estu-
dos Militares a 22 de Fevereiro de 2000.
21
Ver o curto artigo de Armando Marques Guedes (1999), para uma perspectivação crítica,
algo desconstrucionista, dos esplêndidos trabalhos de S. Huntington sobre aquilo que este último
tão sugestivamente apelidou de Clash of Civilizations.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
37
paradigma de Huntington enquanto chave interpretativa para a ordem mundial
contemporânea. O que me parece exigir uma comunicação muito mais inclusiva,
mas que está em todo o caso agora facilitada. Em parte sem dúvida porque, para
além de tudo, se passaram desde Julho alguns meses ricos em acontecimentos e
lições. A intervenção militar Aliada no Kosovo internacionalizou-se e transitou
para uma nova fase. Tropas multinacionais entraram também entretanto em
Timor-Leste. Os panoramas jurídicos internacionais foram sujeitos a várias alterações, com o estabelecimento de precedentes inesperados e em resultado de
inovações judiciais de monta. Vislumbra-se já no Mundo, por conseguinte, um
horizonte porventura mais legível. Proponho, em razão disso, ensaiar aqui uma
abordagem ao modelo de Huntington que é mais positiva e mais sistemática (ou,
em todo o caso, menos avulsa) do que aquela que antes lhe contrapus. E,
simultaneamente, quereria enunciar formulações mais abrangentes. Criticarei,
espero que de forma convenientemente contida, o modelo dos Clash. Porei porém
no essencial a tónica, na análise alternativa que sugiro, numa perspectivação que
considero mais dinâmica e mais construtivista da ordem internacional pós-bipolarização. Uma ordem mutável e muito friável, cuja evolução, ainda que a
traço grosso, em todo o caso podemos e devemos (frente às promessas e aos
desafios do início de um terceiro Milénio) começar a tentar entrever e decifrar.
Trata-se de uma nova ordem, irei insistir, emergente. Uma ordenação que
forma, por conseguinte, uma arquitectura inacabada, com uma configuração
cujos contornos aparentes são muitas vezes meras imagens de transição, simples
figuras de passagem que importa, prudentemente, saber não cristalizar em
formulações definitivas. Parecem-me por isso prematuras quaisquer tentativas
de enunciar verdadeiros paradigmas (ou “mapas”, como Huntington kuhnianamente também lhes chama), ao contrário do que foi o caso durante a Guerra Fria
em que o modelo bipolar descrevia (de modo sofrível mas passável) a ordem
política da distribuição do poder no Mundo. A gestação rapidíssima de um
McWorld (na denominação célebre e feliz de Benjamin Barber), que Huntington
em minha opinião subestimou, tem preenchido (nesses processos de cristalização de uma nova ordem) papéis fulcrais. Tal como, aliás, tem também sido o caso
com a rápida e cada dia mais nítida erosão das soberanias westphalianas dos
38
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Estados nacionais, que as tradições ainda dominantes do realismo e do neo-realismo insistem em sancionar como os únicos protagonistas que contam nos
palcos internacionais. Trata-se de papéis que não se esgotam no simples
cosmopolitismo universalista que desenha a sua face mais visível. Tentarei, senão
cartografá-los, pelo menos delinear algumas das suas principais características
topográficas22. Mais do que mostrar-me ambicioso, esforçar-me-ei no que se
segue por ser sugestivo. Adivinhar o futuro não é propriamente uma empresa
racionalmente bem fundamentada. Ainda que especulações sejam muitas vezes
imprescindíveis e elaborá-las possa ser uma questão de bom senso prospectivo:
conjecturar é quase sempre uma precaução vital.
Nesta comunicação, a estratégia que irei seguir é compatível com essa
minha perspectivação. De uma maneira sistemática, mas delineando sempre
alvos preferenciais, tentarei pôr em paralelo a visão paradigmática de Huntington
com outra, que me parece adequar-se melhor ao conjunto de acontecimentos e
processos empíricos que creio serem detectáveis nas rápidas transformações que
configuram a ordem internacional contemporânea. Daí deriva a escolha de
temas focais como a globalização e a soberania, ou as entidades civilizacionais e
as polaridades características da ordem mundial: trata-se de encapsulações
nocionais que de alguma maneira expressam o contraste entre duas perspectivas
22
Para utilizar metáforas geológicas, tão caras ao que já talvez possamos chamar a tradição
huntingtoniana. O modelo de Huntington, com efeito, ao persistir no uso de termos como “civilizações”, “dinâmicas”, “núcleos” e “linhas de falha”, alude explicitamente a uma tectónica de placas que,
infelizmente e não obstante as qualificações, trata na prática de uma maneira bastante estática.
Numa visão wegeneriana, Huntington tende a substituir processos dinâmicos por configurações
reificadas na esteira, aliás, de historiadores como Arnold Toynbee e Oswald Spengler. É de notar que
tal como Alfred Wegener, e ao invés dos geólogos contemporâneos, Huntington não previu realmente mecanismos que explicassem os movimentos dos seus “blocos”, assim aparentemente deixados como monolitos inamovíveis. Sem embargo de representações metafóricas, tais como as do core
states, torn states, ou civilization shifting, (substitutos de operadores tectónicos como as “linhas de
sutura” ou os “movimentos orogénicos”), Huntington não previu nem um nível do “manto”, nem
“plumas térmicas” e “subducções”, que explicassem a dinâmica das suas “civilizações”. De alguma
forma, o artigo “The Lonely Superpower” (1999) ao reintroduzir as power politics tão típicas do neo-realismo, supre uma parte dessa insuficiência na mecânica do paradigma do Clash of Civilizations;
mas sem verdadeiramente a colmatar.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
39
alternativas, cujo destaque me permitirá com maior nitidez ponderar o que
considero os excessos e as insuficiências do paradigma huntingtoniano. Outros
enfoques seriam decerto legítimos; e alguns deles assumi na comunicação que
aqui li em Julho último. Dada a conjuntura internacional actual e tendo em vista
o que reputo ser a direcção presente da evolução das coisas, prefiro porém agora
dar primazia a estes temas.
Sem querer repetir o óbvio, cabe começar por um curto sumário da posição
assumida por Huntington nos dois trabalhos que publicou em 1993 e em 1996.
Devo dizer, logo à partida e em termos genéricos, que me agrada a alegação de
fundo que julgo a mais central das formuladas por Huntington: a noção, implícita, de que a cultura é uma diferença que cada vez mais faz diferença na ordem
internacional23. E, como corolário, a asserção segundo a qual ideias produzem
eficácia. Contento-me, porém, com uma satisfação muito limitada. O célebre
cientista político norte-americano parece-me confundir as árvores com a floresta
ao implicitamente equacionar cultura com “civilização” (ainda que insista que o
não faz), e ao formular uma avaliação (que considero pobre) que na prática
privilegia a imutabilidade nas inter-relações entre tais unidades complexas. A par
e passo, umas vezes directa, outras indirectamente, voltarei a estas diversas
questões primordiais.
2.
O formato geral do paradigma proposto por Huntington é simples; e são
claros os seus pontos de aplicação e o seu alcance. A tradição académica e política
dominante dos realistas, como a dos neo-realistas, tem insistido em encarar o
sistema internacional como tendo no seu âmago uma colecção de Estados. Não
o tem feito, porém, de uma maneira linear. Esta visão essencialista e de raiz
westphaliana foi, durante alguns decénios (sobretudo depois da Segunda Guerra
23
Aguardo por isso com impaciência o livro co-editado por S. Huntington e Lawrence Harrison,
com publicação prevista para Abril de 2000, sugestivamente intitulado “Culture Matters: how values
shape human progress”.
40
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Mundial), modulada pelo quadro estabilizador de uma arquitectura bipolar que
todos conhecemos bem. Tratou-se, todavia, de uma modulação de pouca dura.
Com o desmembramento da União Soviética, argumentou Huntington, nenhum
destes paradigmas hoje nos serve. Em alternativa, o autor propôs um outro: um
modelo em que as unidades de conta seriam uma mão cheia de (sete ou oito)
“civilizações”, uma das quais a Ocidental (the West). Segundo Huntington, estas
serão unidades cujo relacionamento mútuo, cultural e identitário, configurará a
nova ordem internacional emergente; e nisso a religião, ou melhor os alinhamentos religiosos, previu ele, irão ter um papel determinante. As guerras que se
avizinham, nesses seus termos, serão guerras culturais de matriz essencialmente
religioso-cosmológica. As localizações delas são fáceis de antever: os conflitos
pós-bipolarização ocorrerão sobretudo nas perigosas “zonas de sutura” (para usar
uma terminologia geo-tectónica) das “entidades [ou blocos] civilizacionais”.
Não quero ser excessivamente crítico face a uma obra que creio brilhante,
escrita por um autor que nos tem habituado a não podermos prescindir de ler
aquilo que publica. Há muitas facetas de nota no modelo erigido. Num livro duro
em relação ao Islão (que entre outras coisas prevê uma aliança táctica deste com
a “civilização Confuciana”), Huntington sublinha vários pontos fundamentais e
infelizmente muitas vezes esquecidos, ou secundarizados. Insiste, nomeadamente, que é possível uma modernização sem ocidentalização. Mais: previne-nos que
as afiliações religiosas, as identidades éticas e as lealdades nacionais, são em não
escassos casos mais importantes que quaisquer convergências ideológicas, no
que toca aos processos políticos pós-Guerra Fria. Relembra-nos ainda que, longe
de significar uma racionalização laica, o desenvolvimento económico se mostra
repetidamente associado a um crescendo na religiosidade dos actores sociais. E
sobretudo, e tal como atrás destaquei, reitera aquilo para que Joseph Nye nos
tinha já alertado: a saber que novas formas de poder, por exemplo o poder
cultural que Nye apelidou24 de soft, têm vindo a ganhar terreno num Mundo que
24
Joseph Nye definiu este conceito de soft power no âmbito de um estudo monográfico
(1990) que produziu sobre a previsível evolução pós-bipolar da hegemonia norte-americana. Infelizmente não o desenvolveu.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
41
os cold warriors, endurecidos na postura adequada ao balance of terror próprio da
ordem bipolar, por vezes revelam dificuldades em compreender.
Apesar destes insights, Huntington peca, irei argumentar, por graves a-sociologismos e uma séria a-historicidade. Ao presumir entidades civilizacionais
no essencial fixas e estanques (ou em todo o caso estáveis, coesas e em última
instância incomensuráveis), por exemplo, assume uma atitude relativista que me
parece difícil de defender. Como tentarei demonstrar, nem essa rigidez é indiscutível nem este relativismo é justificado. Mais consequentemente, Huntington
minimiza (quando não passa sob silêncio, ou alega a sua inviabilidade) o crescimento, tão claro quão explosivo, senão de um muito maior patamar de integração
global, pelo menos de novas dimensões éticas e normativas na ordem mundial.
Como irei sublinhar, trata-se aqui de um pecado original: já que, em consonância
com o alargamento e a agudização de todo o género de interdependências,
essas são dimensões que, cristalizando numa estruturação política cada vez mais
nítida do sistema internacional, o têm transformado rapidamente, desde o fim da
Guerra Fria, num primeiro esboço de uma verdadeira sociedade internacional,
assim domesticando a anarquia hobbesiana25 originária, cujo preço tem sido a
conflituosidade própria do “estado de natureza”. A tudo isto farei também constante alusão no que se segue.
Para evitar tempestades em copos de água não entrarei aqui, todavia, em
grandes detalhes no que diz respeito ao que considero pecadillos avulsos e
menores dos Clash. Não é meu intuito, de maneira alguma, regatear méritos a
uma análise que considero extraordinária na minúcia, magnífica na amplitude,
no fôlego e na erudição, e que ademais desencadeou incontáveis reperspecti-
25
Para uma elucidação destes conceitos básicos, é útil a leitura de H. Bull (1979). Para uma
defesa acérrima de um hobbesianismo estreito, ver K. Walz (1959). Para uma crítica mordaz desse
reducionismo, ler J. Marques de Almeida (1998). Em J. Nye (1997), há uma perspectivação bastante
equilibrada do tema geral. Para uma crítica de fundo, de muito mais fôlego, convém ver o amplíssimo
estudo de A. Linklater (1998), cujo pressuposto de base é exactamente o de uma transformação, no
sentido do alargamento, das “comunidades políticas” na ordem internacional contemporânea,
logrando porventura uma reformulação crítica habermasiana profunda daquilo a que o seu mentor
académico na London School of Economics, Hedley Bull, chamava the new medievalism.
42
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
vações críticas (sob pontos de vista muitas vezes saudavelmente inusitados) da
“ordem mundial” no fluxo que (a meu ver) as correntes imparáveis da globalização
e os concomitantes redemoinhos do neo-tribalismo nos deixaram como legado.
Cabe-me no entanto nomear alguns desses pequenos pecados “por comissão e
por omissão” de que a obra de Huntington me parece padecer. Na minha
comunicação de Julho esmiucei uns poucos: o que considerei uma atenção
insuficiente a distinções sociológicas finas, sem as quais tentar compreender a
etnicidade me parece imprudente; alguma inocência, ou pressa, quanto à “resolução” religiosa que propõe das imagens de violência e afirmação política contemporâneas, que se traduz por amálgamas pouco criteriosas de mecanismos
muito diferentes uns dos outros; e uma forte displicência teórica, pouco sensata
no que toca ao balanço dos nacionalismos exclusionários estridentes que caracterizam alguns dos recantos do Mundo moderno.
Há porém outras imoderações, de maior peso e menor justificação, no
esplêndido trabalho de Huntington. Não posso deixar de enumerar duas delas.
Em primeiro lugar, e em termos genéricos, vislumbra-se uma propensão marcada
para fornecer interpretações parciais categóricas de factos históricos complexos,
quando tal convém à adequação da realidade ao modelo paradigmático proposto. Em segundo lugar, na secção final da monografia transparece uma crítica
severa e muito partisanne, em que Huntington denuncia com alarme os supostos
malefícios de uma eventual “multiculturalidade”, numa América do Norte que
parece ter transitado de um melting pot relativamente tranquilo para a
efervescência de um salad bowl multivocal26. Confesso que não percebo a função
do argumento aduzido por Huntington quanto a este ponto, senão como um
esforço, exorbitante e inglório, para se escusar a contabilizar os efeitos da
globalização (e da tribalização associada) no interior dos próprios Estados Unidos
26
Sobretudo nas pp. 305-308. Huntington defende aí que o “multiculturalismo” galopante da
Administração Clinton ameaça a integridade e o futuro dos Estados Unidos (e do “Ocidente” em
geral), para além, a seu ver, tal “mistura” trair os objectivos dos Founding Fathers. Numa secção muito
dada a aforismos depauperizantes, Huntington cai em afirmações curiosas (e profundamente
westphalianas), tais como: a multicivilizational United States will not be the United States, it will be the
United Nations (p. 306).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
43
da América. O que indicia uma propensão maximalista, e que creio circular, para
formular juízos políticos nos termos estreitos do paradigma proposto.
3.
De uma maneira muito positiva, podemos começar por delinear uma curta
análise genérica daquilo que reputo como algumas das principais traves-mestras
do sistema internacional moderno. Vários pares de forças em tensão, chamemos-lhes assim, me parecem subjazer à configuração de relações segundo a qual
reconhecemos neste momento aquilo a que se convencionou chamar a “ordem
internacional”27. São forças que se degladiam e que, enquanto “campos de forças”
(como diriam os personagens do Star Wars) constrangem as formas, e os blocos,
aparentes nos palcos mundiais. Darei duas ilustrações. Assim temos, por um lado,
o binómio Jihad-McWorld, que se manifesta, por exemplo, pela competição entre
globalização e soberania; a arena de um conflito de fundo com várias frentes,
cuja resultante geral, a nível de uma renovada forma dos Estados, não é ainda
óbvia. Por outro lado, destacam-se os fossos escavados entre os Estados e
diversos dos novos actores internacionais e entre antigas e mais recentes formas
de poder, tudo inovações que no concreto redundam em conjunturas de tensão
entre velhas alianças e coligações tradicionais e as novas, mais pragmáticas, que
defrontam. Uma dicotomia complexa, cuja dança se rege pelas minudências de
uma coreografia constantemente recriada e que é, por isso, difícil de antever.
27
Para um modelo, certamente discutível mas fascinante, dos processos periódicos de forma-
ção e de dissolução de ordens internacionais cada vez mais globais, é aconselhável a leitura de The
Rise and Fall of World Orders, publicado em 1999 por T. L. Knutsen. Knutsen subdivide estes processos
em três grandes “fases”: uma primeira, de hegemonia, por sua vez composta por três momentos,
respectivamente de punitive pre-eminence, de remunerative pre-eminence e de normative pre-eminence;
a que se segue uma fase de challenge, desencadeada por outras potências; e que, numa terceira e
última fase, descamba no que chama disruptive competition. Mais interessante, todavia, é decerto a
última parte do estudo (que reveladoramente Knutsen intitula de déjà-vu) relativa à evolução do que
retrata como a instável hegemonia norte-americana nos palcos contemporâneos.
44
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
As várias forças que acabei de referir obviamente interagem em profusão.
Mais ainda: estes dois grandes pares de oposições (e outros, sem dúvida), cada
um deles com uma dinâmica própria intrínseca (porque em desequilíbrio, ou em
equilíbrio instável), naturalmente reagem um com o outro. Todas estas tendências, por outras palavras, se potenciam mutuamente. E na sua interacção cambiante, geram configurações arquitectónicas, virtuais e passageiras mas sempre
novas, do sistema internacional. Configurações que, muitas vezes, nos agrada (ou
nos convém) reificar, tornar absolutas. Ou que, pelo menos, sentimos que podemos com utilidade e justificação erigir em paradigmas cognitivos. Configurações
que, no entanto e como antes lhes chamei, são meras figuras de transição. Por
assim dizer, imagens (ou flashes) fugazes.
Sem naturalmente buscar aqui uma qualquer exaustividade, o que não teria
cabimento28, comecemos pela tensão soberania-globalização a que aludi. Uma
tensão que resulta do simples facto de cada vez mais as questões sócio-políticas
contemporâneas excederem os âmbitos territoriais circunscritos pelos Estados
tradicionais. Vejamo-la primeiro, de modo sucinto, no plano económico-financeiro. A abertura generalizada de cada vez mais mercados (com ou sem GATT), os
novos fluxos mercantis viabilizados por sistemas de transporte cada vez mais
eficientes, o desenvolvimento de meios de comunicação e informação que
redundam numa contracção crescente (passe a antinomia) do espaço (a chamada “abolição da distância”) e do tempo, são factos incontornáveis e traços
distintivos da vida moderna. Teorias (mais ou menos mercantilistas) de soberania
económica tornam-se, em consequência, cada vez menos convincentes. E, mesmo quando são consentidos, os proteccionismos tendem no Mundo
interdependente contemporâneo a ter cada vez menos pés para andar. O cresci-
28
Um maior detalhe quanto aos processos de globalização é oferecido na sinopse do soció-
logo australiano M. Waters (1995). No que toca a problemas associados à globalização económica,
é de recomendar o longo artigo técnico de Joaquim Aguiar (1998), que inclui uma interessante
discussão sobre os traços distintivos (e a complexidade) daquilo a que chama a “onda” actual de
globalização. A respeito da emergência de novos actores internacionais, do consequente retrocesso
do monopólio de protagonismo dos Estados e, talvez sobretudo, em relação ao utilíssimo conceito
de structural power, é imprescindível a leitura de Susan Strange (1996).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
45
mento explosivo desses novos e tão importantes actores internacionais que são
as empresas transnacionais aí está, há uma boa quarentena de anos, para o
corroborar.
A resultante não é porém apenas essa, de um descentramento centrífugo.
Convém também tomar em linha de conta o acelerar mais recente (pós-bipolarização), daquilo a que Francis Fukuyama chamou a “common marketização” do
Mundo: o congregar de esforços e de protagonismos em blocos económicos
multinacionais (por via de regra regionais, dada a consequente redução de
custos) como a União Europeia, o MERCOSUL, a NAFTA, a ASEAN, ou o SADCC. E
ainda ponderar o crescente comércio electrónico (via Internet, por exemplo) num
mercado à escala planetária, um circuito em que (como Bancos e Bolsas de
Valores já tinham prenunciado) o Sol nunca se põe. Tudo isto redunda numa
constatação fácil: estamos também perante diversas tendências centrípetas em
operação no sistema. E a este processo não se vislumbra uma qualquer reversão
possível. É disso sintomático que, em 1998, quando a crise vitimou em série a
Tailândia, a Indonésia, a Coreia do Sul e o Japão, a receita foi expedita e
consensual: aquilo que era preciso para resolver o impasse era, no fundo, mais
integração.
A nível político (ou político-militar), tal como a nível sócio-cultural, a operação de processos paralelos e no essencial funcionalmente equivalentes não é
difícil de detectar. Não é só a rápida universalização de critérios ético-jurídicos
(como a dos Direitos Humanos, ou aquela a que a rápida multiplicação de
Tribunais internacionais especiais tem dado corpo), nem a ruidosa fragmentação
tribal aquilo que está em jogo. É muito mais complicado que isso. Com o fim da
bipolarização e a dissolução dos dois grandes blocos antagónicos, que cautelosamente se entre-olhavam contra um pano de fundo de países ditos não-alinhados, passou-se quase abruptamente a uma nova ordenação, policentrada
e multidimensional, dos palcos internacionais. E apesar de num primeiro momento daí ter parecido resultar um Mundo unipolar, com os Estados Unidos
como único hegemon, cedo se verificou esse modelo não ser muito satisfatório,
quanto mais não seja pela sua excessiva lineariedade. Porque, se é indubitável
que em termos técnico-militares resultou na nova ordem uma clara hegemonia
46
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
norte-americana, a nível económico o Novo Mundo viu-se forçado a partilhar
essa posição de preponderância com a velha Europa e o novíssimo Japão. Mais
grave ainda para esse hipotético modelo unipolar: todo um variado universo de
entidades transnacionais (de corporações comerciais a instituições financeiras,
passando por mafias e grupos terroristas) constitui um nível suplementar que
não olha às fronteiras dos Estados e no qual a hegemonia está ainda mais
repartida29. Um outro eixo numa ordem compósita. A unipolaridade tem assim de
conviver com multipolaridades diversificadas30 num Mundo cada dia mais complexo.
Confirmar a multidimensionalidade do cenário daí resultante não é árduo.
Por muito convidativa (e retoricamente tentadora) que possa ser a imagem de
uma ordem unipolar, fácil é concordar que tal hipótese não tem grande correspondência empírica com o observável. Não é essa, decerto, a evolução das coisas.
Longe de se subdividir em Estados avulsos, e de sobreviver com placidez na
sombra dos Estados Unidos ou de uma qualquer benevolente Pax Americana, o
Mundo pós-bipolarização reordenou-se em blocos e coligações de vários tipos e
feitios. Uns, como a ASEAN ou o MERCOSUL, mais económicos do que políticos.
Outros, da União Europeia à SADCC, mais político-económicos do que militares.
Outros ainda, como a NATO ou a UEO, mais político-militares que qualquer outra
coisa. Quase todos são associações de Estados, cujos documentos fundadores
repudiam explicitamente quaisquer hipóteses de que venha em seu nome a ser
desafiado o estatuto soberano dos seus membros; nas Nações Unidas temos
disso um exemplo típico. A excepção é a União Europeia, num continente mais
uma vez pioneiro: na realidade não é uma federação, uma confederação, ou um
simples conglomerado de Estados; mas antes uma forma nova de governação
29
Tal como de resto a nível cultural. Sem querer antecipar a minha argumentação, não posso
deixar de citar Held et al. quanto ao que escreveram na sua obra monumental sobre a globalização
(1999: 373): não obstante as tranformações contemporâneas, the announcement of the eradication of
national cultural differences seems highly premature.
30
Esta perspectiva não é nova, evidentemente; e é partilhada por autores tão díspares como
Joseph Nye (1997), Susan Strange (1996), e pelo próprio Huntington (1999), que recentemente
caracterizou o Mundo como uni-multipolar.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
47
transnacional em que, voluntariamente, os Estados-membros abdicaram de uma
parte da sua soberania.
Esses novos blocos ou coligações têm vindo a tomar a ribalta, no palco. Na
sua maioria, trata-se de blocos regionais. É verdade que as regiões, ou entidades,
daí resultantes são muitas vezes arenas histórico-culturais de algum modo já
existentes em potência e só agora realmente activadas, tanto por razões tácticas
como por verdadeiras e sólidas alianças ou lealdades. Justamente o cenário a que
os Clash of Civilizations (e várias outras obras) fazem alusão. Mas de maneira
nenhuma, creio eu, assistimos à subida ao tablado das entidades que o
huntingtonianismo previa. O que me parece é que o paradigma equacionou a
situação de maneira demasiado simples, precipitada, e por isso mesmo talvez
reducionista. Como o próprio Huntington31 penso que reconheceu num artigo
publicado em 1999.
De momento, posso dar voz a uma primeira hesitação relativamente ao
modelo huntingtoniano. A ordem internacional em que participamos no Mundo
moderno é parcimoniosamente explicável como resultando no essencial da
operação conjunta de forças antagónicas como as que sugeri e, eventualmente,
de outros pares de princípios semelhantes. Gostaria de insistir neste ponto. Só
uma modelização complexa desse tipo permite fazer justiça tanto à multidimensionalidade dos factos, quanto à sua constante progressão. Uma complexidade que não penso seja devidamente assumida nos Clash, ainda que muitas
vezes transpareça dela Huntington ter plena consciência. Sem querer ser excessivo, o huntingtonianismo radical parece-me conter um certo “vício de forma”, a
nível dos seus pressupostos. De uma leitura cuidada, a conclusão a que chego é
que se trata de um sistema (ou melhor, de uma descrição paradigmática) que no
fundo, estrita como metaforicamente, presume a pré-existência de “entidades
civilizacionais” fixas e estanques que, enquanto a bipolarização durou, estariam
efectivamente camufladas. Na perspectiva de Huntington (e não obstante os
31
Detalhes quanto a esta reformulação das teses huntingtonianas, que interpreto como uma
recaída neo-realista que, a par do poder soft das afiliações culturais, reintroduz na equação o poder
hard (político-militar) dos Estados, ver Huntington (1999, op. cit.).
48
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
seus protestos em contrário) são no essencial retratadas como monolitos sem
grandes contactos ou intercâmbios entre si; ou, em todo o caso, como unidades
em que tais permutas são de pouca consequência. O autor trata na prática estas
entidades como autênticos blocos coesos que, sem embargo de algumas pequenas mudanças (mais cosméticas que autênticas, ou realmente consequentes) e
raras revoluções, não evoluem32 verdadeiramente; que definem a identidade dos
seus membros de maneiras muito semelhantes (e, no essencial, histórico-místicas); e se revelam, em última instância, fortissimamente constrangedores no que
toca às suas margens e liberdades de escolha, motivações, e modalidades de
acção. O que me parece redundar em drásticas (e excessivas) simplificações
daquilo que é empiricamente observável.
Nisso, a meu ver, o Clash of Civilizations retrata, no fundo, uma ficção. Por
outras palavras, e salvo o devido respeito, trata-se de uma espécie de análise
sobre a aerodinâmica dos cavalos de corrida que começa por assumir que os
cavalos são esféricos. Uma presunção talvez conveniente, mas pouco convincente. No essencial, tenta explicar (ou pelo menos compreender) o presente (e
prever algum futuro), em termos daquilo que ficou do passado, uma vez esbatida
a bipolarização. Um bocadinho chercher midi à catorze heures. É uma
perspectivação que, naturalmente, gera problemas previsíveis na eventual adequação do modelo à realidade.
32
Neste contexto, é particularmente irónico que dois dos pais fundadores das Ciências
Sociais, Émile Durkheim e Marcel Mauss tenham (logo no princípio do século XX) advogado, num
artigo famoso, que o passo seguinte da Sociologie que em grande parte inauguraram deveria ser o
de estudar o relacionamento entre “entidades civilizacionais” e os “contactos entre civilizações”.
Durkheim e Mauss introduziram para o efeito (e numa terminologia que trai a época) o conceito de
“coeficiente desigual de expansão e internacionalização”, o qual permitiria equacionar as dimensões
desses relacionamentos. Os dois autores franceses notaram, por exemplo, que as instituições
políticas tendem por via de regra a ser menos dadas à internacionalização do que o comércio, as
técnicas, os mitos ou a religião. Um ponto que, sobretudo no âmbito de uma discussão sobre as
teses huntingtonianas, nos dá pausa para pensar. Tais variações na “receptividade” e nas “resistências” das civilizações seriam porventura boas bases para uma eventual análise dinâmica da situação
actual de forte “diálogo civilizacional” (a frase é do filósofo alemão Jürgen Habermas) que hoje em
dia testemunhamos (e em que os portugueses têm sido parte activa), e bem mais úteis, a meu ver,
que o modelo mais estático de S. Huntington.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
49
4.
Sem desnecessariamente me repetir, gostaria de voltar a pegar nas minhas
objecções, agora não uma a uma, mas em termos compósitos. E quero aplicá-las
a casos concretos. Começo pelo exemplo porventura mais óbvio: o relativo ao
Kosovo. Há apenas alguns meses, no Seminário em que aqui participei, tive
ocasião de advogar a tese segundo a qual o paradigma do Clash of Civilizations
(pelo menos na sua versão mais maximalista) dá mal conta (porque o faz de
maneira insuficiente) da intervenção levada a cabo pela NATO no Kosovo. Foi
então a seguinte a minha linha de argumentação: o modelo de Huntington, ao
prever a eclosão de conflitos ao longo das “linhas de falha civilizacionais” que o
autor norte-americano identificou, via-se em apuros para dar conta de uma
acção colectiva de países sobretudo ocidentais e cristãos, concentrada contra as
pretensões de um Estado também europeu e também cristão (ainda que do
“bloco” ortodoxo), a favor de um enclave muçulmano localizado em pleno
território da Europa. A arrumação das forças mobilizadas era, insisti então,
contrária àquela que o paradigma de Huntington nos levaria a supor. Apesar de
a Sérvia, à la rigueur, não ser do “bloco” ocidental, é todavia inegável que tem com
este muito maiores afinidades do que com o “bloco” islâmico; pelo que as
eventuais previsões sairiam “transtornadas”, como então escrevi33. Sublinhei,
nesse contexto, a utilidade heurística de explicações que intitulei de “mais
‘clássicas’”, e que identifiquei (com algum realismo e não em grande discordância
com as opiniões mais recentes do próprio Huntington) como as que “ponham a
tónica não em clivagens culturais, mas em relações de poder” (ibid).
Quereria agora complementar o que então disse com o que resulta de uma
outra perspectiva, a um tempo mais ampla e mais processual (menos estática). E,
penso, mais actual. Melhor: escapando um pouco ao realismo puro e duro que
então defendi, ou talvez melhor, complementando-o. A reperspectivação a que
aludo, e que tentarei esboçar, implica uma visão de “longa duração”, na frase de
33
(1999, op. cit.:162). Tive o gosto, aliás, de ver este ponto retomado nas “conclusões” do
Seminário listadas por um grupo de oficiais ligados ao Instituto de Altos Estudos Militares.
50
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
um eminente historiador francês, Fernand Braudel. Exige uma maior profundidade temporal, por assim dizer. Farei referência ao exemplo balcânico que aflorei
em Julho.
Com os benefícios da retrospecção, um novo balanço geral da guerra no
Kosovo, creio eu, começa agora a ser possível. Sem simplificar, e com o intuito de
pôr em evidência algumas das suas linhas de força, vale a pena começar por
enquadrar a intervenção Aliada num contexto de curta duração, numa conjuntura temporal breve. Fazendo-o num quadro abstracto, mas problematizado. Uma
coisa é certa: a guerra do Kosovo foi estranha e curiosa. Uma rápida reflexão
demonstra-o em abundância. Tratou-se de um conflito armado empreendido,
sem motivos óbvios, numa perspectiva clássica, por forças com poucos interesses
nacionais próprios directamente afectados ou postos em causa; um conflito
legitimado, perante uma opinião pública atenta, em nome de princípios humanitários; um uso da força militar levado a bom termo, com enorme esforço e
despesa, em apoio de algo menos do que a soberania futura (pelo menos em
sentido tradicional) da maioria albanesa e contra os direitos soberanos invocados
pela Sérvia de Slobodan Milosevic. Em nada, como se vê, uma guerra tradicional.
Bem pelo contrário: toda uma série de novidades interessantes. Como li há pouco
tempo num artigo da Newsweek, o último decénio do século XX, que começou
com uma defesa “clássica” dos Estados soberanos (a Guerra do Golfo), acabou
com um ataque concertado e sistemático a essa mesma ideia de soberania, no
caso a exercida (ou antes, imposta) pelos sérvios sobre o Kosovo.
É óbvio que a acção aliada terá também sido muitas outras coisas. Terá
expressado, por exemplo, a urgência dos norte-americanos em justificar uma
presença militar futura numa zona equidistante da Rússia e do Médio Oriente,
numa conjuntura em que é cada vez mais difícil manter forças substanciais em
território alemão. Ou, em termos geo-estratégicos menos gerais, pode ainda ser
interpretada como um passo oblíquo para a contenção regional de uma Rússia
todavia nuclear, pela criação de uma espécie de cordão sanitário disposto ao
longo de uma linha que, mais a norte, conta já com três novos membros da
Aliança Atlântica. Mais prosaica e burocraticamente (os timings convidam-no)
podemos suspeitar estar perante um hipotético empenhamento americano em
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
51
proclamar alto e bom som34 a sua liderança de uma NATO em reformulação
e alargamento. Não é em princípio absurda nenhuma destas “explicações” para a
ingerência, por si sós ou criteriosamente doseadas em “receitas maquiavélicas”.
Do que se não tratou, decerto, foi de uma guerra empreendida nos termos,
ou em nome, de quaisquer entidades civilizacionais. E, seguramente, não em
termos das habituais manobras tácticas hegemónicas que têm vindo, cada vez
mais, a ser imputadas ao Ocidente. Se encarada nos seus termos ostensivos,
parece antes ter sido, pelo contrário, uma expressão de um novo estádio na
estruturação política do sistema internacional, ainda que certamente “em termos
ocidentais”. Um passo suplementar, decerto mais cedo ou mais tarde imprescindível na fase de integração-interdependência em que nos encontramos. Como
que outra pedra no edifício de uma sofisticada estratégia, que se parece esboçar,
que na sua versão mais recente associa a Annan Doctrine (segundo a qual há que
“redefinir a soberania nacional”, nomeadamente no sentido de legitimar a eventual intervenção de “grupos de Estados” se tal for imprescindível para evitar
“genocídios”35; e segundo a qual a Diplomacia, neste Mundo pós-clausewitziano,
é tanto mais eficaz quanto mais se sustente da ameaça do uso da força militar)
com o que foi efemeramente apelidado da Clinton Doctrine (uma espécie de
Doutrina de Monroe jurídico-conceptual reforçada, que estipularia regras básicas
para uma política de intervenção norte-americana alargada36, presume-se que ad
infinitum, em nome dos Direitos Humanos).
34
Uma interpretação, devo dizer, que me parece pouco credível; aceitá-la implica considerar
que, por vantagens pontuais, a Administração norte-americana incautamente se colocou numa
posição de maior fragilidade face a aliados muitas vezes reticentes. Estas foram, em todo o caso,
conclusões não incomuns (ver, por exemplo, Kolko, 2000, em que ambas são admitidas).
35
Uma doutrina formalmente enunciada perante a 54.ª reunião da Assembleia Geral das
Nações Unidas, a 20 de Setembro último, com um tácito objectivo conjuntural, com a insistência de
que tal será legítimo “na ausência de uma autorização pronta [prompt]” do Conselho de Segurança
se “o horror” estiver em curso. Os países “ocidentais” e alguns africanos saudaram a doutrina do
Secretário-Geral. Muitos dos países em vias de desenvolvimento assumiram posturas ambivalentes.
Uma oposição veemente coligou a China, o Vietname, a Indonésia, a Coreia do Norte, a Índia, a
Rússia, a Bielorússia, o Iraque, a Argélia, o México e a Colômbia.
36
É interessante verificar que, no mês anterior à campanha aérea da NATO no Kosovo e no seu
decurso, Bill Clinton e os porta-vozes da Casa Branca repetidamente anunciaram a urgência de
52
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Vista no contexto de uma série temporal longa, e encarada nos seus termos
ostensivos, a incursão no Kosovo foi sem sombra de dúvida uma intervenção
levada a cabo num novo momento da evolução da ordem internacional que saiu
da Guerra Fria. Um indício de que o nível da interdependência no Mundo (em todo
o caso na Europa) já não se compadece com o estato-centrismo secular. Um sinal
de que os “perímetros de segurança nacional” não se restringem hoje apenas aos
territórios imediatamente adjacentes a cada Estado; e uma correlativa cedência
da maior parte das grandes potências mundiais (as Democracias pluralistas) face
à opinião pública “global”. Uma nova fase ético-jurídica, por assim dizer, uma outra
etapa numa progressão cosmopolita que decerto agradaria a Woodrow Wilson e
a Franklin Delano Roosevelt. Mais um passo no trajecto pós-westphaliano que os
pensadores liberais vêm como a inevitável ascenção de valores e instituições não-estatais na ordem internacional. E, em consequência, um ampliar do papel
preenchido pelas populações e pelos respectivos interesses, em detrimento do
monopólio que, desde Westphalia, vinha a ser concedido aos Estados37. De algum
modo, e ao invés do que vaticinou Huntington há meia dúzia de anos, aquilo com
que nos confrontamos é a emergência, nos palcos internacionais de hoje, não de
antigas separações culturais mas de novíssimos princípios38 universalistas. Um
estudar e desenvolver critérios doutrinais para sistematizar este tipo de intervenções. Perante
resistências múltiplas, internas como externas, o tema foi (aparentemente) deixado cair, ou pelo
menos arrumado numa prateleira à espera de melhores dias. Com um saudável realismo, a Administração americana parece estar consciente de que o preço a pagar por ingerências “policiais” generalizadas (no sentido de virem a ser levadas a cabo seja onde for que aparentem ser justificáveis em
termos doutrinários) seria um imediato imperial overstretch e redundaria numa nova fonte de
desordem internacional.
37
Em todo o caso (e seja qual for o grau de distanciamento irónico que queiramos afectar), a
ingerência consumada pelos Aliados no território soberano da Jugoslávia foi um conflito desencadeado com esses pretextos e com essas (talvez entre outras) finalidades. No fundo, pelo menos em
parte uma versão vigorosa do processo de globalização; ou, em todo o caso, um passo amplo numa
cada vez mais nítida submissão de todos os actores internacionais a uma hegemonia ética e até
normativa, ainda que, por razões pragmáticas, esta tenha vindo largamente a ser exercida “por
intermédio” dos norte-americanos.
38
Como terceiro e último exemplo, dos inúmeros possíveis, pesemos na balança da globalização
em curso a decisão de onze países (os novos membros da chamada Eurolândia) em abdicar volun-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
53
facto puro e duro que não se compadece com dogmas “clássicos” tout court como
o de uma soberania não qualificada. Sem qualquer utopismo ou wishful thinking,
é com efeito difícil não tomar esse pulso a vários dos acontecimentos interessantes e curiosos que se têm vindo a encadear nos cenários contemporâneos.
Gostaria de insistir um pouco neste último ponto, o da generalização em
curso de princípios universalistas. Comecemos pelo caso que nos está mais
próximo: a tão desejada intervenção das Nações Unidas em Timor-Leste (já que
nós próprios infelizmente não a podíamos levar a cabo) por uma força
multinacional liderada pelos australianos. O meu ponto é fácil de enunciar. Só a
pressão política (eleitoral e outras) de uma opinião pública, moralmente indignada e mobilizada por meios de informação cada vez mais globais, permite compreender o que os modelos tradicionais do interesse nacional dos Estados não
podem senão deixar inexplicado: a nitidez da resposta. E apenas esse efeito de
globalização ética, quereria alegar, torna inteligíveis factos e acontecimentos
colectivos que nos poderiam deixar perplexos, como a velocidade (inédita) das
decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como segundo exemplo,
viremo-nos para o fortíssimo movimento de opinião que, de inúmeros quadrantes
e de numerosos países, se constituiu em favor de responsabilização do General
Augusto Pinochet pela transgressões de “direitos básicos” perpetradas pelo regime repressivo e ditatorial que impôs no Chile. Apesar do carácter polémico da
questão, concordemos que se logrou um consenso tácito na opinião geral. Uma
convergência verificada mesmo entre muitos daqueles que apoiaram as finalidatariamente de uma parte crucial da sua soberania por uma União Monetária Europeia; ainda que,
sem dúvida, com uma maior racionalidade económica em mente. Talvez esta última ilustração seja
um exemplo ambíguo: o que está na linha de horizonte, neste caso, será realmente a globalização
generalizada ou, pelo contrário, a clausura de uma sub-entidade (civilizacional?) europeia, a tão
amaldiçoada Fortaleza Europa? Mas certamente ambíguos também o são os dois exemplos anteriores. O que num Mundo que (se é verdadeiro o meu argumento) está subtendido por pares de
forças em tensão, não será surpreendente: ambiguidades, ou talvez melhor, ambivalências, são
decerto o que seria de esperar de uma condição estrutural desse tipo. A persistência de ambivalências
nos palcos internacionais contemporâneos é seguramente, nessas condições, a situação normal.
Cada um dos seus termos, no fundo, faz pouco mais que reflectir a nossa predilecção (temporária ou
permanente) pela vitória de uma dessas forças que se degladiam.
54
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
des do seu golpe, ou dos que consideram o agora senador vitalício velho demais
para incorrer em qualquer pena: mas que ainda assim fazem questão de estabelecer, em todo o caso, um novo e importante precedente (“anti-soberania”, note-se) na ordem jurídica internacional. Creio estas duas ilustrações instrutivas.
Ambas são instâncias claras de retrocesso, diria eu, e indícios nítidos de que
alguma coisa está a mudar. Talvez valha a pena que nos detenhamos um pouco
sobre esta questão específica.
Tenho plena consciência de que este ponto complementar implícito (o de
uma exiguidade cada vez mais marcada a que é remetido o poder soberano dos
Estados contemporâneos) está longe de ser pacífico. Objectar-me-ão, com algum
óbvio fundamento, que nestes como noutros casos o hipotético refluxo da
soberania perante a globalização, na ordem internacional contemporânea, não é
verosímil. Que há que pôr os pés no chão. Que se trata de um processo mais
aparente que real. Que (é uma frase feita) desde os tempos clássicos da Grécia de
Tucídides o Mundo pouco, ou nada, mudou. E, em todo o caso, que no que diz
respeito à pretensa globalização, se trata, ou da ponta de um icebergue económico-imperial de design (no duplo sentido do termo) claramente anglo-saxónico,
ou de uma petite histoire efémera, senão oblíqua e perversa, que na prática releva
do poder de alguns (os mais poderosos) dos Estados que, hipócrita e convenientemente, assim se mascaram e manobram39. Para narrativas deste tipo, tão
39
Curiosamente, uma posição deste tipo é precisamente a defendida num estudo monográfico
recente por Stephen Krasner (1999). O argumento de Krasner (simplificando muito) é essencialmente o seguinte: a soberania, tal como tem sido abordada e interpretada pelos cientistas políticos e
pela opinião pública, é uma ficção manipulada pelos Estados, um mito cuja transgressão se tem
desde sempre verificado sistematicamente. A situação contemporânea nisso inova pouco: ao contrário, do seu ponto de vista, do que alegam os teóricos da globalização, para os quais a soberania
estaria em retrocesso. Segundo Krasner tem sido bastante cumprida (ainda que com excepções) a
international legal sovereignty, ou seja, o princípio de que o reconhecimento dela pela comunidade
internacional só deve ser concedido a Estados juridicamente independentes. Muito menos respeitado, alega, tem sido no entanto a Westphalian sovereignty, o direito dos Estados de excluir
interferências externas nos seus respectivos territórios. Tem sido assim, argumenta, tanto a nível de
direitos das minorias quanto ao de Direitos Humanos ou da economia. As diversas variantes das
teses realistas, visto estas serem no fundo sempre doutrinas críticas que supõem a actuação de pelo
menos dois níveis de realidade, estão sempre na vizinhança de teorias do complot (ver, para este
ponto, algumas das páginas do magnífico artigo de R. Keohane, 1995).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
55
ouvidas num Mundo de que cada vez mais sentimos ter perdido o controlo, a
globalização é um ludíbrio; melhor talvez, uma fraude, uma impostura. A verdadeira direcção das coisas, segundo este discurso, é no sentido da permanência e
da imutabilidade, plácidas, das formas tradicionais de soberania, acordadas e
institucionalizadas na Paz de Westphalia. Ou seja: é possível a riposta de que a
carruagem efectivamente não anda. Conquanto essa versão maximalista seja
porventura exagerada: os mais prudentes asseveraram que a carruagem lá andar
anda, talvez ande é menos do que parece.
Ripostas deste tipo (a especialidade de realistas e neo-realistas convictos)
não são, mau-grado as aparências, completamente disparatadas. Com efeito, o
processo de globalização e de erosão das soberanias não tem sido nem simples
nem linear. Os avanços e recuos de que tem padecido são notórios. Como o são
as variações, e até as excepções. Seria difícil, por exemplo, ignorar a veemência
com que o nacionalismo (e como seu corolário, uma doutrina estreita da soberania nacional) tem pautado as consolidações e as tentativas de afirmação de
muitos dos jovens Estados nascidos (ou renascidos) do desmembrar da ex-União
Soviética. Ou até a reacção, veementemente soberana (e imprudente) da própria
Rússia, que sucedeu à União Soviética sem manifestamente aprender todas as
lições, face às expectativas de emancipação da Tchetchénia. Como seria disparatado não tomar em linha de conta os ímpetos de asserção nacional dos novos
países, na sua larga maioria africanos e asiáticos, que ascenderam à independência com todas as outras descolonizações europeias: uma das últimas40 das quais,
a portuguesa.
Parece-me no entanto escusado deitar fora o bébé com a água da banheira.
Por outras palavras, a afirmação de um enfraquecimento generalizado das soberanias de maneira nenhuma equivale à negação destas. Nem sequer significa que
possamos daí deduzir o eventual desaparecimento delas. Redunda, tão-somente,
40
Uma União Soviética que nos veio substituir como o último dos países europeus a proceder
às descolonizações exigidas pelos novos tempos. Para uma perspectiva fascinante sobre a quebra
dos consensos “imperialistas”, é útil a leitura do excelente artigo de R. Jackson (1996). Será pena se
não for com celeridade levado a cabo um estudo comparativo sobre a dissolução progressiva a que
estes consensos se viram sujeitos no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.
56
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
no reconhecimento do facto de que estamos perante um conceito cujo conteúdo, extensão, e aplicabilidade, mudaram. Para alguns isso será bom, para outros
mau; mas é um facto com que todos teremos de nos reconciliar. Reacções
refractárias à erosão em curso podem facilmente ser identificadas perto de nós.
Voltando por instantes à intervenção Aliada no Kosovo, há efectivamente que ter
presentes as variadas reiterações de soberania nacional, as várias expressões
políticas “clássicas”, que precederam a mobilização generalizada de vontades; ou,
pelo menos, os condicionalismos prontamente revelados. A Grécia, apostada em
manter a ligação privilegiada que regionalmente mantinha com os sérvios,
começou por abertamente se opor aos desígnios da Aliança Atlântica. A Turquia
fez ponto de honra de salvaguardar com clareza a questão curda como incomensurável com a albanesa. A Espanha e a França hesitaram, tendo em vista os seus
próprios dogmas quanto à indissociabilidade, respectivamente, do País Basco, da
Catalunha, e da Córsega. A China e a Rússia depressa fizeram constar que uma
parte substancial das objecções insistentes (e veementes) que fizeram questão
de acumular se prendia com o precedente estabelecido, que consideraram
soletrara uma ameaça directa de ingerência futura nos seus próprios assuntos
internos. A linguagem de todos estes actos de resistência inglória foi a da
soberania; nos termos, aliás, em que em princípio está embutida na Carta das
Nações Unidas (mau grado o n.º 7 do seu artigo 2) e na maior parte dos outros
diplomas e institutos do Direito Internacional.
Podemos também duvidar da “franqueza” dos motivos aduzidos para o
“novo humanitarismo”, como foi chamado. E teremos certamente para isso algumas justificações. É sem dúvida verdade que, no caso do Kosovo, e bem feitas as
contas, os Estados Unidos, grandes patrocinadores da globalização (porque, sem
sombra de dúvida, têm sido os grandes beneficiários dela, para além das óbvias
afinidades ideológicas), lá levaram a sua avante. É portanto pelo menos plausível
argumentar que nada mudou, para além das aparências. Que a velha power
politics simplesmente encontrou um novo pretexto legitimador. Mas novamente
isso me parece não querer ver a direcção da evolução das coisas. Todavia mais
interessante seja porventura talvez reiterar e sublinhar os termos em que isso foi
enunciado e os apoios (nomeadamente a nível da opinião pública e de
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
57
numerosíssimas, e cada dia mais influentes, organizações cívicas não-governamentais de todo o tipo) na prática conseguidos. O que denota a operação de
fortes pressões sistémicas. É de notar que, no caso de Timor-Leste, os Estados
Unidos, não obstante a importância atribuída à sua ligação tradicional com a
Indonésia, acabaram por dar luz verde à tão urgente “intervenção da comunidade internacional”, como foi chamada a chegada de tropas multinacionais. Seguramente em parte em resposta à indignação moral da opinião pública. No Mundo
da informação global, mutatis mutandis (e as diferenças foram muitas), tal como
no caso do Kosovo, em nome de um maior cosmopolitismo (ético e político), o
império da soberania recuou.
Repito: é seguramente verdade que podemos não ver no exemplo jugoslavo,
se do ponto de vista metodológico e político para aí estivermos inclinados (como
S. Krasner, ou como Noam Chomsky), senão uma colossal “hipocrisia organizada”,
e na ingerência Aliada uma manifestação sinistra de um novo “humanismo
militarizado”41. Ou seja, como referi, é possível perante o ocorrido assumir uma
postura de distanciamento sarcástico. Tal como poderá ser apropriado relembrar
os incontáveis antecedentes de invocações legitimadoras precisamente do mesmo tipo; nomeadamente as expressas também relativamente aos Balcãs, na
época da Primeira Grande Guerra. A situação não é porém verdadeiramente
comparável. Há diferenças de monta que importa saber tomar em consideração.
A conjuntura é hoje outra, muito mais propícia a alterações de fundo na ordem
internacional das coisas. Por um lado, há que contar com a letalidade crescente
dos sistemas de armamento no Mundo moderno, e as implicações que isso tem
no que toca à correlação de forças. Com meios cada vez mais high tech, uma
41
Ambas expressões, que pus entre aspas, correspondem a subtítulos de obras recém-
-publicadas pelos dois autores em causa: um deles, Krasner (1999), por apego a modelos neo-realistas; o outro, Chomsky (1999), ilutre linguista e Professor no MIT, de acordo com convicções
“anti-imperialistas” radicais de que tem sido porta-voz. Nas páginas finais do seu ensaio Chomsky
propõe, com a habitual dureza sarcástica e num estilo inconfundível, que seja empreendido um
urgente assessment [das acções da NATO] on rational grounds with attention to historical fact and the
documentary record, not simply by adulation of our leaders and the ”principles and values” attributed to
them by admirers (op. cit.: 157).
58
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
campanha aérea deu corpo, no Kosovo e no resto de larga parte do território da
ex-Jugoslávia, à guerra mais cara a que a Europa assistira desde os horrores do
nazismo; um conflito sem uma única baixa42 em combate do lado Aliado. Milosevic,
por sua vez, recuou, incidentalmente dando razão àqueles (em cada vez menor
número, no decurso das hostilidades) que continuavam a acreditar que uma
guerra aérea, por si só, poderia ser decisiva. Mas há mais. Há ainda que ponderar
na equação a concomitante internacionalização de uma muito vocal esfera
pública, o que potencia enormemente essa nova correlação de forças, dando voz
e peso a esse novo e eficaz protagonista (sobretudo nos países democráticos)
que é a opinião pública internacional. E há que ter em conta a força crescente da
profusão de ONGs com maior e maior protagonismo e capacidade de intervenção e mobilização tanto das opiniões públicas como de interesses internacionais
poderosos43, muitos deles pouco “clássicos”.
Assim, a confirmar os receios de imediato invocados por Estados particularmente empenhados em esconder os seus esqueletos domésticos sob o manto
protector da soberania westphaliana (por exemplo a China, decerto preocupada
com o Tibete), a intervenção militar desencadeada no Kosovo não veio sozinha.
Insisto no que disse atrás: a ingerência na Jugoslávia foi imediatamente seguida
por uma outra, que beneficiou de ainda maior apoio consensual: a entrada de
tropas internacionais, desta vez das Nações Unidas e agora sob liderança australiana, no território de Timor-Leste44. Se bem que, de um ponto de vista técnico-
42
O que, também incidentalmente, lança sérias dúvidas sobre a asserção de Huntington (e.g.
pp. 88-91) segundo a qual o poder militar relativo do Ocidente estaria em refluxo nas arenas
internacionais. Quando mosquetes eram confrontados com lanças, ou metralhadoras enfrentavam
catanas, algum sangue, por via de regra, corria dos dois lados.
43
Foi fascinante verificar, por exemplo, como em muitas das manifestações realizadas em
Portugal em apoio à independência de Timor-Leste se gritaram duas palavras de ordem: “Viva Timor
Lorosae” e “Viva a Igreja Católica”. A César o que é de César.
44
Numa Conferência sobre a política externa portuguesa do pós-25 de Abril, organizada em
Julho de 1999 no Convento da Arrábida (antes, por isso, do feliz desenlace da situação de Timor),
José Manuel Pureza, numa interessante comunicação, defendeu que a tónica político-diplomática
do Estado português, ao longo da sua confrontação com a Indonésia, redundou numa vitória ética.
O que a seu ver (e trata-se de um ponto de que é difícil discordar), demonstrou a emergência de uma
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
59
-jurídico nesse caso se não possa em rigor falar de ingerência (já que a pretensa
legitimidade da jurisdição indonésia nunca foi geralmente reconhecida), precedentes pesados estão seguramente a estabelecer (esperemo-lo) uma prática45
que se irá cada vez mais fortalecer até se instalar como regra. As coordenadas
com que tradicionalmente se aferiam os direitos soberanos estão claramente a
mudar. Mesmo as grandes organizações internacionais estuturadas segundo
regras estato-cêntricas de composição, como as Nações Unidas, parecem estar a
acabar por digerir (de facto mas não ainda de jure) a situação criada; e acham-se,
ao que tudo indica46, com ou sem Kofi Annan e a sua doutrina anti-genocídio,
empenhadas em reconciliar-se com os novos ventos.
acrescida capacidade de intervenção de pequenos países numa nova ordem internacional pós-westphaliana, em que o poder hard deixou de ser o único critério procedente.
45
Uma prática e um conjunto de regras em incubação, que estão nitidamente a acelerar o
passo. Algumas diferenças subtis há no seu encadeamento, em todo o caso, que denunciam umas
quantas alterações profundas na própria estrutura da conjuntura, para usar uma frase consagrada.
Durante o conflito na Bósnia-Herzegovina (tal como, de resto, na intervenção desastrosa das Nações
Unidas na Somália) a ingerência humanitária por alguns dos Estados da comunidade internacional
foi tardia porque em larga medida levada a cabo em resposta a pressões crescentes das respectivas
opiniões públicas (ou melhor, às exigências dos seus eleitorados). No caso do Kosovo, como no de
Timor-Leste, a lição tinha sido aprendida: longe de uma submissão passiva às correntes de opinião,
os Estados intervenientes orquestraram, de sua própria iniciativa, campanhas bem montadas de
propaganda; utilizando, para o efeito, os mesmos meios de comunicação social pelas quais antes se
tinham sentido empurrados. Não me parece, porém, que esta viragem possa ser reduzida a um
simples caso de if you can’t beat them, join them, por mais que essa possa ter sido precisamente a
motivação dos poderes públicos. Por um lado, já que um dos principais motivos aduzidos para tais
manobras de propaganda foi, pelo contrário, a necessidade de justificar, a opiniões públicas
(sobretudo as democráticas) por via de regra renitentes perante acções militares, a urgência de uma
reacção rápida face a cenários humanitários desastrosos. A experiência dramática e muito marcante
do Ruanda tivera pelo menos esse efeito pedagógico. E, por outro lado, porque ao assim inverter os
papéis habituais, os Estados quedaram-se na posição paradoxal de colaborar no reforço, e na
consolidação, de uma das principais forças a que é atribuível o refluxo estrutural contemporâneo da
soberania clássica.
46
É interessante, neste contexto, o curioso e curto artigo de Ignacio Ramonet (2000) sobre a
“ingerência e a soberania”. Sem descartar as limitações que, no panorama internacional contemporâneo, o alargamento daquele significa para esta, antes pondo-as em evidência, Ramonet parece
mais empenhado no seu estudo em denunciar iniquidades: pergunta, por exemplo, o que serão
60
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Por outras palavras, uma onda de “normalização” da anarquia internacional
parece estar a assolar as margens da soberania, tal como antes esta era
canonicamente defendida. Um facto que casa mal, convenhamo-lo, com o
paradigma de Huntington: um modelo que no fundo, ao atribuir centralidade e
identidade contrastiva a “entidades civilizacionais” irredutíveis, persiste numa
perspectivação do Mundo enquanto colecção de entidades discretas e
equiparáveis. O paradigma de Huntington redunda assim numa espécie de neo-realismo civilizacional que, ao limitar-se a transpor para um nível mais amplo o
conceito de soberania, perde de vista factos empíricos como a erosão muito real
a que esta tem estado sujeita e tende a negar a evidência do processo de
globalização. No fundo o modelo huntingtoniano postula, à guisa de matriz do
seu remaking of world order, uma espécie de balance of power revisitado pós-bipolarização em que as unidades na balança são, não os Estados que nos
habituámos a reificar desde meados do século XVII, mas “entidades (ou blocos)
civilizacionais” muito maiores mas de algum modo funcionalmente equivalentes.
5.
Os limites da tese de Huntington podem também ser confrontados “de
dentro para fora”, por assim dizer. A questão é com utilidade susceptível de ser
abordada sob outro ângulo: enquanto sistema de representações, próprias de
certa época, e de determinado clima vivido nalguns círculos intelectuais. Enquanto “retrato ideologizado”, chamemos-lhe assim. Um retrato relativista, cujo
background é sobejamente conhecido. Desde há alguns anos que nos habituamos a invocações, tão veementes quão compreensíveis, da suficiência, senão da
superioridade, de culturas e civilizações que não a Ocidental. As certezas fundamentais de cada cultura são delas condições de possibilidade. Cenários conjunturais ditam-nas. Muito antes de Edward Said, o famoso académico norte“bombardeamentos éticos”, questiona a plausibilidade de uma hipotética intervenção de um país
africano contra os Estados Unidos para corrigir o racismo, e queixa-se da ausência de uma “ingerência social” contra a pobreza. Uma postura relativista, mitigada por uma enorme lucidez.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
61
-americano de origem palestiniana, insistir que a ciência ocidental se teria
desenvolvido por intermédio da exclusão da civilização oriental, já muitos muçulmanos propalavam a autonomia e a especificidade47 próprias da dita “ciência
islâmica”. Na Ásia, o histórico Primeiro-Ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, e o
seu notório congénere da Malásia, Dr. Mahatir (desde há muito críticos ferozes do
Ocidente) ecoam reivindicações chinesas, indonésias, e hoje em dia indianas, da
premência e do ascendente dos chamados “valores asiáticos”, assim como do
consequentemente distinto Asian Way. Um irredentismo que nem a crise económica que no ano passado assolou e destroçou muitas das economias da Ásia
soube verdadeiramente calar. A causa enraiza no transcendente. Trata-se de
declarações míticas, de construções simbólicas não refutáveis por realidades
empíricas. Mais do que descrições, são actos pragmáticos ou até simplesmente
de fé.
Nas perspectivas (ou melhor, nas múltiplas perspectivas) dessas narrativas mítico-identitárias, dessas asserções, o Ocidente aflora sempre como
uma unidade a que o resto do Mundo se contrapõe. A razão de ser para essa
dicotomia radical (e estranhamente indiscriminada) é também simples de
compreeder: proposições deste tipo formam parte e parcela de declarações
47
Apenas duas ilustrações sucintas das insuficiências de alegações deste tipo, das muitas
possíveis. No ensaio atrás citado, E. Gellner levou a cabo uma crítica dura e epistemologicamente
bastante bem fundamentada dessas pretensões a cientificidades paralelas, como lhes poderíamos
chamar. O ponto de aplicação específico de Gellner: o “racionalismo” islâmico. Num breve artigo
sobre a Ásia do Sudeste, H. Buchholt equacionou o eventual alcance de inovações dessas entre
algumas das elites de alguns dos países asiáticos. Podemos, porém, ir mais longe. Em pretensa
ressonância com o esforço de Max Weber, de associar o boom ocidental com a subida do Protestantismo, tem com efeito sido feita a elegia de uma propinquidade particular entre a ética confuciana
e o desenvolvimento económico. Quanto a este último ponto, parece-me imprescindível sublinhar
que, se é verdade que o Confucionismo, ao promover o respeito pela família, pelos mais velhos, e
pela ordem e tradição, favorece a promoção do capitalismo, também não é de esquecer que esse
mesmo Confucionismo tem sustentado e legitimado, precisamente em nome dos mesmos valores,
os gerontocratas que lideram com mão de ferro os regimes socialistas autoritários no poder em
muitas partes da Ásia. Mais que promover o desenvolvimento de economias de mercado, em todo
o caso, a ética confuciana tem formado uma sólida base de sustentação para o crony capitalism e as
“democracias musculadas” tão típicas do sudeste asiático.
62
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
relacionais48 formuladas sob roupagens essencialistas. Trata-se de estratégias
identitárias. São versões vigorosas e curiosas inversões da atitude sobranceira do
West versus the rest que muitos (com indubitável razão) alegam ter sido durante
séculos a postura (separatista) dos “ocidentais”. À luz destes contrastes, tidos por
inultrapassáveis visto serem apresentados como distinções fundadoras,
posicionam-se novas atitudes, delimitam-se novas posturas, estabelecem-se novas
(e restabelecem-se velhas) divisões e ligações. Criam-se operadores eficazes,
enraízam-se discursos religiosos, são erigidas mitologias étnico-culturais, articulam-se oratórias políticas nacionalistas, circunscrevem-se territórios conceptuais.
Com esses pretextos, liga-se-lhes uma ética de “correcção política” cuja asserção
central transpira relativismo cultural: “todos os sistemas de valores são igualmente válidos e, no sentido em que caracterizam a nossa especificidade própria,
irredutíveis uns aos outros”.
O meu ponto é o seguinte: é tão lamentável quanto previsível que o
relativismo implicitamente assumido por Huntington nos Clash of Civilizations o
tenha encaminhado (empurrado até) na direcção de narrativas míticas deste tipo.
Ou seja: que numa situação tensa, em que (pela primeira vez desde há muito
tempo) os “outros” têm voz, incautamente Huntington tenha sido levado a tomar
pelo seu valor facial asserções rituais que não relevam senão dos novos contextos de multiculturalidade difícil (e em tantos casos dolorosa) vividos na “aldeia
global”. Não é este o lugar indicado para debater a questão, fascinante, da
razoabilidade do relativismo nu e cru. Trata-se antes de alinhar as implicações do
facto de Huntington, enquanto analista, ter acatado como proposições descritivas o que efectivamente são declarações “políticas” dos actores sociais que as
formulam. Ou que, pelo menos, delas tenha aceitado uma parte: a das suas
conclusões. A consequência: nos domínios etéreos do “politicamente correcto”,
na terra-de-ninguém da equidistância, Huntington foi por conseguinte levado a
aceitar a realidade empírica de entidades tão nebulosas como as suas famigeradas
48
Relativamente a este ponto, reitero os comentários que fiz em (1999, op. cit.:159-161),
nomeadamente no que diz respeito à definição de “etnicidade” moderna como resultado da
intensidade de interacções sociais, e não como efeito de tendências para a separação.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
63
“entidades civilizacionais”, formações abstractas eivadas de intemporalidade e de
homogeneidade interna. Anomalias (como, por exemplo, a profusão de Estados
intercalares) são com displicência arrumadas ao abrigo de elaborações secundárias protectoras e tranquilizantes. Mas os problemas inerentes ao modelo
paradigmático delineado mantêm-se intocados. Como não poderia deixar de ser:
os cavalos não são esféricos.
Verificá-lo não é particularmente árduo. Atenhamo-nos de novo a um só
exemplo, porventura o mais polémico: o do Islamismo. Huntington (a meu ver de
maneira redutoramente mecânica) explica a relativa indefinição de “civilizações”
como a latino-americana ou a africana pela ausência, nelas, do que chama core
states: Estados local ou regionalmente com influência suficiente para servir
de catalisadores. Nesse contexto, é interessante a alegação de que uma das
“civilizações” mais bem circunscritas (delineada aliás pelo nosso autor, a ferro e
fogo, por “fronteiras sangrentas”) seja a Islâmica. Qual será o core state da
famigerada Dar al-Islam49, uma vez a Arábia Saudita apeada das suas ambições,
a família hashemita irreversivelmente dividida, o Irão xiita desacreditado, os
movimentos integralistas baath da Síria e do Iraque isolados, e quaisquer pretensões pós-Bandung de uma Indonésia em fragmentação a perder-se numa linha
já longínqua de horizonte?
Em 50 anos, quaisquer plausíveis veleidades pan-arabistas (e, por maioria
de razão, pan-Islâmicas) se esfumaram. Como poderia ser de esperar. Para lá
das mais óbvias clivagens entre Árabes e não-Árabes, Turcos, Persas e outros, há
que contar com fracturas entre Malaios e Pakistanis, Javaneses e Minangkabaw
de Sumatra, Bengalis de Punjabis e Pathans de Afegãos, só para nomear
umas poucas. A tão ambicionada e tantas vezes propalada unidade muçulmana
é um dos mitos religiosos com que agrupamentos muito diferentes uns dos
49
Sobretudo nas pp.174-183, 209-218 e 246-266 da sua monografia, Huntington mostra ter
plena consciência dessa ausência de um core state muçulmano. Tipicamente, não deriva porém
todas as consequências desse facto (nomeadamente a incongruência heuristicamente devastadora
deste dado com a intensidade das bloody borders), de algum modo escondendo-as por detrás de
elaborações secundárias que oferecem outras razões para a regularidade destes conflitos. Fica a
dúvida sobre o real papel dos core states na teorização huntingtoniana.
64
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
outros inventaram, ou “imaginaram”, uma “comunidade”, para usar a expressão
consagrada de Benedict Anderson. Mas ao invés de muitos desses processos
de gestação comunitária, trata-se de um mito relativamente improcedente.
Porque é uma construção mitológica largamente restrita a algumas elites religiosas e políticas (por via de regra pouco representativas) de uma mão-cheia
de países (sobretudo árabes), e depois instrumentalmente propagada para o
geral da população. Não é, efectivamente, um facto empírico puro e duro que
caracterize um qualquer projecto dos agrupamentos sociais que professam o
Islamismo.
Como o não são sequer a estabilidade, a permanência, ou a integridade
temporal da colecção de grupos que no Mundo se identificam como muçulmanos. Nem a sua impermeabilidade. Afloremos concretamente este problema e
desmontemo-lo. No Irão, as eleições de 1997 deram a Presidência a um moderado, Muhammad Khatami, um leigo perante cujos apoios populares até o muito
mais radical Ayatollah Ali Khamenei tem vindo a ceder; as eleições de 2000, as
mais concorridas da história do país, confirmaram a tendência dando uma vitória
clara aos “reformistas”. Na Argélia, a brutal e tão sangrenta guerra intestina parece
estar a esmorecer; e mesmo a Líbia, o Sudão, e a Síria (ou o Líbano) parecem a
caminho de uma maior tranquilidade. A democracia e as eleições livres, cada vez
mais exigidas por populações cada vez menos miseráveis, mais instruídas, e mais
sintonizadas com um Mundo que lhes tem sido revelado pela revolução electrónica encetada nos fins do século XX, ganham terreno do Qatar ao Oman, do
Kuwait à Jordânia e a Marrocos. A progressão convergente na direcção geral da
evolução internacional, ao que tudo indica, é inexorável.
Serão mudanças de peso. Embora ainda seja indubitavelmente demasiado
cedo para o asseverar, o movimento parece irreversível; o seu âmbito cada vez
maior. As suas implicações potenciais são enormes. No Renascimento, condições
não muito diferentes desencadearam, na Europa ocidental, uma Reforma e
Contra-Reformas, que pouco deixaram igual. Em finais do século XVIII e inícios do
século XIX foi a vez dos ghettos e dos shtetl da Europa central e oriental ashkenazi:
a Haskallah judaica repetiu, mutatis mutandis, as “luzes” cristãs. Uma Reforma
Muçulmana de fundo não estará à porta? As comunidades na Diáspora europeia
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
65
e americana, com um peso crescente50, serão o seu lugar de gestação? A imagem
de uma “civilização”, de um bloco, sobreviver-lhe-á?
Seja qual for a resposta para estas questões, parece-me incontornável a
urgência de as formular. Ainda que como paliativo contra uma visão essencialista
que negue a solidez das mudanças em curso, insistindo em ver no futuro uma
mera repetição do presente que, por sua vez, pouco mais faria senão ecoar o
passado. Por muito que o discurso mítico-identitário que a maioria dos Muçulmanos utiliza como táctica para a construção da sua “comunidade imaginada”51
pareça convincente, as alegações em que se baseia não soam hoje em dia nada
tão líquidas que possamos com segurança falar de uma entidade civilizacional
Islâmica; semelhante hipotética unidade é, cada vez mais nitidamente, uma
ficção religioso-cosmológica alimentada, ao sabor de conveniências conjunturais,
por membros de algumas das elites políticas ou pastorais dominantes em Bagdade,
no Cairo, em Riade, nas aldeias e nos subúrbios argelinos, em Karthoum, entre os
teólogos taliban, ou em Jacarta ou Kuala Lumpur. E, muito menos, poderemos
presumir que essa pretendida unidade tenha uma qualquer permanência, seja
minimamente concertada, ou de algum modo actue de forma eficaz nos palcos
internacionais. Ao cometer a imprudência de dar crédito a estas asserções,
50
A convicção da iminência de uma “reforma” islâmica, longe de ser uma especulação “selva-
gem”, é muito geral e é desde há muito anos partilhada por inúmeros analistas e observadores de
coisas muçulmanas. Está, talvez, posicionada a meio caminho entre uma extrapolação comparativa
linear e o puro wishful thinking. Para uma sua versão moderna cautelosa, é interessante a leitura do
esplêndido ensaio, que atrás referi, de E. Gellner (1992), no qual o notável especialista britânico
aborda e entrelaça a Razão, o efémero pós-modernismo, e o Islão. No que toca à importância
crescente das comunidades das diásporas, ver N. Tiesler (1999) e M. Tozi (1997), ambos atentos ao
seu poder criativo e regenerador. Tanto Tiesler como Tozi, a primeira alemã de origem protestante,
o segundo muçulmano marroquino, piscam o olho à eventualidade de um movimento de reforma
modernizante a ter início nas comunidades emigrantes hoje a residir no Mundo não- muçulmano.
Não me surpreenderia se essa reforma viesse a ter origem onde menos pode parecer plausível: no
Irão.
51
Será difícil sobrestimar a importância do pequeno livro de B. Anderson (1991) para uma
melhor compreensão das “condições de pensabilidade” a que estão sujeitas noções de comunidade
(como, por exemplo, a de Nação). Uma lufada de ar fresco no conjunto, já densíssimo, dos estudos
recentes sobre o nacionalismo e a construção nacional.
66
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Huntington perde de vista um facto bem mais interessante: a evidência de que
a unidade muçulmana imaginada é uma simples figura relacional de afirmação,
numa transição dolorosa e voraz para uma nova ordem internacional pós-westphaliana; de que essa unidade é, no fundo, uma fabricação (construtivista
sem dúvida, mas conjuntural) de uma certa agenda política; e de que se trata de
uma formulação puramente utópica.
Com as devidas alterações, o mesmo se poderia dizer no que toca às outras
chamadas “civilizações”. Todas são construções, objectos culturais mais do que,
em sentido estrito, descrições sócio-históricas ou políticas. São instrumentos.
Fica, no entanto, uma questão em aberto: se tais unidades não têm efectiva
“realidade”, pelo menos enquanto peças de uma descrição objectiva da ordem
internacional, como explicar a persistência e o aparente crescendo de numerosas
“guerras culturais”, ou religiosas, nos palcos internacionais contemporâneos? O
problema é especialmente pertinente, dado que a plausibilidade (senão o apelo)
do paradigma huntingtoniano se funda, precisamente, nessa hipotética
constatação. É com efeito difícil tomar contacto com a tese de Huntington sem
que se produza um considerável “efeito de revelação”. Dos conflitos endémicos
entre a Índia e o Paquistão (quanto a Cachemira, ou relativamente a aviões
“desviados” para aeroportos afegãos) às escaramuças entre muçulmanos e cristãos na Indonésia, da intransigência mútua entre russos e chechenos ao terrorismo que assola todo o Mundo, passando pelas disputas na Irlanda do Norte entre
católicos e protestantes e as lutas mais artesanais pelos “direitos indígenas” que
cada dia alastram e ganham fôlego, o Mundo de hoje parece oferecer um nunca
acabar de corroborações que o modelo simples e estilizado de Huntington
parece tão apto a “explicar”.
Mas fá-lo-á verdadeiramente? Creio que não. O relativismo que está no
Espírito do Tempo, os nossos medos e as nossas expectativas, são as forças que
verdadeiramente produzem esse efeito; trata-se de uma mera ressonância “ideológica” com as nossas convicções prévias. Verificar empiricamente anomalias na
tese huntingtoniana, não é complicado. Se nalguns desses conflitos espreitam de
facto “guerras culturais” ou religiosas (o que não é surpreendente, dado exactamente esse Zeitgeist), é imprescindível ter presente que a grande maioria o não
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
67
são. Nuns casos (a Rússia e a Chechénia, por exemplo; ou os massacres recentes
perpetrados por indónesios no grande arquipélago sudeste asiático, das Molucas
a Lombok), são no essencial lutas entre elites levadas a cabo por entrepostas
pessoas. Noutros casos (o da Índia e do Paquistão, ou as disputas por indigenous
rights) trata-se de meros subprodutos da arbitrariedade do traçado de fronteiras
políticas, em cujo interior muitos Estados exercem o seu poder soberano. Nalguns (o caso da Irlanda é um destes) nem sequer podemos falar em quaisquer
“civilizações”, já que tanto protestantes quanto católicos, na arrumação
huntigtoniana, estão obviamente do mesmo lado das barricadas postuladas:
todos são Western.
Explicações alternativas são não só possíveis mas, também, evidentes. Seria
laborioso entrar em detalhes relativamente a disputas muito diferentes umas das
outras. Mas que exibem, em todo o caso, denominadores comuns. Para quase
todas as instâncias contemporâneas aduzidas, com efeito, é apropriado sublinhar
evidências factuais como as seguintes: dois terços dos conflitos actualmente
ateados, e em consumação mais ou menos branda, são guerras civis separatistas
típicas. Vivemos todavia num Mundo52 no qual só dez por cento dos Estados
podem invocar ser etnicamente homogéneos; e em que só metade dos Estados
existentes conta o grupo etnolinguístico maioritário (e, em geral, dominante)
com mais de três quartos do total da população. Acresce, como ouvi Oliver
Sparrow (Director do Royal Institute for International Affairs britânico) lamentar
numa entrevista dada em finais do passado mês de Janeiro à BBC, que no
decurso do século XX houve 290 milhões de vítimas directas de conflitos violentos, dos quais um total aterrador de 170 milhões foram “mortos pelos seus próprios
Estados”.
Mais ainda: muitos das chamadas “guerras culturais”, ou das fault-line wars,
eclodem efectivamente ao longo das “fronteiras sangrentas do Islão”, sobretudo
porventura nas frentes mais proselitistas, ou naqueles pontos em que muçulmanos mais se sentem acossados pelos seus inimigos tradicionais: os animistas e os
52
No que toca a estes e outros dados quantitativos, bem como para uma análise geral do que
ele chama uma hybrid World Order, ver as últimas páginas do magnífico texto introdutório, já citado,
de J. Nye (1997: 191-194).
68
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cristãos. E se bem que muitos conflitos não ocorram por enquanto ao redor da
China, a clausura e o exclusivismo que lhe tem sido habitual adicionam-se neste
caso a um crescente imperialismo regional para servir de alerta aos mais atentos.
Com algum recuo é óbvio que tudo isto escapa à tese huntingtoniana: mas que,
num relance, pode parecer militar a favor do seu paradigma, sobretudo se
estivermos predispostos (historicamente, por exemplo) a temer a diversidade, os
muçulmanos, os cristãos, os animistas, ou os chineses. Trata-se porém de questões evidentemente melhor abordadas caso a caso. Porque é claro que em todos
estes casos, outras questões que não as “civilizacionais” entram em jogo. E note-se que de maneira nenhuma se trata, nestes exemplos, de questões marginais,
ou secundárias, para uma compreensão da ordem internacional. Representam,
quero insistir, parcelas absolutamente primordiais para uma qualquer explicação
cabal da dinâmica do sistema.
Não é obviamente minha intenção sugerir que os conflitos típicos de que
hoje em dia somos espectadores (e quantas vezes participantes) decorrem de um
qualquer exclusivismo étnico primordial, ou que seriam efeito secundário de
defeitos “genéticos” dos Estados. Nem que “muçulmanos” ou “chineses” sejam, por
natureza, gente mais agressiva ou truculenta. Hipóteses catastrofistas destes
tipos (ainda que de alguma verosimilhança residual) são, sem qualquer dúvida,
muitíssimo fáceis de refutar com contra-exemplos. Aquilo que pretendo é chamar a atenção para o contexto específico dessas “pré-formatações”: há que
manter presente que (feliz ou infelizmente, provavelmente feliz e infelizmente)
assistimos, no Mundo contemporâneo, a mudanças alucinantemente rápidas;
transformações registadas a vários níveis, inovações múltiplas contra as quais são
muitos os que reagem mal e muitas vezes com um conservadorismo agressivo e
violento. Mudanças incorridas que, ao induzir alterações nas configurações sociais anteriores, favorecem novas afirmações relacionais fervorosas. E não podemos esquecer que uma das armas que temos disponíveis para resistir, para fazer
frente a mudanças, é precisamente a de “imaginar comunidades” retalhando
identidades e refazendo fronteiras e linhas de divisão.
Que outros o façam não é, infelizmente, controlável. Que o façamos nós, é.
O risco incorrido é o de que o paradigma huntigtoniano se preste a poder ser
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
69
arvorado (decerto à contre sens) como uma das justificações dadas para novas
exclusões, investindo-as assim de mais uma aura legitimadora: a de mitos já
antigos, mas agora sedutoramente vestidos com roupagens académicas à la
page.
6.
No que precede, preocupei-me com alguns dos pressupostos menos polémicos de Samuel Huntington nos seus Clash of Civilizations. Nomeadamente, com a
sua presunção central: a de que seria exequível circunscrever “civilizações”, enquanto unidades de conta do sistema internacional. Acima de tudo, tentei além
disso mostrar a estreiteza de um modelo (no essencial) estático para explicar uma
ordem internacional cada vez mais caracterizada pelo dinamismo. Num trabalho
anterior, já citado53, tomei como tópicos preferenciais a ambivalência, a um
tempo centrífuga e centrípeta, da progressão contemporânea nos palcos mundiais: uma interacção dinâmica activada pelo jogo de processos como a
globalização e a tribalização, respectivamente. Nesse contexto, insisti nos déficits
metodológicos da análise de Huntington; na sua alguma pobreza teórica, por
exemplo no que diz nomeadamente respeito a noções como as de religião,
etnicidade ou nacionalismo. A nível do dispositivo explanatório utilizado por
Huntington, uma pobreza aliada à excessiva secundarização para a qual o
paradigma relega a clássica power politics. Na presente comunicação, troquei
esse acento tónico por outro dele complementar. A minha atenção, agora de
acordo com preocupações mais “liberais” e menos “neo-realistas”, tem permanecido sobretudo focada na descontextualização genérica de que o notável trabalho de Huntington me parece sofrer. Para o efeito, retomei aliás algumas das
linhas de força das minhas ponderações anteriores. Mas fi-lo noutro âmbito:
ensaiei uma reperspectivação mais ampla. Resta-me recapitular.
53
Armando Marques Guedes (1999), op. cit., sobretudo nas suas secções inicial e final, na qual
tentei descrever algumas das regras do moderno jogo de tribalização-globalização.
70
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Simplificando e metaforicamente: num Mundo cada vez mais interdependente, é compreensível que grupos até aqui assaz senhores de si mas encalhados na situação difícil de estar geográfica e culturalmente próximos uns dos
outros, recorram a afirmações relacionais estridentes. O Jihad de Barber, deste
ponto vista, não é senão (sem qualquer desrespeito, ou desprimor) um momento
passageiro de um género de “política de bairro”, o equivalente funcional (mutatis
mutandis) de uma “agitação de rua” expressa numa aldeia global que implacável
e inexoravelmente vai sendo erigida por pressões sistémicas. Uma espécie
caricatural de conservadorismo. Uma busca de identidade. E um canto de cisne.
Paradoxalmente, exclusivismos ciosos deste tipo têm muitas vezes o efeito
perverso de agravar as coisas: protestos violentos e separatistas54 desencadeiam
por via de regra reacções generalizadas, políticas e jurídicas, cuja consequência
é precisamente a de ajudar e acelerar a sedimentação do Mundo globalizado, tão
ferozmente combatido. Na conjuntura actual, exclusivismos separatistas irreconciliáveis são muitas vezes tiros que saem pela culatra.
Nada disto nos deve surpreender. Nem as acções, nem as reacções. A
Modernidade, como tão contagiosamente lhe chamou Anthony Giddens (que a
caracterizou como “uma experiência”), está a alterar o Mundo a olhos vistos. O
que antes eram segmentos e entidades bem localizadas perde-se, hoje, em novos
arranjos de conjunto. A divisão nítida entre um Primeiro, um Segundo e um
Terceiro Mundo, já não é o que porventura foi. A miséria, a corrupção, o crime, e
a desorganização, tradicionalmente vistos como apanágio dos países em vias de
desenvolvimento, podem agora ser encontrados no centro mesmo das grandes
capitais ocidentais. Enquanto que, nos países pobres, elites riquíssimas vivem ao
nível das europeias ou das norte-americanas. As imagens antigas com que nos
54
Para um apelo à moderação (pela compreensão) nas reacções “antiterroristas”, é ainda
refrescante o pequeno estudo de E. R. Leach (1977). Em duas conferências realizadas na Universidade de Edimburgo, Leach como que instalou as traves-mestras das análises sociológicas dos mecanismos conceptuais de exclusão dos “terroristas”. Para um fascinante estudo comparativo do papel
preenchido por perspectivas ideológicas no que diz respeito ao combate ao terrorismo urbano, ver
o artigo de P. Katzenstein (1993) sobre a evolução das normas de segurança interna no Japão e na
Alemanha.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
71
habituámos a representar o Mundo estão velhas; nos novos panoramas, há que
as descartar, ou pelo menos, que as relativizar. Não é por isso estranho e não nos
deve causar surpresa que (com o intuito de evitar sérias dissonâncias cognitivas)
haja quem tente reimpor à força as configurações anteriores, e insista em avançar
para o futuro às arrecuas, com os olhos teimosamente postos num passado que
a distância vai doirando55. De há muito que sabemos haver dois tipos de
Messianismo: o que vê no futuro a Redenção; e aquele que a vê no regresso ao
primordial.
“Sebastianismos” do segundo tipo sossegam-nos muitas vezes sob a guisa
insinuante de uma revelação, uma ficção bem-vinda porque tranquilizante. Os
fundamentalismos no entanto, sejam deste ou do primeiro tipo, têm sempre uma
curta esperança de vida porque não são verdadeiras soluções. Esmeram-se em
respostas demasiado simples e respiram atitudes inconsequentes. Tenderão
rapidamente a esbater as suas cores. Já que a globalização, naturalmente, tem
também sido cultural, tais miragens salvíficas são reacções “místicas” cada vez
menos aceitáveis, mesmo para aqueles em cujo nome ocorrem. A “realidade”
cada vez mais se impõe de acordo com formatos relativamente homogéneos; e
por muito que a encaremos de ângulos e perspectivas diferentes (como sem
dúvida o fazemos) estamos condenados a nos virmos a saber entender, ainda
que isso redunde num simples “concordar em discordar”. Um entendimento
assim, “multivocal,” como diriam os semiólogos, foi já há muito encetado; muitos
são os portugueses que se orgulham de nele termos sido pioneiros. Com avanços
e recuos, é certo, cada vez mais longe, por isso, estamos da fragmentação em
blocos civilizacionais irredutíveis que Huntington advogou estar em alta. Dois
exemplos, mais anedóticos e ilustrativos do que propriamente analíticos, bastarão. Um, relativo à morte de uma notável antropóloga norte-americana, Marjorie
55
Para este e outros pontos conexos, julgo incontornável a leitura do mais recente livro de
Anthony Giddens (1999), uma edição das suas Reith Lectures sobre a globalização; em particular a
secção (ibid.: 36-51) intitulada “tradições”. Apesar de partir de pressupostos bastante diferentes dos
de Giddens, apraz-me verificar que o meu balanço genérico das exigências que a situação de
crescimento cosmopolita contemporâneo nos impõe não é, no essencial, muito diferente daquele
delineado pelo notável sociólogo inglês.
72
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Shostak. Outro, respeitante a uma base de lançamentos de foguetões aventada
há uns anos para a Austrália. Ambos, edificantes. Qualquer deles, uma ilustração
da tendência para um galope dia-a-dia mais acelerado da globalização ética e
normativa que está, com teimosia, a formatar o sistema internacional anárquico.
Em finais de 1996, morreu em Nova Iorque uma investigadora (uma notável
antropóloga) especialista nos bosquímanos!Kung do Botswana. Membro insigne
do muito justamente célebre Kalahari Research Group baseado na Universidade
de Harvard, foi uma feminista famosa pelos seus trabalhos sobre as mulheres san.
Com um cancro fatal diagnosticado, Marjorie Shostak decidiu corajosamente
passar o grosso do tempo de vida que tinha (algumas semanas) entre os nómadas de que tanto gostava, no Kalahari. Gravou conversas no deserto. Voltou para
Nova Iorque e morreu. De entre as conversas transcritas e postumamente
publicadas, destaco uma. Numa noite tranquila à volta de uma fogueira, um
velho!Kung levantou os olhos das flechas de caça cujas pontas estava a recobrir
de veneno (insectos esmagados) e inquiriu, em!Kung: “então e tu, Marjorie, achas
que o O. J. Simpson é culpado, ou inocente?”. Todos podemos imaginar a
gargalhada de encanto de Marjorie Shostak. Uma universalização ética ou um
crescendo nas identificações étnicas transnacionais? A ascendência do McWorld
ou a do Jihad?
O Mundo está mais pequeno do que aquilo que parece. Em 1991, numa
pequena cidade do extremo norte de uma pequena península do Mar de Arafura,
na Austrália (não muito longe de Timor), foi levado a tribunal um caso “moderno”.
Um consórcio russo, ao que parece suspeito de ligações obscuras a uma das
Mafias de Moscovo e São Petersburgo, tencionava construir, em coligação com
know-how técnico britânico e californiano, uma série de gigantescas rampas
privadas para o lançamento de satélites comerciais. Os objectivos eram os de tirar
partido das vantagens da localização equatorial da plataforma espacial, do baixo
preço dos terrenos, e da disponibilidade de um empreendedor Mayor australiano, preocupado com a promoção de investimento em infra-estruturas numa
região economicamente deprimida. O projecto falhou. As causas do fiasco de tão
magna empresa são surpreendentes: um agrupamento de Aborígenes reivindicou, perante as instâncias judiciais da região, que o local seleccionado faria parte
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
73
integrante da Terra dos Sonhos dos seus antepassados, tão importante a nível
das cosmologias tradicionais. O juiz deu-lhes razão. O investimento abortou.
Jihad ou McWorld?
7.
Contra esse pano de fundo, podemos então concluir delineando muito
cursoriamente os contornos de um balanço genérico do paradigma de Samuel
Huntington. No que precede, e pese embora a indubitável sofisticação do modelo do Clash of Civilizations, tentei sublinhar e pôr em relevo algumas das suas
insuficiências. Esbocei-as, em Julho de 1999, em termos largamente avulsos. Fi-lo, nesta comunicação, recorrendo a comparações-contraposições sistemáticas
com o que considero uma modelização mais dinâmica, talvez mais conflitual, e
certamente mais conforme com os factos empíricos. Nos dois casos, esforcei-me
por pôr a tónica na “frugalidade analítica”, chamemos-lhe assim, do paradigma
do notável especialista norte-americano. E não deixei de trazer à tona o que
considero como algumas das dificuldades (que creio serão cada vez maiores) em
gerar previsões plausíveis (ou mesmo interpretações convincentes), com que
depara o paradigma huntingtoniano.
Recapitulando: nas sociedades modernas, e ao invés do que muitos previam,
o boom económico, que alterou para muito melhor o nível de vida da larga
maioria das populações, de maneira alguma levou à secularização, e ainda
menos ao desaparecimento das religiões. Pelo contrário, muitas vezes a religiosidade intensificou-se. A escalada subiu de tom logo que, em Estados delimitados por fronteiras etno-culturais relativamente arbitrárias e implantados num
Mundo cada dia mais interdependente, processos relacionais de afirmação étnico-identitária começaram um empolamento ruidoso e generalizado: sem surpresas (dadas as afinidades intrínsecas existentes), não raramente as religiões têm
servido de veículos para asserções relacionais violentas. Como insisti em Julho de
1999, vivemos rodeados de bombas-relógio deste tipo. E as consequências têm
sido visíveis, com a eclosão de numerosos conflitos étnico-religiosos no Mundo,
74
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sobretudo desde o fim do quadro bipolar que os continha; um enquadramento
que ademais, em simultâneo, atenuava a velocidade dos processos de globalização
que, como vimos, propendem precisamente a potenciar explosões dessas. Não é
surpreendente que, neste género de cenário conjuntural, tanto se tenha
universalizado a “tribalização” como reacção generalizada; e que, por isso mesmo, numa espiral ascendente, o processo de degradação dos relacionamentos
étnico-religiosos se venha ainda hoje como que a alimentar a si próprio.
Daí à precipitada reificação teórica desse processo por modelos
paradigmáticos como o de Huntington, não vai senão um pequeno passo. Que
essa teorização tenha emergido no Ocidente não será grande surpresa. Com
eficácia variável, os “ocidentais” desde há muito que se “inventam” a si próprios
como formando uma “civilização”, um bloco, uma entidade de alguma forma
coerente e dotada de traços distintivos comuns. Tal como de resto, mutatis
mutandis, se “imaginam” os muçulmanos. É milenar, para além disso, a tendência
para a demarcação-oposição mútua (histórica, étnica e religioso-cultural) entre
estes vizinhos desavindos. “Ocidentais” e muçulmanos, em muitos sentidos,
entredefinem-se. E, previsivelmente, a conjuntura actual favorece (sobretudo
em agrupamentos em posições estruturais relativas deste tipo) a circulação de
representações agonísticas polarizadas que insistam na irredutibilidade e na
incomensurabilidade últimas das “entidades em confronto”. A resultante “ideológica” está à vista. Para muitos muçulmanos (quantas vezes para tal acicatados por
elites preocupadas em reter as rédeas do poder em situações imprevisíveis de
mudança acelerada), como decerto para muitos “ocidentais” (e, obviamente, para
muitíssimos “ortodoxos”), “guerras culturais” generalizadas mais do que um risco
são uma inevitabilidade. Este tem sido, por infelicidade, o Zeitgeist.
A meu ver, foi precisamente esse “Espírito do Tempo”, e não a realidade empírica
de uma ordem internacional em formação, aquilo que Huntington tão bem logrou
capturar e cristalizar com o seu paradigma. Num primeiro momento, Huntington
produziu o que chamei um “efeito de revelação”, ao aparentemente disponibilizar
uma arrumação fácil de acontecimentos superficialmente tão policentrados,
complexos e ameaçadores, em termos que tanto se adequam aos nossos pressupostos profundos. Mas, num segundo momento e com algum recuo, a tese
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
75
huntingtoniana não deixou de despertar um sóbrio sentimento de hesitação,
nomeadamente em sectores cosmopolitas ocidentais e “islâmicos”; o perigo
pressentido era de que o paradigma se tornasse numa self-fulfilling prophecy, ao
ser tomado como inevitável. Este risco é decerto cada vez menor. Como tentei
demonstrar por meio de exemplos que alinhei nos termos de contraposições que
me esforcei por encadear a vários níveis, a progressão rapidíssima da
interdependência e da globalização têm vindo a tornar dia-a-dia menos verosímil
o modelo huntingtoniano. O Mundo escapa-lhe cada vez mais.
E o “excesso” do Mundo face a um modelo no essencial redutor e estático
tende a manifestar-se por numerosos processos, e a gerar inúmeros acontecimentos, que parecem “sair em tangente” em relação a este último. Listei alguns
casos disso mesmo. Assumindo todos os riscos que tal implica (mas sem menosprezar as vantagens das conjecturas), não é difícil ilustrá-lo, agora em termos
prospectivos. Quero terminar com uma reperspectivação que, não sendo talvez
muito positiva, será decerto mais construtivista. Propor senão um paradigma,
sempre em riscos de anacronismo numa ordem internacional em transformação
acelerada, pelo menos uma linha de fuga, um horizonte. Uma interpretação de
um alvo em movimento. Por uma questão de coerência, mantenho a atenção
poisada no par soberania-globalização. Como alternativa ao “mapa” huntingtoniano, quero sugerir uma leitura possível dos processos de erosão das soberanias
westphalianas tradicionais, e da globalização em curso. Propor, não tanto um
paradigma, quanto um algoritmo.
Em súmula, e retomando o que disse: da intervenção Aliada no Kosovo ao
affaire da extradição do General Pinochet, da anunciada reforma de fundo das
Nações Unidas à Bósnia-Herzegovina, a Angola, ao centro da África (Ruanda,
Burundi e arredores), à Serra Leoa, à Somália, ao norte e ao sul do Iraque, ao
Cambodja, a Timor-Leste, tem crescido a intrusão da comunidade internacional
em regiões que até aqui o provecto dogma da soberania nacional reservava
como coutadas. Perante uma cada vez mais nítida redimensionação ética e
normativa de um sistema internacional tradicionalmente anárquico, é difícil
evitar a impressão de que uma sua estruturação política se começa enfim a
cristalizar. Não um Leviathan hobbesiano: uma hipotética integração global,
76
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
mesmo que um dia possa vir a ocorrer, ainda está, talvez felizmente, muito longe.
Mas decerto que a cada vez mais intrincada interdependência genérica não se
compadece com a antiga formatação unidimensional, saída da Paz de Westphalia,
em 1648, que sob o peso de tantas vicissitudes a Europa legou ao sistema
internacional que sob sua égide se foi construindo.
Não cabe aqui tentar um qualquer rastreio de um processo tão complexo e
com tantos meandros como esse. Quereria tão-só focar, a traço grosso, um dos seus
aspectos mais relevantes para a minha linha de argumentação. O desmembramento
do Império Otomano, tal como aliás o rescaldo da Primeira Grande Guerra, concorreu para multiplicar no Mundo os Protectorados, regiões e países cuja soberania foi
transferida ou suspensa, e entregue à guarda de outrém. O direito de ingerência
foi, na prática, ampliado. Depois da Segunda Guerra Mundial, o processo seria
retomado: Protectorados foram criados em todos (ou quase todos) os continentes,
sob a égide de um ou outro dos Estados vencedores. Com a luta político-ideológica
que acompanhou a clivagem bipolar, o processo de algum modo estancou. No
percurso, deu-se uma sensível erosão: as descolonizações dos anos 50, 60 e 70 do
século XX pareceram, durante alguns anos, fazer retroceder esses e outros mais
clássicos sistemas de tutela, que tanto a ambição quanto a implacável “balança do
poder” e os mecanismos wilsonianos de collective security tinham distribuído pelos
Estados. Mas as fundações da arquitectura do sistema internacional (a distribuição
neste do poder) não tinham sobrevivido indemnes; uma explicação do Mundo em
termos da lógica dos Estados revelava-se cada dia menos satisfatória. No calor da
Guerra Fria, e sem os benefícios da retrospecção, isso não era porventura óbvio: a
bipolarização dos cenários políticos internos como dos externos acentuou paradoxalmente a imagem do protagonismo destes últimos (ou, em todo o caso, de dois
deles, as “superpotências”) num sistema internacional cada vez mais complexo e
mais interdependente. Vista retrospectivamente, esta progressão, ou melhor esta
retrogressão, talvez tenha no entanto sido mais aparente do que real. Sobretudo
se deixarmos de ver os Estados soberanos como os únicos “verdadeiros” protagonistas de um sistema internacional em que muitos novos actores (dado que a
crescente interdependência se compadece pouco com fronteiras territoriais) têm
vindo a contracenar.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
77
A direcção sugerida pelas mudanças recentes na “ordem internacional” contemporânea (tanto quanto conseguimos entrever um sentido), parece ser persistente. E não é a de um regresso ao passado. Ultrapassados os momentos iniciais
de uma transição que se adivinha prolongada, assente alguma da poeira levantada, vislumbra-se a silhueta de uma nova ordenação; a emergência rápida de uma
nova configuração do sistema internacional em lugar da aritmética de um mero
somatório de Estados ou da geometria de uma coagulação em “blocos civilizacionais”. Antes uma topologia. Um alastrar de novas manchas um pouco por todo o
Mundo, a cobertura de zonas e regiões por uma nova tutela: a de uma comunidade
internacional cada vez mais constrangente, com a qual, por pressões políticas
globalizantes inexoráveis, todos estamos a ser obrigados a cooperar. Não se trata de
verdadeiros Protectorados, já que não são seus atributos nem uma submissão
permanente, nem a anexação por um qualquer Estado (ou agrupamento) mais
poderoso. Não é seu motivo primordial (ou em todo o caso a sua causa primeira)
um eventual interesse de um qualquer grupo em mão-de-obra barata, em recursos naturais valiosos, em maior peso específico próprio, ou em melhor
posicionamento geo-estratégico. Há, antes, um objectivo básico: o de garantir
mínimos normativos que assegurem a integração do agrupamento em que é
levada a cabo a intervenção (ou, pelo contrário, a salvaguarda disso mesmo face
à prepotência do Estado soberano de que faz parte), sem desacatos, numa nova
ordem mundial pós-westphaliana56 em gestação. Não será talvez por isso total-
56
Na obra recente citada, Nye (1997: 192-194) advoga uma mediação interpretativa interes-
sante entre as posições que denomina respectivamente de “liberal” e de “realista”, no que toca à
evolução dos dispositivos de balance of power e dos de collective security, no Mundo pós-bipolarização.
A linha de argumentação de Nye é a seguinte: o potencial wilsoniano liberal implícito em organizações como as Nações Unidas, só agora que terminaram muitos dos bloqueios-veto (tão típicos do
cenário bipolar da Guerra Fria) se está a tornar evidente. Para uma cabal descrição deste “novo
Mundo híbrido”, defende Nye, nem os pressupostos do paradigma liberal nem os dos paradigmas
realistas chegam; há que saber produzir modelos sincréticos mais latos e mais inclusivos. Uma
posição que partilho e que creio rica em implicações. Parece-me interessante, por exemplo, ponderar a hipótese de vir a generalizar-se, neste novo contexto, o conceito de negative sovereignty
desenvolvido pelo já citado canadiano R. Jackson (1990) para dar conta do que chamou os “quasi-Estados” do Terceiro Mundo: Estados que dependem, para a sua própria sobrevivência, do apoio
78
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
mente infundamentado conjecturar que aquilo a que assistimos seja uma efectiva
transformação da estrutura e da natureza da comunidade política internacional,
porventura pela delineação progressiva de um novo “contrato social” fundador.
Sem que tal implique um qualquer utopismo. A interdependência complexa
e a polaridade multidimensional que subtendem a ordem mundial contemporânea acarretam, sem sombra de dúvida, consequências ambivalentes. A
globalização, por outras palavras, tem avessos. Um deles é a marginalidade a que
até aqui tem condenado os que ficam de fora. Outro espelha-se nas desigualdades internas que exponencia. Mas desenrola também frentes boas. Inviabiliza
(pelo menos nesta fase inicial) hegemonias unipolares duradouras. E, pace
Huntington, ao fomentar movimentos de integração-fragmentação, desencoraja
blocos que sejam estáveis em mais do que uma das suas dimensões. O que hoje
lemos, pela negativa, como “ingerências”, “perdas de soberania”, “erosão dos
Estados-nação”, ou “sistemas de tutela” e “soberanias vigiadas”, amanhã talvez
vejamos como primeiro momento, incontornável, de uma narrativa histórica de
construção e criação57. As intervenções “humanitárias” que têm pautado esta
continuado da ajuda externa e de um quadro jurídico internacional consentâneo. Uma situação de
fundo hoje em dia bem mais generalizada, como aqui defendo.
57
Nada disto é particularmente heterodoxo. Inúmeros têm sido os analistas, cá como lá fora,
que têm vindo a equacionar em termos conexos algumas das alterações em curso no Mundo
contemporâneo. Nem esta perspectivação parece exibir particulares afinidades com quaisquer
escolhas político-ideológicas que possamos preferir. Em Portugal, num livro sobre a emergência de
um constitucionalismo europeu publicado alguns meses antes da sua morte repentina, Francisco
Lucas Pires (1997: 14ss.) escreveu sobre a deslocação “para cima”, para uma localização “supra-estadual”, do exercício do poder soberano: aquilo que, muito graficamente, chamou “o transbordo
do poder”. Mais: Lucas Pires previu mesmo a invenção, no século XXI, da “fórmula da passagem de
Estado-dirigente a Estado-subsidiário”(ibid.) que, segundo ele, marca a Modernidade. Noutro lado
do espectro, Boaventura Sousa Santos (1998: 47-48) escreveu também (e também num estilo
inconfundível) sobre “a exigência cosmopolita da reconstrução do espaço-tempo da deliberação
democrática”, que previu irá impor “um novo contrato social…moderno, [que] não pode confinar-se
ao espaço-tempo nacional estatal e deve incluir igualmente os espaços-tempo local, regional e
global”. Talvez a visão estritamente contratualista não seja já a mais adequada. Mas certamente que
a generalização de asserções deste tipo, vindas um pouco de toda a parte, sublinha uma consciência
crescente de que no Estado westphaliano e na soberania à la Jean Bodin, cabem hoje mal muitas das
realidades internacionais intrincadas de um presente cada vez mais globalizado.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
79
passagem de Milénio não são boas nem são más. Talvez nem sejam inevitáveis.
Mas desenham, a luz forte, o Mundo que temos.
Não será muito especulativa (nem particularmente inovadora) esta conjectura. Mas excede claramente todas as previsões geráveis a partir do paradigma
(cada vez mais datado) de Huntington. Assegurar que a lógica sistémica (e a
vontade política), que sancionam e exigem ingerências “policiais” desse tipo, se
consubstanciem na criação progressiva de uma sociedade internacional que seja
democrática e pluralista58, em que a diversidade seja de regra e as identidades
específicas que tenhamos por bem arvorar não sejam nem excluídas nem neutralizadas, um Mundo em todos os recantos do qual vigore o valor supremo da
Liberdade, parecem-me ser as mais meritórias das “guerras culturais” que é
urgente que nos saibamos preparar para empreender.
58
As dimensões disso não têm passado despercebidas. Numa colectânea recente (Lensu e
Fritz, 2000), são aventadas várias modelizações e “soluções” teóricas para um problema inevitável
suscitado pela progressão recente da ordem internacional. Um problema que Lensu enuncia do
seguinte modo: how can we encounter “otherness” or difference in an ethical way? A questão resulta
da situação de claro value pluralism do Mundo em globalização; e redunda na óbvia existência
daquilo que ela apelida de diverse ultimate values (op. cit.: xviii). Segundo a autora senior, a maioria
dos debates entre defensores ocidentais de Direitos Humanos e os adversários não-ocidentais
destes ilustra the fundamental question facing normative theory in International Relations: how to
reconcile value pluralism with an appropriate ethical orientation (good/right/fair/just) (ibid.), num
Mundo no qual as opiniões divergem muito no que toca, nomeadamente, ao conteúdo e extensão
de “valores” básicos e fundamentais desse tipo. Uma postura mais negativa face a esta situação é
igualmente possível. Já no princípio dos anos 90, num curto mas incisivo artigo redigido segundo
uma cartilha mais historicista que sociológica e muito mais político-ideológica que ético-filosófica,
I. Wallerstein (o célebre teórico norte-americano do “Sistema-Mundo”) tinha sublinhado a
inevitabilidade do que chamou cultural resistance, na luta moderna contra the falling away from
liberty and equality; uma contenda que (com algum pessimismo “pré-Huntington”) considerava estar
na ordem do dia, dada a ascensão em flecha do “global” (1991: 105).
80
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Bibliografia
Aguiar, Joaquim (1998), “A crise asiática e as suas repercussões”, Política Internacional
2: 115-141.
Anderson, Ben (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and spread of
nationalism, Verso.
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the World, Ballantine Books, New York.
Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world
community”, em (ed.) Booth, K. e Smith, S. International Relations Theory Today: 90-110,
Cambridge.
Buchholt, Helmut (1998), “Southeast Asia: the way to modernity”, em (ed.) J. Schouten,
A Ásia do Sudeste. História, Cultura e Desenvolvimento: 97-105, Vega.
Bull, Hedley (1977), The Anarchical Society: a study of order in world politics, McMillan,
London.
Chomsky, Noam (1999), The New Military Humanism. Lessons from Kosovo, Pluto
Press, London.
Gellner, Ernest (1992), Postmodernism, Reason and Religion, Routledge, London.
Giddens, Anthony (1999), Runaway World. How globalization is reshaping our lives,
Profile Books, London.
Goldstein, Judith e Keohane, Robert (ed.) (1993), Ideas and Foreign Policy. Beliefs,
institutions and political change. Cornell University Press.
Held, David, McGrew, Anthony, Goldblatt, David e Perraton, David (1999), Global
Transformation. Politics, Economy and Culture, Polity Press.
Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25.
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, 78(2): 35-50.
Jackson, Robert (1990), Quasi-States: sovereignty, international relations and the Third
World, Cambridge University Press
____________ (1993), “The Weight of Ideas in Decolonization: normative change in
international relations”, em (ed.) Goldstein, J. e Keohane, R., op. cit.: 111-139.
Katzenstein, Peter (1993), “Coping with Terrorism: norms and internal security in
Germany and Japan”, em (ed.) Goldstein, J. e Keohane, R., op. cit.: 265-297.
Keohane, Robert (1995), “International Institutions: two approaches”, em Der Derian,
J., International Theory: critical investigations: 279-307, MacMillan, London.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
81
King, Anthony (ed.) (1991), Culture, Globalization and the World-System. Contemporary
conditions for the representation of identity, MacMillan.
Knutsen, Torbjörn (1999), The Rise and Fall of World Orders, Manchester University
Press.
Kolko, Gabriel (2000), “Kosovo, leçons d’une guerre”, Manière de Voir 49: 17-21, Paris.
Krasner, Stephen (1999), Sovereignty: Organized Hypocrisy, Princeton University Press.
Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University
Press.
Lensu, Maria e Fritz, Jan-Stefan (eds.) (2000), Value Pluralism, Normative Theory and
International Relations, Millenium, London.
Linklater, Andrew (1998), The Transformation of Political Community. Ethical
foundations of the post-Westphalian era, Polity Press, Cambridge.
Lucas Pires, Francisco (1997), Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Almedina,
Coimbra.
Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de
Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18(2): 45-79.
Marques Guedes, Armando (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em
Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena.
Nye, Joseph (1991, tradução 1992), “O Mundo pós-Guerra Fria: uma nova ordem no
Mundo?”, Política Internacional 5(1): 79-97.
____________ (1997), Understanding International Conflict. An introduction to theory
and history, Longman.
Ramonet, Ignacio (2000), “Ingérence et Souveraineté”, Géopolitique: 51-55, Paris.
Sousa Santos, Boaventura (1998), Reinventar a Democracia, Gradiva e Fundação
Mário Soares, Lisboa.
Strange, Susan (1996), The Retreat of the State. The diffusion of power in the world
economy, Cambridge University Press.
Tiesler, Nina (1999), “New Social Realities and Religious Consciousness. Theological
concepts of ‘home’ and the cognitive relationship between European Muslims and the
Islamic World”, University of Sussex, trabalho não publicado.
Tozy, Mohamed (1997), “Recomposition identitaire et migration religieuse
internationale. Le cas de jama’at at-tabligh wa da’wa”, Maghreb Studien 10: 259-266,
München.
Wallerstein, Immanuel (1991), “The National and the Universal: can there be such a
thing as world culture?”, em (ed.) King, A., op. cit.: 91-107.
Walz, Kenneth (1959), Man, the State and War: a theoretical analysis, Columbia
University Press.
Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London.
82
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
3. O Funcionamento do Estado em Época de Globalização.
O Transbordo e as Cascatas do Poder59
1.
Há cerca de um ano [ou seja, em 1999] tive o gosto de escrever duas comunicações sobre um assunto aparentado com este, que apresentei noutra instituição,
o Instituto de Altos Estudos Militares. Numa delas, que li num colóquio subordinado ao tema Religiões, Segurança e Defesa, coube-me levar a cabo uma ponderação “neo-realista” (como então a caracterizei60) das célebres teses de Samuel
Huntington sobre o Clash of Civilizations: essa divisão do Mundo em grandes
blocos culturais que, segundo ele, constituiria o pano de fundo de futuras
confrontações, desde que a ordem internacional bipolar se eclipsou com a
dissolução da União Soviética. Na minha segunda palestra, revisitei o mesmo
paradigma huntingtoniano, adoptando, porém, uma perspectiva61 muitíssimo
mais “institucionalista” e “construtivista” nas críticas que então lhe formulei. Nos
dois casos, discordei do modelo tão brilhante e lucidamente proposto pelo
especialista norte-americano; e em ambas as oportunidades contrapus-lhe uma
visão mais “globalista” da ordem internacional emergente. Quero agora retomar
esse tópico, deixando definitivamente de lado (pelo menos para este efeito) a
obra de Huntington.
O tema que aqui trago aflora a chamada globalização. Tenho plena consciência de que se trata de um termo polémico, ambíguo, e bastante carregado e
59
Comunicação apresentada como parte do Curso de Reciclagem dos Auditores do Curso de
Defesa Nacional, na manhã de 19 de Abril de 2001, no Instituto da Defesa Nacional.
60
Armando Marques Guedes (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em Religiões,
Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena.
61
Armando Marques Guedes (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”,
Boletim do Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
83
conotado, que alguns preferem, por uma, outra, ou várias dessas razões, não
utilizar de todo. Devo começar por dizer que questões terminológicas me interessarão muito pouco no que se segue. Sei da importância delas, mas conheço
também os seus limites; a questão, por isso, não me inquieta muito. Não será, em
todo o caso como conceito, mas tão-só como denominação que, por economia de
linguagem, utilizo o vocábulo. A natureza dos objectivos que tenho permite-mo.
Não pretendo empreender uma qualquer ponderação de fundo da sua hipotética natureza essencial, sobre as coordenadas nocionais e porventura políticas das
utilizações que dele são feitas, ou quanto ao seu alcance geral enquanto processo. Mais modestamente, tenho antes por objecto o impacto concreto deste(s)
processo(s) nos Estados contemporâneos. E, mesmo isto, tão-só num sentido
indicativo: não me irei deter em mais do que meia dúzia de “frentes”, até para não
maçar em demasia quem me queira ouvir.
Talvez valha a pena enunciar com clareza o meu intuito nos termos do
método de exposição que aqui vou seguir. Tomarei como pontos pivotais de
referência dois tipos de palco e cenário, duas configurações, (bastante diferentes
uma da outra) da ordem mundial e da organização política no Mundo moderno
contemporâneo. Por um lado, aqueles associados com as relações até há pouco
tempo tradicionais entre Estados, os seus relacionamentos geopolíticos “clássicos”, por assim dizer. Por outro lado, aqueles outros ligados às ordenações
emergentes da política e da governação62 global. Vou, de algum modo, comparar
estas duas conjunturas, a tradicional e a presente63. Nessa comparação, ater-me-
62
Governação é termo que aqui utilizo no sentido de governance, uma palavra inglesa difícil
de traduzir.
63
Uma salvaguarda. No título original desta comunicação, apresentada no Instituto de Defesa
Nacional no dia 19 de Abril de 2001, era feita alusão à “função do Estado”. O que entendi de uma
maneira que convirá que torne explícita. Não vejo que aos Estados incumba uma função especial,
mas sim funções; não quereria em todo o caso restringir as minhas considerações a um qualquer
Estado em particular (o português, por exemplo), mas antes a Estados contemporâneos de vários
tipos; e, por último, encaro função não como missão, mas, em termos mais funcionais, como
“articulação de uma parte com um todo”. Por outras palavras: o meu tema, em boa verdade, é não
“a função do Estado em época de globalização”, mas essencialmente “o funcionamento dos Estados
em época de globalização”. Coisa que, não fugindo ao título proposto (nem sequer levando a cabo,
84
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
-ei a impactos políticos e a impactos jurídicos. Deixo assim largamente de fora
escalas tão centrais como a económica, a cultural, ou, stricto sensu, a militar;
excepto quando estas dimensões (como é tantas vezes o caso) se mostram
indissociáveis de algum dos todos em que me quero deter.
O encadeamento que escolhi para aquilo que irei expor é simples. De uma
forma muito positiva, quereria começar por delinear um breve esboço genérico
daquilo que considero como algumas das principais traves-mestras da ordem
mundial contemporânea. Um esboço de uma ordenação cuja estrutura, devo em
todo o caso vincar, me parece marcada, por um lado, pela multidimensionalidade
e, por outro, pela complexidade. O que proponho aqui tentar levar a cabo, pode
ser visto como de alguma maneira encarar as questões de fora para dentro, por
assim dizer. A partir de uma caracterização estrutural do sistema internacional
contemporâneo (by and large aquele que o fim da Guerra Fria e a implosão da ex-União Soviética nos legaram), gostaria de tentar equacionar algumas das
consequências (umas delas mais notórias, outras porventura menos) impostas,
pela nova ordem internacional em gestação, sobre Estados que na prática vieram
do Mundo anterior. Não vou ser muito ambicioso. Mais do que inovar, ensaiarei
fazer uma arrumação.
Tenho, em relação a estas questões, o que creio ser uma postura moderada.
Como se irá verificar, não sou de opinião que estejamos hoje perante mudanças
tão rápidas e profundas que, em consequência, as fundações elas mesmas da
ordem internacional devam ser imediata e radicalmente revistas. E muito menos
penso que tal esteja a acontecer em direcções previsíveis e unívocas: sejam elas
de uma total integração económica do Mundo, ou de uma criação iminente de
uma comunidade mundial generalizada (o que me parece uma hipótese remota),
stricto sensu, uma verdadeira re-interpretação, já que me ative a uma sua leitura possível), em todo
o caso certamente o modula. As minhas razões para o ter feito são simples de enunciar: pareceu-me
mais interessante (tanto do ponto de vista científico, como do didáctico) e, em termos genéricos,
mais eficaz a esses níveis, ponderar a arquitectura que subjaz às novas estruturas das ordens
nacionais e internacionais, do que produzir um eventual policy paper, não-encomendado, para o
Estado português. Sobretudo, pareceu-me ter sido nesse sentido que o amável convite para estar no
IDN me foi formulado.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
85
contando com ou sem a dominação “imperial” dos Estados Unidos da América
enquanto potência hegemónica. Mas também não acredito muito nas reticências
dos analistas mais cépticos; nomeadamente, nas daqueles que não vêem, no
andar da carruagem, senão uma forma soft de uma internacionalização comparativamente mitigada; nos que se recusam a reconhecer senão um processo
módico, em que blocos comerciais cada vez mais pesados e Estados nacionais
incólumes (pior, alguns deles cada vez mais poderosos e articulados em entidades regionais fortíssimas, sejam elas políticas, económicas, ou civilizacionais)
estejam a manter um Sul (dia-a-dia mais empobrecido e marginalizado) como
um triste cativo das suas conveniências e beneplácito, concedidos ao sabor de
interesses nacionais (estreitos, e por via de regra muito cautelosamente camuflados) de meia dúzia de beneficiários ricos e do Norte. Esta versão das coisas
parece-me exagerada e descabida, parece-me enfermar de um reducionismo
que mais entorpece do que esclarece.
A minha atitude é (penso eu) mais comedida. Partilho do sentimento de que
está de facto em curso uma grande transformação, profunda e não trivial, das
fundações estruturais da ordem internacional. Não é a primeira vez que isso
ocorre, e noutros casos terá tido, nalgumas das suas dimensões, impactos e
consequências maiores64. Nunca porém elas ocorreram com a intensidade ou a
extensão de hoje; e nunca de uma maneira tão sistemática e coordenada. Não
creio, todavia, que as transformações em curso sejam acquis irreversíveis, numa
qualquer narrativa épica de integração-orquestração do panorama dissonante
daquilo que realistas e neo-realistas chamam (na esteira de Thomas Hobbes) a
anarquia internacional65. Nem me parece, aliás, que os Estados contemporâneos
64
Para uma comparação, pormenorizadíssima, do contraste entre as transformações globais
hoje em curso e os seus antecessores históricos avulsos, convém a consulta de D. Held et al. (1999),
sobretudo pp. 32-87 e 414-436. Held demonstra que, tanto quantitativa como qualitativamente,
estão hoje em curso transformações globais coordenadas nunca antes vividas.
65
Para uma elucidação de conceitos básicos como este, de anarquia internacional, é útil a
leitura de Hedley Bull (1977). Para uma defesa acérrima de um hobbesianismo estreito, ver Kenneth
Walz (1959). Para uma crítica mordaz desse reducionismo, ler João Marques de Almeida (1998). Em
Joseph Nye (1997), há uma perspectivação bastante equilibrada do tema geral. Para uma crítica de
86
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tenham vindo, pelo menos em termos absolutos, a perder poder: bem pelo
contrário, têm-no ampliado em quase todas as suas vertentes, ainda que, em
termos relativos66, lhes seja hoje em dia forçada uma partilha deste em várias
direcções, uma repartição forçada que muitas vezes têm tido alguma dificuldade
em digerir.
A minha impressão é compósita, por assim dizer. O que me parece, isso sim,
é que, por via dessa transformação coordenada de fundo da ordenação global que
creio está em curso, estamos a assistir a uma reconfiguração sistemática das
formas tradicionais de soberania dos Estados (mas sem que aquela, ou estes, se
estejam realmente a desvanecer) e a uma profunda reordenação, concomitante,
do sistema vigente de relações internacionais.
Em consequência disto (e como seu corolário): tenho a forte convicção de
que a ordem internacional contemporânea é melhor compreendida como uma
ordenação complexa, multidimensionada (e, por isso mesmo, compreensivelmente muito contestada), de interdependências crescentes; uma ordem com
que o clássico sistema internacional de Estados (a tradicional ordem westphaliana)
convive mal; e uma ordem na qual os Estados se apresentam como cada vez mais
imbricados em teias regionais e globais de todo o tipo, que os atravessam e lhes
são muitas vezes transversais.
fundo, de muito mais fôlego, convém ver o amplíssimo estudo de Andrew Linklater (1998), cujo
pressuposto de base é exactamente o de uma transformação, no sentido do alargamento, das
“comunidades políticas” na ordem internacional contemporânea, logrando porventura uma
reformulação crítica habermasiana profunda daquilo a que o seu mentor académico na London
School of Economics, Hedley Bull, chamava (como abaixo iremos ver) the new medievalism. É interessante notar que muitos autores, nomeadamente David Held (1999), falam em termos de “democratizar e civilizar a anarquia”, quando se referem aos processos de globalização.
66
Para uma esplêndida discussão deste ponto, que inclui uma viva denúncia do utopismo
daqueles que quereriam ver na linha de horizonte um fim precoce dos Estados, é imprescindível a
leitura do tão citado artigo recente de Michael Mann (1999). Num mesmo sentido, e para uma
análise geral do que ele chama uma hybrid World Order, ver as últimas páginas do magnífico texto
introdutório de J. Nye (1997: 191-194) sobre a natureza do sistema contemporâneo de relações
internacionais.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
87
2.
Justifica-se decerto esmiuçar um pouco tudo o que acabei de afirmar em
termos tão categóricos, ainda que fazendo-o apenas a traço grosso. Delinear,
para aquilo que observamos no Mundo, a mecânica de um modelo generativo.
Propor, para a análise da globalização, uma morfologia e uma fisiologia, por
assim dizer. Para repetir, sem grandes alterações, o que escrevi há cerca de um
ano, em 1999: vários são os pares de forças em tensão, representemo-lo assim,
que me parecem subjazer à configuração de relações segundo a qual reconhecemos neste momento a dinâmica característica daquilo a que se convencionou
chamar a “ordem internacional”67. Trata-se de forças por vezes antagónicas, que
não raramente competem e se degladiam e que talvez por comodidade convenha conceber como constituindo “campos de forças” (como decerto diriam as
personagens de outras ordens internacionais imensamente mais amplas, como a
do Império Galáctico do Star Wars); campos esses que constrangem as formas, e
os blocos, que vão emergindo e as configurações que se vão cristalizando (sem
necessariamente muito durarem…) nos palcos mundiais contemporâneos. E são
forças e campos que, naturalmente, não deixam de exercer pressões enormes
sobre a própria natureza e estrutura (e logo a forma ela mesma) dos Estados, até
há bem pouco tempo os únicos verdadeiramente consequentes elementos de
um sistema internacional hoje a incorrer em enormes transformações.
Pormenorizá-lo mais não é nada complicado. Por uma questão de método,
e antes de entrar em força em questões que se prendem, directamente, com uma
ponderação de pormenor de parcelas da interacção estrutural dos Estados contemporâneos com o sistema internacional, talvez valha a pena começar por uma
espécie de retrato-robot da mecânica dos processos que entrevejo. Para simplificar, não vou trazer aqui mais de duas ilustrações (das várias possíveis), das
numerosas tensões estruturais que subjazem ao sistema internacional pós-bipolarização.
67
Para uma colectânea relativamente recente sobre questões conexas, é recomendável a
leitura de (eds.) T. V. Paul e J. A. Hall (1999), International Order and the Future of World Politics.
88
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Temos assim um binómio (apelidemo-lo de Jihad versus McWorld, para
utilizar a terminologia vívida e gráfica de Benjamin Barber68) que se manifesta,
por exemplo, pela competição entre a visão westphaliana clássica de um imperium
pouco questionado da soberania e autonomia dos Estados, por um lado; e, por
outro lado, pelas incontornáveis interdependências de todo o tipo a que temos
vindo a chamar globalização, que têm conduzido ao seu questionamento
endémico. Uma das imagens da contemporaneidade: a homogeneização e a
tribalização são posturas de estilo assumidas num duro degládio, num pas de
deux sofisticado que na última dezena de anos tem subido à cena. O que tem
alguma razão de ser empírica, já que são tendências que têm efectivamente
tomado a ribalta em arenas de um conflito de fundo com várias frentes, uma
tensão cuja resultante geral, a nível de uma forma renovada para os Estados, não
é talvez ainda óbvia. Mas trata-se, como veremos, de um conflito charneira, de
uma disputa crucial que actua de maneira decisiva nas reconfigurações de
natureza e estrutura a que os Estados modernos se tem vindo a ver sujeitos na
reordenação global das coisas que julgo estar em curso.
Aludirei também a mais, no que se segue. Para um qualquer observador
atento, destacam-se, no Mundo de hoje, os fossos escavados entre os Estados
clássicos e diversos dos novos actores internacionais, e entre antigas e mais
recentes localizações do poder. Mais uma vez (agora a este outro nível) julgo que
se verificam realmente inovações de monta nos palcos internacionais contemporâneos. São novidades que, no concreto, redundam, por exemplo, em conjunturas de tensão entre velhas alianças e coligações tradicionais e as novas, mais
pragmáticas, que defrontam. Há, pura e simplesmente, mais actores nos novos
palcos internacionais: o cartaz adensou-se. E há novos mecanismos em operação:
o seu elenco também foi enriquecido. Surpreendente seria, convenhamos, se o
enredo da narrativa internacional se tivesse mantido.
E, com efeito, não se manteve. Não é nada difícil perceber porquê. As várias
forças que acabei de apontar obviamente interagem em profusão. Mais ainda:
68
E exposto com maestria na obra de Benjamin Barber (1996), Jihad vs. McWorld. How
globalism and tribalism are reshaping the world.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
89
estes dois grandes pares de oposições (e muitos outros, sem dúvida), cada um
deles com uma dinâmica própria intrínseca (porque em desequilíbrio, ou no que
os engenheiros apelidam de um equilíbrio instável), naturalmente reagem entre
si. Todas estas são tendências, por outras palavras, que se potenciam mutuamente. E aí reside a sua fecundidade, o seu poder construtivo: na sua interacção
cambiante, geram configurações arquitectónicas (figuras virtuais e passageiras,
mas sempre novas) da ordem internacional69. Sugiro que, no que se segue,
retenhamos apenas estes dois pares de oposições, já que interagem em combinações múltiplas e complexas, baseadas em binómios eles próprios complexos.
Não deixa de ser, contudo, interessante o descrevê-la em pormenor. Deixem-me, mais uma vez, começar por delinear dela um primeiro esboço. Sem naturalmente buscar aqui uma qualquer exaustividade, o que não teria cabimento70,
comecemos assim pela tensão soberania-globalização a que em termos genéricos aludi. Uma tensão que resulta do simples facto de cada vez mais as questões
sociopolíticas contemporâneas excederem os âmbitos territoriais circunscritos
69
Configurações que, muitas vezes, nos agrada (ou nos convém, para evitar dissonâncias
cognitivas) reificar, tornar absolutas. Ou que, pelo menos, sentimos durante algum tempo que
podemos com utilidade e justificação erigir em paradigmas. Configurações que, no entanto, são
meras figuras de transição. Que são só, por assim dizer, imagens (ou flashes) fugazes. A New World
Order de que George Bush (pai) tanto falou na altura da Guerra do Golfo, um Mundo aparentemente
unipolar é um exemplo paradigmático desse tipo de reificação; outros serão o Clash of Civilizations
de S. Huntington, ou os múltiplos modelos (mais efémeros) que só viam no Mundo pós-bipolar,
“caos”, “turbulência” e “desordem internacional”.
70
Um maior pormenor quanto aos processos de globalização é oferecido na sinopse do
sociólogo australiano M. Waters (1995). Para uma análise de muito mais minúcia e muito maior
fôlego, ademais exímia, é imprescindível a consulta do magnum opus colectivo de quatro britânicos,
David Held, Anthony McGrew, David Goldblatt, e David Perraton, (1999), intitulado Global
Transformation. Politics, Economy and Culture. No que toca a problemas associados à globalização
económica, é de recomendar o longo artigo técnico de Joaquim Aguiar (1998), que inclui uma
interessante discussão sobre os traços distintivos (e a complexidade) daquilo a que chama a “onda”
actual de globalização. A respeito da emergência de novos actores internacionais, do consequente
retrocesso do monopólio de protagonismo dos Estados e, talvez sobretudo, em relação ao utilíssimo
conceito de structural power, é aconselhável a leitura do último livro, publicado pouco antes da sua
morte, de Susan Strange (1996).
90
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
pelos Estados tradicionais. Vejamo-la primeiro, de modo sucinto (e a título
meramente indicativo) no plano económico-financeiro, que é talvez o mais óbvio
dos pontos de partida. A abertura generalizada de cada vez mais mercados (com
ou sem o antigo GATT, hoje transmutado em OMC), os novos fluxos mercantis
viabilizados por sistemas de transporte cada vez mais eficientes, o desenvolvimento de meios de comunicação e informação que redundam numa contracção
crescente (passe a antinomia grosseira) do espaço (a chamada “abolição da
distância”) e do tempo (a “instantaneidade”), são factos incontornáveis e traços
distintivos da vida moderna. Teorias (mais ou menos mercantilistas) de soberania
económica tornam-se, em consequência, cada vez menos convincentes; estão
até sob ataque concertado, dir-me-ão que oriundo de partes interessadas que
indevidamente se comportam como juízes em causa própria. Talvez. Mas noto
que, mesmo quando são consentidos, os proteccionismos tendem, no Mundo
interdependente contemporâneo, a ter cada vez menos pés para andar. O crescimento explosivo desses novos e tão importantes actores internacionais que
são as empresas transnacionais (“as multinacionais”) aí está, há uma boa quarentena de anos, para o corroborar.
A resultante da interacção dos campos de força de que falei não é porém
apenas essa, de um descentramento centrífugo. Convém também tomar em linha
de conta o acelerar mais recente (pós-bipolarização), daquilo a que Francis
Fukuyama chamou a “common marketização” do Mundo: o congregar de esforços
e de protagonismos em blocos económicos multinacionais (por via de regra
regionais, dada a consequente redução de custos) como a União Europeia, o
MERCOSUL, a NAFTA, a ASEAN, ou o SADCC. E ainda incluir no composto o
crescente comércio electrónico (via Internet, por exemplo) num mercado à escala
planetária, um circuito em que (como Bancos e Bolsas de Valores já tinham há
várias décadas prenunciado) o Sol nunca se põe. Tudo isto redunda afinal numa
constatação fácil: estamos também perante diversas tendências centrípetas em
operação no sistema. E a este processo não se vislumbra em boa verdade
uma qualquer reversão possível, por muito que um slump nos pareça desde há
alguns meses estar a bater à porta. É disso sintomático que há menos de três
anos, em 1998, quando a crise vitimou em série a Tailândia, a Indonésia, a Coreia
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
91
do Sul e o Japão (e que atirou ao tapete os “tigres asiáticos”, ou pelo menos os
denunciou como sendo autênticos “tigres de papel”), a receita foi expedita e
consensual: aquilo que era preciso para resolver o impasse era, no fundo, mais
integração.
Não é só no mundo da economia e das finanças que se sente o confronto
profundo Jihad-McWorld, e as concomitantes tribalização e homogeneização. A
nível político (ou político-militar), tal como a nível sociocultural, a operação de
processos paralelos (e no essencial funcionalmente equivalentes) não é difícil de
detectar. Mais uma vez, limitemo-nos a um curto rastreio: não é só a rápida
universalização de critérios ético-jurídicos (como a dos Direitos Humanos, ou
aquela a que a rápida multiplicação de Tribunais internacionais especiais tem
dado corpo), nem a ruidosa fragmentação tribal, aquilo que está em jogo, a este
nível, à escala planetária. São suscitadas interrogações ao mesmo tempo muito
mais latas e muito mais concretas71 que as que daí advêm. Os problemas são de
raiz, são estruturais. Por um lado, cada vez mais são as questões e crises (da BSE
à hoof and mouth disease, da clonagem humana à exploração espacial e aos
armamentos de destruição maciça, da SIDA ao “buraco do ozono”, do aquecimento global ao terrorismo e aos cartéis da droga) cujas coordenadas de fundo e
cujos pontos de aplicação (e por isso cujas soluções) excedem largamente as
velhas fronteiras dos Estados nacionais.
Os palcos de inúmeros acontecimentos foram de facto ampliados. Questões
como as do acesso a água potável ou a segmentos utilizáveis do espectro
electromagnético requerem, exigem, não só conhecimentos técnicos amplos e
pluridisciplinares, mas ainda a organização de painéis de brain-storming e toma-
71
Para apenas aflorar uma das dimensões destas questões que aqui não abordo, a cultural, cito
John Comaroff (!996: 170), e uma sua perplexidade: where now does, say, Turkish ‘society’ begin and end?
At the borders of Turkey? Or does it take in Berlin? If the latter, which seems undeniable, how do we portray
its topography? What […] is ‘the culture’ of farm workers who spend half a year in Mexico and half a year
in the United States? Where is Senegalese ‘culture’ produced? Paris, Lyon, Marseille, rural Senegal, Dakar? If
all of the above, which appears to be the case, wherein lies its integrity? Indeed, what is ‘it’? E Comaroff
conclui, inasmuch, then, as the contemporary world order is no longer reducible to a nice arrangement of
bounded polities, our spatially centered, conventionally derived constructs will do no more.
92
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
das de decisão que se compadecem mal com restrições paroquiais e circunscrições antigas de competências. As consequências, melhor, as resultantes genéricas? O círculo tende a alargar-se; muitas são as forças que empurram “para cima”.
Mas, paradoxalmente, é por outro lado também verdade que há forças que
“puxam para baixo”, que exigem mais transparência, mais vezes, perante mais
gente, e relativamente a mais coisas. À ampliação ascendente soma-se assim
uma nova subsidiariedade: as melhores (no sentido de as mais legítimas e as mais
acatadas) decisões são aquelas em que maior inclusividade seja conseguida;
mas, em paralelo, parecem ser também aquelas que sejam tomadas mais perto
do utente final. Será isto um sinal de desordem, prenúncio emblemático de
contradições insanáveis, indício de um excesso de democraticidade que desmascara o lugar dos limites do sistema? Julgo que não.
Tocamos aqui no que considero um ponto nevrálgico essencial. Um ponto
que, a meu ver, se prende com a própria natureza e estrutura do conjunto de
processos que, bem ou mal, conformamos como globalização, e que se prende
com as transformações ocorridas e em curso. Uma rápida justaposição torna-o
nítido. Com o fim da bipolarização e a dissolução dos dois grandes blocos
antagónicos, que cautelosamente se entre-olhavam contra um pano de fundo de
países ditos não-alinhados, passou-se quase abruptamente a uma nova ordenação, policentrada e multidimensional, dos palcos internacionais. O Mundo
tornou-se, de repente, mais opaco, como que mais fosco, mais difícil de compreender.
Apesar de num primeiro momento daí ter parecido resultar um Mundo
unipolar, com os Estados Unidos como único hegemon, cedo se verificou esse
modelo não ser muito satisfatório, quanto mais não seja pela sua excessiva
linearidade. Porque, se é indubitável que em termos tecnico-militares veio à tona
na nova ordem uma clara hegemonia norte-americana, a nível económico o
Novo Mundo viu-se forçado a partilhar essa posição de preponderância com a
velha Europa e o novíssimo Japão. Mais grave ainda para esse hipotético modelo
unipolar: todo um variado universo de entidades transnacionais (de corporações
comerciais a instituições financeiras, passando por mafias e grupos terroristas)
constitui um nível suplementar que não olha às fronteiras dos Estados e no qual
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
93
a hegemonia está ainda mais repartida72. Um outro eixo, ou um outro plano,
numa ordem compósita, híbrida. A unipolaridade tem assim de conviver com
multipolaridades diversificadas73 num Mundo cada dia mais complexo porque
como que composto por camadas várias que se entrecruzam.
Confirmar a multidimensionalidade do cenário que vai sendo montado não
é árduo. Por muito convidativa (e retoricamente tentadora) que possa ser a
imagem de uma ordem unipolar, fácil é concordar que tal hipótese não tem
grande correspondência empírica com o observável, pese embora, em 1991,
quando da eclosão da Guerra do Golfo e para quem trazia os olhos habituados
ao Mundo bipolar, a inevitável contraposição nocional que involuntariamente
todos fizemos com a ordem anterior a possa ter sugerido. Não será essa, seguramente, a progressão. Longe de se subdividir em Estados avulsos, e de sobreviver
com placidez à sombra dos Estados Unidos ou de uma qualquer benevolente Pax
Americana, o Mundo pós-bipolarização reordenou-se com rapidez em blocos e
coligações de vários tipos, tamanhos e feitios. Uns, como a ASEAN ou o MERCOSUL,
blocos mais económicos que políticos. Outras, da União Europeia à SADCC,
entidades mais político-económicas do que militares. Outros ainda, como a NATO
ou a UEO, unidades mais político-militares.
Quase todos são unidades, no fundo, associações de Estados, cujos documentos fundadores repudiam explicitamente quaisquer hipóteses de que venha
em seu nome a ser desafiado o estatuto soberano dos seus membros; nas Nações
Unidas são disso um exemplo típico. Como já disse noutro lugar, a excepção é a
União Europeia, num continente mais uma vez pioneiro: na realidade não é uma
federação, uma confederação, ou um simples conglomerado de Estados; parece
tratar-se antes de uma forma nova de governação transnacional em que, volun-
72
Tal como de resto a nível cultural. Não posso deixar de citar D. Held et al. quanto ao que
escreveram na sua obra monumental sobre a globalização (1999: 373): não obstante as transformações contemporâneas, the announcement of the eradication of national cultural differences seems
highly premature.
73
Esta perspectiva não é nova, evidentemente; e é partilhada por autores tão díspares como
Joseph Nye (1997), Susan Strange (1996), e por Samuel Huntington (1999), o célebre autor do Third
Wave e do Clash of Civilizations, que recentemente caracterizou o Mundo como uni-multipolar.
94
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tariamente, os Estados-membros abdicaram de uma parte da sua soberania. Em
todo o caso, estes novos blocos ou coligações têm vindo a assumir um imenso
protagonismo nos novos palcos internacionais.
Como atrás referi, esses conglomerados recentes têm nisso acompanhado o
aparecimento de vários outros novos sujeitos nos cenários da globalização: as
pessoas (os povos) e as organizações não-governamentais (as ONGs), também
elas com um protagonismo crescente e já de um certo peso específico. Em ambos
os casos, note-se, trata-se de entidades explicitamente excluídas dos palcos
westphalianos. Com tudo isto no horizonte, não é decerto de estranhar que o
Mundo se tenha tornado menos fácil de perceber. As alterações foram com efeito
profundas; e foram multifacetadas. Nos diversos exemplos que até aqui forneci,
entidades maiores que os Estados tradicionais foram trazidas à baila. Nestas duas
últimas instâncias que aduzi, trata-se, ao contrário, de entidades menores (pelo
menos no sentido institucional), por assim dizer a um nível hierárquico tradicionalmente tido como abaixo do dos Estados.
Não estamos nisso só perante uma moda; o processo tem uma história longa
e intrincada. Mesmo no que toca ao Direito Internacional, uma evolução no
sentido de essas entidades deixarem de ser tão marginais como da Paz de
Westphalia até aqui, é sensível desde há pelo menos74 um século: com um grande
impulso dado pelo liberalismo de Woodrow Wilson seguido de um segundo
empurrão de Franklin Delano Roosevelt, e outro pelo fim do Mundo pós-bipolar,
tem havido um movimento gradual de distanciamento relativamente ao princípio (westphaliano) de que a soberania dos Estados é um considerando sempre
mais importante que quaisquer desaires que possam ocorrer a indivíduos, grupos, ou associações; movimento esse que tem significado um respeito cada
vez mais regulamentado pela autonomia dos sujeitos individuais, pela da sociedade civil, e que se consubstancia na criação de regimes internacionais cada vez
mais densos e extensos (por exemplo, mas é um exemplo paradigmático) de
74
Já em 1977, Hedley Bull aflorou esta tão nítida evolução do Direito Internacional. É interes-
sante notar, neste contexto, que um dos títulos do último livro de John Rawls, o célebre filósofo do
Direito da Universidade de Harvard, sobre Direito Internacional, é The Law of Peoples.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
95
defesa dos Direitos Humanos, essa figura que o Liberalismo foi repescar no
Cristianismo.
Acresce que estas transformações não se vieram substituir à ordem anterior:
adicionaram-se-lhe. Seria assim um erro presumir, por exemplo, (como muitas
vezes tem infelizmente sido feito) que estamos perante uma erosão, uma diminuição, ou uma verdadeira perda de poder pelos Estados. Representações deste
tipo parecem-me falaciosas75. Porque se é verdade que, em sentido relativo, o
poder dos Estados já não é o único, muitos são os desenvolvimentos dos cenários
globais que não são adequadamente explicáveis nos termos estreitos dessas
imagens de erosão, diminuição, esbatimento, ou apagamento, do poder dos
Estados: seria absurdo, por exemplo, não reconhecer um activismo crescente de
muitos Estados (bi- e multilateralmente) nos domínios económico-financeiros da
globalização, ou no da emigração e da imigração, ou na frente política activa da
criação e institucionalização de formas de governação regional e global. Em
termos absolutos, nunca os Estados tiveram tanto poder, tantas competências e
nunca estas foram tão amplas no seu alcance. Só não o vê quem não queira.
O que me parece verdade, isso sim, é que são cada vez maiores as exigências
que lhes são feitas. Como é certo (e como iremos ver, consequente) que se
alteraram profundamente as condições de exercício dos poderes que lhes são
reconhecidos.
Depois desta primeira demão sobre a natureza das transformações globais
em curso na ordem internacional, viremo-nos agora para a interacção de pormenor entre os Estados contemporâneos e este sistema internacional compósito e
em fluxo.
75
Como escreveram D. Held et al. (1999), op. cit.. 440, a utilização deste tipo de linguagem e
imagens involves a failure to conceptualize adequately the nature of power and its complex manifestations
since it represents a crude zero-sum view of power. No artigo que atrás citei, M. Mann mostra em
pormenor que os Estados contemporâneos detêm, em virtualmente todos os aspectos que sejam
tomados como importantes, muitíssimo mais poder do que os seus antecessores.
96
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
3.
Uma palavra de caução. Não quereria que a visão que aqui propugno fosse
tida como implicando um qualquer pessimismo ou um qualquer utopismo. Pela
simples razão de que os não advogo. A interdependência complexa e a polaridade multidimensional que subtendem a ordem mundial contemporânea acarretam, sem sombra de dúvida, consequências ambivalentes. As transformações
globais têm aspectos bons e outros menos bons. A famigerada globalização, por
outras palavras, tem avessos. E avessos sérios.
Um deles é que muitas das transformações estão longe de ser universais e
estão-no de uma maneira acintosa: a marginalidade a que até aqui tem condenado os que ficam de fora é não raramente radical. Outro espelha-se nas desigualdades internas preexistentes, que muitas vezes tanto exponencia. Mas o processo
de transformações apresenta também (talvez até sobretudo) frentes promissoras.
Inviabiliza (fá-lo pelo menos nesta fase inicial) hegemonias unipolares duradouras. E, pace muitos analistas, sou de opinião que, ao fomentar movimentos de
integração-fragmentação, o processo com que tant bien que mal convivemos,
desencoraja blocos que sejam estáveis em mais do que uma das suas dimensões.
Creio mesmo que alguns dos defeitos que lhe imputamos consubstanciam, em
boa verdade, vantagens. O que não tardará, julgo eu, a manifestar-se com toda a
nitidez: aquilo que hoje lemos de algum modo, pela negativa, como “ingerências”,
como “perdas de soberania”, como “erosão dos Estados-nação”, ou “sistemas de
tutela” e “soberanias vigiadas”, amanhã talvez venhamos a encarar como primeiro
momento, incontornável, de uma narrativa histórica “organicista” de construção e
criação. As intervenções “humanitárias” que pautaram esta fulgurante passagem
de Milénio não são boas nem são más. Talvez nem sejam inevitáveis. Mas desenham, a luz forte, o Mundo concreto que temos.
Repito que nada disto é particularmente heterodoxo. Inúmeros têm sido os
analistas, cá como lá fora, que têm vindo a equacionar em termos conexos
algumas das alterações em curso no Mundo contemporâneo. Nem esta
perspectivação, a meu ver, exibe particulares afinidades com quaisquer escolhas
político-ideológicas que possamos levar a cabo. Para retomar um modelo a que
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
97
há pouco fiz alusão: em Portugal, num trabalho sobre a emergência de um
constitucionalismo europeu publicado alguns meses antes da sua morte repentina, Francisco Lucas Pires76 escreveu com elegância sobre a deslocação “para
cima”, para uma localização “supra-estadual”, do exercício do poder soberano:
aquilo que, muito graficamente, chamou “o transbordo do poder”. Mais: Lucas
Pires previu mesmo a invenção, no século XXI, da “fórmula da passagem de
Estado-dirigente a Estado-subsidiário”77 que, segundo ele, seria a grande marca
da Modernidade.
Num outro lado do espectro, Boaventura Sousa Santos78 escreveu num
sentido confluente (e também num estilo inconfundível) sobre “a exigência
cosmopolita da reconstrução do espaço-tempo da deliberação democrática”, que
previu irá impor “um novo contrato social…moderno, [que] não pode confinar-se ao espaço-tempo nacional estatal e deve incluir igualmente os espaços-tempo local, regional e global”79. Talvez, como insiste Sousa Santos, a visão
estritamente contratualista não seja já a mais adequada; o que é possível que seja
efeito, como defendia Lucas Pires, de uma redefinição do lugar de inserção do
poder. Mas o que é certamente evidente é que uma tal generalização de asserções
deste tipo, vindas um pouco de toda a parte, sublinha a tomada crescente de
consciência, à tradicional esquerda e à tradicional direita, de que, no Estado
westphaliano e na soberania à la Jean Bodin, cabem hoje mal muitas das
realidades internacionais intrincadas de um presente cada vez mais globalizado.
Voltarei a este ponto no final da minha comunicação.
76
Francisco Lucas Pires (1997: 14ss.) Para uma muito interessante discussão desta e de outras
ideias deste malogrado constitucionalista português, é de recomendar a leitura do longo estudo
(curiosamente publicado em forma de recensão) de Duarte Bué Alves (2000), que tem a vantagem
de contextualizar este e outros conceitos no âmbito geral da evolução do pensamento deste
“federalista” europeu; o estudo de Bué Alves, naturalmente, não substitui a leitura de F. Lucas Pires,
servindo de mera introdução-ponderação a parte do seu quadro analítico.
77
(ibid.).
78
Boaventura de Sousa Santos (1998: 47-48). É de sublinhar a grande densidade analítica
(bem como a grande actualidade) das posições de B. De Sousa Santos, aliás tanto nesta como em
várias outras das suas numerosíssimas obras.
79
98
(ibid.).
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A surpresa maior quanto a estas mudanças reside talvez na rapidez com que
tudo isto tem vindo a acontecer: é o que tem sido chamado “a vertigem da
modernidade”, naquilo que Anthony Giddens tão graficamente apelidou de o
nosso runaway world. Mas a grande novidade relativamente aos anos mais
obscuros da Guerra Fria, é efectivamente o verificar que a nossa atitude perante
as transformações não depende já tanto das nossas preferências político-ideológicas “clássicas”. À esquerda e à direita, entre nós como lá fora, houve quem
apoiasse e quem denunciasse a Guerra do Golfo, a intervenção da NATO no
Kosovo, a das tropas multinacionais em Timor ou, para sair da área militar, a
conferência do Rio, os encontros mais recentes de Seattle e Quioto, os meetings
anuais em Davos, ou as cimeiras do G7 (ou do G8, para quem prefira chamar-lhe
isso). O que, insisto, sublinha a cada vez maior inadequação das velhas coordenadas político-ideológicas80 pelas quais durante tantos anos nos pautámos e
regemos, face à nova ordem trazida pelas forças da globalização.
Num Mundo contemporâneo como aquele em que participamos, é
porventura inevitável que algumas (talvez mesmo muitas) das ideias políticas a
que mais nos temos apegado (tradicionalmente centradas, virtualmente em
exclusivo, nos Estados e nas comunidades nacionais) precisem de ser repensadas
e reconfiguradas. As razões para isso abundam. Tal é inevitável, nomeadamente,
se com o vocábulo globalização quisermos fazer referência (como me parece que
devemos) àquele feixe multidimensional de processos (convergentes mas largamente dissociados uns dos outros nos seus ritmos e alcance) que dão corpo a
uma expansão e interconectividade da nossa acção e das nossas actividades, de
tal forma que estas têm passado a incluir quadros de referência supraregionais e
supracontinentais (o que não creio que possamos evitar), para além dos nacio-
80
O que sublinha bem, creio eu, o ponto a que se chegou durante a Guerra Fria num combate
em que ideias e conceitos eram temidos como perigosas armas de guerra E a que alguns, pese
embora o nítido anacronismo, insistem em se apegar. De há muito que é sabido que não largar mãos
de preconceitos é factor de desajustes cognitivos que, de uma ou outra maneira, se acaba por ter
de pagar: there is really no such thing as a free lunch. O tom levemente paranóico de muito do
discurso pós-moderno parece-me ser por vezes pouco mais que uma herança pesada carregada por
Cold Warriors.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
99
nais que enformavam as velhas tradições políticas. Enunciar isto por outras
palavras, e pela positiva, põe-no melhor em evidência: tanto as tradições políticas
nacionais como as legais são postas em cheque de uma maneira radical por um
Mundo caracterizado por políticas globais e por múltiplas polaridades, que exigem
uma governação multidimensionada81. Face à inevitabilidade dos factos, não
querer saber acaba por redundar, na prática, em querer não saber: uma curiosa
estratégia de avestruz que, em política, tem sempre (mais cedo ou mais tarde) um
preço alto.
Com efeito, seja qual for a natureza específica destes desafios fundamentais
e seja qual possa ser a postura que perante eles escolhamos assumir, não parece
fácil (ou sequer sensato) ignorar que a natureza e a qualidade das relações
democráticas entre comunidades são cruciais; que estas estão (quer isso nos
agrade, quer não) densamente imbricadas umas nas outras, e que, se queremos
que tanto a Democracia como as comunidades políticas enraízem e medrem, se
pretendemos que prosperem, então novos mecanismos jurídicos e organizacionais
têm de ser criados para o lograr.
Foi (e é) assim com a União Europeia, será assim num âmbito internacional
mais alargado. Mas, insisto mais uma vez, parecer-me-ia disparatada a ideia de
tirar daqui a ilação de que, a par disto, a dimensão política das comunidades
locais e a das comunidades nacionais esteja a ser (ou vai ser, ou até possa, ou
deva, ser) subsumida pelas novas forças e formas de poder trazidas à baila pela
globalização. Prevejo que vamos, antes, assistir a um sobe-e-desce. Onde há
McWorld há Jihad, e é claro que muitas questões permanecerão no âmbito das
responsabilidades dos governos locais e nacionais, aumentando até quantas
vezes o clamor (eivado de “paroquialismo” mesclado com “provincianismo”,
segundo Benjamin Barber82) de uma maior aproximação entre a governação e os
81
D. Held et al. (1999), op. cit.: 450, num sentido muito próximo (mas fazendo apenas
referência a Estados democráticos), exprimem-no de maneira enxuta e depurada: if we live in a world
marked by global politics and multilayered governance, then the efficacy of national democratic traditions
and national legal traditions are fundamentally challenged.
82
B. Barber (1996): 169. Na tese deste autor norte-americano, o que reputa como “versões
pálidas” dos jihad europeus (dos Jihad na Europa e por europeus) têm, por via de regra, assumido
100
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
governados. Mas porque também é verdade que onde há Jihad há McWorld,
muitas outras questões virão a ser reconhecidas como dizendo respeito (e
devendo por isso fazer parte do acervo das suas respectivas responsabilidades)
a regiões particulares; e outras, ainda, revelar-se-ão globais (para me repetir,
algumas das vicissitudes da ecologia, temas de saúde e genética, problemas de
segurança global, e de regulação – ou de desregulação – económica, etc.),
porque exigem novos arranjos institucionais para lhes fazer face. Ou seja, à
medida que processos fundamentais de governação se irão escapando por entre
os interstícios do Estado “clássico”, as equações e as soluções habituais das
teorizações políticas tradicionais tornar-se-ão cada vez menos pertinentes83. O
que acarreta riscos.
O meu ponto é o seguinte: se esses novos processos e essas novas estruturas
não forem devidamente reconhecidos e tomados em linha de conta, o risco,
inevitável, é o de que mais tarde ou mais cedo venham a saltar por cima dos
mecanismos democráticos tradicionais de regulação e responsabilização. O perigo é iminente84. Enquanto a desterritorialização do poder político não for
plenamente assumida, enquanto os seus novos sujeitos (sublocais, regionais e
globais) não forem reconhecidos e não forem (como dizem os anglo-saxónicos)
devidamente empowered, correr-se-á o risco de estes (que quantas vezes representam as mais poderosas forças geopolíticas nos palcos internacionais contemporâneos) se arrojarem a resolver questões pura e simplesmente em termos dos
seus próprios objectivos estritos e estreitos e sem se deterem senão nos limites
duas formas que se intersectam, e que infelizmente mesmo em Portugal reconhecemos: o
“provincianismo”, que vira as periferias contra os centros; e o “paroquialismo”, que desdenha o
cosmopolita. Para Barber trata-se todavia nestes casos de um Jihad aguado, já que a Europa, bem
posicionada no centro, não é, em sua opinião, senão um fraco microcosmos (e um microcosmos
particularmente anémico) dessas novas confrontações.
83
Para tornar a citar palavras de Held e dos seus co-autores, formuladas no que creio ser
o mesmo sentido, mas relativas apenas aos Estados democráticos: as fundamental processes
of governance escape the categories of the nation-state, the traditional national resolutions of the
key questions of democratic theory and practice look increasingly threadbare (D. Held et al., 1999, op.
cit.: 447).
84
E é também eminente.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
101
das correlações de forças em que, condenados pelas circunstâncias, calhe encontrarem-se embrenhados. Será por outro lado de contar com que muitas entidades façam finca-pé em assumir o protagonismo que julgam ser-lhes devido,
proporcional às novas posições estruturais que detêm no sistema, e que, não lhes
sendo isso concedido, o possam querer exigir à viva força.
Não fazer face a estes riscos, ou não tomar as suas legítimas reinvindicações
em linha de conta, parece-me uma receita para o desastre, para dizer o mínimo.
Há, no eventual desfasamento que tudo isto significa, espaço para posturas
políticas criativas, militantes e cada vez mais mobilizadoras, como os mais
avisados não tardaram (há já alguns anos) a descobrir. Posturas políticas essas
que é imprescindível que comecemos a reconhecer, e relativamente às quais
convém que nos saibamos bem posicionar, já que tocam questões que nos
afectam a todos. Voltarei a aflorar também este outro ponto na parte final da
minha comunicação.
4.
Pormenorizemos o que até aqui foi afirmado. Daquilo que já disse parece
iniludível pelo menos uma implicação: a de que um dos aspectos (eu diria
mesmo, uma das dimensões diacríticas), da crise dos Estados contemporâneos
perante a globalização, se tem vindo a manifestar como uma crise de formatação.
E, aí, talvez seja útil vislumbrá-la como uma crise dupla: a um tempo política e
jurídica.
Razões para isso podemos aduzir muitas; a questão de fundo prende-se
porém porventura (pelo menos em parte) com a incapacidade das fronteiras
territoriais clássicas em circunscrever questões cada vez mais regionais e até
globais, que tem levado à emergência de centros supranacionais (supraestaduais)
de poder. Estes centros são muitas vezes estruturas alternativas que se opõem
aos Estados. Noutros casos, limitam-se a suscitar-lhes novos problemas de difícil
solução. E são uma espécie de metástases: aparecem por todos os lados, por
assim dizer. Trata-se de novos centros de poder ligados à ecologia, a mafias, ao
102
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
comércio da droga, ao terrorismo, à Internet, às emigrações generalizadas, às
novas possibilidades de uma sistemática projecção geográfica da força político-militar, ou a uma deslocalização permanente do capital – sobretudo do financeiro, que de algum modo nasceu nómada. O efeito corrosivo (ou diluente, se
preferirem) que estas inovações exibem é temível. Nenhum Estado (nem mesmo
os mais poderosos) consegue, sozinho, fazer frente aos desafios e às ameaças que
soletram esses múltiplos duelos travados em tempo real. Mais uma vez, as
implicações são óbvias. Às pressões políticas abstractas, que exigem
reconfigurações de peso, soma-se deste modo, por conseguinte, o imperativo
urgente de levar a cabo modificações de fundo nas próprias coordenadas e
especificações da máquina, por assim dizer.
E como se essas razões não bastassem, isto não é tudo. Há outros constrangimentos a actuar. A globalização é centrífuga mas também é centrípeta; funciona em patamares macro, mas não deixa de agir sobre domínios micro. Puxa o
poder para níveis hierárquicos mais altos, mas puxa-o ao mesmo tempo para
outros mais baixos. O resultado está à vista: num sentido simétrico e inverso ao
que atrás esbocei, mas dele complementar, novos centros de poder têm também
vindo a surgir a nível infra-estadual. Redimensionado o enquadramento que os
continha, alteradas as relações de força, as tutelas e os equilíbrios firmes e
estáveis tradicionais, actores políticos antes menores (uns provinciais, outros
sectoriais, todos em todo o caso até aqui subalternos) têm vindo a explodir em
protagonismos inusitados. É o que atrás chamei (a frase não é minha) “a tribalização
do Mundo”. Uma fragmentação que, do meu ponto de vista, redunda na abertura
de novas frentes de luta pela sobrevivência (e pelo protagonismo) da parte de
Estados modernos cada vez mais acossados por pressões sistémicas avassaladoras.
Por causa da globalização, o Estado tem sido vítima de múltiplas pressões
vindas de cima e de baixo, então. As consequências disso, como não podia deixar
de ser, são muitíssimas. Comecemos a arrumá-las. De um ponto de vista político,
tal tem significado alterações no papel dos Estados contemporâneos, que passaram, quase imperceptivelmente, de orgulhosos Estados “autónomos” a mais
modestos Estados “condicionados”, quantas vezes sem a isso se saberem resignar.
E muitas vezes também o insulto parece adicionar-se à injúria. Da triste “exigui-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
103
dade” relativa a que um sistema internacional muito mais interdependente os
condena, muitos Estados “clássicos” assistem impotentes a um aumento em
flecha da porosidade das suas fronteiras e cidadanias, e a modificações de vulto
nos seus perímetros de segurança e nas suas moedas. São poderosos como
nunca, mas vedam-se-lhes muitos dos domínios (que se vinham tornando
coutadas habituais) do seu cioso exercício de soberania. A transição tem não
poucas vezes sido dolorosa e encerra perigos: em termos genéricos, esse “transbordo do poder” (mais uma expressão que faço minha) indicia o (e resulta do)
surgimento de centros de poder político que não aqueles, tradicionais nas
Democracias, legitimados pela participação popular nos moldes herdados dos
finais do século XVIII e inícios do XIX. Aparecem em seu lugar novos lobbies,
novos grupos de pressão e interesses, novos potentados que há que aplacar.
A “pressão política reformatadora” (chamemos-lhe isso) exercida sobre os
Estados contemporâneos é facilmente inteligível em termos estruturais, em
termos da arquitectura do novo sistema internacional. Vejamos como. Nas democracias liberais tradicionais do Mundo westphaliano, tanto a legitimidade como
o consentimento em relação, respectivamente, à governação e aos governos
dependem em larga escala de votos e de processos eleitorais. Tem-se tratado de
uma dependência localizada: as fronteiras nacionais dos Estados têm tradicionalmente traçado a linha de demarcação que inclui ou exclui pessoas de uma
participação activa em decisões85 que irão afectar as suas vidas. Para reiterar o
óbvio, é precisamente aqui que se põe a nova questão de fundo: se muitos dos
processos socioeconómicos, e das consequências das decisões que sobre eles
85
Para uma fundamentação política, baseda na tradição democrática tradicional, do right to be
included in the demos pelo simples facto de ter uma participação permanente na association que lhe
sujaz, ver o texto clássico de Robert Dahl (1989), no seu Democracy and its Critics, sobretudo pp.: 118-131. Para uma fundamentação jurídica deste ponto, é de recomendar a leitura do artigo de Rut
Rubio Marin (1998), publicado na Ratio Juris. Will Kymlicka (1995), o famoso cientista político
canadiano, oferece, na sua monografia intitulada Multicultural Citinzenship. A liberal theory of minority
rights, uma argumentação político-sociológica rigorosa da questão. Para uma perspectivação histórica desses mecanismos de exclusão, creio que o melhor estudo (levado a cabo numa perspectiva
habermasiana) é o de Andrew Linklater (1998), no seu The Transformation of Political Community.
104
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tomamos, transbordam (para usar o termo que é de Francisco Lucas Pires) para
além das fronteiras nacionais, isso põe em cheque categorias básicas como as de
consentimento e legitimidade, e até ideias como a de Democracia. O que é trazido
à cena é a própria natureza e limites do que consideramos uma comunidade
política.
O que está longe de ser inconsequente. Deixem-me tentar rapidamente
demonstrá-lo. Equacionar isto da perspectiva estrita e estreita daquilo que é hoje
a distribuição do poder, permite-nos vislumbrar alguns dos pontos de aplicação
de novas representações político-ideológicas que, sem sombra de dúvida, irão
fazer o seu percurso nos próximos tempos. A adequação das nossas ideias
políticas às novas realidades assim o exigirá. Por exemplo: nem a ideia de
governo nem a de Estado (democráticos ou não) podem hoje em dia, face aos
factos esmagadores da globalização, ser de maneira convincente arvoradas
como adequadas tão-só a comunidades políticas espacialmente bem delimitadas, a Estados-nação do tipo “clássico”. Muitas são as forças e inúmeros os
processos, como vimos, que já não podem em boa verdade ser circunscritos à
área de influência e actuação de uma só das comunidades políticas tradicionais.
Mais, a emergência de entidades novas prenuncia (e indicia) a formação rápida
de uma cada vez menos marginalizável e mais poderosa “sociedade civil internacional”. Insisto: o sistema (westphaliano) composto por uma colecção de Estados
nacionais, mantém-se; mas a sua eficácia (ou talvez melhor, a sua procedência)
está hoje em estreita ressonância relativamente a estruturas e processos
económicos, financeiros, administrativos, jurídicos, políticos, e culturais que em
simultâneo o ultrapassam e constrangem.
Talvez, no entanto, essas pressões de reformatação política sejam mais evidentes na sua acção sobre Estados não democráticos; e na exercida sobre Estados
fracos. Uma olhada rápida sobre boa parte da África contemporânea torna claro
o que estou a querer dizer. Tal como indiquei noutro lugar86, parece-me interessante, por exemplo, ponderar a hipótese de vir a generalizar-se a aplicabilidade,
no novo contexto da globalização, do conceito de negative sovereignty desenvol86
Armando Marques Guedes (2000), op. cit..
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
105
vido pelo canadiano Robert Jackson87 para dar conta do que chamou os “quasi-Estados”, essas entidades existentes um bocadinho por toda a parte no Terceiro
Mundo. Entidades cuja soberania é (et pour cause) definida como negativa: porque
se trata de Estados que dependem, para a sua própria sobrevivência, do apoio
continuado da ajuda externa e de um quadro jurídico e político internacional
consentâneo. Uma situação de deficit hoje em dia cada vez mais generalizada,
desde o fim das “clientelas de sustento e sustentação” (apelidemo-las assim) tão
comuns, dos dois lados, durante o período da bipolarização.
Uma análise pormenorizada recente da operação e consequências, na África
dos anos 90, desta negative sovereignty é-nos oferecida pela leitura dos quatro
estudos comparativos (relativos à Libéria, à Serra Leoa, ao Congo ex-Zaire, e à
Nigéria) publicados pelo norte-americano William Reno88.
O argumento de Reno é simples e fascinante na articulação vislumbrada
(que ele minuciosamente cartografa), do local e do global, nestes quatro casos.
Segundo Reno, o problema principal com que deparam hoje em dia os líderes
dos aparelhos de Estado destes países, é inicialmente logístico-administrativo;
mas torna-se depois, com muita rapidez, político. O fim da Guerra Fria teve para
eles consequências drásticas: à retirada de grande parte da protecção sob que se
albergavam no longo período bipolar, adicionam-se os impactos de ambientes
regionais e globais cada vez mais competitivos e predatórios. Novos contextos
que os Estados “negativamente soberanos”, e os respectivos Chefes de Estado,
não estão de modo nenhum preparados para enfrentar com sucesso. O resultado: um empurrão “para cima”. Como se não bastasse, com isso cresce um controlo
cada vez mais ténue da situação política interna, já que muitos destes Estados
fracos, ou shell States, não têm nem uma tecnologia administrativa nem meios
económico-financeiros para capaz e eficazmente exercer a sua soberania interna.
Ou seja: um puxão “para baixo”.
Em inúmeros casos (e não só nos quatro sobre que escreveu Reno), junta-se
a isto o desafio muito real e palpável constituído pelo poder cada dia maior (e
106
87
Robert Jackson (1990).
88
William Reno (1998).
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cada vez mais ameaçador para o poder central), que opositores políticos internos
vão acumulando. No seu afã de aceder ao poder estes adversários políticos
caracteristicamente recorrem a “ligações directas” às potências circundantes:
nuns casos países vizinhos, noutros agrupamentos etnico-linguísticos irredentistas,
e/ou grupos económicos estrangeiros ligados a plantações (de oleaginosas,
cacau ou café, por exemplo), ou a interesses mineiros (que podem ir da exploração de metais pesados, à extracção de petróleo ou diamantes, nomeadamente).
Tais bases de poder alternativo contam muitas vezes com uma protecção militar
efectiva, um apoio que pode incluir turbas mal armadas mas numerosas, organismos bem treinados de guerrilha, a forças armadas de países das redondezas, ou
até contratos com empresas especializadas como a famosa Executive Outcomes
de génese sul-africana. O Estado (e o Chefe de Estado), para sobreviver, têm de
reagir.
Reno mostra que, tipicamente, fazem-no (dado serem esses os únicos recursos à altura e verdadeiramente disponíveis) jogando o jogo do adversário:
fazendo também eles uma ligação directa aos novos focos actuantes de poder.
Têm nesse jogo uma vantagem: o reconhecimento internacional do seu exercício
de soberania, que no contexto funciona como uma espécie de valor (nacional)
acrescentado. Como representantes de um Estado, tiram disso uma vantagem: o
reconhecimento como “legítimos”. E usam-na. “Alugando a soberania” (para inventar um conceito), lá vão sobrevivendo.
Fazem-no porém a um preço alto: transformam os seus Estados naquilo que
Reno chama warlord States, tornam-se em pouco mais do que primus inter pares,
e efectivamente transmutam (ou pelo menos consideram que o fazem) as instituições estatais em recursos pessoais seus. A nitidez da imagem dispensa, julgo eu,
quaisquer comentários. Trata-se, repito, de exemplos extremos, (mas infelizmente
comuns. São nossos conhecidos vários outros casos, muitos deles também em
África, em que a narrativa adequada variaria muito pouco relativamente a este
enredo básico, que Reno retrata), de pressões políticas profundas advenientes das
forças da globalização a actuar sobre alguns dos Estados contemporâneos.
Não é porém só a nível político que a “pressão reformatadora” se tem feito
sentir. A nível jurídico, ou jurídico-constitucional (decerto um nível mais funda-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
107
mental), não foram menores as consequências: cada vez mais competências se
têm visto deslocadas ou transferidas, e conceitos básicos como os de cidadania
e soberania têm vindo a sofrer distensões, torções, e outras deformações, que
não faziam parte do design de fabrico e para as quais a plasticidade, ou a
resistência, dos materiais de origem talvez não seja a maior. Em termos jurídicos
mais genéricos, essas reconfigurações imprescindíveis (e tantas vezes forçadas)
dão pleno fundamento a afirmações como a seguinte, vinda há bem pouco
tempo de Coimbra: “nenhuma leitura constitucional poderá razoavelmente defender que a supranacionalidade e as amplas e sucessivas deslocações de competências deixaram incólume o Estado constitucional clássico”89. O que os britânicos chamariam decerto um cautious understatement.
A “pressão jurídica reformatadora” (chamemos-lhe também assim) opera a
variadíssimos níveis, e com graus diferentes de eficácia e de visibilidade. Mas não
será talvez exagerado caracterizá-la como uma inundação. Sem me querer alongar demasiado, tocarei (muito ao de leve) apenas duas das suas faces90: a questão
genérica das oscilações e da fragmentação do poder, incluíndo os correlatos
jurídicos desses movimentos; e outra, mais concreta, da eventual inadequação
do próprio formato “constituição” para dar conta das novas realidades emergentes (e a consequente busca dos ditos “substitutos constitucionais”). Começo por
esta última.
As Constituições que ordenam os Estados modernos “clássicos” são instrumentos com uma progressão histórica fascinante. Configuraram, num primeiro
momento, um modelo de relacionamento (em forma de pacto, como no caso da
Constituição norte-americana, de finais do século XVIII) entre um poder central
89
J. J. Gomes Canotilho (1998), Direito Constitucional e Teoria da Constituição: 229, Almedina,
Coimbra.
90
Uma outra questão jurídica interessante, que aqui não irei abordar, diz respeito aos nume-
rosos problemas tecnico-jurídicos ligados à harmonização e à integração de ordens normativas
quantas vezes bastante diferentes umas das outras, e aos riscos e oportunidades que isso representa: para um tratamento minucioso destas questões, é aconselhável a leitura do curto artigo de
Mireille Delmas-Marty, sobre “a mundialização do Direito”, publicado, em 1999, no Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
108
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
e outros poderes mais regionalizados ou especializados. Num segundo momento, deram corpo a uma variação sobre este tema, alterando os seus pontos de
aplicação: passaram as Constituições a de algum modo consagrar uma partilha
de poderes entre o princípio monárquico e o princípio de representação nacional
(sobretudo a partir do século XIX europeu). O parentesco ou a afinidade entre
estes dois momentos parecem-me indubitáveis; em ambos, constituições são o
que ordena as relações existentes de poder.
Os processos de globalização vieram introduzir alterações profundas neste
cenário. O campo e o raio de acção dos Estados, e os domínios que os afectam
e que sobre eles agem, fragmentaram-se, incorreram num fraccionamento; o que
significou redimensionamentos profundos. A fronteira entre o interior e o exterior esbateu-se de maneira notória. O poder tem vindo a mudar de localização,
e dividiu-se materialmente em oscilações verticais (e horizontais) que exigem
marcadíssimas adaptações na estrutura interna dos Estados. O poder e os Estados desterritorializaram os seus múltiplos pontos de intervenção. Os últimos
perderam e ganharam força: no fundo, sofreram algum esmagamento, em virtude dessas pressões de cima para baixo e de baixo para cima (aquilo que muitos
autores anglo-saxónicos caracterizaram como a hard squeeze). O mundo “pós-nacional” (para usar uma frase consensual, utilizada por um número significativo
de constitucionalistas de várias origens91), em muitos sentidos parece constranger os Estados de maneira que porventura torna as Constituições em modelos
pouco adequados às novas formas de distribuição (tanto horizontal como vertical) do poder. Pode-se abrir uma garrafa com um saca-rolhas; com um abre-latas,
não. Alguma coisa terá que mudar. E essa mudança irá ser, em larga escala, no
âmbito constitucional.
Não é particularmente complicada a linha de argumentação seguida por
estes constitucionalistas do “pós-nacional”. A narrativa tem vários passos. De par
91
Para só nomear alguns: Joseph Weiler (Professor da Harvard Law School, hoje em Nova
Iorque), Damian Chalmers (Professor do Law Department da London School of Economics), Joe
Shaw (em transição de Leeds para Manchester), Jurgen Habermas (de Frankfurt), e Miguel Poiares
Maduro (da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, hoje Advogado Europeu). Como
é fácil de verificar, um agrupamento de algum peso.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
109
com os processos de globalização, o poder tem subido e tem descido. Divisões
materiais dele têm vindo a multiplicar-se. A situação é já hoje (certamente é-o
nos Estados democráticos ocidentais92) uma de nítido pluralismo normativo e
sociológico. Instâncias várias, a diversos níveis e com distintos tipos de atribuições, características formais e competências, têm vindo a exercer (em simultâneo
e quantas vezes de forma extraordinariamente eficaz) poderes regulativos. É a
própria figura de Constituição que é posta em causa: pactos ou partilhas são
configurações que dão mal conta de situações de pluralismo multidimensionado
e de fragmentação do poder. No Mundo contemporâneo, tem vindo a ser
defendido, será imprescindível, caso os objectivos se mantiverem de garantir
uma ordenação dos Estados (e parece impensável que deixe de assim ser), que
cada vez mais seja assegurado por substitutos constitucionais o papel que à lei
fundamental tem cabido.
Estes substitutos não são conhecidos, e diferentes analistas têm vindo a
sugerir figurinos diferentes para eles. Alguns preferem modelos de redes de
legitimação tecnocrática e deliberativa93. Outros privilegiam modelos de democracia cosmopolita94. Todos concordam que, quer queiramos quer não, esses
constitutional substitutes estão já a nascer por geração espontânea: como, por
exemplo, a crescente importância da “comitologia” (a proliferação de comités de
peritos nacionais, entidades que dia-a-dia assumem mais poderes reguladores, a
nível muitas vezes transnacional). É mais uma vez a Europa que parece estar a
inovar, na criação de novas formas políticas, na vanguarda emergente de uma
nova ordem internacional. Convenhamos que, se aquilo que está em curso
redundar, realmente num ocaso por substituição do constitucionalismo tradicional do Mundo westphaliano “clássico”, estaremos perante um movimento tectónico
maior. Uma autêntica revolução estrutural.
92
Em muitos dos outros já o é há bastante tempo, ou por uma multicefalia do poder, ou por
pura e simples incapacidade de alguns Estados, como atrás pus em evidência, em administrar os
seus próprios territórios ou em neles exercer plenamente a soberania.
93
Para uma excelente discussão desta subcorrente, é útil a leitura do artigo de Christian
Joerges (1998), que cito na bibliografia.
94
David Held (1999) op. cit., e Andrew Linklater (1998) op. cit., são referências de fundo, no que
toca a esta perspectivação do pós-nacionalismo.
110
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Em termos mais inclusivos e gerais: de uma perspectiva jurídica (e como
poderia porventura ser de esperar), neste como noutros contextos, a progressão
das coisas cedo acertou o passo com a da evolução noutros domínios. As formas
particulares adoptadas têm, nomeadamente, progredido largamente em consonância com o que se verifica no âmbito da política, pese embora a inevitabilidade
de (visto as suas finalidades serem regulativas) as formulações jurídicas tenderem a exibir, por via de regra, um carácter muito mais genérico e normativista do
que as políticas. É mais fácil puxar e impossível empurrar, se estivermos a usar
como utensílio um cordel.
Uma simples tabelação das transformações ocorridas mostra à abundância
o paralelismo a que me refiro. É assim por exemplo óbvio, mesmo para o menos
atento dos observadores, que o squeeze dos Estados (a que antes aludi) se
manifesta como uma tensão, de um ponto de vista jurídico: como uma convivência conflituosa entre, por exemplo, o crescimento, em espiral, de conflitos entre
a fronteira constituída pelo estatuto de competências exclusivo de entidades
infra-estaduais, por um lado e, por outro, a vinculação internacional tradicional
existente a respeito de decisões tomadas por instâncias supra-estaduais. Uma
tensão, esta, que tem sido fonte de inúmeras querelas. Se quisermos vê-lo em
termos mais descritivos: a subsidiariedade (uma das expressões do jihad, como
lhe chamei) causa uma cascata do poder na ordem descendente, mas a ordem
jurídica internacional westphaliana (ainda vigente) não aceita um fraccionamento
da soberania estatal; os Estados são, por conseguinte, “apertados de cima para
baixo”. Na ordem ascendente, mutatis mutandis, a tensão repete-se, mas como
que invertida: o transbordo do poder não é facilmente aceite, nem pela ordem
jurídica “clássica” internacional, nem pela lógica tradicionalmente soberana da
imagem estadual; ambas insistem numa soberania una e indivisível. O que leva
a “apertos”, simultâneos, “de baixo para cima e de cima para baixo”, de que são
alvos e vítimas os Estados “pós-nacionais”, Estados que se vêem condenados,
como o fiambre, a ter de conviver com duas fatias de pão numa sanduíche que
certamente por isso, muitas vezes lhes não abre o apetite.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
111
5.
Para não perder o fio à meada, justifica-se decerto recapitular rapidamente os principais pontos do que até aqui tentei sublinhar. Comecei por um
apanhado geral daquilo que entendo por globalização; e fi-lo no contexto de um
subconjunto significativo das transformações que têm ocorrido na ordem internacional. Por uma questão de nitidez e de comodidade descritiva, equacionei
a discussão em termos de uma comparação simples: uma contraposição sistemática entre a ordem tradicional, ou “clássica” e westphaliana, como tem vindo
a ser denotado, e aquilo que apelidei de nova ordem pós-nacional globalizante, um processo ainda inacabado. Insisti, nesse contexto, na multidimensionalidade das transformações globais em curso, na sua complexidade intrínseca. De par com essas transformações, que os recontextualizam, verifica-se uma
expansão dos poderes dos Estados. Uma tal sobreposição de expansão e
recontextualização não pode senão soletrar um reformulação das condições do
exercício do poder.
Ampliando imagens precisamente aí, propus uma mecânica para o processo
de transformações globais, na perspectiva dos Estados contemporâneos e em
virtude das oscilações verticais a que, aleguei, têm sido sujeitas a localização e a
natureza do poder. E nesse âmbito tentei alinhavar ideias quanto às funções
assumidas pelos Estados contemporâneos em época de globalização: separei, no
breve esboço que sugeri, o nível político do nível jurídico (como será claro, uma
partição de águas de mera conveniência, já que não são instâncias verdadeiramente dissociáveis uma da outra senão a nível analítico), e abordei-os em
paralelo. Em ambos os casos, tentei sublinhar como o funcionamento dos Estados e as transformações a que têm sido sujeitos podem, com utilidade, ser
entrevistos em consonância com as relocalizações, em curso, do poder. Numa
sequência natural, cabe agora projectar hipóteses para o futuro: não tanto num
exercício futurológico (advinhar é sempre uma empresa pouco racional), mas
para assim pôr em evidência linhas de força e tendências aparentes.
Qual será, então, o andar da carruagem, o evoluir das coisas? Antes de
concluir, quero continuar aumentando de algum modo novamente a resolução
112
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
de imagens, agora com uma perspectivação prospectiva. Uma opinião que, não
sendo talvez muito positiva, será decerto construtivista. Propor senão um
paradigma, sempre em riscos de anacronismo numa ordem internacional em
transformação acelerada, pelo menos uma linha de fuga, um horizonte. Uma
interpretação de um alvo em movimento. Um exercício intelectual misturado
com advinhação q. b.. Continuo, naturalmente, focado nas alterações incorridas
pelos Estados contemporâneos face às transformações globais. Por uma questão
de coerência, mantenho a atenção poisada no par soberania-globalização, na
emergência e eficácia de novas localizações (e até formas) de poder e, em termos
mais genéricos, nas dimensões políticas e jurídicas daquilo a que se tem vindo a
chamar globalização. Sem quaisquer pretensões historicistas, mas com risco de
algum estrabismo, mantenho um dos olhos no passado. Como alternativa a
outros “modelos”, quero sugerir uma leitura possível dos processos de erosão das
soberanias westphalianas95 tradicionais, e do alcance da globalização em curso.
95
Razão essa que nem todos aceitam esteja realmente em curso: uma posição céptica deste
tipo é a defendida num estudo monográfico recente pelo justamente célebre neo-realista norte-americano Stephen Krasner (1999). Para Krasner, nada de essencial mudou no Mundo, a nível da
soberania. O argumento de Krasner (simplificando muito) é essencialmente o seguinte: a soberania,
tal como tem sido abordada e interpretada pelos cientistas políticos e pela opinião pública, é uma
ficção manipulada pelos Estados um mito cuja transgressão se tem desde sempre verificado
sistematicamente. A situação contemporânea nisso inova pouco: ao contrário (do seu ponto de
vista) daquilo que alegam “os teóricos da globalização”, para os quais a soberania estaria em
retrocesso. Este autor faz porém distinções finas. Segundo S. Krasner, tem sido bastante cumprida
(ainda que com excepções) a international legal sovereignty ou seja o princípio de que o reconhecimento dela pela comunidade internacional só deve ser concedido a Estados juridicamente independentes. Muito menos respeitada, alega, tem sido no entanto a Westphalian sovereignty, o direito dos
Estados de excluir interferências externas nos seus respectivos territórios. Tem sido assim, argumenta, tanto a nível de direitos das minorias quanto ao de Direitos Humanos, ou ao da economia.
Distinções deste tipo parecem-me artificiais e, no essencial, elaborações secundárias que se esforçam por proteger, por uma pura multiplicação de barreiras, posições teóricas que se sentem
ameaçadas; o resultado é sempre a insinuação de um complot (que, neste caso, Krasner intitula de
“hipocrisia organizada”). Outra distinção fina que creio pouco útil é a de “soberania limitada”,
introduzida pelos juristas oficiais soviéticos para fundamentar intervenções na Europa de Leste e
noutras regiões da sua esfera (real ou desejada) de influência. Estas últimas elaborações secundárias
parecem-me ter visado finalidades pragmáticas de tipo mais “imperial”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
113
Propor repito, não tanto um paradigma quanto um algoritmo; mais do que
esquissar um retrato, aventar uma linha de fuga.
Retomo, no que se segue (com alguns acrescentos menores) aquilo que
escrevi noutro lugar há um ano. Em termos daquilo que os historiadores intitulam
“a longa duração”, o Mundo parece estar de alguma maneira, para lá de óbvios
avanços e recuos, a convergir. Um processo que tem vindo a acelerar. Em súmula:
da intervenção aliada no Kosovo à eventualidade de uma repetição da dose na
Macedónia e ao affaire (ainda não concluído) da extradição e julgamento do
General Pinochet, da anunciada reforma de fundo das Nações Unidas à Bósnia-Herzegovina, a Angola, ao centro da África (Congo, Ruanda, Burundi e arredores),
à Libéria, à Serra Leoa, à Somália, ao norte e ao sul do Iraque, ao Cambodja, a
Timor-Leste, tem crescido a intrusão da comunidade internacional em regiões que
até aqui o provecto dogma da soberania nacional reservava como coutadas.
Perante um cada vez mais nítido redimensionamento ético e normativo de um
sistema internacional tradicionalmente anárquico, é difícil evitar a impressão de
que uma sua estruturação política se começa enfim a cristalizar. Não num Leviathan
hobbesiano: uma hipotética integração global, mesmo que um dia possa vir a
ocorrer, ainda estará, decerto felizmente96, muito longe. Mas seguramente que a
cada vez mais intrincada interdependência generalizada não se compadece com
a antiga formatação unidimensional, saída da Paz de Westphalia, em 1648, que
sob o peso de tantas vicissitudes (e tão sofridamente) a Europa legou ao sistema
internacional que sob sua égide se foi dolorosa e laboriosamente construindo.
Não faria grande sentido ensaiar aqui um levantamento de pormenor de um
processo tão complexo e com tantos meandros como aquele que creio ser
96
É notável, neste contexto, o último livro de Zygmunt Bauman (2001), em que, na esteira,
aliás, da sua obra anterior, é levada a cabo uma crítica devastadora das elegias comunitaristas tão
comuns entre muitos dos círculos bem-pensantes dos panoramas nacionais (e cosmopolitas) contemporâneos. Bauman vê essas elegias como uma mistura sofisticada de formas de má consciência,
reacção à percepção de uma insegurança crescente num Mundo em mudança acelerada, e algum
conservadorismo hiper-individualista. Num artigo menos recente, Chris Brown (1995) traçou, com
alguma mordacidade, a evolução da ideia utópica de uma world community no pensamento político
moderno. A leitura conjunta destes dois textos é fascinante e muito sugestiva.
114
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
possível entrever na ordem internacional hoje em gestação. Quereria tão-só
desenhar, a traço espesso, um dos seus aspectos mais relevantes: o que se prende
com o crescimento daquilo que à falta de melhor termo chamarei “sistemas de
tutela”. Outros exemplos poderiam aqui ser abordados, nomeadamente o crescente peso dos regimes internacionais de Direitos Humanos, ou o crescimento
(mais aos solavancos) de instâncias penais internacionais eficazes. Por razões
logísticas, preferi usar como paradigma o exemplo da progressão dos “sistemas
de tutela” em época de globalização.
O desmembramento do Império Otomano, tal como aliás o terrível rescaldo
da Primeira Grande Guerra, concorreram para multiplicar no Mundo os Protectorados, regiões ou países cuja soberania foi transferida ou suspensa e entregue à
guarda de outrém. O Direito de Ingerência97, antes de algum modo um Direito
97
É curioso notar que um dos momentos de arranque do Direito de Ingerência deu-se na
segunda metade do século XIX (mais precisamente em 1860, 1866 e 1878), a pretexto do
restabelecimento dos Direitos Humanos, e no sentido de alterar as normas constitucionais turcas,
face às matanças e violações grosseiras do que eram tidas como normas básicas de conduta:
intervieram no processo a Síria, Creta, a Bósnia, a Herzegovina e a Macedónia; uma lição da História,
mal aprendida. A Convenção de Genebra, de 1949, faz-lhe alusão. Mas trata-se de um Direito novo.
Os autores anglo-saxónicos parecem oscilar na terminologia a que, para a ele aludir, recorrem: falam
de right to interfere, ou de right to intervene, do mesmo modo que, alterando o ângulo e a
perspectiva, aludem a um duty to meddle ou a um duty of intrusion. Nas línguas latinas, esta
ambiguidade mantém-se, sendo pura esimplesmente traduzida. O que (num como noutro caso)
sublinha com ênfase o carácter inovador deste direito em gestação. Curiosamente, e apesar de o
Tribunal Internacional de Justiça o ter com regularidade reconhecido como um direito positivo,
foram os franceses, através de François Mitterrand, no discurso de Estado que proferiu a 14 de Julho
de 1991 relativamente à protecção dos curdos iraquianos, quem primeiro formalmente declarou
esse novo direito como isso mesmo: um direito positivo. Para uma visão de conjunto, mais ponderada que histórica, ver Mario Bettati (2000). Para uma perspectiva crítica da polivalência desastrosa
de um conceito afim deste, o de “autodeterminação”, ver Paula Escarameia (1993); Escarameia
considera este último como “uma adaptação acrítica” de um “ideal político” para o domínio (“muito
diferente”) do jurídico, que leva a cabo “uma subsumpção” paralisante de “situações factuais” muito
diferentes umas das outras, que vão da resistência iluminista contra as tiranias, às lutas proletárias,
ao anti-colonialismo e ao nacionalismo irredentista; uma “reificação” que, segundo ela, resulta não
só numa gritante falta de eficácia (comum a muito do Direito Internacional), mas ainda no agravamento conjuntural da sua ineficácia pela introdução de novas “vozes” dissonantes, o que, “multipli-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
115
residual, foi, na prática, ampliado. Depois da Segunda Guerra Mundial, como é
bem sabido, o processo da sua ampliação seria retomado: Protectorados foram
criados em todos (ou quase todos) os continentes, sob a égide de um ou outro
dos Estados vencedores. Com as dissensões político-ideológicas que acompanharam a clivagem bipolar, o processo de uma ou outra forma estancou. No
percurso, deu-se uma erosão sensível: as descolonizações dos anos 50, 60 e 70 do
século XX pareceram, durante alguns anos, fazer senão regredir pelo menos
retroceder esses e outros mais clássicos sistemas de tutela, que tanto a ambição
quanto a implacável “balança do poder” (e até os mecanismos wilsonianos de
collective security98) tinham distribuído pelos Estados. Mas em termos cognitivos,
o mal estava feito: para um observador atento, as fundações da arquitectura do
sistema internacional (a distribuição neste do poder) não tinham sobrevivido
totalmente indemnes; uma explicação do Mundo em termos da lógica pura e
simples dos Estados revelava-se, cada dia, menos satisfatória.
No calor escaldante da Guerra Fria, e sem os benefícios da retrospecção, isso
não se tornou porventura muito óbvio: a bipolarização dos cenários políticos
internos, como a dos externos, acentuou paradoxalmente a imagem do
protagonismo destes últimos (ou, em todo o caso, de dois deles, os EUA e a URSS,
as “superpotências” de então), enquanto actores num sistema internacional cada
cando o faccionalismo”, facilita uma fácil neutralização dos discursos que dele fazem uso (op. cit.: 63-83, 153-157). Embora não discorde do raciocínio “crítico” de P. Escarameia, sublinho que a argumentação que aqui desenvolvo não se desbobra em mais do que uma descrição de uma linha de fuga,
sem grandes pretensões analíticas.
98
Não é preciso ser um teórico defensor da globalização para sustentar este ponto. Na obra
relativamente recente atrás citada, J. Nye (1997: 192-194) defende o que considera como uma
mediação interpretativa interessante entre as posições que denomina, respectivamente, de “liberal”
e de “realista”, no que toca à evolução dos dispositivos de balance of power e dos de collective security
no Mundo pós-bipolarização. A linha de argumentação de Nye é a seguinte: o potencial wilsoniano
liberal implícito em organizações como as Nações Unidas, só agora que terminaram muitos dos
bloqueios-veto (tão típicos do cenário bipolar da Guerra Fria) se está a tornar evidente. Para uma
cabal descrição deste “novo Mundo híbrido”, defende Nye, nem os pressupostos do paradigma
liberal nem os dos paradigmas realistas chegam; há que saber produzir modelos sincréticos mais
latos e mais inclusivos. Uma posição que partilho e que creio rica em implicações, como julgo que
a leitura do presente artigo demonstra.
116
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
vez mais complexo porque cada vez mais interdependente e multidimensionado.
Vista retrospectivamente, esta progressão (ou melhor, esta retrogressão) talvez
tenha no entanto sido mais aparente do que real. Sobretudo se deixarmos de ver
os Estados soberanos como os únicos “verdadeiros” protagonistas de um sistema
internacional em que muitas personagens novas (dado que, como antes sublinhei, a crescente interdependência e as oscilações e os novos focos de poder se
compadecem pouco com fronteiras territoriais, a um tempo grandes demais e de
menos num Mundo cada vez mais cosmopolita) têm vindo a contracenar.
Se encaradas com os benefícios da retrospecção, as transformações parecer-nos-ão muito nítidas e porventura inevitáveis. Com efeito, a direcção sugerida
pelas mudanças mais recentes na “ordem internacional” contemporânea (tanto
quanto conseguimos entrever nelas um sentido) parece ser obstinada. E não é a
de um regresso ao passado. Ultrapassados os momentos iniciais de uma transição que se adivinha prolongada, assente alguma da poeira levantada, vislumbra-se a silhueta de uma nova ordenação; a emergência rápida de uma nova
configuração de relações no sistema internacional em lugar da aritmética de um
mero somatório de Estados ou da geometria de uma coagulação em blocos
(económicos, políticos, militares, ou, à la Huntington, “civilizacionais”). Antes uma
topologia. Um alastrar de novas manchas um pouco por todo o Mundo. A
cobertura de zonas e regiões por uma nova tutela: a de uma comunidade
internacional cada vez mais constrangente com a qual, por pressões políticas
globalizantes inexoráveis, todos estamos a ser obrigados99 a cooperar.
99
Uma polémica jusinternacionalista recente, relativa ao alargamento do Direito de ingerên-
cia humanitária, opôs, nas prestigiadas páginas do European Journal of International Law, publicado
em Oxford, Antonio Cassese (1999) e Bruno Simma (1999). O pretexto foi a intervenção da NATO no
Kosovo. Cassesse (outrora Juiz Presidente do Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia,
sediado na Haia), favorável à intervenção da NATO, viu nela um passo decisivo na gestação, que
considera inevitável e desejável, de uma ampliação profunda dos Direitos de Intervenção e Ingerência, sobretudo se o objectivo for a salvaguarda de direitos (os Humanos, neste caso) de sujeitos já
consagrados no Direito Internacional pós-westphaliano; insiste, no entanto, ser imprescindível
estipular condições estritas para que essa ampliação seja legítima, por forma a impedir a sua
intrumentalização, a título de pretexto, por interesses estatais estreitos. Simma assumiu uma
posição mais crítica, embora não inteiramente dissonante da de Cassese. Para Simma, que concor-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
117
Como figuras, não são enxutas. Não se trata da instauração de verdadeiros
Protectorados (no sentido clássico estrito da figura), já que não são seus atributos
nem uma submissão permanente, nem uma verdadeira anexação, e muito menos o ser levada a cabo por um qualquer Estado (ou agrupamento) mais poderoso. Não é seu motivo primordial (ou em todo o caso a sua causa primeira) o
eventual interesse de um qualquer grupo em mão-de-obra barata, em recursos
naturais valiosos, num maior peso específico próprio, ou em melhoria de
posicionamento em termos de segurança e defesa (o que, na época da
bipolarização, era apelidado de interesses e imperativos “geo-estratégicos”). Há,
antes, nesse alastrar de novas manchas, um objectivo básico: o de garantir
mínimos normativos que assegurem a integração do agrupamento em que é
levada a cabo a intervenção (ou, pelo contrário, a salvaguarda face à prepotência
do Estado soberano de que faça parte), sem desacatos, numa nova ordem
mundial pós-westphaliana em gestação. Não será talvez por isso totalmente
infundamentado conjecturar que aquilo a que assistimos seja uma efectiva (e
dou com o recurso à força como ultima ratio no chamou a hard case, não é líquido nem que a
intervenção da NATO tenha sido legal (com argúcia, Simma escreveu que only a thin red line
separates NATO’s action on Kosovo from international legality), nem que possa (ou deva) estabelecer
um precedente, que teme would have an immeasurably […] destructive impact on the universal system
of collective security embodied in the [UN] charter. Uma visão paralela, mas alternativa, é a de Ignacio
Ramonet (2000); outra, mais crítica, fôra a defendida por Noam Chomsky (1999). Uma postura não
muito diferente da de A. Cassese foi a adoptada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi
Annan, e conhecida como a Annan doctrine: uma doutrina formalmente articulada e anunciada
perante a 54.ª reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de Setembro de 1999, com um
tácito objectivo conjuntural: a legitimação da acção no Kosovo (e porventura como forma de
pressão sobre o regime indonésio de então). Annan enunciou a sua doutrina com a insistência de
que intervenções militares unilaterais seriam legítimo, mesmo “na ausência de uma autorização
pronta [prompt]” do Conselho de Segurança, naqueles casos em que “o horror” estiver em curso. Os
países “ocidentais” e alguns dos africanos saudaram a doutrina do Secretário-Geral. Muitos dos
países em vias de desenvolvimento assumiram posturas ambivalentes. Uma oposição veemente
coligou a China, o Vietname, a Indonésia, a Coreia do Norte, a Índia, a Rússia, a Bielorússia, o Iraque,
a Argélia, o México e a Colômbia. A reeleição de Kofi Annan no ano de 2001 parece assegurada,
tendo representantes diplomáticos ocidentais formalizado a sua intenção de votar favoravelmente
a sua recondução, destacando precisamente a importância que atribuem à enunciação, por Annan,
desta doutrina.
118
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
porventura profunda) transformação da estrutura e da natureza da comunidade
política internacional.100
Não será demasiado especulativa (nem particularmente inovadora) esta
tomada de pulso da evolução corrente da ordem internacional. Mas excede
claramente todas as previsões geráveis a partir de paradigmas (cada vez mais
datados) como os dos que persistem em ver no Mundo uma bipolarização (agora
como complot secreto, ou oblíquo, de lobbies económicos, políticos, ou religiosos,
subterrâneos), ou uma ordem unipolar hegemónica norte-americana, ou como
os daqueles que insistem num “fim da História” à la Francis Fukuyama ou num
“choque de civilizações”, na versão Samuel Huntington. E tem consequências,
uma perspectivação destas; ainda que tão-só a nível etico-político. Assegurar que
a lógica sistémica (e a vontade política), que sancionam e exigem ingerências
“policiais” do tipo das que hoje em dia se generalizam um pouco por toda a parte
(e que progrediram, com a surpreendente rapidez de um bom aluno que aprende, sem hesitar, com a experiência, de meras acções de peace-keeping para um
mais musculado peace-enforcement, e tantas vezes agora o inevitável nation-building), se manifestem na criação progressiva de uma sociedade internacional
que seja democrática e pluralista101, em que a diversidade seja de regra e as
100
Que (quem sabe?) pode vir a exigir, como assevera e defende com grande elegância
Boaventura Sousa Santos, a delineação progressiva de um novo “contrato social” refundador.
101
As dificuldades em o conseguir lograr não têm passado despercebidas. Numa colectânea
recente (Lensu e Fritz, 2000), são aventadas várias modelizações e “soluções” teóricas para um
problema inevitável suscitado pela progressão recente da ordem internacional. Um problema que
Lensu enuncia do seguinte modo: how can we encounter “otherness” or difference in an ethical way?
A questão resulta da situação de claro value pluralism do Mundo em globalização; e redunda na
óbvia existência daquilo que ela apelida de diverse ultimate values (op. cit.: xviii). Segundo a autora
senior, a maioria dos debates entre defensores ocidentais de Direitos Humanos e os adversários não-ocidentais destes, ilustra the fundamental question facing normative theory in International Relations:
how to reconcile value pluralism with an appropriate ethical orientation (good/right/fair/just) (ibid.),
num Mundo no qual as opiniões divergem muito no que toca, nomeadamente, ao contéudo e à
extensão de “valores” básicos e fundamentais desse tipo. Assumir uma postura mais negativa face
a esta situação é, como será evidente, igualmente possível. Já no princípio dos anos 90, num curto
mas incisivo artigo redigido segundo uma cartilha mais historicista que sociológica e muito mais
político-ideológica que ético-filosófica, Immanuel Wallerstein (o célebre teórico norte-americano do
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
119
identidades específicas que tenhamos por bem arvorar não se vejam nem
excluídas nem neutralizadas e em que a tranquilidade se respire a par de algum
entusiasmo com o galope desenfreado das mudanças, um Mundo em todos os
recantos do qual vigore o valor supremo da Liberdade, parecem ser as mais
meritórias das batalhas que é urgente que nos saibamos preparar para empreender.
Para essa e questões conexas de novos posicionamentos político-ideológicos me viro, num olhar rápido, na última parte desta já longa comunicação.
6.
Entrevejo três grandes famílias, em fermentação, de novas posturas político-ideológicas activas. Três tendências em rápido crescimento no cadinho do que
intitulei “a nova sociedade civil internacional”. Por comodidade, dar-lhes-ei três
nomes (porque se trata de famílias, talvez seja mais apropriado falar de apelidos):
seguindo uma tradição recente102, denominá-las-ei de internacionalismo liberal,
de comunitarismo radical, e de democracia cosmopolita. Pese embora todas incluam formas activas de acção e intervenção, e todas elas estejam bem implantadas
um pouco por toda a parte, como todas as movimentações políticas umas são
mais agrupamentos que frentes, outras mais movimentos que organizações, de
outro ângulo ainda, por vezes se comportam de maneiras menos e noutras de
maneiras mais unitárias. Nenhuma destas famílias é grandemente homogénea,
ou sequer o pretende ser: nos três casos, vêem-se a si próprias mais como
“Sistema-Mundo”) tinha sublinhado a inevitabilidade do que chamou cultural resistance, na luta
moderna contra the falling away from liberty and equality; uma contenda que Wallerstein considerava estar na ordem do dia, dada a ascensão em flecha do “global” (1991: 105).
102
Na obra citada, por exemplo, D. Held et al. (1999): 414-453, utilizam os termos liberal-
-internationalism, radical republicanism, e global cosmopolitanism. O termo “comunitarismo” parece-me melhor (e mais descritivo) que o de “republicanismo”, para denotar a segunda família das que
identifico. Quanto às outras denominações, o seu uso corresponde, de qualquer maneira, ao de
muitos dos seus proponentes, que com estes termos se identificam.
120
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
projectos e processos do que propriamente como ideologias; já que todas
consideram que quaisquer formas canónicas rapidamente deixariam de se adequar a um Mundo em constante mutação. Nisso aproximam-se bastante da
“desordem ordenada” que (quando olhados de fora para dentro) é sempre a
imagem que todos os processos democráticos103 aparentam ter. Nem todas
defendem sequer o seu empenhamento num verdadeiro esprit de corps próprio,
ou mesmo numa verdadeira e estável identidade, embora também nisso se
distingam entre si. Tal como o Mundo em que se implantam, são formas novas.
Repô-las no contexto que tenho vindo a descrever torna estas famílias
políticas emergentes mais inteligíveis. A ideia de um Estado, de um governo, ou
de um tipo de governação (sejam estes democráticos ou não) não pode hoje, em
sentido estrito (e por meras razões empíricas, quer isso nos agrade quer nos
repugne) pura e simplesmente ser equacionada em relação a comunidades
políticas claramente delimitadas, ou a Estados-nação “clássicos”. Quem vive em
países de pequena ou média dimensão (como é o caso de Portugal) desde há
muito que tem disso uma consciência aguda. E se as comunidades que efectivamente temos (sem falar das que “imaginamos”104) não cabem já em boa verdade
nos limites estreitos definidos para os Estados tradicionais (quanto mais não seja
porque, como vimos, muitas — e cada vez mais — das forças e dos processos que
as constrangem escapam largamente ao seu controlo efectivo), então alguma
103
E, certamente, é-o da perspectiva dos não-democratas, que persistem em nesses termos
lançar críticas tão ferozes como descabidas a um processo (o democrático) que insistem em ver
como um sistema. Como é bem sabido, era esta a pedra de toque da desmontagem que os
propagandistas do Estado Novo se empenharam a levar a cabo quanto aos fundamentos políticos
da I República. Uma versão soft deste viés perpetua-se na perspectiva daqueles que continuam em
ver desordem e “balbúrdia” no que, num tom derrogatório, chamam “os lobbies”, e teimam em tomá-los como parte dos problemas e não como parte da solução para muitos dos impasses da
infelizmente ainda jovem Democracia portuguesa.
104
Para uma discussão brilhante deste conceito (que aí introduziu) de “comunidades políticas
imaginadas”, convém a leitura de Benedict Anderson, (1991), Imagined Communities. Reflections on
the origin and spread of nationalism. Seria interessante ensaiar uma aplicação do método de análise
utilizado por Anderson ao estudo da progressão recente da ideia de uma comunidade global; mais
um texto que, a meu ver, é interessante ler de par com os de Bauman e Brown, que atrás citei.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
121
coisa está de facto a mudar. O Mundo, como todos notamos, mostra-se (bem ou
mal, e muito provavelmente feliz e infelizmente) cada vez, em cada dia, mais
complexo, interdependente, multidimensionado. Os centros de poder estão mais
deslocalizados, mais desterritorializados. A grande questão que no fundo, hoje,
se põe é a de saber onde, e a que nível, em que instâncias, e de que forma, fazer
frente às novas e às velhas questões que nos afectam; e tentar para elas encontrar
soluções. As três famílias políticas que listei dão substância a três projectos
(talvez melhor, a três agendas), parcialmente sobrepostos, de regulação e de
democratização dos processos de transformações globais; e, também, dos papéis, neles, dos Estados. São, no essencial, guiões com que os membros mais
activos da sociedade civil internacional em gestação pretendem “civilizar”, e
“democratizar”, as transformações globais, os processos de globalização.
Identifiquemo-las uma a uma. A família liberal-internacionalista é de algum
modo a que subjaz ao wilsonianismo, ao projecto rooseveltiano de criação do
sistema das Nações Unidas, e às cimeiras de Davos, na Suíça. Trata-se de uma
família heteróclita, para dizer o mínimo. É de matriz no essencial normativa.
Advoga no fundo (e mais ou menos explicitamente) uma transposição, para a
esfera global, da ordem política, económica e normativa da Democracia liberal
estadual “clássica”. As suas palavras-chave são os tradicionais mecanismos de
consulta, a transparência, a responsabilização perante as pessoas, os cidadãos, os
contribuintes. A lógica do sistema que defendem é a de uma racionalidade
individualista e maximizante, na convicção de que todos com isso acabam por
ganhar. Uma das suas formas organizacionais preferidas são os think-tanks,
muitos deles ligados aos Estados, sobretudo no mundo anglo-saxónico. Possuem
lobbies poderosíssimos e muito bem estruturados. Os liberal-internacionalistas
estão bastante bem posicionados, são activos e influentes: vimo-los em Davos,
em Quioto, e em Seattle, nos painéis e nas tribunas de honra, ouvimo-los em
entrevistas nas cadeias de televisão internacionais mais reputadas.
O comunitarismo radical posiciona-se no que, tradicionalmente, chamaríamos um espaço político mais à esquerda. Onde os internacionalistas liberais
propõem reformas, os comunitaristas radicais exigem o empowerment. Fazem-no
seguindo, aliás, princípios republicanos clássicos: por intermédio, ou recurso, à
122
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
criação sistemática de meios alternativos de intervenção e controlo. Os agentes
das mudanças, para estes republicanos comunitaristas105, são agrupamentos (de
ecologistas, New Agers, feministas, pacifistas), apostados em mobilizar solidariedades transnacionais, como formas de resistência cujos objectivos são, por via de
regra, igualitaristas. Muitos comunitaristas radicais opõem-se às soberanias tradicionais, preferindo-lhes formas de autogestão comunitária. A lógica daquilo
por que pugnam tende a ser encarada como uma ética humanista, participativa,
de ligação democrática directa e de partilha. Formam agrupamentos com pouca
coordenação uns com os outros (quantas vezes mesmo, e com grande veemência, antagónicos entre si), mas que vocal e activamente têm feito sentir a sua
presença. Os comunitaristas radicais tornam-se notados. Ouvimo-los e vimo-los
em Seattle, no Rio de Janeiro, em Davos, em Berlim, em Quioto, nos écrans de
todas as televisões do Mundo, em cimeiras alternativas paralelas, em protestos
pacifistas, ou em duras confrontações com a polícia.
O cosmopolitismo democrático contrasta com as duas outras famílias, pelo
menos no sentido de se empenhar em construir (no sentido forte de o estar a
inventar) o seu próprio espaço político. Menos organizada que as duas famílias
anteriores, deve-o ao facto de ser um ponto de confluência de dois movimentos
de criação: é um produto intelectual, elaborado, com compasso e esquadria, por
académicos, em convergência com uma espécie de “ideologia espontânea” comum a uma mistura tão díspar como a formada por elites culturais, minorias
étnicas, e adolescentes. A convergência não é nem acidental, nem efémera. A
cidadania “por camadas” (multilayered) na sociedade democrática do futuro
(parece ser esta, em todo o caso, a convicção partilhada) é uma simples
consequência da evidência de que todos estamos condenados à mais profunda
das multiculturalidades: para além de cidadão de um Estado, cada um de nós irá
participar, em simultâneo, de outras cidadanias, locais, regionais e globais. Como
105
É improvável que os vários subgrupos desta família concordem tanto com a denominação
de “comunitaristas”, como com a de “republicanos”, ainda que não pense que a sua eventual recusa
se deva a mais do que uma forte repugnância por “etiquetagens”, sobretudo se tidas como
“indiferenciadoras” e como “reificações”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
123
essa é a natureza do Mundo em gestação, argumentam alguns dos democratas
cosmopolitas (os outros, sem argumentar seja o que for, limitam-se a senti-lo na
pele), será só quando conseguirmos garantir um pleno acesso a uma cidadania
múltipla: uma cidadania realizada, em simultâneo, em diversas comunidades
políticas (e muitas delas comunidades de diferentes níveis de inclusividade) que
tornará possível assegurar uma participação, um enpowerement face às novas
formas de poder, um pluralismo. Numa palavra, a liberdade. A lógica defendida
acaba por ser a de uma reconceptualização (intelectual ou espontânea, e provavelmente ambas) da autoridade política legítima. O meio mais comummente
proposto para o conseguir, passa por uma desconexão entre essa autoridade e o
seu lugar de inserção “clássico” (os Estados, no interior de territórios fixos e
centralizados), ligando-a, em vez disso (e de algum modo em rede), a vários
níveis que se estão a reconstituir como instâncias paralelas uma às outras e auto-reguladas: comunidades locais, cidades, regiões, Estados, grandes blocos regionais e o global 106. Argumentam os democratas cosmopolitas que essa
deslocalização “para cima”, “para baixo”, e “para o lados”, já começou. Muitos estão
no entanto apostados em tentar intensificar esses processos de difusão e disseminação, na condição de que o processo seja gradual, e envolva a conquista de
novos direitos e deveres democrático-liberais. Defendem, de par uns com os
outros, Estados, organizações internacionais, comunidades locais, e associações
106
Com algum fundamento, muitos dos mais importantes e influentes autores cosmopolitas
democráticos, incluem na sua genealogia intelectual Hedley Bull (1977), um dos progenitores da
escola britânica de Relações Internacionais; nomeadamente, a sua opinião (que data de, pelo
menos, 1977), que estaria a despontar na ordem internacional aquilo a que chamou a new medievalism.
Para citar Bull: it is familiar that sovereign states today share the stage with “other actors”, just as in
medieval times the state had to share the stage with “other associations”…If modern states were to come
to share their authority over their citizens, and their ability to command their loyalties, on the one hand
with regional and world authorities, and on the other hand with sub-state or sub-national authorities, to
such an extent that the concept of sovereignty ceased to be applicable, then a neo-medieval form of
universal political order might be said to have emerged (H. Bull, 1977:254-255). Tanto Andrew Linklater
(1998), como David Held (1999), sem sombra de dúvida os mais famosos dos teóricos do
cosmopolitismo democrático contemporâneo, citam Bull como um antepassado neste contexto
preciso.
124
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
transversais múltiplas. E são activos, nos cenários que privilegiam. Mais do que
isso: os cosmopolitistas democráticos têm poder efectivo. Não os vimos nem os
ouvimos nem em Davos, nem em Seattle, nem em Berlim, nem em Quioto. Mas
será com base no que irão escrever sobre estas cimeiras que sobre elas iremos
formar uma opinião.
Serão porventura estes os principais objectivos das três famílias políticas
com que hoje em dia, face à globalização, deparam os Estados (pelo menos os
Estados democráticos107) contemporâneos: participar numa reforma de fundo da
governação global que está em cristalização, por extensão para fora da sua
ordem política interna tradicional; ceder lugar a uma forma alternativa de
governação que os exclui enquanto sedes do poder ou, pelo menos, secundariza
e vai esbatendo; ou ajudar a reconstruir os termos dessa governação, de acordo
com as novas coordenadas emergentes de um Mundo em época de globalização.
107
Note-se que estas três famílias são famílias “de transbordo”: Mas, como seria de esperar
dada a natureza dos processos de transformações globais, há também outras famílias, simultâneas
e muitas vezes inimigas mortais destas, “de cascata”: e assim é, porque onde há McWorld há Jihad.
Sem querer aqui mais que aflorá-las, não me parece mal a divisão tripartida que (noutro contexto,
e com outras finalidades), John Comaroff (op. cit.: 175-177) delas faz; Comaroff descreve e distingue
os Euronationalists (mais interessados, nas suas elaborações, em chronology do que em cosmology,
muito próximos de um “nacionalismo cívico”), dos ethnonationalists (de fama balcânica e terceiro-mundista, segundo ele, para os quais, cosmology may take precedence over chronology), e ambas
estas famílias da dos heteronationalists, que identifica com a obsession with the practices of
multiculturalism própria dos norte-americanos.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
125
Bibliografia
Aguiar, Joaquim (1998), “A crise asiática e as suas repercussões”, Política Internacional
2: 115-141.
Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and
spread of nationalism, Verso.
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the World, Ballantine Books, New York.
Bauman, Zygmunt (2001), Community. Seeking safety in an insecure world, Polity.
Bettati, Mario (2000), “Théorie et réalité du droit d’ingérence humanitaire”,
Géopolitique 68: 17-27, Paris.
Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world
community”, em (eds.) Booth, K. e Smith, S., International Relations Theory Today: 90-110,
Cambridge.
Bué Alves, Duarte (2000), “Recensão a Francisco Lucas Pires”, Themis, Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa: 293-305.
Bull, Hedley (1977), The Anarchical Society: a study of order in world politics, McMillan,
London.
Cassese, Antonio (1999), “Ex iniuria ius oritur: are we moving towards international
legitimation of forcible humanitarian countermeasures in the world community?”, European
Journal of International Law 10 (1). 23-31, Oxford.
Chomsky, Noam (1999), The New Military Humanism. Lessons from Kosovo, Pluto
Press, London.
Comaroff, John L. (1996), “Ethnicity, nationalism, and the politics of difference in an
Age of Revolution”, em (eds.) E. Wilmsen e P. McAllister, The Politics of Difference, The
University of Chicago Press.
Dahl, Robert (1989), Democracy and its Critics, Yale University Press.
Delmas-Marty, Mireille (1999), “A mundialização do Direito: probabilidades e risco”,
Studia Iuridica 41, Colloquia 3: 131-145, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra.
Escarameia, Paula (1993), Formation of Concepts in International Law. Subsumption
under self-determination in the case of East Timor, Fundação Oriente, Lisboa.
Giddens, Anthony (1999), Runaway World. How globalization is reshaping our lives,
Profile Books, London.
Held, David, McGrew, Anthony, Goldblatt, David e Perraton, David (1999), Global
Transformation. Politics, Economy and Culture, Polity Press.
Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25.
126
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
____________ (1999), “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, 78(2): 35-50.
Jackson, Robert (1990), Quasi-States: sovereignty, international relations and the Third
World, Cambridge University Press
Joerges, Christian (1998), “‘Good Governance’ through comitology?”, em (eds.)
Christian Joerges e Ellen Vos, EU Committees, Social Regulation, Law and Politics: 311-338,
Oxford, Hart Publishers.
(ed.) King, Anthony (1991), Culture, Globalization and the World-System. Contemporary
conditions for the representation of identity, MacMillan.
Knutsen, Torbjörn (1999), The Rise and Fall of World Orders, Manchester University Press.
Kolko, Gabriel (2000), “Kosovo, leçons d’une guerre”, Manière de Voir 49: 17-21. Paris.
Krasner, Stephen (1999), Sovereignty: Organized Hypocrisy, Princeton University Press.
(eds.) Lensu, Maria e Fritz, Jan-Stefan (2000), Value Pluralism, Normative Theory and
International Relations, Millenium, London.
Linklater, Andrew (1998), The Transformation of Political Community. Ethical
foundations of the post-Westphalian era, Polity Press, Cambridge.
Lucas Pires, Francisco (1997), Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Almedina,
Coimbra.
Mann, Michael (1999, original 1997), “Has globalization ended the rise and rise of the
nation-state?”, em (ed.) T. V. Paul e J. A Hall, International Order and the Future of World
Politics: 237-262, Cambridge University Press.
Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de
Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18(2): 45-79.
Marques Guedes, Armando (1999), “As Religiões e o Choque Civilizacional”, em
Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena.
____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do
Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162.
Nye, Joseph (1997), Understanding International Conflict. An introduction to theory
and history, Longman.
(eds.) Paul, T. V. e Hall, J. A. (1999), International Order and the Future of World Politics,
Cambridge University Press.
Ramonet, Ignacio (2000), “Ingérence et souveraineté”, Géopolitique: 51-55, Paris.
Reno, William (1998), Warlord Politics and African States, Lynne Rienner Publishers,
Boulder and London.
Rubio Marin, Rut (1998), “National limits to democratic citizenship”, Ratio Juris 11 (1):
51-66.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
127
Simma, Bruno (1999), “NATO, the UN and the use of force: legal aspects”, European
Journal of International Law 10 (1). 1-23, Oxford.
Sousa Santos, Boaventura (1998), Reinventar a Democracia, Gradiva e Fundação
Mário Soares, Lisboa.
Strange, Susan (1996), The Retreat of the State. The diffusion of power in the world
economy, Cambridge University Press.
Wallerstein, Immanuel (1991), “The national and the universal: can there be such a
thing as world culture?”, em (ed.) King, A., op. cit.: 91-107.
Walz, Kenneth (1959), Man, the State and War: a theoretical analysis, Columbia
University Press.
Waters, M. (1995), Globalization, Routledge, London.
128
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
4. Local Normative Orders and Globalisation:
is there such a thing as Universal Human Values?108
1.
Post-modernity109 has been ripe with the assertion of the recent death of the
transcendental subject. Not surprisingly, one of the intellectual implications of
this perceived state of affairs is a routine denial of the very possibility of assuming
a transcultural standpoint; of occupying the kind of room with a privileged view
which many successive generations of Kantians claimed as their own, and of
placidly surveying things from that vantage. Hence, it is often felt, a truly
universal compelling morality painfully (but irrevocably) eludes us all. For
advocates of post-modernism, value relativism is an inevitable consequence of
this demise.
In my view, this perceived difficulty is linked in many ways to our images of
the experiences we live through in the modern world. Power relationships have
been thoroughly reshuffled, again and again. The very shape of order has had a
108
Comunicação apresentada a 13 de Dezembro de 2001, na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no quadro de um Colóquio Internacional intitulado
“Other Reasons, Other Cultures, Other Laws”,
109
Earlier versions of this text were given to read to Ana Cristina Nogueira da Silva, António M.
Hespanha, António Marques, Armando M. Marques Guedes, Gabriel R. G. Benito, John Huffstot, José
Carlos Vieira de Andrade, José de Sousa e Brito, Lurdes Carneiro de Sousa, Manuel Oliveira, Maria
Lúcia Amaral, Pedro Duro, Rui Machete, Paula Escarameia, Rui Pinto Duarte, Susana Brasil Brito,
Teresa Anjinho, Teresa Pizarro Beleza e Tom Svensson. Most of them were kind and generous enough
in their often detailed commentaries, from which my paper has greatly benefited. I am also grateful
for the rich discussion triggered during my oral presentation on December 13th, 2001, in particular
for the constructive encouragements formulated by Tamar Herzog, Richard Hyland, José Reinaldo de
Lima Lopes, Aldo Mazzacane and Gyan Prakash. The responsibility for the finished product remains,
of course, entirely my own.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
129
turbulent late history, and the last three months or so have been an ugly, painful,
reminder of that. Notwithstanding some successes, past and ongoing experiments
with normative harmonisations of all kinds (legal as well as religious, ethical as
much as political, particular or general in scope and ambition) are at best
discouraging. Hopes of a universalising consent have consequently either simply
evaporated or have tended to increasingly stand out as illusions born of the
fantasies of other eras.
The immediate horizon we brave most certainly does not seem too promising.
Voices are daily making themselves heard throughout our postcolonial settings
and arenas, indignantly demanding a full recognition of the autonomous forms
of integrity which were violently denied them for such a long time. “Asian”
forceful, but quiet, clamors for independent value and legal systems, have
somehow echoed more subdued “African” ones, as well as much louder and more
strident exactions coming from the “Middle East”. And this is a movement which
is by no means restricted to the “zealotry” of people such as Singapore’s continuing
strong-man Lee Kwan Yew, Malaysia’s Mahatir bin Mohamad, the notorious
Osama bin Laden, Robert Mugabe in Zimbabwe, the frustrated George Speight
from Fiji, or Iraqi Saddam Hussein. Even in small-scale “traditional” societies as
disseminated as some of those in the Central and South American outreaches, or
Canada or the Pacific and Indian Oceans, demands for sovereign cultural
exceptionalism, as we can usefully call it, can be insistently heard.
Such urges vary wildly among themselves. In many cases, they are
uncompromising; in some, open to negotiations. What they do share is a studied
rejection of what tends to be called “the West”. A rejection which sometimes
slides down a slippery slope into an avowed repugnance, a trend which has been
apparent for quite a while now. In such a conjuncture, finding a universal
normative common denominator appears more and more as a remote dream. It
seems unlikely, to say the least, that the recently empowered Chinese will
abdicate their penal practices (which we so abhor), that the Afghan taliban
militants (or what remains of them) will take in their stride our notions on the
“equal worth and dignity” of males and females, or that Southeast Asian indigenous
headhunters profess a collective mea culpa in relation to their ancestral traditions.
130
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
The difficulties perceived by post-modernists have been wide-ranging. The
“localist” distancing which I briefly charted above has made itself felt both in
what concerns any hopes of “universal” rights as in what has to do with “universal”
values. It is perhaps in the more restricted field of contemporary legal
universalisation, that some of the political, as well as many of the formal and
technical, issues all this raises glaringly come to the fore.
Again, a cursory overview may be useful. The new breed of “legal
comparativists” which so successfully met in Paris in 1900, tended to believe a
rapid uniformisation of some sort was not only possible and desirable, but also
quickly achievable. Less than half a century later, the tune had changed. Of the
many possible examples, let us stick to matters of human rights: the “universal”
character of the 1948 Universal Declaration of Human Rights was challenged by
a handful of those public and private actors (in ever growing numbers) who saw
in it little other than the latest sign of Western “cultural hegemony” (a then new
concept for an old reality, many felt). But those who voiced complaints (mostly
non-Westerners, or only marginally classified as such) were not the only ones
who resisted.
The tale of this twist of rejection, of this twitch of separatism, is an instructive
one. In an effort to avoid divisionist reactions, the optimistic Declaration did not
separate or allow any hierarchies between civil and political rights, and economic,
social or cultural ones. In 1966, in two United Nations Covenants, however, a
dissociation of these two sets of rights was in practice effected, following the
preferences of some of the member States. The outcome: universalism, but not
quite.
Regional mechanisms for the protection of human rights had started this
fragmentation early on; a European Convention (1950), was followed by an
American one (1969), in turn answered by an African Charter for the Rights of
Man and Peoples (1981), with few built-in control mechanisms, and by an
explicitly confessional Arab Charter (1994), with fewer still.
So, rapidly, as could be expected, a wide dissemination deflected the
voluntaristic pressures for uniformity. Moreover, many countries (namely the
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
131
United States of America) repeatedly sought to “renationalise”110 human rights by
means of rather more devious tactics: by a very sustained, purposeful, and oblique
game of systematic reservations and declarations of interpretation, formulated at
the time of their ratification of those very legal instruments. More and more, hopes
of any real form of “universalism” seemed like a dream shot down.
On the face of it, none of this, indeed, is particularly surprising. Quite the
opposite, it was surely to be expected in a politically still fairly anarchical
international field. Unstructured political domains do render convergences tough
businesses. Even in the neo-functionalists paradise of our mild European Union
backyard, irreductibilities of various forms have made themselves felt.
The net result: normative diversity of all kinds actually appears to be on the
increase. Hopes for uniformisation are felt to be under threat. Concomitantly, a
common concept of the good life often seems to be, if anything, receding fast.
But, of course, this is only part of the story. That perspective is essentially
incomplete. For there is most certainly another side to the narrative of which I
have sketched but one of the sides. Ethical cosmopolitanism has also had a long
(and just as turbulent) history, one the results of which operates as a
counterbalance to some of the “localist” forces I have just touched upon. An
ambivalence of sorts thus seems to prevail, notwithstanding the skepticism of
post-modern discourses.
In this communication I want to begin tackling some of the issues that all of
this raises. My aim is rather wide-ranging. Ultimately, it is intended as an attempt
at answering a simple but difficult question: are there universal human values?
Does the question even make sense, in today’s world? Or, on the contrary, is it
only in today’s world that it actually does?
For all this I strive to find tentative answers. And I try to do so by briefly
broaching some of the basics of these matters, basics which I believe need to be
thought through in a far more careful manner.
110
The term (as many of the points made in this paragraph) is taken from the interesting
article-conference of Mireille Delmas-Marty (1999).
132
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Up to this point I have mapped out a very thin and brief historical pinpointing
of some of the contemporary resistance encountered by the ongoing ethical
cosmopolitan project, if we may call it that. Before dipping into more substantial
issues, I next want to just as briefly and lightly touch some of the movements of
toing and froing suffered by that project. I shall then veer into a more theoretical
discussion. In what follows thence, I will by no means attempt to cover the entire
domain of pertinent questions all this brings up (and to my mind they are indeed
many, and crucial ones at that), nor will I really try to suggest any real (in the sense
of final, or definitive) responses, or recipes, for any of them. But I shall try to raise
some doubts about the overall post-modern program. And I will try to do so from
what I consider to be a neo-Kantian, in a sense even a Liberal (although not a
“classical” one), perspective.
In general and abstract terms (but not in substantive ones), I shall try to
somehow answer, even if perfunctorily, the questions I posed above; and no
more than that. But I am, of course, painfully aware that even this is too long a
road for a lifetime, and thus wholly uncrossable in my allotted space and time. So
I shall circumscribe my theme, turn it into something more handy and user-friendly.
I will try to do so by remaining on a sort of high ground. I will briefly touch
upon some normative orders; and then only superficially. Moreover, I shall
approach normative orders in general, and confine my attention to their general
relationships with global transformations: not the detailed mechanics, but rather
the macro-links – how the latter engulf the former, but the former, in turn, pattern
the latter.
Obviously, given such restraints and limitations, my aim is only indicative. It
could not but be so. I shall rest contented if I manage to equate some few of the
relevant materials that I believe need to be brought into play in any cogent
answers we may offer. Therefore, I will not be very ambitious here.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
133
2.
As a first step (and in a more equitable recasting of the shifting balance
between localism and ethical cosmopolitanism, even if I am to be very cursory
here as far as origins are concerned), it is surely convenient to start at the
beginning. The generalised conviction that there is indeed such a thing as
universal human values is by no means a new one. From its remote origins as an
original Christian idea, it slowly swayed into an explicitly political weapon in the
XVIth century, with a visible and more narrowly focused instrumentality in its
scope.
It is perhaps not excessive to assert that the initial transition was swift. Novel
Renaissance politics brought it about. Already in the dawn of colonial times, as
the hard-fought dispute between the Castillian Jesuit Bartolomé de las Casas and
the jurist Sepulveda111 abundantly and graphically rendered blatant, the brute
facts of the forceful submission imposed on the many non-Europeans encountered
and their subsequent subalternity tended to sharpen its cutting edge.
The next couple of hundred years polarised relations ever further. The neo-classical humanism spurned by a growing urban bourgeoisie anxious to assert
its right to a voice not based on privilege pushed it forward. The Industrial
Revolution increased the pressure, directly as well as indirectly. When, from the
middle of the XIXth century onwards, steamships and the then recently
internationalised colonial boom rapidly shrank the world, its harsh political facies
revealed itself most clearly in the transmutation of this religious construct into
ethical universalism and its late 1700s’ Kantian Illuminist avatar, ethical liberal
cosmopolitanism.
111
A wonderful discussion, of which we unfortunately (and rather curiously, I might add) do
not know the conclusions; but we do know the story. As is well known, de las Casas enjoined the
Castillian King to put a stop to the many “atrocities” being committed against the newly discovered
Indians, the resulting loss in life of soul-bearing “Children of God”, and attributed it to greed. The
King agreed at first. Sepulveda argued for the “bestiality” and soul-lessness of Indians, and thus
thought it unfounded for the King to intervene on their behalf. Even in the absence of data on the
actual outcome of the Disputación which ensued, we know what happened to many of the Indians.
134
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
From then onwards the tale has largely been a Liberal one. To cut a long
story short: in the early XXth century this change reached its apex, when a
motivated and very activist American President, Woodrow Wilson, led the march,
with the famous fourteen points he presented to the delegates preparing what
became the ill-famed and ill-fated Treaty of Versailles, and with the ensuing shortlived League of Nations. It was a swansong; rabid nationalisms on the rise and
German and Japanese rather militant forms of exclusionary exceptionalism put a
sudden end to that early dream.
But ethical universalist yearnings did not die. A decade later, the hopes rose
from the ashes, re-energised, if only for a brief flash. The narrative of this bout of
revitalisation is not trivial: in a cycle that was to establish itself, the then historically
rather recent political recasting of universal human values had become hegemonic,
and its contaminating presence almost entirely transparent.
For many intellectuals, at least, the long-awaited Allied victory in World War
II brought a bright hope of a new ethical universalism, born both of the horrors
of the conflict and of the shared solidarities fashioned by common suffering. For
Europeans, at least for West Europeans, as we then called ourselves, this gave rise
(for instance) to the grandiose political project which is now that of the European
Union. For the world at large, it spelled even more ambitious and all-inclusive
movements, of which the creation of the United Nations system was perhaps the
most visible peak.
But, unfortunately, the new enthusiasm was not to effervesce for very long.
For the tide soon turned: at least in the first few post-War years, and throughout
the first decade of reconstruction and political reframing, a bitterness slowly
crept in as the gray bipolar world rapidly crystallised and what was to become the
Cold War came to make itself felt. Albeit couched in a newfangled garb, the good
old Hobbesian “international anarchy” (or so it seemed to many) had survived
largely untouched, either by the rather monstrous enormities committed by the
Nazis, or by the geopolitical reshufflings which flowed from the recent upheavals.
A moral recession of sorts majestically settled on war-weary world shores.
For, in point of fact, although intellectual ethical cosmopolitan feelings
indeed initially seem to have soared in those short-lived heady times immediately
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
135
after the Armistices, this quickly led to a backlash of forlorn desillusionment.
Commenting on the post-War all-too-easy reversal of opinion (or, at least, the
habitual Machiavellian pose adopted in such circumstances) of politicians, in
which the defeated Germans suddenly became new friends and the saviour-Russians suddenly transmuted into the dark enemy, Arthur Miller, the playwright,
bitterly wrote, not all that long ago, in 1987: “[this is] an ignoble thing. It seemed
to me in later years that this wrenching shift, this ripping off of Good and Evil
labels from one nation and pasting them onto another, had done something to
wither the very notion of a world even theoretically moral. If last month’s friend
could so quickly become this month’s enemy, what depth of reality could good
and evil have? The [contemporary strand of ] nihilism – even worse, the yawning
amusement – toward the very concept of a moral imperative, which could
become a hallmark of international culture, was born in these eight or ten years
of realignement after Hitler’s death”112.
Miller was of course right, if also slightly naïve. The “Western” public reaction
of outrage was fairly generalised; and as bitter pessimism grew quickly in the new
international civil society (as it came to be seen) forming there, the high bright
hopes that had so coloured the animus (and the public kudos) of the reborn
intellectual life of the immediate post-war months of heady euphoria receded
too, and did so at a very fast pace.
Historical fact appeared indeed to roll it back into a severe bout of
disconsolation and a sad ethical desolation. So much so that this backlash was not
inconsequent: a recession of cosmopolitan moral feelings was to ensue. As had
been the case almost a century and a half before (in the endgame of the 1815
Vienna Conference which capped the Napoleonic Wars) the good old raison d’État,
it became increasingly apparent, was alive and well; allegations of its recent
demise were flagrantly somewhat premature. The new dark Zeitgeist was to last for
much longer than ever before since universalist hopes had first entered the stage.
The tale turned gloomy indeed. For almost half a century, the ill-fated Soviet
regime threw its weight around on that front too. It held back the flow. Always
112
136
Arthur Miller (1987), Timebends: A Life, Methuen, London.
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
suspicious about “human rights”, Moscow made sure Helsinki waited a long time
to arrive; and when it did, it was a welcome, but very cautious, step on what many
dreaded was a lengthy and steep uphill road.
Hopes, however, are resilient entities. As soon as a minimally conducive
environment surfaces, they tend to undergo a rapid rebirth. And a new
international milieu was definitely on the rise. It took the fall of the Berlin
infamous Wall, the reunification of Germany, the end to Russian colonial
domination of all lands along its lengthy western and southwestern frontiers, the
final demise of the old Soviet Union, and the consequent erasure of a harsh half-century of a tense bipolar form of international order, for the sweet dream to be
reborn anew; for ethical cosmopolitanism to reawake and gain a new lease on
life. But it quickly did.
We can perhaps see it, mutatis mutandis, as another ressurection of an old
idea. Or we can envisage it as an essentially new figure, only functionally
equivalent to the one of old. In any case, it was again an ethical dream reborn. In
a sense, it clothes our own fantasy: it is certainly a universalistic dream under the
spell of which we somehow (and perhaps more than ever) still live. Will it last for
very long? And is it really just a dream?
At any rate, the least we can say is the progression of ethical universalist
yearnings is by no means a linear or unidirectional affair. To those who naïvely
thought the post-Soviet, post-Wall of Shame and post-Iron Curtain thaw of
“unipolarity” was the end of the story, History is once again clouding the issue.
Much of the Islamic world, China, and what is curiously still known as exJugoslavia, took care of that, as soon as it dared to reawaken. The rise of the
Afghan taliban students and the transnational al-Qaeda network of uncompromising anti-Western terrorists gave it soon afterwards what many see as its
death-blow, its coup de grace. In the new international scenarios the post-bipolar
stage unrelentingly offers us, a cohort of new and apparently insurmountable
difficulties has been making itself incessantly felt.
They are difficulties which raise a variety of novel issues. Many of these new
issues concern matters pertaining to the “universality” of things as easy to
recognise and as hard to define as “human rights and values”. In many cases, from
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
137
Afghanistan to Sudan, to China or Cuba, to name but a few, this has assumed the
harsh clothing of explicitly cultural exceptionalist invocations, leveled in the
name of the sovereign right to “self-determination” so rampant in contemporary
political discourse. In others, it has either been cast in a more defensive shape (as
an expedient means of “protecting the integrity of traditional communities”
against the encroaching and predatory “individualist dissolution”113 of Westerninspired modern life), or else a more militant one of a plain cultural, religious, and
political intolerance which refuses any “alien” value systems.
Are they right? Or, at least, do they have a point, no matter how lamely it may
have been put? Be that as it may, it is hard not to have the intuitive feeling that
theirs are clearly not sufficient explanations for the “cultural” universalisation
which is daily taking place and which we all can sense. Like it or not, it is clearly
there, eating away at many localisms of old. What is in fact happening? And why
is it unraveling as it is? It is tempting to blame good old cultural diversity, or the
spectre of the political conveniences of power-hungry local elites for that
seemingly novel predicament. And although that may hold some water, it clearly
does not wholly unveil what is certainly a much more complex set of processes.
At any rate, ignorance has never stopped us from action; although it often
renders the action a fairly futile business, at least in terms of its stated objectives.
Various sorts of adamant political exertions focused on actually reconciling
fundamental cleavages in basic cornerstone aims and objectives (a heavy workload
in the multi-centered world of today) have not lacked. And even some few
academic efforts have been carried out of late so as to intellectually contain (in
a manner of speaking) these divergences.
The truth is that none of this has yet gone very far. Even a cursory look at the
extant bibliography on such matters shows us the sorry state of affairs on that
front; or at least an excessively linear one. Allow me to pick a few instances as a
113
As many others did before him, Thomas M. Franck, an American Professor of International
Law, gave several rich (and critical) instances of this attitude in T. M. Franck, 2001: 195-196. His views
on local elite-led pseudo-traditionalist versions of communitarism are a good example of what I am
tempted to call his instrumentalist version of neo-realist liberalism.
138
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
more or less representative sample (and nothing but that) of contemporary
tendencies. For example, in a recent and excellent collection of research articles
on international theory (Lensu and Fritz, 2000), various rather simple models and
“flat” theoretical “solutions” were put forward regarding some such inevitable
“ideological” problems raised by the current progression of the international
order towards a much closer level of interdependence of world actors, as well as
their multiplication.
This raises issues which, in a nutshell, Lensu characteristically enunciated in
the following simple and straightforward terms: “how can we encounter ‘otherness’
or difference in an ethical way”? From her point of view (not surprisingly as this
is really not a very contested question, at least at the level of “problematisation”)114, the issue is brought to the fore by the situation of clear and
potentially troublesome “value pluralism” of the globalising world, and it both
reflects and spells out the pervasiveness of what she calls the “diverse ultimate
values” (op. cit.: xviii) often uneasily cohabiting in this progressively more
interdependent world of ours115.
114
To announce in advance my own position on this, allow me to state that it seems to me that
is nevertheless high time, though, for us to think matters through carefully and to recognise that the
issues posed are complex and multi-layered. Consider just this one example. In her introduction to
the series of articles I have referred to, Maria Lensu collapsed into a West-centered matter of “ethical
logistics” (allow me to call it that, with all due respect) what are in fact various different levels of
potentially interesting analyses: according to her, the wide majority of debates among Western
defenders of Human Rights and their non-Western adversaries illustrates “the fundamental question
facing normative theory in International Relations: how to reconcile value pluralism with an
appropriate ethical orientation (good/right/fair/just)” (ibid.), in a world in which opinions greatly
diverge concerning, namely, the content and extension of basic fundamental matters.
115
From this and other works one sometimes gathers the uneasy feeling that Samuel
Huntington’s reifications in his Clash of Civilizations has had a pervasive toll in the current framing
of such matters. In fact, Samuel Huntington argued along largely similar lines in a famous 1993
article, under the suggestive heading of “The Clash of Civilizations?”, published in Foreign Affairs
72(3): 1-25, later followed by an extensive monograph in 1996, with the quite similar title of The
Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York. For Huntington,
the ultimate irreductibility if “worldviews” signifies a welcome new form of balance of power in an
otherwise chaotic post-bipolar order.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
139
Well, it is certainly the case that, from the perspective of the dominant West,
the quandary faced is both internal and relational; and the issues raised are
residually moral, as well as ostensively political. But that hides, rather than solves,
the matter; it is surely part of the problem and not really of the solution. Even our
posturing is revealing: for rather than seen as philosophical, or ontological, the
problem is treated as logistical.
Now, I personally have no doubts whatsoever that many Western and
Western-prone radical normativists (let me call them that) might be inclined to
look at things in such a linear manner. But I also think that in so doing they would
miss much of the point of what is actually going on in the post-bipolar world; and
I believe that therefore theirs is not really a useful strategy for the purpose of
equating the new predicaments we find ourselves in, as we fend off uncertainty
in the globalising arenas of today. For things appear to me to be much more
complicated than that. In the Westphalian world of States brewed since 1648,
strict, pure legal normativists had a field day, writing what appeared to all as the
ultimate rules of the game. In our post-Westphalian sunrise, this is no longer
enough.
I shall return to this point. But first things first. To be fair, let me remark that
quite apart from the tentative answers with which she actually comes up, Lensu
appears to be moderately optimistic, for what that is worth: she seems to believe
the “problem” she identifies really amounts to a temporary barrier encountered
by her abstract and general “Western-style normative theory”, a passing affliction
which a hitherto unknown rational solution will, sooner or later, come to heal.
Of course such is by no means the only possible attitude to assume. And
indeed a more negative pose than Lensu’s in relation to this issue is equally
legitimate, or at least well founded. For one thing, others may not accept an
explicit or even an implicit Western homogenising hegemony, no matter if only
for “the benefit” of domains in which we deem it as “better for all those concerned”.
One example may suffice of a different theoretical pose. Not all that long ago, in
the early 90s, in a famous short and incisive paper written in a more historicist
than sociological vein, and much more political and ideological than ethical or
philosophical, Immanuel Wallerstein (the renowned American World System
140
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
theorist) had underlined the inevitability of what he termed “cultural resistance”,
in our modern struggle against “the falling away from liberty and equality”; a
fight Wallerstein thought lucidly to be in the order of the day given the rapid rise
of the “global” (1991: 105). In his tone, he seemed to offer no hope for a solution:
resistance flowed from a fragmentation which, Wallerstein believed, will always
be there
To be sure, both Wallerstein and Lensu are in the end probably right, or
partly so. As is, of course (at least in my view), the more “classically” Liberal
Thomas M. Franck, in his insistence on a connection between “modernity” and
“universality”, as well as in his staunch defence of “individualism” against idyllic
and often manipulative visions of “communitarists”: a third visionary on such
matters to whose work I shall be returning time and again. But each of these
thinkers seems to me to be entrenched into too partial a view of things.
To conclude my first step, I thus want to argue that, to my mind, a new
balance needs to be struck. More has to be brought to bear on these issues, and
in a far more subtle fashion, if we are to hope to ever come to make sense of
things in today’s apparently messy world. Many are the matters which need to be
taken into account. I shall list but a few. Value matters are dynamic, not static; as
such, they must be repondered taking stock of the ongoing social processes that
actually affect them. For one, “cosmopolitan” universalist processes must not be
seen as taking place freely, independently of parallel simultaneous processes of
resistance and fragmentation. Moreover, homogenisation, no matter how beautiful
a dream and irrespective of its “feel good” effect, is not around the corner, and it
does not stand alone. “Individualism” and “communitarism” are not unproblematic
polar opposites: they are, on the contrary, interconnected. And as if this were not
enough, I strongly believe the flat, unidimensional and rather linear rationality
inherited from the Enlightenment needs a fairly deep revamping (although not
really a structural one) if it is to serve us as a tool for decrypting the de-centred
and multi-layered world of multilevel and constantly negotiated identities of our
emergent new forms of individuality. Only after doing so can we expect to be
able to line up viable answers to the complexities of our global cul de sac.
In what follows, I shall take these issues one by one.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
141
3.
As a second step, let me endeavour, first, in a preliminary effort at focusing,
to design the board, as it were. In my title I refer to human values, but I also allude
(albeit implicitly) to human rights. And I suggest (or at least hint at) a connection
between the two. I must therefore start, right at the very outset, by parting
waters, by outlining a background distinction which I deem to be of the utmost
importance as far as clarity goes: that between, on the one hand, human values
and, on the other, human rights, a distinction embodying a contrast operative at
many levels and certainly at the ones I shall here attempt some dwelling into. My
aim in so doing (that is, in trying to establish such a connection) is by no means
trivial, I believe.
To be sure, values and rights are quite easily discernible as being indeed very
different things. But although no one in their right mind would confuse them for
a second, it is nevertheless true that, at least for the purposes of my line of
argument, this patent distinction, particularly in its fine details, is relevant in a
rather specific way: because it is based on a superficial contrast which in fact
hides a fundamental similarity. Let me set that forth, however sketchily.
Human rights is a legal-philosophical idea, an XVIIIth century Illuminist one
at that116, with a strong normative content of sorts: in one way or another, it
116
There are actually two traditional strands in Western conceptualisations of universalism. As
I pointed out earlier, one is rooted in Christian notions of Natural Law and its immanence. In this view,
universal moral truths, which stem (flow, might be a better characterisation) from our common
rational faculties, lie behind the apparent fluctuations in our cognizance of them. The other strand
takes seriously the objection that considerations of universality are historical and the product of
circumstances (this is, for instance, Rousseau’s position), and thus are always, inevitably, what we
would today label “ethnocentric” (be they across time or space). This, of course, apparently takes away
from our grasp any fixed points of reference we may have yearned for. One possible way out of this
is relativism: we simply give up moral certainties, and deem all ethical claims as ultimately equivalent.
Another path, more teleological, recognises some moral truths, but claims them to be a product of
history or of culture: it is here most XIXth century philosophies of history took root (this is, e.g., the
road taken by Hegel and the “evolutionists”). As I shall try to make clear, while I sympathise with this
latter way out of the relativist’s quandary, I also recognise its severe teleological limitations. Accordingly,
my “solution” is more skeptical; although (as I try to argue) that does not tie my hands in any way.
142
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
touches upon the imperative need for us to recognise that human beings are
bearers of an intrinsic worth and dignity; and that, if only for these reasons, they
have automatic claims on others’ attitudes towards them, irrespective of either’s
age, gender, religion, cultural or national affiliation; or, for that matter, any criteria
pertaining to any of them, other than their common belonging to the biological
human species. At the time, quite a revolutionary idea; in many contemporary
quarters, unfortunately, still an alien, unacceptable, one.
While human values is a concept without such a strong normative or, strictly
speaking (and on the surface), any specifically philosophical, content: it is mostly
a description. It focuses on a common denominator between the ethical and
moral foundations, upon which (it is postulated) in one way or another human
beings ideally conduct their lives; and it does so, again, irrespective of any but
biological criteria pertaining to those whose social or personal relationships it
qualifies. If you will, it is a notion which feeds and prevails at the level of is and
not of ought: its domain is Sein, not Sollen.
So far so good, one would think. But beyond, or behind, these apparent and
manifest differences, which somehow push these two notions apart, there is a
grade of similitude: at some level, they somehow cohabit, they flow from a
common substrate, and they thus partake of significant traits. This much is
obvious. The assertion of human rights somehow mobilises a certain definite
conception of an abstract universalism: if only the ultimate idea that there is such
a thing as an abstract human being. And this somewhat hidden assumption
underlies, too, any and all notions we may hold about human values, for they are,
in the end, only conceivable against the very same sort of abstract universalism:
the concept of an abstract human being. Although, to be sure, each of these
notions entails much more too.
So there is indeed a strong common denominator, a concealed shared
element, somehow dwelling below or, if you prefer, spread out underneath, the
obvious distinction between our (more normative) notions of rights and our
(mostly descriptive) ideas about values: the partaken and tacit background
persuasion (providing a generic notional opposition with these two figures, but
also discreetly apportioned between these twin bundles of ideas) that there is
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
143
such a thing as an abstract, universal humanity; that human is a conceptual
category.
To my mind, this backdrop, this impensé, is crucial. No matter that human
rights are allocated from on top, as it were, by a process of deduction down from
more or less metaphysical constructs we indulge in for whatever sets of motives;
and that, at another end and by other means, human values are effectively
arrived at through an effort of induction up from systematic empirical comparisons
we decide to carry out. The plain and obvious fact is human rights and human
values are notions which have an elective affinity, to use an often useful Goethean
concept. And this is it: both presume (the one as a sort of tertio comparationis, the
other as a kind of deus ex machina) the pre-existence of the conceptual scheme
we like to call Man, or Humanity.
Now, we can certainly try to find explanations both for the advent and for
the persistence of this embedded idea of a common, shared, abstract, and
universal humanity. And, in so doing, we may choose different angles of approach.
I shall enumerate a few.
One can easily envisage it, historically, as the outcome of the end of an
ancien régime marked by distinctions and privileges, and the rationalist victorious assertion of an interchangeable “citizenry” (British sociologist Anthony
Giddens nicely called it a “modular” concept of individuals), precisely that which
two centuries ago laid the foundations for the “one man one vote” basis of
political democracy. And this much undoubtedly holds some water. Or we can
assume a more genealogical pose: we can also look at it as something which
was made possible by the universality claims of the Christianity of old, and was
again turned actual (tant bien que mal, and certainly in an altered form) by
the mid and late XVIIIth century Enlightenment philosophes. Or, more ontologically, somehow moving away and distancing ourselves and taking a bird’s eye
view, we may prefer to ignore the time-depth and to embrace instead, with
Michel Foucault (the noted French philosopher), the epistemological conditions subtending the simultaneous emergence of intellectual disciplines such
as biology, linguistics, and economics, and rather glimpse there the uncontestable groundwork for the rise of a new structural and abstract humanism in
144
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
the West117: we may favour a somewhat more skeptical late XXth century angle,
so to speak.
Certainly, there is some cogency to all these points of view; as well as some
overlap, as they are obviously not really mutually exclusive; and, they have some
immediate practical usefulness too. Although they are far from transparent,
namely regarding either motives or implications. Since, of course, nothing forces
us to stop here: for example, by simple extrapolation, we may then (and we can
do so with some plausibility) make the strong claim that the current pervasiveness
of a latent ideological hegemony of Western values is beginning to impinge
effectively onto the rest of the world, on the propitious slate so conveniently
provided by globalisation118; more, we may advocate that it does so as a part and
parcel of a form of “imperial” globalisation. And we may claim, therefore, that the
process (whatever we decide its operation actually encompasses) is finally about
to be completed, rendered truly universal in scope. For this we could perhaps
adduce a political prime mover: the unipolarity of the world left to us by the
117
This (at any rate, as Foucault clearly emphasised over thirty years ago) is what, mostly in
Europe and North America, fashioned as thinkable the very idea of social sciences, made it a viable
hypothesis. Social (and human) sciences, in other words, depended, for their very inception, on this
underlying abstract notion of a humanity. More, they actually built this into their constitutive
schemes: as offspring of Illuminism, social sciences are really only engenderable against the
background of this implicit presumption of something such as common abstract human beings. The
thing is, all of this is far from inconsequent. To cut a long story short, we can therefore be certain that
any inductive generalizations about “human values” we choose to carry out are nothing short of
circular: they beg, as much as they answer, questions; and they ultimately assume the frame of
reference of what they are putatively looking for. In other words (and in a weak sense), I can only in
fact look for human values if I initially presume that they do somehow exist. In a stronger sense, my
recognition of “stuff” (let us call it that) as “human”, as “values”, or even as “universal”, is built into my
intellectual software as a petitio principii, since I am inevitably starting from the silent (in the sense
of unstated) presumption that they are somehow part of the world’s hardware.
118
None of this, of course, should serve as an excuse for us to protest that, therefore, abstract
human values, like universal humanity, are simply fabrications, inventions, something-which-was-not-actually-there-until-we-put-it-there… Not because that is not true (it patently in some way is),
but rather because this is equally true of any background alternative notions we endeavour to come
up with. In a very trivial sense, ideas are not until they come to be. So no news there; no special
restrictions need apply.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
145
demise of the Soviet Union, which we may want to portray as the final triumph
of Liberalism. The “end of History”, from this point of view, is perhaps rather to be
seen as a global “birth of Man”, to give a twist to Foucault’s119 well know dictum.
On the other hand, we can somehow move beyond (and behind) such
apparent roots for universal values, and look elsewhere for they spread. We can
see them as indicators of “modernity” rather than as indices of direct “Westernisation”.
Taking the historical example of the West itself into account will help me
drive home my point. Forms of non-universal (or even anti-universal) normative
exceptionalism (let me call it that), both at the level of values and at that of rights,
have a long European and North-American pedigree. The all-embracing freedom
of religion we now deem as everywhere desirable is not more than a century or
so old here. Women’s most basic democratic rights, such as the simple right to
vote, is an even younger acquisition; the laborious plight of current banners as
“equal opportunity” and “quotas”, or “positive discrimination”, betrays the extent
to which such novelties have yet to find a full expression at the level of values
actually upheld. Slavery was only finally abolished not that much longer ago.
I could go on; but I think my drift is clear. The conclusion appears to me
inescapable that overcoming those was not, in any really meaningful sense,
actually due to Western cultural values. I think and am confident it is definitely not
at all far fetched to argue, as Thomas M. Franck recently cogently did, that those
like many other “progressive”, “cosmopolitan”, or “civilised” developments “were
caused not by some inherent cultural factor but by changes occurring, at different
rates, everywhere: universal education, industrialisation, urbanisation, the rise of
the middle class, advances in transportation and communications, and the
spread of new information technology”120. In other words, these were universal
trends, driven by scientific and economic innovations and not by any imaginary
timeless “Western culture”.
119
In spite of M. Foucault’s anti-humanist posture, which led him to see the “life” of this figure
as ephemeral and a passing fad.
120
146
Thomas M. Franck (2001) op. cit.: 200.
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Following Franck and many others, we can easily advance more or less
“deterministic” hypotheses as to the “mechanics” of such trends. The admission of
women into the job markets and obligatory universal education were to a large
extent driven by the requirements of the mid-XVIIIth century Industrial Revolution;
slavery became, worse than obsolete, threatening for the newly freed competition
economy and to the self-respect of an ever more worldly-aware and ethically
awoken citizenry armed with education and much better informed. Deeper
forces have surely also been at work. The advent of newspapers, radios, television
and now the Internet has not left unhindered popular participation in political
processes. If we look at things through these lenses, we come to the conclusion
that the unleashing of new social forces, and not “Western culture”, are what in
fact led, by channeling them, to what we today think of as “universal human
values” and “universal human rights”.
The point I am trying to make is that mechanisms such as these, the impacts
of which the West was the first to feel, are spreading worldwide at ever faster
rates. The leap is easy: both human values and human rights, from this angle, are,
or so it appears, becoming universal, simply because (and this is ultimately a
fervent Durkheimian because, to be sure), with globalisation, humanity is
apparently growing to be one. So that what was once mere philosophical (and
mainly Western) wishful thinking, is nowadays seemingly growing into (or being
reified as, if you wish) hard empirical fact121. Not at all a silly idea, really, and one
which I shall later on want to revisit, in the context of the growth of images of an
international community.
Now then, you may be wondering why this “philosophical excursion” of
mine. Well, the answer is simple: it allowed me to bring to the fore two issues
which I think are crucial for the points I want to put forward here today.
First, all this nicely sustains an initial claim I insist on making, since I deem
it an indisputable fact – that the simple recognition that such a thing as human
121
Notice that, unlike the philosophers of history of old, there is no claim that this is any way
inevitable or the result of any unfolding. So there is really no ontological teleology here. Which, of
course, in no way diminishes the parallel issue of hegemonic Western domination underlying such
processes; but again, with no hint of any sociological ontology either.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
147
values is out there, is thinkable, is in the end a recognition contingent upon particular
abstract notions which may (or may not) obtain in any particular time and place:
even in the West, were it is now (once again…) a doctrinal dogma of sorts, such
an underlying universal humanism, at least as a dominant political force, is
actually pretty recent; and it still stands far from secure, really.
The general lesson we can draw from this is, I guess, plain, and it is perhaps
not overly surprising; something we knew all along, but which always bears
repetition. Here it goes: other cultures, other societies, need not see things the
same way; and indeed, they most often do not. This, in fact, is precisely one of the
reasons why we class them as different cultures.
But there are other advantages to my starting point, I think. Second, and
more generally (also, less concretely), my little voyage philosophique fashioned
the ground for a question, which I believe follows from the initial conditions I
briefly set out: is the stage now set (with, say, what we call globalisation) for
universal human values to emerge, triumphant, as a shared conviction; or, on the
contrary, are centrifugal forces dominant in the world of today?
This is, of course, quite different from my earlier general point. In my first
issue, the anchor was on what is the given; in the second one, my focus is on that
which may come to happen.
But to my mind, at least, these two points are very strongly connected. So
thinking them together, juggling them, makes a big difference in the way we
frame the overall controversial question. In other words, we would best recast
these matters as being both situational and diachronous, at once closely contextdependent and subject to change. The net upshot is that while the matter of
universal human values (and human rights) is certainly both fascinating and à la
page, I suspect a more well founded and far more interesting issue to be the
following one: are we (by we, I mean all of humanity, of course) nowadays coming
to believe that there is such a thing as human values, and human rights? Is this the
direction the contemporary world is going?
Cast from another angle, and perhaps more obtusely (or more “technically”):
is globalisation actually producing a shared sense that we are all modular,
abstract human beings, entirely comparable and (at least in so far as our intrinsic
148
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
worth and dignity go) ultimately interchangeable among ourselves, as the above
quoted Anthony Giddens deems it to be essential for Democracy, Humanity, and
the Humanities, to both become possible and thrive? Is this really the newly
partaken format of identity, in our modern brave new world of interdependence?
Has the West “won”, in the sense of “gone universal”? Or is it perhaps more
appropriate to assert that “modernisation” is carrying with it both “the West” and
“the rest”?
These are the very specific questions I will next want to address (if only to
touch on them lightly) in my next steps in this communication.
So, really, my chosen path (at least as far as this issue is concerned) is not
really dry and philosophical. I take, instead, a more colourful sociological road. I
am not, in other words, that much interested here in framing abstract concepts
per se, in rolling out more or less complicated layouts or systems of reference
which would be somehow extrinsic to the world we live in, so as to then work
down from that higher ground, as it were.
What I mostly actually propose to look for, are hard, real-world mechanisms,
of whatever nature or origin, that lead to the eventual grassroots emergence and
progressive upward spread of such conceptual frames of reference. I will be
focused, in what now follows, on evincing some of the sociocultural conditions for
those notions to be thinkable.
4.
In more substantial terms, allow me to introduce a significant variable:
community, or rather, our utopian longings about it. Since at least Georg Simmel
and Ferdinand Tönnies, “shared values” is something we tend to favour as the
consensual means to circumscribe what we purport to signify when we use the
term “communities”. Political integration defines States, empires, in brief societies
in a harsh technical sense of what Tönnies and Simmel called “associations” of
people; economic interdependence demarcates markets, collections of interacting
producers and consumers. But community, in the sense of a moral unit or entity,
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
149
is a term we habitually reserve for a coherent group of people who in a sense or
another partake of common values; people who stand, vis à vis one another, not
necessarily in relationships of equality, but who nevertheless are equally bound
to a certain commonality of ideas, beliefs and objectives – exactly that which we
usually mean when we frame things in terms of values. Indeed, values and
community are notions which we curiously tend to conflate, or at least link and
bind together.
Surely this is by no means a trivial appraisal. Yet we can go further. Note, first,
that behind the idea of universal human values, therefore, two structured
conceptual spaces are organised122. One of them is patterned as an abstract set
of coordinates defining an all pervasive modular humanity. The other one,
bringing up as it does the moral fibre, or texture, of community, is rather
configured as a coincidence (or perhaps a convergence) of orientations, and
denotes a commonality of perceptions, preferences, and priorities – in one word,
it is organised as a congruency of life-projects.
Now, these two structurings of conceptual space naturally interact with each
other. And this allows me to bring in my point here: we recognise universal
human values if (and only if ) all human beings are perceived as sharing mutually
compatible life-projects in a meta-entity we imagine as a sort of “world
community”. Of course, to be sure, such a world community123, in order to be
thinkable, in no way needs to be a politically cohesive body, nor does it really
have to weave (or knit) a politically integrated society of any sort – all that is
required for us to be capable of even so much as picturing universally shared
122
Zygmunt Bauman (2001), in what is essentially an expansion of one of the chapters of a
book he published in 2000, discussed the modern idea of community and pointedly underlined its
more negative aspects, both as a yearning and as an instrument to regulate cognitive dissonance
[my terms, not his] in “a fast changing world”.
123
Chris Brown, (1995). In an article entitled “International political theory and the idea of the
world community”, and published in a collection on International Relations Theory Today, Brown
critically discussed the progression of this essentially utopian idea and its formatting power in some
contemporary political theorisations. Although written from quite dissimilar perspectives, this
article makes for a fascinating read, particularly if coupled with the Bauman work I mentioned in my
last note.
150
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
human values, is that we actually be faced with (in the sense that we perceive) a
world moral community of one type or another. As in local cases, and irrespective
of how people are materially held together with one another, we only truly
recognise universal values if, and to the extent that, recasting some kind of a moral
or ethically-based community is present, or is at least credited as being present.
So do take note that even at this high, all-inclusive level, or so I would argue,
community and values are notions that we, for in-built reasons, as it were, tend
to automatically conflate.
My generic point is this: our notion, any notion, that there are universal human
values, in order for it to be a thinkable notion, presupposes a shared image of a
community. The conflation of these two levels is, I insist, built-in. And, moreover,
the link between these two levels (if that is what they are) is structural, in the sense
of indelible. So much so, really, that the type of universal human values we favour
tends to closely map the ideal of community which we tacitly or ostensively share. And
it cannot but be so, since the one depends closely on the other124. They resonate.
There is no lack of modern and clever theoretical frameworks in terms of
which we can understand that readily. Here is one: Benedict Anderson, in his
vigorous and very influential Imagined Communities, lists some of the conditions
essential for a community to be imaginable. In beautiful pages, he ran through
typography, dictionaries, novels, and newspapers. Mostly, however, Anderson
offers us three cornerstones for the thinkability of a national community: the
Census, the Map, and the Museum125. This is territory too well known for me to
124
Non nova sed novae. Writing about “the antithesis of utopia and reality”, in specific on the
contrast between “the world of value and the world of nature”, around the dichotomy between
“purpose and fact”, the noted (and seminal realist) British international theorist E. H. Carr wrote: “the
utopian sets up an ethical standard which purports to be independent of politics, and seeks to make
politics conform to it. The realist cannot logically accept any standard value save that of fact”. Carr
was led to conclude that, “the absolute standard of the utopian is conditioned and dictated by the
social order, and is therefore political”; thus, according to him, “morality can only be relative, not
universal. Ethics must be interpreted in terms of politics; and the search for an ethical norm outside
politics is doomed to frustration” (E: H. Carr, 1981: 19).
125
For a detailed discussion of these three guiding images, see Benedict Anderson (1991):
163-187.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
151
rehearse its topography here; at any rate, Anderson makes the convincing points
that the Census is what rendered the notion of a population imaginable, that
territories could only be thought once modern Maps were invented, and finally
that Museums are what gave historical depth to our notions of a given population
inhabiting a given land.
So, as a way of briefly taking stock, let me just quickly and glibly suggest
(somewhat tongue in cheek) that, for a world community to be imaginable in
Anderson’s sense, the alternative cornerstones might well be the Computer,
Space Travel, and the Social Sciences. Through Computers and the just started
Information Revolution, we are progressively led to perceive reasoning (not
Reason) as a generalised and distinctive human trait; from Space travails we
rapidly gain an overall perspective of the entire human race; and the Social
Sciences are there (and have been there for a while) to make us all feel we are
indeed one and as a result of the fact we are already starting to do so. Thus a
world community may come to be fully imagined. And hence, once again we
begin its construction, now on a firmer notional basis.
To weave such a thinkability together with what I suggested earlier: it is
certainly not too difficult to articulate this with the links between “modernisation”
and the processes of emergence of “universal human values”. Scientific, technical,
economic and political developments of various sorts have both reduced
dependency between people and augmented as much real as felt affinities and
loyalties among an increasing number of us. Simultaneously, new problems and
issues keep arising which largely exceed the limits and boundaries of old States
and communities and which these are therefore incapable of solving by
themselves – the typical type of situation for new, wider ranging, sets of
representations and values to emerge.
Whether such values, of a more universal scope (because they are anchored
in a more inclusive world community) will, in turn, give rise to universal human
rights of some sort, depends on the vagaries of power struggles. But they are
becoming possible and, in many cases, they are becoming systematically
unavoidable, for all sorts of reasons which I shall return to in a little while.
152
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
5.
However, I want to first return to my prime theme, albeit through a sort
of back door. And, in an effort to bring my points home clearly, I would like
to start critically pulling together some of the strands of what I have been
stating.
Returning to what I indicated earlier, it is curious to note that the endeavour
of carrying out a convergence, or a harmonisation, of normative orders in the
world, appears to have started at the most difficult end, as it were. Without going
back to an historical narrative, notice that in the cyclopic attempt to somehow
bring together different peoples, different cultures, different mentalities and
civilisations, we seem to have begun at the legal side of things.
That was maybe inevitable. Notwithstanding early missionary efforts at a
universal conceptual “normalisation”, and perhaps due to its relative inefficacy,
we started with human rights, rather than with human values. The horrors of two
World Wars, the absurdity of the Holocaust, the massive decolonisations, and the
underlying strength (undoubtedly amplified by military victories) of Woodrow
Wilson’s and Franklin Roosevelt’s legalism and Liberal ideals made that the
preferred path.
That certainly made fairly good sense in a (mostly) Westphalian world, in an
order in which States were the sole recognised actors and law one of their prime
chosen means of communication, but it is today probably a mistake, as that is not
the path of least resistance126; quite the opposite, I believe. The community of
States is no longer what it was in either Wilson’s or Roosevelt’s times; new voices
have joined the fray, in what is now a much more heterogeneous type of
126
As good an example of this as any is, I believe, made plain by the noted transcultural
human rights thinker, Abdullahi Ahmed An-Na’im, who wrote, for example: “the general thesis of my
approach is that, since people are more likely to observe normative propositions if they believe them
to be sanctioned by their own cultural traditions, observance of human rights standards can be
improved through the enhancement of the cultural legitimacy of those standards” (An-Na’im, 1992:
20). This statement, hard to disagree with, shows that the choice of a path is harder than positivist
hardline legal normativists claimed.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
153
“chorus”127. Moreover, even if (and where) States and “legalese” are undoubtedly
still predominant, other actors and other dialects for international exchanges have
gained circulation and have surpassed them in effectiveness. More on this later.
Actually, now, what am I saying here? That formality is no longer the
most efficacious strategy and that informality, in its stead, is? Or, more
modestly, that such formal means seem to me to be, at this stage, a path of lesser
resistance?
Well, both of these, really. A rather playful analogy with a fine distinction
underlying Ronald Dworkin’s elegant attack on Hans Kelsen’s model of rules
(which, perhaps somewhat precipitately, he cast as an all out critique of legal
positivism) will help me make my point more eloquently, or so I hope. Dworkin
had a go at Kelsen’s model that reduced law to “rules”, largely by pointing out
that, quite apart from rules, there are “principles” and “policies” which coexist with
them in law and yet display another intrinsic logic128. Dworkin showed this
difference in nexus by stressing the fact that “rules” and “principles” have very
different relations to any “counter-examples” which can be thrown at them: rules
do not survive contrary cases, while principles may actually be refined by them.
Mutatis mutandis, the same distinction may be said to apply to the contrast
between “rights” and “values”.
We can quickly break this down into what I deem to be its main and more
relevant constituent parts, so as to ensure my intended comparison is rendered
127
As Paula Escarameia has kindly made me notice. This is not surprising after the generalised
decolonisations which occurred after World War II; it is also curious to note that many of the small
new Caribbean and Pacific countries actually recruit their delegates, to organisms such as the UN,
from among the NGO community.
128
R. Dworkin (1977): 22 ff.. In order to understand what Dworkin means by this, allow me to
quote a wonderful Portuguese legal philosopher, José de Sousa e Brito (1996: 195) in his rigorous
characterisation of this dispute: “a counter-example to a rule implies a contrary rule, which comprises
the counter-example, and thus [engenders] a rule conflict. This conflict can only be solved by
transforming one of the rules, which will include an exception to it, or by invalidating one of the rules.
But a principle can give way to another principle or to a rule in the case of a counter-example without
becoming therefore invalid or having to be transformed. This becomes understandable by a specific
dimension of a principle, its weight, which can be weighed compared with other principles or rules”.
154
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
plain. Values do indeed have another relation to any counter-examples which can
be stated against their formulation than do rights. Counter-examples refute the
existence of rights, unless they are integrated into them as special exceptions;
while, in the case of values, counter-examples can give way to another value,
without becoming therefore invalid or having to be transformed: they simply
render the values in question more complex.
Thus, on the whole, it appears to me that values (very much like Dworkin’s
“principles”) make for a more flexible, in the sense of being more coherently
expandable, starting point than rights. My general point should by now be self-evident and it is the following: in an international stage with many diverse actors
and multiple “voices” (as the great literary critic Mikhail Bakhtin would perforce
have put it), reluctance to sediment a common language is obdurate and
unrelenting; and when forced to do so, a typical kind of strategy is to insist on the
dangers of incoherence. It is consequently more tractable, in such arenas, to build
on values than on rights129. And in this sense it is unfortunate that we somehow
stubbornly persist in applying, to a present-day deeply changed structural
situation, a set of conjunctural, tactical, devices, which are now of no real use, at
least if used by themselves.
At least to my mind, our persistent blindness in relation to this compelling
need to change tactics comes, I must say, as a surprise130. Why do we insist (or, at
129
Or on both together. Allow me to quote Richard Falk at some length on a connected theme:
“without mediating international human rights through the web of cultural circumstances, it will be
impossible for human rights norms and practices to take deep hold in non-Western societies except
to the partial, and often distorting, degree that these societies – or, more likely, their governing elites
– have been to some extent Westernised. At the same time, without cultural practices and traditions
being tested against the norms of international human rights, there will be a regressive disposition
toward the retention of cruel, brutal, and exploitative aspects of religions and cultural tradition. One
objective of normative standards is the protection of vulnerable individuals and groups from harsh
forms of local prejudice that have hardened over time into custom and tradition and thereby
achieved a kind of provincial legitimacy” (Richard Falk, 1992:45-46). Surely a hard-to-disagree-with
chart of interrelations.
130
If only our blindness in relation to it is a soft version, that of common denominators. To
quote again from the work of A. An Na’im: “given the extreme cultural diversity of the world
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
155
least, why do those of us who trust the goodness of a belief and a practice of
universal human values) on plodding the hard path? Is it because we astutely
recognise that either States are involved or no game is playable? Or is it because
(and these two are not mutually exclusive), we simply credit legalism with a sort
of supernatural force? Or, instead, is it for the much more devious motive that we
wholeheartedly buy the idea that cultural convergence, the nominal
harmonisation of principles, if you will, is something which sort of automatically
somehow takes care of itself, and therefore a matter which needs no pushing?131
Many of us, or so I fathom, actually give credit to the latter. Yet I believe that
is so because of some of our fashionable, and in terms of our many historical,
preconceptions. Again, I would like to indulge in some roundabout considerations
so as to get to my point via a less ambiguous route. As the master American
phenomenologist Clifford Geertz so forcefully wrote some forty years ago, our
preconceptions rest on something which many think (believe might be a better
word for it) and which most spent the 1980s theorising: that with “modernisation”,
what we call “localism” will inexorably soon die of natural causes132, as it were133.
community, it can be argued that human rights could be founded on the existing least common
denominator among these cultural traditions[…]. This approach is based on the belief that, despite
their apparent peculiarities and diversity, human beings and societies share certain fundamental
interests, concerns, qualities, traits, and values that can be identified and articulated as the framework
for a common “culture” of universal human rights” (op. cit.: 21).
131
This is, of course, not the case with rights, which must be institutionally pushed. For
detailed discussions on the conditions for the success of human rights penetration in different social
arenas, see (eds.) T. Risse, S. Ropp e K. Sikkink (1999: mostly 1-39), e R. Falk (op. cit.: 55-57), for similar
but not identical comparative models. Also useful, but much more general, is David Forsythe (2000).
132
Clifford Geertz (1963). I believe Geertz has since then changed his mind about this. This is
Geertz writing in 1984: “the objection to anti-relativism is not that it rejects an it’s-all-how-you-look-at-it approach to knowledge or a when-in-Rome approach to morality, but that it imagines that they
[such kinds of approaches] can only be defeated by placing morality beyond culture and knowledge
beyond both. This […] is no longer possible. If we wanted home truths, we should have stayed at
home” (1984: 276). Incisive, and in a grand style as always, by one of the maîtres penseurs of
contemporary cultural relativism. For all their esthetical and even ethical appeal, one cannot help
but wonder what the notional place is from which such statements would conceivably be utterable.
133
This was most forcefully stated, for example, by Ernest Gellner (1983), a justly famous
British philosopher cum social anthropologist, though many others could be adduced as proponents
156
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Surely, this is partly true. But it is also most certainly partly false. A somewhat
flat theory of rationality underlies that sort of conviction. That is what I want to
briefly turn to next.
6.
In order to get to a harder core of our preconceived certainties, it is useful
to try to break this belief open a little. An American legal anthropologist,
John Comaroff, put things rather neatly when he wrote that “’modernity’ has
classically been measured in terms of universalist criteria […]. Its teleology has
always involved the removal of difference, the erasure of relativizing systems
of value and knowledge in the cause of world historical processes of
rationalization”. As a matter of fact, it is easy to agree that the omnivorous appetites of modernity (and this is Liberalism we are really talking about here) are
notorious; as Comaroff himself concluded, rather whimsically, “hence the almost
millennial faith, across all the grand theoretical traditions, in the inevitable
demise of cultural localism”134.
I think the point is worth generalising. And that can be formulated as
follows: it is not so much that Liberalism inexorably leads to imperialism of one
sort or another; in this view, I suppose it would be fair to say, the question is rather
that the rational basis of Liberal programs always appear to hide a messianic belief
in its (their) own unavoidability135.
of such type of a position. Gellner was always an heroically incorrigible defender of rationalism and
Liberal rationality.
134
J. L. Comaroff (1996): 162.
135
The already cited Richard Falk enunciates part of this in an exemplary manner: “these
images of human rights have been principally generated in the West, evolving over time from the
Enlightenment mind-set, including a confidence in the possibility of a rational social and political
order based on individual rights that, over time, could facilitate progress and happiness for humankind
as a whole. Underlying such convictions is a belief in the sufficiency of human reason, especially as
it is manifested in science and technology, and a vestigial distaste for any intrusion on the terrain of
human rights by recourse to religion, tradition, and emotion”(op. cit.: 45).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
157
Bear with me as I dig in a little, here. John Comaroff’s position on the whole
issue is, I believe, inherently interesting (and most certainly not uninfluential). It
also ventures down a path not too different from the one I chose; so, to my mind
at least, it is worth our while for us to detain ourselves on his turf for a while. I
certainly agree with most of what he wrote, but….
Going straight to the core of his argument, I shall start by noting that the
position he takes is a somewhat maximalist one. That is quite easy to see. Directly
contradicting the rather linear view of rationality many Liberals herald, he claimed
that “there is no such thing as a universal symbol or image – notwithstanding the
fact that ever more symbols and images circulate throughout the universe [his
hyperbole, not mine; but the italics are my own]”. An apparently Saussureian
point, actually, insofar as it relates to the ultimate “arbitrariness of signs”, as
semiologists would undoubtedly put it.
But is it really so? I would claim not really. And I would further defend that
it only seems so because of our prejudices. To my mind, Comaroff surreptitiously
conflated here two quite different levels: on the one hand, universality as a sine
qua non point of departure for liberal abstract universalism (the claim I made right
at the start) and, on the other hand, the Hegelian (allow me to call it that, without
going further into it) presumption that universality is the ineluctable point of
arrival of the rationality project.
The subtle léger de main is interesting. For this is a conflation which neatly
allows him to foreclose the whole issue by hinting at a circularity of a Liberalism
which only finds at the end what it backhandedly put there at the beginning.
Which, I believe, shows that rather than being fair to the Liberal program,
Comaroff aims at throwing doubts on its solvency.
But there is more. With an obvious taste for the odd aphorism, Comaroff
then went on to stress: “denotation may be global. But connotation is always
local: meaning is never inherently a sign, it is always filtered through a culturally
endowed eye or ear. Indeed, the more we are aware of the global flow of words
and images – that “Coke Adds Life” in New York and New Delhi and New Britain;
that audiences the world over thrilled to Michael Jordan and the Chicago Bulls
(Chicago Oxen in Beijing) – the more we are made aware that these things are
everywhere understood differently”. Contrary to what would be old Liberal
158
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
expectations, Comaroff was led to conclude: “in other words, it is the very
experience of globalism that underscores an awareness of localism – and, in the
process, reinforces it”136.
This point of his is, I think, a crucial one. The unearthed mechanism is not, for
Comaroff (and he made that abundantly clear), the result of a local reaction to a
growing global systemic power, or that of any other kind of subalternity; rather,
it is an automatic and inevitable resonance, triggered by the simple brute fact
that localism and globalism are complementary sides of the very same coin. Thus
this complementarity is taken for granted, or at best explained away rather than
explained; and therefore some of the most pregnant implications of it are not
thoroughly followed through.
The answer offered is nice, perhaps it even sits comfortably with our linear
certainties, but it is consequently not a self-evident one. So all this would gain if
it were made more explicit; something Comaroff does not do. For he actually calls
forth two very different explanatory mechanisms.
On the one hand this reasoning spells out the evidence that forces always
entail counterforces: which may either be taken as an action-reaction physicist’s
point of view or, more abstractly, as a Hegelian sort of metaphysics. But it also
underlines, on the other hand, a quite different perception: the consciousness
that one of the implications of globalism is the unintended engendering of new,
unforeseen, and challenging local communities137.
So which is it, the first, the second, or both138 of these explanations? I would
probably, if pressed, argue for this last hypothesis139. Enunciating it is not difficult.
136
Ibid.: 174.
137
These are different mechanisms, of course, in spite of some convergences in their outcomes.
Be it the creation of a novel framework, or the loosening of the old ones, the fact is that both the
mechanisms Comaroff conflates lead to a kind of “recrystallisation”. Not so much as a reaction. Rather
as the reshuffling which spontaneously results from the loosening attendant to the fall of the old
ordering. My point here is simply that in fusing them, Comaroff does not see the complementary
interdependence between them which I take to be crucial in their operation.
138
See the wonderful monograph by Benjamin Barber (1996) for one possible model of such
types of symmetries: that of jihad and that of McWorld, as he memorably characterised them.
139
In this, my position is not very different from that of R. Falk: “one important consequence
of the globalisation of social, political and economic life which often goes unnoticed is cultural
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
159
One possible way of doing so is stating that localism and globalism do indeed fly
together. And I certainly believe that understanding the dynamics of the co-operation of these two apparently opposed (but actually complementary)
pressures does help us in our efforts to make sense of the contemporary world.
The notional, conceptual, difficulty all this raises is nevertheless pretty hard
to tackle. For one thing, it is definitely counter-intuitive: we are not used to
systematically thinking in terms of dynamic interactions which give rise to everchanging choreographies. And it does somewhat go against the grain, as it were,
of our rather linear causal preconceptions. So we are bound to have a hard time
picturing what all this effectively means. But, as is often the case in such
circumstances, homely analogies and metaphors do help.
Again, I want to indulge in some roundabout indirection here, paradoxically
for the sake of intelligibility. Perhaps a useful image for the working resonance of
these twin and mutually reinforcing processes (certainly a fascinating and very
pretty one) can be harnessed from Renato Rosaldo’s “porosity” picture, which
he got from a 1980 Harvard conference of an elderly Cora Du Bois140, a justly
famous anthropologist. These are comments made by Rosaldo in the context of
the elderly lady’s complaint against “the complexity and disarray” that she
claimed were turning the social disciplines from “distinguished art museums” into
unseemly “garage sales”. Indignant (but also noticeably delighted at Du Bois’
vivacious comparison) Rosaldo responded with the perceptive assertion that
those types of statements result from “analytical postures developed during the
penetration and overlapping, the coexistence in a given social space of several cultural traditions, as
well as the more vivid interpenetration of cultural experience and practice as a consequence of
media and transportation technologies, travel and tourism, cross-cultural education, and a logarithmic
increase in human interaction of all varieties. Such a reality posits its own distinctive and opposing
social demands: respect of difference (culture; to sustain diversity), acknowledgment of sameness
(international law of human rights; to re-establish normative authority). The emergence and the
implementation of international human rights embody both opportunities and obstacles arising
from this always-shifting interplay between the valuing of difference and the quest for sameness”
(1992: 46). This is a rather nice Durkheimian reflection on the ambivalence of globalising forces at
an ideal level.
140
160
See R. Rosaldo (1989): 44.
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
colonial era [which] can no longer be sustained. Ours is definitively a postcolonial
epoch”.
What does this mean? As I am sure can easily be appreciated, what Rosaldo
did was to bring out a hidden isomorphism: one between the world we live in
and the way we picture it; an ultra-Durkheimianism of sorts. So far, so good, you
would say, nothing new there. But then Rosaldo gave us what I see as the crunch
of his point, his punch line, displaying what is surely a metaphorical rendering of
modernity, one which we had perhaps not noticed yet, but which is nevertheless
flagrantly embodied in its policies. This is Rosaldo writing: “even the conservative
national politics of containment, designed to shield “us” from “them”, betray the
impossibility of maintaining hermetically sealed cultures. Consider a series of
efforts: police fight cocaine dealers, border guards detain undocumented workers,
tariffs try to keep out Japanese [and other “foreign”] imports, and celestial
canopies promise to fend off Soviet [now Russian, Chinese and, who knows, soon
perhaps even Iraqi or Lybian ones] missiles. Such efforts to police and barricade
reveal, more than anything else, how porous “our” borders have become”141. A
rather nice tour around an isomorphism, really: the one between the “hybrid
post-modern world” and our conceptualizations of it.
Well now, enough roundabout detours. So please bear with me again as I try
to bring this back to what I said earlier, welding things together, as it were. The
modern world, as this just mentioned delightful symbolic embodiment of it
brought out by R. Rosaldo so graphically displays, is perhaps more accurately
thought of as a set of topologically interwoven multidimensional spaces than as
the flat, checkerboard-type, old political maps so neatly delineated for us.
Let me be clear as to precisely what I mean here, what exactly I am trying to
get at. The point that should be kept in mind is this: “garage sales” are not jumbled
expressions of disorder. They are manifestations of modern forms of order which we
often still fail to recognise as such. And it is high time we do see them as such.
This is what I alluded to at the very beginning of this communication when
I wrote about “the shape of order” which, I believe, is itself undergoing profound
141
Ibid.: 44-45.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
161
changes. I can most certainly detail my point somewhat, and as a by-the-way
justify my many metaphorical detours and walkabouts: in such a type of setting,
I think, old concepts do little to help reveal to us the extant multidimensional
style of ordering now surfacing as our new social arenas, if only because there are
now, it is blatant, as many orders as there are perspectives. So they must be
supplemented142.
And that, I would certainly argue, is precisely that which the contemporary
world provides us more copiously with and in a more sustained way. So how do
we go about deciphering our brave new world, with which the old, flat, Liberal
rationality appears to have some difficulties?
7.
There is, of course, a general ontological cum sociological aspect to all of
this, and now is as good a moment as any to expose it. We must move beyond
and above our ways of pondering and evaluating things. For a long time now, we
have laboured on minutiae, on details, on analyses. This has been the model we
transferred from Science onto the “Humanities”: we have tended to studiously
look down, for God, like the Devil, we believed to be in the details. Philosophers,
jurists, social scientists, all mostly took their own cultural starting point as a point
of departure and sort of dug into it, guided by more or less high and tight
principles of whatever kinds of “normative coherence” they happened to favour.
But this will no longer do, in our multidimensional “global village” world. We must
now reverse course and look up, try to glimpse the upper reaches of generality
and its realm.
Subsumption may be a good term for the mechanism of turning ancient
forms into contents of a modern and more inclusive one, a bigger form. We need
142
This is what the often cited R. Falk said: “to be effective at local and community levels, the
imposition of the universal must be by way of an opening in the culture itself, not by external
imposition on the culture” (op. cit.: 49).
162
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
to tackle and grasp the encompassing themes that pattern the ordering of the
new world we live in.
Which changes everything. Rather than presume the old world as a
comfortable given, we shall have the face the uncertainties (moral and political)
of the new one. This entails risks; but also opportunities for gains. What we face
is a novel unsureness born of indetermination and perhaps manifold unknown
contingencies. However, this will also allow us to establish our paths in far more
interesting and exciting surroundings: ones ultimately indifferent to our moldings
and our intransigence of old, and therefore offering us our maximum liberty to
thrive, or to fail, but anyway to operate, in our own chosen way. A release. A new
meaning to a venerable idea: that of Freedom. This is a point I shall, of course,
return to.
Why this will be so is not hard to portray; nor are the means to go about it
such a perplexing question. Perhaps the key concept here is “dialogue”143. Or
perhaps it is rather “multiculturalism”. That has certainly been the road out taken
by many contemporary theoretically-minded social analysts.
Jürgen Habermas, to cite an obvious name, leads one strand with his
renowned preoccupations with anti-exclusionary mechanisms of “moral
universalism”, and his push for a universal “ethics of dialogue”, in which the only
force consented would be “the force of an argument”144. All of which reveals itself
rather neatly as an optimistic version of neo-Liberal perspectives. Others, such as
Boaventura de Sousa Santos (whom I briefly return to below) are somewhat
suspicious of this alacrity, and often voice severe radical doubts about the
efficacy of such “dialogic communities”; unless, that is, they sprout as “neo-communities” marked by their “oppositional postmodernism” and the associated
radical “heterotopian” options. Those are meant to be quite unlike Habermas’s
dialogic communities, characterised by Sousa Santos as creatures of an objectio-
143
Although, I would insist, such a dialogue must be a two-way affair, in the sense of being
both external (between groups) and internal.
144
Expounded in many places, but perhaps most clearly and more thoroughly in his ever so
thoughtful J. Habermas (1990).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
163
nable “celebratory postmodernism”. Such “neo-communities” advocated, are
entities which aim at the “global repoliticisation of the collective life145” in a set
of new political “spaces”, corresponding to the “new audiences” engaged in
dialogic processes of “emancipatory rhetoric” within the emergent six new
“configurations of political power” (“the household”, “the workplace”, “the
marketplace”, “the communityplace”, “the citizenplace” and “the worldplace”)
which, Sousa Santos defends, have substituted the old binary and very classical
Liberal opposition between “State” and “civil society”. This picturing, in turn,
reflects a more pessimistic anti-Liberal stance formulated in curiously unrecicled
neo(or post)-Marxian terms.
These are just two of the many contemporary authors putting these types of
solutions forward. As could be expected, models vary greatly, and often following
the old political-ideological take-off points of their proponents. But, among the
now practically hegemonic “moderns”, many (by this, of course, I mean many in
the Democratic camp, or at least everyone there but jihad-prone conservative
diehards of whatever political inclination or tonality) seem to agree that the
installation of a global cosmopolitan political community of democratic societies
and transnational citizens is both desirable and a moral imperative in today’s world.
In some ways, such seems to be the new “conventional wisdom”.
Interestingly, this is true even for those who fear its colours, or of the
incurable nostalgics who tend to reify the “local” as the source of “the real
community”. For those who retain a belief in founding social contracts (and there
are contractualists of all feathers), the bargaining of a new pact, compact,
arrangement, or settlement, is urgently called upon, as both the coordinates and
145
Boaventura de Sousa Santos (1995): 350. My other quotations here come from various parts
of this study. For a wonderful retake on these topics, see B. de Sousa Santos (1998), a short article
in which the author responds to Eve Darian-Smith (an American anthropologist) detailed and
thoughtful critique of his 1995 monograph. Sousa Santos differs from Habermas, for example, in
their relative readings of the damages made possible by the Illuminist concept of “reason”; as he
wrote in the context of the viability of an effectively liberative multicultural dialogue, “let us not
forget that under the guise of universal values authorized by reason, the reason of a race, sex, and
social class was in fact imposed” (1998: 131), and led to the eradication of uncountable modes of life.
164
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
the parts involved, on the one hand, and, on the other hand, the very terms of the
covenant itself, have both been deeply altered.
For those others who leave behind “modernity” and go for a more risqué
“post-modern” solution (a contagious early 90s fad), new “politics of identity” and
new “politics of recognition” are the chosen recipe. But disagreements should not
be overstated. A new (and, this time, explicitly political) “Copernican revolution”
of sorts seems to be a widely shared yearning, even if there is no obvious
consensus as to its required point of application or desirable reach. The old
certainties appear to have crumbled. We have indeed come a long way.
Taking stock, what I am really trying to convey, I suppose, is this: the old,
respectable, flat and linear rationality of the Enlightenment is no longer sufficient in
our multidimensional world; or so it seems to more and more analysts, quite
irrespective of their political and ideological standpoints. As a grid, it makes less
and less sense of things. As a tool, it is of ever thinner use. To some, this means
that a rather profound paradigm change is felt to be urgently needed; and it is
sensed that it will surely come about, whether we like it or not, should we or
should we not do something about it, and quite irrespective of our best efforts.
And the sensation of rupture appears to be also a sensation of rapture. We are, it
is perceived, under the throes of a topological shift, not merely an enlargement.
For most, however, the change called for is not really very deep, and it is certainly
not a real “paradigmatic Copernican turn”. What is needed is instead a forceful
renewal; one which is urgently called for, but amounts more to a metamorphosis
than to a full-fledged “epistemic break”.
That this is so, that such premonitions and differences abound, is not
perhaps difficult to understand. Globalisation is not, from a structural point of
view, simply growth: it reconfigures both the world and local communities and
how we think of each of these layers or conceptualise their interplay146. And it
146
A beautiful expression of this (a garage sale one at that) was provided by Sally Falk Moore,
when she wrote: “when, at the foot of Mount Kilimanjaro, one meets a blanket wearing, otherwise
naked, spear-carrying Maasai man on a back path in the Tanzanian bush, one notices that he has a
spool from a Kodak film packet in his earlobe as an earring plug. That earring alone is sufficient to
indicate that he is not a total reproducer of an integrated ancestral culture. His film spindle is made
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
165
rearranges and refurnishes how we identify ourselves, in the strongest possible
sense: that of how we cast to ourselves our own subjectivity. It redefines both
what we think of as us and how we have pinpointed the I for a long time.
Not being able to dig too deeply into a matter I deem fascinating, I do not
want to pass up the opportunity of briefly commenting on this last point,
individuality; or rather, the contemporary notions of personhood and subjectivity
which global transformations are, I think, producing. A theme deserving a much
more detailed pondering than what is feasible here. Let me begin by noticing,
anyway, that given its centrality in Liberal theory, individualism has been the
focus of a great deal of attention. But that (paradoxically, precisely because it is
so central) not too much critical scrutiny has been bestowed on the underlying
concept of individual which subtends it.
As could be expected, this has understandably given rise to endless
arguments. These include discussions between self-styled “individualists” and
self-styled “communitarists”, as those two positions are consequently taken to
represent polar opposites, with paradigmatic Lockians on the one side, and
“collectivity-minded” Benthamites on the other side of the artificial divide. Not
wanting to be more than merely indicative, allow me to just assert that obviously
things are by no means that simple: if only because both the idea of “individual”
and that of “community” are socio-historical notions; and so not only their
patterns but also their separability are constantly subjected to profound changes.
In the case in point, it should not be taken for granted that the forms of
individuality engendered by globalisation actually dissolve community. What
appears instead to be the case is that once modern transformations release
of extruded plastic manufactured in Rochester, New York, his red blanket comes from Europe, his
knife is made of Sheffield steel. Dangling from a thong around his neck is a small leather container
full of Tanzanian paper money, the proceeds from selling his cattle in a government–regulated
market. The price of his animals varies with world inflation. The roads nearby have buses with
tourists. The international economy has penetrated everywhere. Ideas and information have moved
with it. All peoples live within nations and have seen the silvery side of planes flying over their lands.
The definitions of social part and social whole have changed” (1986: 4-5). This was written almost a
generation ago. It still rings true, with or without Osama bin Laden.
166
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
people from obsolete dependencies and constraints (while of course creating
others, like modern variants of Weber’s “iron cage”), Durkheimian anomie is not
the rock-bottom inevitable, fateful, result. But rather new, negotiated identities
tend to emerge, multi-layered ones, new forms of individuality, with rich, complex
and variegated novel interpersonal affinities and loyalties which, from historical
experience, will very probably lead to redefinitions of political community without
any overall loss of responsibility.
These are redefinitions which will certainly entail deep alterations in both
their terms and dimensionality, or so I would guess. But these changes do not
necessarily demand abandoning the venerable Liberal agenda; although they do
mean reformulating it somewhat substantially. The rationale for this is quite
simple: for example, and as Will Kymlicka and Thomas M. Franck insisted, even
when “liberated from predetermined definitions of racial, religious, and national
identities, people still tend to choose to belong to groups”147. My general point
is simple and it is the following: disorder is not necessarily what follows globalism.
What we shall see, I suspect, what we are already witnessing, is a reshuffling,
a redistribution, and a renaming. And this is what we need to find a new
“grammar” for, a somewhat new rationality, political as well as formal: in order to
render our ever-changing social world, as a new type of political community,
intelligible and so to be able to live and work with it.
There is another way of putting this. Liberalism is by no means dead. But it
does indeed require a metamorphosis of sorts, if it is to survive as a politically
147
T. M. Franck, op. cit.: 201. W. Kymlicka makes much the same point in a slightly different
context, in his authoritative Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights (1995). Other
examples could of course be adduced; but let this one suffice. Now, this certainly alters the
quantities, so to speak, with which Westphalian States, “traditional communities”, and old value and
religious leaders and systems carried out their accounts. And so such redefinitions naturally trouble
them, and as a result they resist these. But notice that even with new numbers, with new quantities,
and with novel forms of interconnectedness, the terms of the equation between people, community,
and responsibility need not be altered in any ontologically deep sense. Although, of course, the
manner of their intertwining may need to be changed, as much as the means of achieving it in
quicker and neater ways.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
167
pertinent program in which we can all recognize some value in the new world we
appear to be entering.
8.
Well, then, on my next and final leg I want to again make an attempt at
pulling together and wrapping up some of the various separate points I have
being trying to convey here. But, once more for the sake of clarity, I want to
preface that with a brief summary of what I have suggested so far.
In a series of initial steps which amounted to a fuzzy sort of framework to
what came next, I started by delineating a series of motifs into which I think are
cast the changing ideas of universal human values and rights, stressing their ever
more prominent social and political aspects. After this, I underlined both the
similarities and the differences between such notions of human values and those
of human rights; my focus there was on their parallels, namely regarding the
common pre-requisite they share – the underlying concept of an abstract
humanity, which I naturally traced to a Liberal cosmopolitan epistemic
transformation of Christian universalist principles.
In this context, I underscored, on the one hand, the difficulties inherent in
this perspective and, on the other hand, those of the manifold historicist attempts
carried out in order to try to avoid its pitfalls. My posture was that of a skeptical
constructivist. Throughout, my attention was firmly centered on the changing
historical and political dimensions of such cosmopolitan sets of ideas, and on
their twists and turns in terms of the changing patterns of world order (including
its bouts of disorder).
I went on to stress, fairly forcefully, the core idea that any notions of value
universality and notions of a world community of some one kind or another have
an umbilical connection to each other. I also insisted on the changing nature and
range of concepts too readily taken for granted, like those of “individual” and
“community”. Some doubts were also expressed as to the continuing efficacy of
singling out legal convergence in a world in which globalising centripetal forces
168
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
lay the basis for an international civil society with more and more “homogenous”
values but also a world in which, conversely, centrifugal forces appear to hit forms
rather harder than principles.
I then put a particular emphasis on the “modern” linear vision of rationality;
in so doing, and perhaps most crucially, I tried to do this in the context of the
dependency of the recurrent cosmopolitan ideas on the shared utopian images
of an international community to which I had earlier alluded, and on that of the
hybridism so characteristic of our contemporary settings. In a bid to avoid
circular teleological models and their attendant trappings, I subsequently made
an effort to maintain an open-ended perspective as to the future progression of
such patterns of cosmopolitan universalist ideas: the future is unpredictable, no
matter what we may think is the clarity of “trends”.
I want to conclude by tentatively turning to the apparent available range of
such options, given this indeterminate scenario. So let us finally get right down
to the issue which forms my core point in this communication: is there such a
thing as human values? Is it coming to be? And, if so, is either of these actually
a good thing?
Well, questions like those are, to say the least (and as I hope I have shown),
pretty difficult to answer in any straightforward fashion. There is one level, at
any rate (the most general and abstract one, the potential ideal level), at
which universal human values do indeed exist. This means more than the
trivial recognition that they are a possibility; or that they are coming to be.
More than that, it is surely an idea which effectively engenders some convergences.
For the sake of clarity, let me put this forward rather forcefully too, even if it
means I shall have to water it down, to soft-pedal it, immediately afterwards.
At an abstract level, universal human values must somehow be there
somewhere. For it is surely the existence of such an implicit conceptual framework
(even if it is entirely tacit) which allows us to not only arrange different values in
different classes (that is, it is the genus which allows us to delineate its species),
but surely also to even recognise different values (as it were beneath, or subjacent
to, their variation) as precisely that, values. So a conceptual scheme of some sort
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
169
is there, in our conscience148. For we are indeed capable of doing all this taxonomic
stuff. We talk about human values, we argue, we agree and disagree about them;
but even when we dispute them, we know what they mean.
Now, it seems self-evident that the mere fact that we all do all of these things
(in other words, that we recognise similarities and differences, both major and
minor) actually betrays the presence of such a shared set of notions. It implies and
demands them; or, at the very least, it takes it for granted that they are at last
being co-opted. Notice, though, that this simply means they are there as a part
of something akin to what Émile Durkheim called the conscience collective: all it
entails is that they exist as a set of concepts, as a conceptual scheme. It in no way
means we accept them, or their “empire”. Which does not really go (or indeed take
us) very far.
This hesitation bears restating. Obviously, consciousness and conscience are
not the same thing, so all this of course need not mean anything more than that
universal human values are nowadays a recognised global idea. Nevertheless, this
should caution us, anyway, not to underestimate its power; since this idea, to be
sure, has gained a sweeping international, a far-ranging intercultural, or inter-subjective, currency in today’s world; so even when we refuse it, or when we try to
refute it, we take it as a given. Its circulation does not in any way spell out the
manifestation of a “categorical imperative”, of a “structural invariant”, a “deep
structure”, an Ur-Struktur, or any other more or less material or notional variants149
of the eternal forms which we can find in the ancient Platonic realm of Hyper148
The point is little more than formal, unless we take an extreme nominalist position. But
here it is, in other words: at least latently, or virtually, a pre-conception of universal human values
must already be there, in our consciousness, otherwise we would neither be capable of identifying
their kinship, nor of isolating their individuality. So some convergences are indeed engendered. But
this only leads us so far; since it could hardly be cogently argued, of course, that the “word” makes
the “thing”.
149
Perhaps the most influential modern refraction of which was the Marxist refusal to recognise
what he called “human nature”, in his famous “Theses against Feuerbach”. Marx was, of course,
absolutely right, in wanting to “sociologise” and “historicise” our notions of human nature; although,
arguably, not recognising its immutable, a-historical, substratum was paid for dearly, throughout the
XXth century, by peoples (and Marxist politicians) the world over.
170
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
-Uranus. It is somewhat akin to an epiphenomenom. It merely spells out, albeit
very loudly, that it is an idea which is a parcel of contemporary international
discourse. Whether or not those human values are out there, as a “thing in itself”,
is quite a different matter.
To be sure, the other concept of universal human values I alluded to earlier,
the technical, the scientific, the deductible, the “structural invariant” one (to
repeat the ultimately neo-Kantian term of the late Prague Circle of linguists and
of Claude Lévi-Strauss’s early structuralism) is most surely there too. This stems
from the verification that as human beings we are ultimately all alike, that there
is a definite commonality to us all.
However, this commonality is there most probably as just a collection of
empty forms, forms into which values fit, but that are not indicative of any
particular contents. So I do not think such an empty structural universalism can
sustain any claims to prop up, or even to shore up, any particular moral figures.
Moreover, the effort to detect that technical set of forms demands an investigative
labour of a very different nature. There is no possibility of a field-research type of
method of discovery there. This type of “structural” universal human values is
merely formal (in a quite literal sense) and they are abstract entities which cannot
ever be empirically150 ascertained, but may only be theoretically deduced.
150
Although, and to go back to my earlier comments, a moment of reflection shows us they
clearly must exist at some level, and in some form or another: or else all translations would be (worse
than treasons) utterly impossible, democracy would turn out to be either a mistake or a simple
camouflage for pure power politics, and every single one of the social sciences as an absolute sham.
At least since the philosophes, we all operate on the assumption that an all-embracing human
common denominator is certainly there, at least insofar as no one really thinks that here are some
of us surrounded by irreductibly alien others, that there are entities out there with whom all forms
of dialogue are foreclosed, and that social life is (has always been and forever will be) somehow
orchestrated by an elite of cunningly telepathic super-beings plotting against an indeterminate us
somehow immersed in a sea of alien species groupings. Or some absurdity of the sort. There may be
disputes as to the preferable, the most apposite, basis for such a common denominator. But no one
I am aware of can seriously doubt that there are indeed (that there must be) universal human values
at this deeper, more abstract, technically virtual, level. Otherwise, we are not just politically imposing
on others, but also in a grievous way ontologically fooling our very selves.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
171
But, I repeat, these abstract formal universal human rights need not be (and
they really cannot be, and thus they are probably not) in any way similar to, or
even easily comparable with, the generalised human values which we all more or
less share as a newly bundled set of global ideas. Unlike these latter they are
technical constructs, not ideological representations. Such “structural invariants”
dwell in academic, and social scientists’ minds, they do not circulate as shibboleths
in the domains of high politics, or at the lower circles of international public
opinion.
So I suppose this means that we live in a world in which there are two
interacting sets of notions about universal human values: the scientific and the
social versions. They are two weak clusters of notions, so to speak: one, because
it is a mere collection of empty forms; the other, as it is only a newly constituted
bundle of shared ideals. Although they obviously interact, these two sets differ
profoundly.
The context for the contemporary coexistence of these two parallel sets, or
complexes, of ideas is well known. International civil society, as well as a world
society of States, are manifest, ongoing, ever-present, hardening social facts.
Whether we like or dislike them, there they are, visibly blooming. Maybe they are
just passing fads; it seems more likely they are here to stay. So universal human
values as a global idea do indeed appear to have a propitious environment (their
birthplace, really, if heavily modernised) in which to thrive. Whether they do so, we
do not actually know, and we really have no way of ascertaining until we get there.
The same applies to its worth: once there, shall we be able to argue if it is
actually a good thing to arrive at a world with no acknowledged internal
monsters. Utopianism is no good, here151. Let us hope that Jean Jacques
151
A clearly utopian path was the one taken by the UN. As early as in 1947, UNESCO decided
to carry out a lengthy enquiry into member states’ views on human rights, which resulted on a flow
of disparate calls on the pervasive dangers of ethnocentrism and a demand for an acute cultural
sensitivity. This essential but perhaps too diffuse approach has had well-know consequences at the
level of both the production of watered down international legal instruments and at that of a
mobilisation of wills to affirm differences; it has had a much weaker impact as a mechanism for
effecting a working approximation between cultural positions.
172
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Rousseau152 and the Venetian sage153 were wrong when they respectively warned
us that in our affirmation of a universal love for all of Mankind we were hiding our
lack of love for anyone, and that there can be no true friends in a world where
there are no true enemies. Again, we must wait until we get there if we want to
evaluate their wisdom.
What I am trying to say is this: it is all very well to go into triumphalist
detailed explications of the ponderous victories and doctrinal developments of
universal human values in the contemporary world. That progression is all too
visible, perhaps so much so that it is indeed inescapable; it is as if part and parcel
of our cognitive furniture, so to speak. But so too is its relative inefficacy. For no
more than a moderate dose of attention is necessary before it becomes abundantly
clear that surely such developments are not in fact actually rendering atrocities and
gross violations of benign universal sets of consensus any less likely or frequent. It
does not take much to verify the unfortunate fact that, in spite of substantial
convergences and the great strides taken towards a generalized propensity for a
rapid and wide-ranging formalisation of norms, all sorts of brutal and systematic
violations of those ideals do indeed continue apace in the world about us. The
outcome is a sort of cognitive incongruence, a complex resultant. In other words,
and bluntly: it is not at all certain that either the rise of universal human values
or the growing international legalisation of human rights norms are in any way
very really ameliorating the human condition; or, at the very least, legitimate
doubts can convincingly be raised. A realization which, I believe, leads us into a
skeptical pose. We must rapidly abandon the unproven and largely unexamined
152
Rousseau wrote what Andrew Linklater (1998: 55) accurately, in my view, called “a jibe”
against the cosmopolitans whom, he denounced, boast of loving the whole world “in order to enjoy
the privilege of loving no one”. A structuralist (or semiotic) statement avant la lettre?
153
This “Venetian demagogue”, in fact a fictional persona in Michael Didbin’s novel Dead
Lagoon, is quoted in S. Huntington’s Clash of Civilizations (1996: 20) as saying: “there can be no true
friends without true enemies. Unless we hate what we are not, we cannot love what we are. These
are the old truths we are painfully rediscovering after a century or more of sentimental cant. Those
who deny them deny their family, their heritage, their culture, their birthright, their very selves. They
will not lightly be forgiven”. Good food for thought.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
173
assumptions that many of us often tend to engage in, according to which the
transformation of aspirations into principles automatically and in itself spells an
effective basis for minimizing suffering.
Without any hint of pessimism (a “solution” which would of course be as
unwarranted and unconvincing as any form of optimism), allow me to formulate
my deep non-teleological skepticism as unambiguously as I can: it is by no means
liquid that the sharing of universal human values that we witness in today’s world
will in actuality provide a more effective normative basis for producing the good
life than the recipes we just as eagerly tried in the past. We simply do not
positively know if this is so; we cannot but guess. But although that should give
us pause, it should not lead us into despair: as surely that sort of painful
indetermination is inherent in the very nature of all open-ended processes. Well,
where does this leave us, then?
I shall rephrase what I argued before. The conundrum we are rapidly having
to come to terms with today is both more general and more insidious that it
might seem at first sight. And a great deal harder to solve, as well as entailing a
greater amount of tensions, uncertainty, and suffering. It is, I believe, the following:
there can be no doubt that the idea of a set of universal human values, even if it
shows itself not to amount to a plain “imperialist imposition of Western ideas154”,
most definitely is a Western cultural product turned into a worldwide ideological
currency by virtue of a Western-led process of globalisation of a Western-triggered
world system, and exhibits a largely Western-style shape, type of ordering, and
political architecture. Although this is nevertheless only truly so if we take a
proviso into account: that “Western cultural product” is a novelty in the West
itself, and that the forces which brought it about here are now also acting, full-fledged, the world over. Which includes, of course, the West. As such, it is only
154
Héctor Gros Espiell (1998), “Universalidad de los derechos humanos y diversidades culturales”,
Revista Internacional de Derechos Humanos, 158:15. This, of course, is just one of many possible
quotations. The already cited Thomas M. Franck (op. cit.: 202), as we have seen, takes the radical view
that “human rights [do not] represent Western cultural imperialism; instead, they are the consequence
of modernizing forces that are not culturally specific”. From my point of view, this is only partially
true, and then only in relation to only one of the concepts of universality.
174
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
“Western” in an indirect way; what it is, certainly, is a production of global
transformations which affects the West as it affects everyone else. It is the outcome
of growingly effective systemic pressures which are recasting the very coordinates
and the fundamental nature of what we experience as political community in our
globalising world of today.
The implication of all this seems inescapable: the idea of universal human
rights (as a crystallised expression of both latent global values and hollow
universal forms) is most surely a necessary prior conceptual framework (although
certainly not a sufficient one) which will allow us to bestow a sure and uncontested
rational foundation (and thus, should we wish to, an eventual legal basis) to any
worldwide policy designed for their protection and respect. It is an endeavour
which, no doubt, will ultimately come to benefit all peoples and all cultures. If,
that is, we manage to design the multidimensional type of substantive rationality155
adequate for this multi-centered world we are entering so fearfully. And thus we
will manage to avoid ethnocentrism156.
To exorcise this old trap, I believe, neither fear, stupefaction, nor again
pessimism, are of any help. And defiance would risk throwing out the baby with
155
In the already quoted and fascinating lecture delivered at the University of Coimbra, the
above mentioned French jurist, Mireille Delmas-Marty (op. cit. 1999: 141-142), in a somewhat similar
vein (but in the much more restricted field of action, that of jural harmonisation in the globalising
world), argued for the wide-spread use of “non-standard logics (like the logics of fuzzy sets)”. Her
objective, again not too dissimilar to what I suggest here, is that of achieving “an ordered pluralism”
(ibid.: 139, my translations), in the urgent and unavoidable modern attempts carried out so as to
achieve either a plain “unification” or a weaker “harmonisation” of what are essentially multiple layers
of “proliferating” norms derived from “multiple normative” domains. This is possibly a step (but only
a short step) in the direction of the overall new political rationality which I here deem crucial for
effecting the necessary changes which, in my view, the ongoing processes of globalisation demand;
that is, if we want our common future to be duly “civilised” and “democratised”.
156
Or at least its more exclusionary and virulently inadequate forms. With the importance we
all today tend to attribute to self-determination, some cultural sensitivity is indeed crucial. But not
necessarily (or even desirably) as a limit or as a brake on cross-cultural value judgements; rather as
a means of equating and designing both evaluations and actions. Not that a workable international
order is radically impossible without a complete value unity and homogeneity. But what R. Falk
called “a minimum cultural consensus” certainly makes an international order easier and more
wholesome.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
175
the bathwater. Crises involve both dangers and opportunities. What we need is
combativeness. Our post-modern conundrum lies precisely here, I think, and it is
a political, a pragmatic, and an ethical one: unless we can effect a major power
change in the extant world order, for once we must (again) swallow and adopt as
our own (or at least as a general patrimony of everyone) this one more “Western”
idea; or, at least, a “modernist” one which is only being pushed by the West since
the West was the first to feel its growing impact. And we must do so, paradoxically,
precisely if157 we value the prospects of our own survival as non-Westerners.
To those of us who are Westerners, things are, if perhaps simpler, also
imminently ethical and political in terms of the issues they raise. But they also
require a dose of humility: again, we must export one of our very ideas (or at least
one which was started up here by external forces) and we may lay back self-contentedly while we enjoy seeing it percolate through the world; but we must
be ready to let this one break free158 of our preconceptions, and undergo alterations
157
Post-modernism seems to me to be of no real heuristic use, here. Consider this. I am
painfully aware that, in what I am arguing, my own beliefs are involved. This is utterly unavoidable,
and therefore it is not necessarily bad, or less objective, as long as I make my standpoint clear. And
I have endeavoured, I think, to do so. Moreover, I know fully well that the line between giving an
opinion, even if it is couched as an academic opinion, and plain interference shifts according to the
side, or the angle, from which one observes. What, to one party to an exchange, seems to be entirely
justified may depend on the nature and the strength of one’s own convictions and beliefs. And I also
know (as a legal anthropologist how could I not?) that whether an assertion, or a series of notions,
appears as a suggestion, a form of persuasion, a subtle threat, or an arrogant attempted command,
is often set by our perception of a situation and by the respective roles of the participants on the
exchange being carried out. In other words, I have no illusions as to the pervasiveness, in these
contexts, of both partiality and politics; the latter in the form of a discourse founded on power.
Unfortunately, there is nothing I (or anyone) can do about that. All I can claim here is a clean
conscience, as far as my above assertions go.
158
Dealing with what in part amounts to a not too dissimilar problem (although in a very
different light, as we saw earlier), Boaventura de Sousa Santos (2000: 31) recently reiterated the felt
need for “a theory of translation”, as a parcel of what he called “a diatopical hermeneutics”, in turn as
an integral part of any “post-modern critical theory”. In spite of his avowed pessimism (or, maybe,
because of it), his is a worthy objective: an effective multicultural dialogue which assumes “difference
without indifference”. Sousa Santos’ stress thus seems to be on the political urgency of a radically
new intellectual effort, which will in turn lead to a liberation from the old (and now “indolent” and
constraining) rationality we inherited from the “moderns”.
176
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
as it is deeply reshaped and reconfigured by other perspectives. This is exactly what
I meant when I said we must start learning to look up.
For we should be realistic. A set of paradigmatic alterations which will allow
us to make sense of our changing and globalising world appears to be an
inevitable development. In a sense, it is already under way. But a fast-approaching
major world revolution leading to a looming grand paradigm shift is unlikely.
The real choice we have is one between possibly self-redeeming, but
ultimately empty, “liberative” rhetoric gesturing, and a more constructive and
vehement pose of systematic and engaged containment of the brutal excesses of
a set of processes which are certainly desirable, but which can only lead to the
good life to the extent that they are not wholly out of our democratic control. In
the real world, this is, I believe, a crucial point we must come to terms with. It
should be a sobering consideration to ponder that all too often such apparently
very promising liberative exceptionalisms are little more than expressions of the
fears of (sometimes closet) conservatives who unwittingly “invent traditions”
which were not really there, or the visible face of opportunist and populist
strategising ruthlessly pursued by local elites159 desperate to hold on to their
material, or their symbolic (and often considerable) powers. To my mind, this
means we are, in all probability, heading for a struggle.
If we manage to put on par this humility and that further resigned tolerance
I alluded to, and then enter the fray, we shall be more comfortable in the positive
assertion that there is indeed such a good thing as upcoming universal human
values. It is something which I believe we have an ethical duty to fight hard for, to try
to help construct. And fight for it we must, if we want to try and make sure (to the
extent this is at all possible) that it will come about in a manner which spells a
159
Perhaps the most graphic map of the type of devious reaction often engendered by
displaced local elites, at least concerning rights, is that sketchily drawn by R. Falk: “whether by
samizdat, satire, or humour, the voices of dissent manage eventually to find arenas and forums,
although not without risk, often with the help of religious institutions that under other circumstances
have themselves exerted their influence to restrict the dissemination of dangerous knowledge” (op.
cit.: 60). An interesting position, if we keep in mind contemporary Islamic integrism (or Islamic
fundamentalism, as it is usually called).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
177
greater freedom for everyone. This is indeed something I deem as one of the
major battles facing us, most acutely unfortunately brought publicly and very
visibly to the fore by the relatively recent dramatic and brutal events in, first, New
York and Washington, then Mazar-e-Sharif, Kabul, Kandahar, Jalalabad, Konduz,
and so on and on.
Although the future is both invisible and potentially threatening, the
immediate background scenario is clear, at least at this level. A so-called
international human rights regime, whether we like it or not, is fast becoming
established the world over. If anything, the recent outbursts of anti-Western
feeling seem to have accelerated that spread. It is true that its entrance took place
a long time ago and that its spreading has often been far from smooth; mostly
in staunchly non-Western societies, or in hardened anti-Democratic regimes
(even those in the “cultural West”), it has as a rule taken the form of a non-linear
step by step process of entrenchment, a “spiral” of sorts, starting from an external
demand answered by the pretence of an acceptance, onto a full incorporation
and alignment with the rights regime, quite often mediated by non-governmental
international human rights organisations with a national foothold in the society
in question160. But in the great majority of cases, with some concessions, such
processes have been relatively successful, albeit it at different rates and with
variable speeds of encroachment; in other cases, less so. Such processes of
penetration, or so it seems, are not about to be abandoned. Moreover (and that
is something which I think is already being insured, to the extent that that is
possible), they should be studied carefully so as to strategically maximise the
productivity of our efforts. At this level too, some sacrifices are warranted. And
that too involves risks. And uncertainties are inevitably there also.
160
This is argued and shown is exquisite detail (under the heading of “the spiral model”) in the
already cited collection by (eds.) T. Risse, S. Ropp e K. Sikkink (1999), The Power of Human Rights.
International norms and domestic change, Cambridge University Press, a book which both gathers
a score of national case-studies and provides a general comparative framework for the process of
“entrance” and “establishment” of the international human rights regime in several different societies.
It would be fascinating (but difficult to carry out) to engage in a study of the incorporation of
universal human values in a score of different sociocultural groups.
178
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
But it is nevertheless a fray, as I called it earlier, that which we must engage in,
on par with the dialogues and the deep multiculturalism so often called for. For what
is at stake is indeed crucial. Despite the indetermination I alluded to, both ethically and
politically, universal human values are a common good which can no longer be
envisaged, or even tolerated, as a simple instrument of a few. A truculent fight for
values is what is surely in reserve for us all. And there is really only one legitimate
weapon we can coherently use. As has of late often been demanded, what we need
is “a normative commitment to engage the systematically excluded in open dialogue”161. But we must imbue ourselves, too, with a heavy dose of realism.
What we do need is an open (more than a radical) normative posture; but it
should, it must, nevertheless be the expression of a firm determination, and an
unrelenting one at that, a commitment surely necessarily anchored on the
previous sharing of the values bestowed upon us all by the reach of the
globalisation so far achieved.
A commitment which, if it is to be more than an up-in-the-air sort of
idealized collection of fantasies, must be given a concrete form in “hard”
international institutions which will be capable of actually strengthening its
credibility, increase real and effective compliance, and provide “rationalized” (to
go back to a Weberian terminology) modes and appropriate public fora for
adjudicating and resolving disputes: means for somewhat “domesticating” the
international anarchy that so weights over us all.
161
A. Linklater, op. cit.: 107. It is worth it to quote Linklater more extensively on the wider issue
of linking values to community, to the ongoing process of globalisation (although these are not
terms he used) and to a renewed social contract: in his words, “no conception of ethics is satisfactory
if it endorses the systematic exclusion of any individual member of the human species, on a priori
grounds, from a communication community which has the potential to become universal. Universality
here assumes neither the essentialism of natural law perspectives nor the teleology evident in the
speculative philosophies of history associated with the Enlightenment. Universality takes the form
of a responsibility to engage others, irrespective of their racial, national and other characteristics, in
open dialogue about matters which impinge on their welfare” (ibid.: 101). In Linklater’s view (or so
it appears), one of the more active fronts of contemporary political struggle certainly involves efforts
to guarantee an unobstructed equal participation of all of humanity (although it is not clear who its
units are – individuals, cultures, nations?) in a constructive and foundational multi-vocal dialogue.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
179
However, at least in my view, such a commitment and an ambitious institution-building policy are an effort warranted not necessarily as a means designed to
settle our many differences: these are far too valuable for that, and surely they are
far too resilient for such a project to have any chances of success. Rather, this
decision should induce us to learn to be enthusiastic about them, a prospect which
is by no means incompatible with a new, more open, Liberal program. And, from
there, we can perhaps come to agree on carefully building a world in which that
act of construction, that very creation we all ought to engage in, becomes a true
empirical fact; and a world where, simultaneously, we progressively learn to
recognise, to nurture, to cherish, and to honour, our ever-affirmed differences as
but stupendous variations on a grand common theme.
180
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Bibliography
Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities. Reflections on the origin and
spread of nationalism, Verso.
An Na’im, A. A. (1992), “Toward a cross-cultural approach to defining international
standards of human rights. The meaning of cruel, inhuman, or degrading treatment or
punishment”, in (ed) A. A. An Na’im, Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for
consensus: 19-44, University of Pennsylvania Press.
(ed) An Na’im, A. A. (1992), Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for
consensus, University of Pennsylvania Press.
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the World, Ballantine Books, New York.
Bauman, Zygmunt (2001), Community. Seeking safety in an insecure world, Polity.
Brown, Chris (1995), “International political theory and the idea of the world
community”, in (eds.) Booth, K. e Smith, S., International Relations Theory Today: 90-110,
Cambridge.
Carr, Edward H. (1981, original 1939), The Twenty Years’ Crisis 1919-1939. An introduction
to the study of international relations, MacMillan, London.
Comaroff, John L. (1996), “Ethnicity, nationalism, and the politics of difference in an
Age of Revolution”, in (eds.) E. Wilmsen e P. McAllister, The Politics of Difference, The
University of Chicago Press.
Darian-Smith, Eve (1998), “Power in Paradise: the political implications of Santos’
utopia”, Law & Social Enquiry 23, 1: 81-121.
Delmas-Marty, Mireille (1999), “A mundialização do Direito: probabilidades e risco”,
Studia Iuridica 41, Colloquia 3: 131-145, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra.
Dworkin, Ronald (1978), Taking Rights Seriously, Harvard University Press.
Falk, Richard (1992), “The cultural foundations for the international protection of
human rights”, in (ed) A. A. An Na’im, Human Rights in Cross-Cultural Perspective. A quest for
consensus: 44-65, University of Pennsylvania Press.
Falk-Moore, Sally (1986), Social Facts and Fabrications. “Customary” Law in
Kilimanjaro, 1880-1980, Cambridge University Press.
Forsythe, David (2000), Human Rights and International Relations, Cambridge
University Press.
Franck, Thomas M. (2001), “Are human rights universal?”, Foreign Affairs 80, 1: 191-205.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
181
Geertz, Clifford (1963), Peddlers and Princes: social development and economic change
in two Indonesian towns, Chicago University Press.
____________ (1984), “Distinguished Lecture: Anti-Anti-Relativism”, American Anthropologist 86: 255-278.
Gellner, Ernest (1983), Nations and Nationalism, Oxford, Basil Blackwell.
Gros Espiell, Héctor (1998), “Universalidad de los derechos humanos y diversidades
culturales”, Revista Internacional de Derechos Humanos: 1-15.
Habermas, Jürgen (1990), Moral Consciousness and Communicative Action, Polity
Press.
Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25.
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
Kymlicka, Will.(1995), Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights,
Clarendon Press, Oxford.
Lensu, Maria and Fritz, Jan-Stefan (eds.) (2000), Value Pluralism, Normative Theory
and International Relations, Millenium, London.
Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, in Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena.
____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do
Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162.
Miller, Arthur (1987), Timebends: A Life, Methuen, London.
(eds.) Risse, T., Ropp, S. e Sikkink, K. (1999), The Power of Human Rights. International
norms and domestic change, Cambridge University Press.
Rosaldo, Renato (1989), Culture & Truth. The remaking of social analysis, Beacon Press,
Boston.
Sousa e Brito, José (1996), “Law, Reason and Justice: questioning the modern triad”,
in (ed.) Roberta Kevelson, Spaces and Significations: 191-205, Peter Lang.
Sousa Santos, Boaventura (1995), Toward a New Common Sense: law, science and
politics in the new paradigmatic transition, Routledge, New York.
____________ (1998), “Oppositional postmodernism and globalizations”, Law & Social Enquiry 23, 1: 121-140.
____________ (2000), “Porque é tão difícil construir uma teoria crítica?”, Travessias:
21--39, Rio de Janeiro.
Wallerstein, Immanuel (1991), “The national and the universal: can there be such a
thing as world culture?”, in (ed.) King, A.,
182
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
5. O Islão, o Islamismo e o Terrorismo Transnacional162
Quer gostemos disso quer não, vivemos todos num Mundo renovado. As formas
mais recentes do tipo de luta política a que chamamos terrorismo não são a tal
alheias. O novo terrorismo sem fronteiras empurrou para longe o velho.
É fácil compreender porquê. Tudo se prende com a ferocidade do seu impacto
e a natureza dos alvos e objectivos escolhidos. Sem querer exagerar distinções,
o “antigo e clássico” terrorismo europeu “doméstico” dizia respeito a coisas como
a ETA, a Facção do Exército Vermelho (o célebre grupo Baader-Meinhoff ), as
Brigadas Vermelhas, as FP-25, ou o IRA. O seu raio de acção era modesto. As
acções levadas a cabo envolveram bombas em automóveis e restaurantes, bares
e supermercados destruídos. Isso mudou. O terrorismo transnacional a que hoje
assistimos envolve terror numa outra escala, com milhares de mortos de uma
assentada e edifícios simbólicos gigantescos demolidos num piscar de olhos.
O que pretende atingir e alterar é a própria ordem internacional existente. O
nível de organização dos agrupamentos dedicados ao terror atingiu um novo
patamar de complexidade e inexpugnabilidade. Os Estados Unidos da América
foram atingidos. Em resultado de tudo isto, os movimentos “terroristas islâmicos” têm vindo a adquirir uma centralidade cada vez maior nos discursos
sobre o terrorismo. Um facto em si próprio problemático: ao que se sabe, a
maioria dos muçulmanos opõe-se aos actos terroristas perpetrados em nome da
sua religião.
Sem querer ser exaustivo ou sequer pretender mais do que aflorar estas
várias questões, noto que não é abusivo dizer que, regra geral, a abordagem dos
162
Comunicação de abertura da Conferência Internacional que organizei a 2 e 3 de Abril de
2003, no Instituto de Defesa Nacional, em colaboração com o Profesor Doutor Diogo Freitas do
Amaral, e em nome da A conferência intitulou-se “O Islão, o Islamismo e o terrorismo transnacional”,
e foi co-organizada pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, pelo Instituto de
Defesa Nacional e pela Comunidade Islâmica de Lisboa.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
183
especialistas quanto ao terrorismo internacional tem sido parcelar. Tanto nas
causas como nos pontos de aplicação. Com efeito, vários temas e subtemas
distintos têm prendido a atenção dos estudiosos. Ora têm vindo a manifestar
interesse nele enquanto mero aspecto de uma fascinação mais genérica e bem-pensante com a emergência de actores não-estatais, encarando-os como uma
espécie rara de ONGs extremistas, enquanto entidades que apareceram mais ou
menos repentinamente na ordem internacional, sobretudo (mas não inteiramente) depois do fim da bipolarização. Ora têm preferido pôr o acento tónico nas
redefinições que essa aparição implica no que diz respeito ao recorte de categorias jurídicas e políticas “clássicas” como a de “guerra”, ou a de “crime”, e na
definição (penosa, muitas vezes, como em Nova Iorque ou em Guantánamo) dos
estatutos a atribuir aos seus agentes e no tipo de jurisdição a que estes deveriam
ver-se sujeitos.
Não são essas as únicas preferências manifestadas. Outros investigadores
têm vindo a preocupar-se com o papel de failed states (o Afeganistão foi disso um
exemplo privilegiado) como viveiros potenciais de ONGs desse género, com o
lugar da chamada “Internacional Jihadista” pós-bipolar, com o peso e importância do fundamentalismo wahabita financiado por sauditas, ou com as estruturas
organizacionais sui generis que muitos dos agrupamentos que se dedicam a esses
tipos de acções e actividades exibem (em células, numa espécie de holdings ou,
de maneira mais difusa, como internet chatrooms ainda mais descentradas e só
lassamente articuladas umas com as outras), formatações essas desenhadas para
melhor resistir aos embates dos poderosos Estados contra os quais os agrupamentos terroristas transnacionais combatem.
Em muitos casos, esses terroristas internacionais contemporâneos invocam
as suas pertenças a sociedades islâmicas. Por várias razões, esse vínculo social
tem formado um foco privilegiado dos estudos empreendidos. A perspectivação
adoptada tem, por conseguinte, em muitos casos, sido político-sociológica.
Numerosos analistas têm assim insistido no papel preenchido por ditaduras e
pelas ambições ditatoriais de uns poucos líderes sem escrúpulos, que
instrumentalizariam os sentimentos de revolta de muitos, sobretudo em regiões
deprimidas de um Mundo em fase de globalização e todavia cada vez mais
184
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
desigual. Desigualdades e assimetrias, internas e externas, bem como oportunismos de grupos dominantes predatórios e parasitas estariam na base da emergência do problema.
Os esforços interpretativos não se esgotam, todavia, nesse tipo de análises
socioculturais. Com uma maior resolução de imagens, por assim dizer, e tendo
em mente que as preocupações dominantes têm sido expressas em relação ao
terrorismo islâmico, os estudiosos têm olhado para as bases sociais e/ou religioso-confessionais em que muitos dos movimentos terroristas tentam fundear
tanto a sua implantação efectiva, quanto a legitimidade de que esta depende. E
têm vindo a prestar alguma atenção aos mecanismos, ou processos, através dos
quais estas novas entidades políticas têm tentado, e muitas vezes têm conseguido, ancorar uma legitimação. Mas têm-no feito sem grandes resultados: um
ponto que importa realçar. Se algum sucesso as análises empreendidas têm
logrado no que diz respeito ao terrorismo doméstico, como expressão seja de
irredentismos nacionalistas, seja de despossessões gritantes, seja ainda de afirmações étnicas que a ambas essas coisas reagem, a verdade é que os esforços de
reconstrução racional (e portanto de atribuição de inteligibilidade) do terrorismo
transnacional têm sido bastante exíguos, comparativamente ténues na eficácia e
com uma alçada intelectual de algum modo menos boa.
Facto indubitável é o de que no Mundo moderno dos últimos anos, o
terrorismo de “raiz” islamista tem tido um enorme protagonismo. O caminho tem
sido longo e doloroso, desde os desvios de aviões internacionais que, nos anos
60 e 70 do século passado a Organização de Libertação da Palestina levou a cabo
um pouco por toda a parte (argumentavelmente uma expressão, em palcos e
com correias de transmissão internacionais, de questões do foro “doméstico”), até
ao 11 de Setembro de 2001 em Manhattan, passando pela primeira operação de
“martírio” que, em 1981, levou um iraquiano xiita a detonar-se a si próprio e a
matar outras 27 vítimas na Embaixada do Iraque em Beirute, além de por
inúmeras acções realizadas (sobretudo em finais do século passado) em vários
lugares da costa leste-africana, um pouco por toda a parte no Médio Oriente, e
até na América do Sul. Ao que tudo indica, ainda haverá muito para andar. A
famosa “war against terrorism” que o Presidente George W. Bush declarou e lidera,
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
185
até agora fez pouco mais do que arranhar a superfície destes tão agressivos
movimentos transnacionais de proliferação e crescimento acelerado.
Para essa emergência e para o seu timing muitas explicações têm sido
aventadas. Um efeito natural dos processos de globalização, dizem alguns: uma
coisa compreensível tendo em vista a internacionalização que esse processo
consubstancia e sobretudo dada a sua notória falta de regulamentação, que
exclui, despossui e ameaça de maneira social, cultural, política e economicamente intolerável aqueles que tais processos inexoráveis de transformação global
marginalizam. Serão essas razões suficientes para explicar a eclosão destes
movimentos nos novos palcos mundiais? Muitos são os que discordam de tais
modelos, apontando-lhes sérias insuficiências a nível das explicações-previsões
que providenciam.
Decerto com alguma razão. De facto, não têm sido os mais excluídos, os mais
ameaçados, os mais despossuídos aqueles que nos palcos internacionais mais
têm feito ouvir a sua voz por intermédio de actos de terror. Não parece em boa
verdade ser dessas franjas e margens do Mundo que os terroristas realmente são
oriundos. Nem, por via de regra, parecem esses movimentos ser orquestrados, ou
conduzidos, por líderes de origem “subalterna”. As explicações lineares e mais
óbvias, por conseguinte, fogem-nos. Embora com elaborações secundárias possamos talvez tentar salvar estes modelos. Com menos linearidade, tem assim por
exemplo sido sugerido que, independentemente do estatuto sócio-económico
dos terroristas eles próprios ou dos seus apoiantes financeiros, a questão de
fundo poisa na consciência da marginalização, nas frustrações e nas humilhações
dos grupos a que uns e outros se sentem pertencer.
Os termos em que o têm feito invocam à cabeça ressonâncias de resistência
cultural e identitária. Mas não só. Ao contrário daquilo que a “sabedoria convencional” nos poderia levar a supor, as suas lideranças tendem a ser gente instruída,
por norma senhores com bastante sucesso económico e social na “nova desordem global” e, se “tradicionalistas”, pessoas com alguma exposição cosmopolita.
As agendas que ostentam e com que acenam dizem respeito a nada menos do
que uma reconfiguração da arquitectura da própria ordem internacional a que se
opõem tão radical e brutalmente.
186
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Modelos baseados no desenvolvimento desigual, ou assimétrico, ou ancorados numa expressão “pré-Reforma” de uma religiosidade intransigente e “integrista”
são porventura os mais comuns. Para além de razões de conveniência e adequação ideológica a preconceitos antigos, há para isso algumas corroborações mais
neutras. Com efeito, não deixa de parecer haver regularidades nítidas, a esses
níveis, no arranjo dos factos. Não é discutível, por exemplo, a constatação de que
na maioria dos casos se trata de agrupamentos que, reivindicando vir do interior
da Ummah muçulmana, transpondo aquilo a que Samuel Huntington (famosa e
infamemente) chamou “as fronteiras sangrentas do Islão”, galgaram linhas divisórias e atacaram, cada vez mais perto do “centro” de uma ordem internacional
liberal que, cada vez com maior clareza e nitidez, elegeram como o inimigo
principal a abater.
Quais os melhores níveis de análise, então? Os factos, ao que parece, dão
uma no cravo outra na ferradura. No balanço, porém, casam mal, por assim dizer,
com as ideias apriorísticas que espontaneamente ruminamos sobre a natureza
essencial destes movimentos terroristas que nos assustam a todos, e que tanta
dificuldade temos em compreender. Com efeito, nada nos agrupamentos terroristas transnacionais contemporâneos é, de facto, óbvio. Não se trata de movimentos religiosos puros e duros. Nem todos são, em boa verdade, movimentos
“primitivos”, ou “pré-modernos”; na maioria dos casos são criaturas tão “modernas” quanto aquilo que desafiam.
A olhos europeus ou norte-americanos, no entanto, em muitos casos muitos
deles parecem-no. É mais uma vez fácil entender porquê. Muita da coreografia
que os rodeia sugere a sua “pré-modernidade”. As designações, denominações e
títulos que têm vindo a arvorar soam a fragmentos de litanias sócio-religiosas em
que a nomeação de laços tribais se acrescenta às alusões cosmológico-litúrgicas
em imagens tão vívidas quão exóticas, quanto ainda relevando de formas político-organizacionais e orgânicas provenientes ora da Extrema Esquerda “infra-vermelha” e festiva de raiz ocidental, ora da nossa Extrema Direita “ultra-violeta”
e falangista: os agrupamentos nomeiam-se al-Qaeda, a Brigada dos Mártires de
al-Aqsa, o Grupo Abu Nidal, o Abu Sayyaf, o Hezbollah, a Jihad Islâmica, al-Daawa,
ou o Conselho Supremo para a Revolução Islâmica xiita no Iraque. A impressão
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
187
que fica, é a de que se trata de movimentos essencialmente políticos que, é certo,
esforçam-se por ir beber legitimação à religiosidade muçulmana tradicional, e
que mobilizam formas de participação e de acção dos seus membros, em termos
social e culturalmente também em parte tradicionais.
A oratória de recrutamento e mobilização, a retórica de agitação e propaganda, embutidas nos discursos de que vamos apanhando fragmentos, parecem
confirmar essa nossa impressão: ouvimos apelos ao “espírito do jihad”, escutamos
invocações a Deus para ajudar “os crentes” na “luta” contra “os infiéis”, absorvemos
fatwas exaradas com a pompa e ritualização própria de circunstâncias em que se
assevera uma perfeita realização, na Terra, de desígnios divinos e transcendentes.
Os actos de terror perpetrados parecem encaixar bem nessa imagem cosmológica
de intervenções que sugerem pretender manipular a estrutura profunda da
realidade: suicidas sorridentes confinam, nas imagens que nos comunicam, com
degolações “à moda antiga”, ladeiam feddayyin em pleno fervor do jihad que, com
entusiasmo chiliástico, lançam aviões contra edifícios simbólicos do inimigo.
Tudo se parece passar como se se tratasse de dar corpo a actividades carregadas
de transições e de justaposições intrincadas, a clamar por interpretações de
pormenor que lhes possam fazer justiça, por assim dizer. São imagens que à
política dura e madura vêm, ao que parece, acrescentar camadas suplementares.
Vistas as coisas deste ângulo, a ideia resultante é a de que, no que toca aos
actos cometidos que apelidamos de acções de terrorismo transnacional islamista,
estamos frente a enormes dramatizações rituais públicas e mais do que tão-só
perante uma qualquer luta política instrumental. A segunda impressão com que
ficamos é de que alguma coisa nos está a ser dita, para além daquilo (ou melhor,
no interior daquilo) que está a ser feito. Como se para lá de actos de violência
instrumental e simbólica estivéssemos na presença de formas discursivas sui
generis. Formas essas que precisamos de saber “decifrar”, quanto mais não seja
para assim melhor as poder neutralizar ou combater.
Mas há mais. Também ficamos com a ideia de que nestas actividades
terroristas estaríamos confrontados com práticas que de algum modo estão a
meio caminho entre a linguagem e a acção, entre a intenção e o facto consumado, entre o dito e o feito. A nossa terceira impressão é assim a de termos sido
188
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
atirados para uma espécie de zona de penumbra em que o real e o irreal se
esbatem um ao outro. É aqui que radicam, certamente, aquelas interpretações
que insistem na curiosa coincidência entre a eclosão do terrorismo transnacional
e a emergência dos meios de comunicação global imprescindíveis para veicular
as suas acções-mensagens de violência, alteridade radical e morte real mas
simbolicamente infligida.
Como é porventura inevitável, tendemos a perceber o Mundo e as coisas de
acordo com as pré-compreensões que de algum modo respiramos, e segundo as
pré-formatações que lhes impomos. Isso é verdade para todos nós, quer sejamos
ocidentais ou de uma qualquer outra origem, muçulmanos ou não. Não será por
isso surpresa a constatação de que ordenamos as nossas perspectivações agrupando-as de maneiras previsíveis. Como preconcepções. Quero terminar delineando algumas delas.
No Ocidente, designadamente (e seja como for que o definamos), tem
havido uma forte tendência para encarar o Islão contemporâneo, e as práticas e
representações “islâmicas”, de um de dois pontos de vista polares. É fácil esquissar
os extremos do continuum, ou do gradiente se se quiser, destas conceptualizações.
Em minha opinião, nenhum deles é totalmente convincente. Nalguns casos (e o
exemplo paradigmático disto é decerto hoje em dia o trabalho académico de
Bernard Lewis), olhando a fractura ostensivamente existente como sendo uma
resposta “tradicionalista”, “nativista” e “pré-moderna”, a uma humilhação que
decorreria da convicção dolorosa de um falhanço traumático de uma “civilização
islâmica” que já foi grande, face a um Ocidente com o qual hoje não parece
conseguir competir. De acordo com esta linha interpretativa, muitos muçulmanos estariam convencidos que tal descalabro resultaria do seu próprio abandono
do caminho tradicional e responderiam a isso com um duplo movimento de
regresso às origens e de recusa radical e brutal do Ocidente. Deste ângulo, o
terrorismo seria uma espécie do género afirmação.
Noutros casos (e aqui um bom exemplo é seguramente o ainda que de
maneira indirecta disponibilizado pela produção universitária de Edward Said,
um norte-americano de origem palestiniana cristã), preferindo argumentar, de
maneira mais indirecta e talvez em consequência mais subtil, que “Ocidente” e
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
189
“Oriente” têm sido dois mundos que se excluem, e se entredefinem nesse
processo de exclusão recíproca. Desse acto recíproco, Said sublinhou apenas um
dos lados: a “orientalização” e “exotização” levada a cabo pelos “ocidentais”, as
quais, na sua opinião, redundariam em pouco mais do que em racionalizações de
conveniência segregadas para tentar legitimar o ascendente político daqueles
que as enunciam. Visto desta perspectiva, o terrorismo islamista seria uma
espécie do género político resistência.
Parecem-me ser estas as coordenadas-mestras do “enquadramento ideológico espontâneo” em que tendemos a entrever as coisas no que diz respeito ao
terrorismo transnacional, e nesse designadamente ao islamista. Não chega.
Podemos (e devemos) ir mais longe. Aos espaços nocionais limitados que configuram o que pensamos sobre estas questões, há que abrir as fronteiras e saber
evitar reducionismos.
Importantíssimo parece-me ser o facto de que muitíssimos há, no interior do
Islão, que combatem com todas as forças que têm contra as terríveis formas dos
terrorismos que abusivamente invocam o nome desta religião. Que fazer de
todos aqueles (sem dúvida a larguíssima maioria dos muçulmanos do Mundo)
que, reclamando-se do Islão enquanto credo e modo de vida, e enfrentando as
pretensões dos que alegam falar em nome dele, se opõem como podem a esses
agrupamentos? Mais: que o fazem, convictos em todo o caso de que, todavia, por
detrás destes movimentos políticos de tonalidades religiosas, haverá razões
legítimas de revolta a que importa saber dar resposta se quisermos evitar o seu
crescimento e a sua perpetuação. E que, no processo, põem na mesa questões de
fundo incontornáveis relativas à ordem internacional que temos e aos lugares
que, nela, encontramos uns para os outros.
Serão estas algumas das questões que aqui iremos durante dois dias discutir.
Que consigamos conversar.
190
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Bibliografia
Asad, Talal (1993), Genealogies of Religion. Disciplines and reasons of power in
Christianity and Islam, Johns Hopkins University Press.
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the world, Ballantine Books, New York.
____________ (2002), “Democracy and terror in the age of Jihad vs. McWorld”, em
(eds.) K. Booth e T. Dunne, Worlds in Collision: 245-263, Palgrave, MacMillan.
Cronin, Audrey Kurth (2003), “Behind the curve. Globalization and international
terrorism”, International Security 27 (3): 30-58.
Esposito, John (1993), The Islamic Threat: myth and reality, Oxford University Press.
Etzioni, Amitai (2002), “Implications of the American anti-terror coalition for global
architectures”, European Journal of Political Theory 1 (1): 9-30.
Fukuyama, Francis (2002), “History and September 11”, em (eds.) K. Booth e T.
Dunne, Worlds in Collision: 27-37, Palgrave, MacMillan.
Gellner, Ernest, (1981), Muslim Society, Cambridge University Press.
____________ (1992), Postmodernism, Reason and Religion, Routledge.
Harris, Lee (2002), “Al-qaeda’s fantasy ideology”, Policy Review 114: 1-13, The Hoover
Institution.
Held, David, et al (1999),. “The expanding reach of organized violence”, em (eds.) D.
Held, A. McGrew, D. Goldblatt, e D. Perraton, Global Transformations. Politics, Economy and
Culture: 87-149, Polity Press, Cambridge.
Hendriksen, Thomas H. (2001), “The rise and decline of rogue states”, Journal of
International Affairs 54 (2): 349-371.
Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25,
New York..
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
Juergensmeyer, Mark (2000), Terror in the Mind of God University of California Press.
Kurtz, Stanley (2002), “The future of ‘History’”, Policy Review 114, The Hoover Institution.
Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University
Press.
Levitt, Matthew (2003), “Stemming the flow of terrorist finance: practical and
conceptual challenges”, The Fletcher Forum of World Affairs 27 (1): 59-70.
Lewis, Bernard (1993), Islam and the West, Oxford University Press.
____________ (2001), What went wrong? Western impact and Middle Eastern response,
Oxford University Press.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
191
Mamdani, Mahmood (2002),”A political perspective on contemporary terrorism”,
Ethnicities 2 (2): 146-149.
Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, em
Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena, Lisboa.
____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do
Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162, Lisboa.
Mousseau, Michael (2002), Market civilization and its clash with terror”, International
Security 27 (3): 5-29.
Rasmussen, Mikkel V. (2002), “‘A parallel globalization of terror’: 9-11, security and
globalization”, Cooperation and Conflict. Journal of the Nordic International Studies
Association 37 (3): 323-349.
Said, Edward (1978), Orientalism, Routledge and Kegan Paul.
Sayyid, Bobby (1997), A Fundamental Fear. Eurocentrism and the emergence of Islamism,
Zed Books.
192
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
6. O Terrorismo Transnacional e a Ordem Internacional163
1.
Mais do que apenas uma memória terrível e um acontecimento dramático que o
tempo vai fazendo receder para a relativa neutralidade de um estatuto asséptico
de facto histórico, o 11 de Setembro transformou-se num símbolo. É hoje uma
metáfora: para o grosso das pessoas e dos Estados ocidentais, representa os
perigos das novas ameaças que se perfilam num linha desfocada de horizonte
que “a névoa da guerra” e a imprevisibilidade do futuro não nos deixam ver com
nitidez.
A situação em que desde então vivemos tendemos a sentir como um
encurralamento: por um lado, não há sombra de dúvida que temos de presumir
que a 11 de Setembro de 2001, Osama bin Laden teria utilizado armas de
destruição maciça se as tivesse e soubesse que as podia usar de maneira eficaz.
Sabemos que vários grupos (o al-Qaeda é apenas um deles) estão a tentar obter
esse tipo de armas, ou já as têm. Se e quando as tiverem, devemos supor por
outro lado, usá-las-ão. Precavermo-nos contra menos do que isso envolveria
assumir um risco inaceitável para os que estão em quaisquer posições de responsabilidade.
As probabilidades de essa ameaça às cidades, às sociedades, e aos cidadãos
ocidentais se concretizar, não nos podem deixar parados: o perigo da iminência
de um drama em larga escala é provavelmente tão grande hoje como alguma vez
o foi durante a Guerra Fria, de tão má memória. Bem ponderadas as coisas, a
impressão com que ficamos é a de que vivemos numa espécie de nova “crise dos
mísseis de Cuba” mais abrangente e muitíssimo mais difusa, translúcida e
163
Comunicação final do Seminário sobre “O Islão, o Islamismo e o Terrorismo Transnacional”,
realizado a 2 e 3 de Abril de 2003, no Instituto da Defesa Nacional.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
193
experienciada como que em câmara lenta: de maneira dolorosamente prolongada. Um efeito de terror, stricto sensu.
As ameaças não provêem só de agrupamentos terroristas islâmicos; não vêm
apenas de grupos que, em nome de um religião espalhada um pouco por toda
uma faixa que separa o Norte do Sul do planeta, tentam avançar agendas
políticas globais. Há obviamente outros focos de perigo, num Mundo a que a
globalização reduziu a escala e no qual diminuiu as distâncias. Mas, neste
momento pelo menos, tudo se passa como se os islamistas fossem únicos: os
riscos que em simultâneo se mostram mais iminentes e menos ponderáveis estão
claramente focados nestes grupos que invocam o Islão para recrutar aderentes,
para forjar alianças, e até para tentar legitimar as suas acções e métodos. Também
nisso reside uma tensão. Para além das vítimas potenciais que atingiram e
ameaçam atingir no Ocidente, esses agrupamentos terroristas vitimizam também (e fazem-no muito mais do que simbolicamente) a larguíssima maioria dos
muçulmanos dos Mundo, em cujo nome alegam falar e cuja religião efectiva e
decerto indevida e incongruentemente, desviaram e mantêm cativa.
Fazer frente a estas ameaças (às reais e às apenas temidas) é o grande
desafio do nosso tempo. Para a nossa geração é o equivalente de ir ao encontro
das agressões do Kaiser, das blitzkrieg de Hitler, ou do expansionismo de Stalin e
etc. que, de 1949 a 1990, Harry Truman, os sucessores, e os seus aliados na
Europa, tiveram de enfrentar.
Aos inimigos reais a confrontar acrescenta-se um “medo fundamental” nem
sempre bem fundamentado. Os muçulmanos dirão ao que esta ameaça é para
eles equivalente, nos termos da sua história recente: mas para as novas gerações
que professam a religião islâmica, o terrorismo “em seu nome” constitui decerto
um desafio que não é menor do que aquele em que defrontaram as potências
europeias nas lutas duras anti-coloniais pela sua autodeterminação, frente aos
soviéticos e à invasão do Afeganistão, na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo e na
Tchechénia, ou nas duras confrontações que tiveram (e têm) contra os nacionalismos étnicos que o fim da ordem internacional bipolar acendeu na antiga
Europa de Leste. Também aqui há um “medo fundamental” a ser suscitado, desta
feita num outro sentido.
194
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
No que se segue irei tentar delinear um quadro muito geral relativo a uma
parte daquilo que, nas duas últimas tardes, foi aflorado neste Seminário. Não vou
repetir o que antes foi dito e defendido; não vou sequer resumi-lo, nem vou
tentar contrapor-lhes quaisquer explicações alternativas. Fazer uma qualquer
destas coisas redundaria inevitavelmente numa simplificação e numa perda de
tempo. Mais do que um balanço, aquilo que vou tentar é dar outra demão.
A minha conjuntura de referência será a da “war against terror” de que fala o
Presidente norte-americano, George W. Bush. Para efeitos deste Seminário, interessa-me pouco apurar qual o significado preciso a dar a tal expressão. Far-lhe-ei alusão sempre contra o pano de fundo da ordem internacional. A minha
finalidade primeira é a de tentar esboçar um levantamento de uma das dimensões mais importantes e menos focadas dessa guerra pelo futuro e pelo controlo
da ordem internacional, que insisto em perspectivar no quadro, muitíssimo mais
lato, em que ela tem lugar: o dos processos em curso de globalização.
Quero começar por resumir de forma sucinta aquilo que sobre isso vou dizer,
a este muito alto nível de inclusividade. Mais do que quaisquer verdadeiras
reconfigurações pluralistas da ordem internacional liberal, uma ordem hoje em
dia (depois do fim da ordem bipolar) bem assente164, parece-me que estamos
neste momento a presenciar um conjunto de alterações, por substituição, do “uni-multipolarismo” que se seguiu ao “momento unipolar” consubstanciado pela
primeira Guerra do Golfo de 1991. Mais do que à vitória quer de um pluralismo,
quer de um sólido unipolarismo, por outras palavras, quero argumentar que
estamos perante pequenos-grandes movimentos de reajustamento de forças no
interior da ordem “uni-multipolar” existente.
O que quero rapidamente aqui abordar, prende-se com um dos patamares,
ou uma das camadas, dessa substituição: com as tensões a que têm estado
sujeitas as forças, complexas e muitas vezes antinómicas165, que subtendem o
164
Ou, pelo contrário e se se preferir, para lá da cristalização de uma eventual hegemonia
unipolar norte-americana, mais ou menos imperial, que alguns dizem estar em instalação.
165
Forças que, no seguimento daquilo que Benjamin Barber (1996) apelidou Jihad e McWorld,
discuti em artigos anteriores, que arrolo na bibliografia do presente artigo.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
195
processo em curso de globalização. Forças que, seguindo Benjamin Barber, irei
apelidar, respectivamente, Jihad e McWorld. Interessar-me-ão, sobretudo, questões relativamente “etéreas” (mas nem por isso menos importantes, bem pelo
contrário), questões de natureza discursiva.
Dessas, detenho-me em particular em duas: primeiro, nalgumas das barreiras discursivas erigidas, que inviabilizam quaisquer verdadeiros diálogos entre as
parte envolvidas de maneira mais directa nesta Terceira Grande Guerra, a primeira verdadeira Guerra Mundial. Em segundo lugar, nos antípodas disso, interessar-me-ei também pela emergência, imponente e visível, de um espaço colectivo e
“global” de diálogo público internacional sobre questões políticas que a todos
dizem respeito. Num como noutro caso, serei breve e ater-me-ei tão-só ao nível
indicativo: limito-me a ilustrar, a traço grosso, algumas das linhas de força do que
refiro. Mantenho sempre em vista a ordem internacional, que afecta aquilo a que
vou aludindo e que, por seu turno, é por isso afectada. Concluo com generalidades e perguntas.
2.
Quero, brevemente, começar por dissecar aqui algumas das formas discursivas166 utilizadas na contenda, por um lado e por outro, por “nós” e por “eles”.
Limitar-me-ei, nestes meus comentários, a uns poucos dos discursos oficiais. E
irei começar por restringir as minhas alusões e exemplos ao período logo após o
11 de Setembro, para depois por meio de uma comparação com o presente,
melhor poder pôr em realce a direcção da evolução das coisas nos últimos anos.
O meu ponto é o seguinte: no período imediatamente subsequente ao 11 de
Setembro havia escondido, e medrava na sombra, um segundo discurso, mais ou
menos oculto, resguardado por debaixo ou por detrás, se se preferir, do discurso
166
Não quero deixar aqui de reconhecer o enorme prazer que me deu a releitura, no contexto
em que hoje vivemos, do estupendo livro de Edmund Leach (1977) sobre o terrorismo e as
representações que sobre os seus agentes construímos.
196
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
oficial de então. Tratava-se de um discurso formado por um outro conjunto de
asserções, encadeadas umas nas outras de maneira muito sui generis. Era uma
enunciação oblíqua que contradizia, de forma implícita e indirecta (e por isso
porventura mais insidiosa), os termos das formulações narrativas “politicamente
correctas” que publicamente eram então defendidas. Constituía uma espécie de
discurso paralelo, clandestino e impensado, de que porventura os actores envolvidos não tinham sequer plena consciência. Um discurso que (no caso que irei
esmiuçar) deu corpo a um conjunto de representações que uma das partes, a
personificada por Osama bin Laden e pelos taliban, de maneira menos visível,
advogava (como de resto lhe convinha e decerto continua a convir): representações de acordo com as quais estaria e está, de facto, em curso um Clash entre “o
Ocidente” e “o Islão”.
O curioso é que se tratou de um conjunto de representações que, pública
e ostensivamente, a outra parte, personificada pelo Presidente George W.
Bush, enfaticamente repudiava: essa mesma ideia, a que antes aludi, de que
estaria a ocorrer uma guerra cultural. A esse nível “subterrâneo”, por assim dizer,
desse discurso paralelo, ambas as partes pareceram concordar quanto ao retrato
que fizeram da situação: estaríamos, efectivamente, perante um conflito
civilizacional que o ataque perpetrado em Manhattan se teria limitado a tornar
evidente.
Gostaria de ser explícito e dar um exemplo concreto. Quero argumentar que
há representações implícitas de “alteridade”, semelhantes entre si, em muitos dos
discursos entretidos pelos líderes políticos nos media quanto à situação em
curso. Um ponto ao qual vou dedicar alguns minutos, no que se segue desta
comunicação. Uma rápida salvaguarda: como é evidente, não pretendo sugerir
uma qualquer comparação entre George W. Bush, o Presidente eleito de um país
democrático aliado, e Osama bin Laden, o líder autoproclamado de um agrupamento terrorista brutal. Sem sombra de “equivalências morais” (um exercício que
tanto ética como politicamente me agradaria pouco) limito-me a comparar
algumas das asserções relacionais de Bush com as de bin Laden.
De uma forma muito rápida e sucinta, quereria enunciar duas séries, enumerar dois conjuntos de declarações, que todos lemos e ouvimos dia-a-dia, asserções
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
197
profusamente repetidas nos jornais e nas televisões167. Oiçamos primeiro o que,
nessa época de que infelizmente todos decerto nos lembramos bem, dizia o
porta-voz das vítimas, o Presidente George W. Bush: os membros do al-Qaeda,
são “evil-doers, enemies of all civilization”, ver-se-ão “smoked out of their holes and
caves”, juntos e com persistência e paciência conseguiremos “get them running”, e
serão inexoravelmente “hunted down”.
Era difícil ser-se mais claro. Isolar imagens-chave deste tipo, circunscrever
aquelas que formam o que é, sem sombra de dúvida, o núcleo duro deste tipo de
discurso, torna-o, creio eu, mais transparente: sem embargo do facto de que muitos
dos esconderijos eram de facto em cavernas, o que estava a ser levado a cabo
nestas asserções era uma primitivização e uma quasi-animalização performativa
do adversário, dois temas típicos das representações do Outro tradicionais em
agrupamentos modernos e desenvolvidos168, ou que como tal se consideram.
Note-se que a relação, que neste discurso é postulada como a apropriada,
entre “nós” e “eles” é a configurada como uma relação hierárquica entre um caçador
e uma presa. E emerge como uma representação que é decalcada sobre o modelo
abstracto de (ou que em todo o caso estipula como seu paradigma idealizado)
uma relação de predação. As alusões tácitas são muito nítidas e inequívocas, julgo
eu, para a maioria dos ouvintes e para o grosso das audiências destes discursos.
Ouçamos agora aquilo que repetidamente afirmou Osama bin Laden169, o
porta-voz dos agressores: os norte-americanos são “egotistical”, são “arrogant and
167
Dada a utilização profusa que destas frases e imagens é levada a cabo, e já que não tenho
informação quanto ao contexto exacto e pormenorizado da sua primeira utilização (nem em todo
o caso me parecer ser esse um dado relevante), não ofereço aqui quaisquer detalhes quanto aos
contextos precisos de enunciação destas representações. Foram todas, no entanto, ouvidas em
prime time e tiveram por isso seguramente vários biliões de pessoas como “receptores”.
168
Processo, aliás, a que o Presidente Bush parece muitíssimo atreito, já que desde então os
tem repetido em profusão. E não apenas como peça de oratória política estilística e inócua: também
os prisioneiros taliban em Guantánamo seriam uma espécie de “animais”, não se encontrando, por
isso, protegidos pelo Direito Internacional e tendo caído, designadamente, fora da alçada da Terceira
Convenção de Genebra.
169
As citações das asserções de bin Laden que aqui utilizo são traduções para a língua inglesa
de originais em árabe. Não conheço as suas intervenções nessa língua, e não as entenderia caso as
198
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
evil unbelievers”, no fundo dão corpo ao great Satan contra o qual há que lutar.
Temos que combatê-los, insistiu o chefe da al Qaeda, porque “the world is divided
into two sides”: e nomeou-os, a esses dois lados: “the side of believers and the side
of infidels, may God protect you from them”. E concluía, com algum fatalismo: “the
winds of faith have come”.
Se olharmos, por um segundo, para as imagens-chave e para o núcleo duro
que em termos semânticos elas constroem, verificamos que também este discurso, em todo o caso mais explícito do que o de Bush (ainda que seja metafórico
de maneira mais complexa) se torna relativamente transparente: o que estava a
ser produzido é um conglomerado de flashes e representações do Outro enquanto
uma espécie de entidade espiritual maligna.
Note-se, uma vez mais, que a relação que, desta feita é neste discurso postulada
como a apropriada entre “nós” e “eles”, se configura como uma relação de combate
sem tréguas; como contenda empreendida com vista à liquidação, ao extermínio, de
um adversário que connosco entretém uma relação hierárquica também de predação,
mas em que “nós” somos as eventuais presas. Mais uma vez a mensagem era muitíssimo clara: tratou-se de uma demonização minuciosa, por sua vez típica de agrupamentos místico-religiosos marcadamente exclusionários que se considerem detentores, proprietários por direito inerente, ou representantes, de uma verdade encarada enquanto modalidade de “correcção político-cosmológica”.
Podemos neste ponto, creio eu, ensaiar um rápido e fácil balanço das
mensagens então (há já quase dois anos) expressas a este nível implícito de
comunicação. Em termos mais genéricos, quereria sublinhar que o primeiro
conjunto de asserções, as de George W. Bush, sub-humanizavam o adversário; as
segundas, as de bin Laden, desumanizavam-no. Estamos perante construções-alusões simbólicas semelhantes mas não idênticas, parecidas mas diferentes170.
conhecesse. Não deixa de ser óbvio que se tratou de transposições de um universo semântico para
um outro muito diferente, um tipo de processo em que muitíssima informação é sempre (e mais ou
menos subtilmente) alterada e alguma pura e simplesmente perdida. Nestes exemplos, porém, essa
parece-me ser uma questão marginal e pouco consequente.
170
Para formas alternativas (ou melhor, complementares, pelo menos do ponto de vista
funcional) ver os exemplos dados por Edmund Leach (1977, op. cit.), a respeito dos dispositivos
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
199
Antes de passar a um outro ponto, vale decerto a pena levar a cabo um
rápido “updating”, um “refresh”, ou um “actualizar”, por assim dizer, daquilo que
acabei de cartografar a traço grosso. Desde o 11 de Setembro até agora este tipo
de discurso a dois níveis tem-se mantido. Do lado de George W. Bush, e embora
o Presidente norte-americano faça também uso de muitas outras categorizações,
têm sido constantes (e largamente comentadas) as alusões e referências bíblicas171,
e a utilização (muitas vezes com alguma gaucherie) de expressões como a de
“cruzada”, “missão”, ou “eixo do Mal”. A “final struggle between Good and Evil”
redundaria numa “infinite justice” (o nome de início proposto para a intervenção
levada a cabo no Afeganistão). Para um Bush cristão revivalista renascido, os
Estados Unidos, como “God’s own country”, estarão idealmente posicionados para
a dispensar. Os suspeitos do al-Qaeda presos em Guantánamo não estariam sob
a alçada da Terceira Convenção de Genebra, não só por não se tratar de soldados
ou mercenários, mas por serem “animais”.
Do lado de bin Laden e, numa curiosa colagem discursiva, na oratória
recente do laico Saddam Hussein, mutatis mutandis, a permanência dessa
duplicidade discursiva parece ser uma regra imutável do jogo. A América seria o
“grande Satã”, as forças norte-americanas “demoníacas”, mas a “intervenção divina” significará uma vitória final inevitável. Com uma religião tão avessa a
antropormorfizações e espiritismos como a muçulmana, a diversidade destes
modos de expressão depressa se torna escassa. Mas resta sempre o recurso a
imagens e metáforas histórico-cosmológicas cuja alusividade simbólica (e, portanto, cuja força ilocucionária) é enorme: “com a ajuda de Deus”, “os crentes”
discursivos de construção-elaboração de representações desumanizantes dos adversários,
designadamente retratos circunscritos por ocidentais de adversários terroristas. A recorrência deste
tipo de temas indicia estarmos perante um processo de construção de imagens de alteridade
violenta e a-normativa que é de longa duração. Não tenho conhecimento de quaisquer estudos
quanto à construção de uma imagética árabo-semítica que seja estrutural e funcionalmente equivalente; não tenho porém dúvidas sobre a sua existência e permanência.
171
Muitos analistas têm vindo a reparar nisto. Ater-me-ei a um só exemplo. Para uma curta e
iluminada série de comentários recentes sobre este tipo de escolhas discursivas, ver o curtíssimo
artigo do cientista político espanhol F. Vallespín (2003).
200
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tratarão de “levantar as suas espadas” contra “os infiéis não-crentes” e as “mães
chorarão os filhos que irão ser esfolados vivos e dados de comer aos animais do
deserto”. Como Saddam afirmou na sua comunicação televisiva ao Mundo a 24
de Março último (há uma semana), “com a ajuda de Deus todo-poderoso” e
animados pelo “espírito do jihad” iremos “causar enorme sofrimento” às “forças
maléficas” que estão no Iraque.
Talvez possamos agora puxar o fio à meada a esta última questão que acabei
de aflorar. Vivemos num mundo de informação. O poder soft das palavras, das
molduras ideacionais, das conceptualizações que uns aos outros comunicamos,
não são de subestimar. São forças eficazes. São formas de poder: de um poder
cuja alçada é hoje global172. Ainda que isto seja trivial e óbvio, não será talvez
despiciendo equacioná-lo rápida e indicativamente. Mesmo quando não manipuladas em contextos propagandísticos, ou quando são meros erros tácticos e
deslizes (como é manifestamente o caso nos exemplos que dei relativos às
invectivas de George W. Bush, que me parecem fazer o jogo do agressor) trata-se de ideias que delimitam os “quadros” em que pensamos, julgamos, avaliamos,
tomamos decisões. São representações que, mesmo as implícitas (porventura
sobretudo as implícitas), formatam o que vemos. E aquilo que nos está a ser dado,
o que nos está a ser comunicado ou inculcado nos discursos de ambos os lados,
nas formas discursivas e narrativas neles subjacentes, oblíquas e clandestinas,
utilizadas para repetir as metáforas a que atrás recorri, é talvez pior do que a
imagem reificada de um Choque de Civilizações à la Huntington.
E é, sobretudo, totalmente contrário ao modelo idealizado de um qualquer
diálogo pluralista de culturas, já que delineia, a traço forte, uma visão radical e
irredutivelmente polarizada do Outro, como um Outro que estamos condenados a
172
O que, como é evidente, se aplica tanto à acção comunicacional e aos discursos mantidos
nos palcos internacionais como a quaisquer outros domínios sociais de utilização da linguagem.
Para uma visão pormenorizada, ainda que de certa maneira incipiente, daquilo que chamou soft
power, ver o excelente artigo de Joseph S. Nye (1992), numa boa tradução portuguesa de um
capítulo de um livro que este cientista político publicou em 1990 sobre as mudanças, então
sensíveis, no poder político exercido pelos norte-americanos no Mundo. O tópico tem sido retomado por Nye em todas as suas publicações posteriores.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
201
confrontar e a defrontar. Vale decerto a pena insistir um pouco neste ponto. Tanto
desumanizações como sub-humanizações estão para além de serem construções
nocionais insultuosas. São operações que erigem e propagam uma caracterização factualmente incorrecta, que somos infelizmente por vezes tentados a fabricar, sobre aqueles nossos interlocutores cujos comportamentos e atitudes nos
parecem grosseiramente descabidos e intratavelmente anómalos. Redundam em
gestos de recusa. Ou seja, visam desqualificar, de maneira veemente e de forma
irreversível, as pessoas que de nós se distinguem de maneiras que, por uma ou
outra razão, consideramos radical e terminantemente inaceitáveis: e fazemo-lo
naturalizando as diferenças que, postula-se, delas nos separam173.
O que é claramente o caso nestes dois exemplos que dei. E o que não deixou
de ter um preço, ético e político. Mas, aqui, também um preço estratégico. Porque
pior que o simples facto de se tratar de agressões verbais e de representações
empiricamente erradas, o acto de remeter os outros para o domínio genérico do
“não-humano” condena-nos a nunca os podermos vir a compreender. O que é grave:
torna-os seres e agentes opacos, quando muitas vezes é para nós uma questão de
vida ou morte o entendê-los, ainda que seja para assim melhor os combater174.
173
Ambiguidades e incongruências representacionais deste tipo parecem-me, para usar uma
frase feita hoje muito em voga, formar parte do problema com que temos de lidar e não parte da
sua solução. A um nível mais alto de generalidade é claro porquê. São ruídos que não contribuem
em nada para o urgente esbater de diferenças e a sua tolerância. Servem, menos ainda, como
quadros conjunturais capazes de promover um qualquer diálogo. E curiosamente, pelo menos num
dos casos (o dos discursos da Administração norte-americana), esta estranha ambivalência (melhor,
esta duplicidade discursiva) que tentei trazer à luz parece-me insidiosamente ter constituído (e
continuar a fazê-lo) uma parcela (decerto indesejada) do jogo do agressor.
174
É, aliás, apenas neste quadro que podemos entender a curiosa ausência de uma qualquer
reivindicação num tipo de ataque, como o do 11 de Setembro, em que por via de regra as
organizações terroristas fazem questão de gritar bem alto a sua autoria do feito, para com isso
ganhar dividendos em termos de propaganda e recrutamento: depois da manhã do 11 de Setembro,
o silêncio gritou-nos que devíamos ter medo, porque o inimigo era invisível e porque recusava
qualquer tipo de interlocução connosco. Como escreveu Thomas Risse (2000: 15), num contexto
mais abstracto relativo ao problema de agency-struture na teoria das relações internacionais,
“meaningul communicaton require that actors see at least some room for cooperation with their
interaction partners and, thus, wish to overcome a world of sheer hostility”. O que claramente parece
não ser o caso no exemplo que forneci.
202
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
3.
Contrasta, ou pelo menos contrasta aparentemente, com esta irredutibilidade
discursiva a suposta emergência (por que muitos anseiam e aplaudem) de um
novo espaço de diálogo nos palcos internacionais: o que pelo menos um autor
chamou “o desenvolvimento de um novo forum público a nível global relativo a
questões de governação global”175. Será esse o caso? Estaremos de facto perante
movimentos na direcção oposta ao da irredutibilidade a que acabei de aludir?
Movimentos centrípetos e não centrífugos? McWorld em vez de Jihad?
Vale a pena equacionar a versão mais hard e bem fundamentada das que
conheço que advogam estar tal tipo de processo em curso. Trata-se de uma
leitura em grande parte habermasiana. As suas alegações são simples. O que os
debates que surgiram em todo o Mundo depois do 11 de Setembro indiciam é
a cristalização de um espaço comunicacional partilhado a nível planetário. Os
debates veementes pró- e contra a recente invasão do Iraque, diz-se, vieram
tornar essa evidência incontornável. Numa versão menos partisanne desta hipótese, não estão em causa quaisquer colorações político-ideológicas para esse
espaço em formação acelerada: o que é de realçar é a enorme amplificação a que,
nos fora de opinião, se têm visto sujeitos. As inúmeras Cimeiras e “cimeiras
alternativas” dos últimos anos foram só um aperitivo; agora a figura do “público
internacional” foi posta em marcha.
Para os proponentes deste tipo de discurso, já não era sem tempo. Os
processos de globalização, queixam-se, são gravemente “deficitários” em termos
de controlo institucional. Ao que acrescerá uma notória “falta de regulamentação” que, alegam, torna a ordem internacional melhor concebível como um tipo
de desordem. De nada serve, porém, que disso não gostemos ou que, pelo
175
A expressão [tradução minha] é de Joan Subirats (2003), um professor catalão de Ciência
Política na Universidade de Barcelona, num artigo de opinião publicado no El País. Em Portugal,
Adriano Moreira tem sido arauto de uma perspectiva pelo menos aparente e superficialmente
semelhante, uma perspectiva que toma a “opinião pública internacional” como um “novo actor”, que
se terá “começado por afirmar no caso de Timor” e com o qual “se tem doravante de contar”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
203
contrário, o possamos aprovar com convicção: na ausência de dispositivos
institucionais e de modelos ideais sobre aquilo que queremos, estamos condenados a uma mera contemplação passiva das transformações globais que vão
acontecendo. A política tradicional, atida aos Estados, não consegue já dar conta
das novas realidades globais. Não tem para ela nem para eles conceitos que nos
permitem decidir sobre a sua eventual desejabilidade ou indesejabilidade. Há
por isso que a substituir. Mas não sabemos como176.
Segundo Habermas, numa interpretação famosa, a opinião pública burguesa ter-se-á formado, no século XVIII britânico e centro-europeu, em jornais,
“clubes”, cafés, salões de chá e associações literárias, culturais e recreativas
variadas. A sua sedimentação foi lenta e progressiva, por camadas e restrita a
apenas alguns. A opinião pública internacional estaria hoje em dia a ser formatada,
de uma maneira muitíssimo mais rápida e socialmente generalizada, pelos jornais, pela televisão e pela Internet.
De acordo com esta narrativa, o seu trajecto é conhecido. Depois de uma longa
pré-história, teve um dos seus primeiros grandes arranques com a música rock, que
depressa deu a volta ao Mundo. Passou por movimentos cívicos de contestação em
finais dos anos 60 (tanto na Europa como nos Estados Unidos) e cristalizou com as
imagens da Queda do Muro de Berlim e da derrocada das ditaduras da Europa de
Leste, vistas, sentidas e aplaudidas em toda a parte e em tempo real.
176
Foi a pensar em conjunturas semelhantes que Jürgen Habermas (1989, original de 1962, e
1996) desenvolveu a sua teorização da “acção comunicacional”: as relativas à ascensão da “burguesia” na Europa central de finais do século XVIII, e aquela em que, nos anos 60 e 70 do século XX,
emergiu uma opinião popular consensual a reagir contra os regimes comunistas de Leste. Habermas
famosamente argumentou que o processo veio à tona em termos de uma cada vez maior disjunção
entre os lifeworld (Lebenswelt) em que viviam e pensavam as pessoas e os domínios dos poderes
instituídos, os domínios dos Estados. Baseados em princípios de “igualitarismo” e “persuação”, estes
lifeworlds subjectivos contrastariam profundamente com a natureza hierárquica e coerciva do
poder. Para Habermas, sociedades civis seriam a expressão institucional dos lifeworlds privados em
que vivem e interagem os actores sociais, uma vez que estes começam a partilhá-los, e portanto eles
se tornam públicos. Seriam as mais verdadeiras expressões dos demos. E estas sociedades civis,
estes demos, iriam, no essencial, sendo produzidos pelos “diálogos” entre aqueles actores sociais
mais motivados e activos que, em “espaços públicos” comuns, começam a encontrar referenciais
comunicacionais partilhados.
204
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Com a invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 e com a Primeira Guerra do
Golfo em 1991, descobriu-se, via CNN. A MTV e os seus clones depressa vieram
substituir a música rock da geração anterior. O fim da ordem bipolar acelerou-lhe
efectivamente o passo. Uma opinião pública internacional cada vez mais coesa e
intricada (e também cada vez mais compósita) foi-se coagulando com o Massacre
de Santa Cruz em Timor, com a Bósnia-Herzegovina, em reacção às brutalidades
sérvias no Kosovo, e em Timor-Leste.
O 11 de Setembro foi vivido como um momento verdadeiramente global:
“we are all American”, “nous sommes tous des Américains” foi a frase que correu o
planeta177. Cimeiras como as de Davos, Durban e as dos G-7, e Cimeiras Paralelas
como as de Campo Alegre, manifestações em Seattle, Quebec City, Goteburgo,
Praga e Florença foram catalizadores. Agora, com a Segunda Guerra do Golfo, os
palcos instalados dos novos espaços públicos de opinião global são visíveis um
pouco por toda a parte. Estaremos perante uma espécie de parto definitivo de
uma demos global que desde há alguns anos estaria em gestação. Ou pelo menos
estaremos face ao seu crescimento desenfreado: o espaço público cresce diariamente a olhos vistos.
Note-se de momento que este modelo por muitos defendido (e quanto ao
qual mantenho algumas dúvidas de pormenor, e apenas de pormenor, que aliás
irei suscitar) não exige que tenha de haver quaisquer concordâncias naquilo que
vai coalescendo na nova esfera pública. O que importa é que se comecem a
verificar debates globais. Haverá seguramente posições alternativas quanto a
temas semelhantes e até variações sobre esses temas. O que conta, porém, é que
comece a surgir um sujeito colectivo cujas discussões e decisões se vão
sedimentando a um nível cada vez mais universal.
É claro que é fundamental que se vá constituindo um corpus comum, um
“léxico”, um repertório, e uma “sintaxe”, um nexo, largamente partilhados. Sem
esses referenciais comuns não há interlocuções nem diálogos. Mas, insisto, não
177
Num eco intertextual claro com o “Ich bin ein Berliner” de John F: Kennedy. A frase terá tido
início nos títulos garrafais da primeira página do jornal francês Le Monde “nous sommes tous
Américains”. Uma empatia, neste último caso, passageira.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
205
tem de haver nenhuma coincidência de pontos de vista; nem, aliás, convém que
haja, sob pena de nos repetirmos ad nauseum sem nunca conversar. O que conta,
insisto, é a emergência de uma esfera pública, de um efeito de diálogo, de um
espaço comunicacional partilhado. Numa versão mais maximalista, é útil, para a
abertura desse espaço ter eficácia, que aquilo que conte sejam opiniões, sem que
nem a legitimidade dos interlocutores que se revelem ser eventuais opositores
seja posta em dúvida. Aquilo que há a apurar e assegurar é o estabelecimento de
regras consensuais de “racionalidade argumentativa”178.
O argumento dos que defendem que assistimos hoje em dia à cristalização
de uma opinião pública internacional, de uma ou de outra maneira presume ser
esse o caso. Ou seja, supõe-se (melhor, afirma-se) que novos referenciais comuns
e múltiplos diálogos estão a ser estabelecidos, o que amplia o campo da luta
política, alargando não só o rol dos que nela participam, mas ainda redesenhando
os domínios em que essa contenda tem lugar. E insistem: as batalhas, todas elas,
travam-se também, doravante, noutras arenas: as de uma opinião pública internacional agora sempre atenta.
Se esse for o caso, estaremos perante um movimento e uma pressão sistémica
que puxam (ou empurram) numa direcção oposta ao da irredutibilidade
comunicacional a que aludi na primeira parte desta comunicação. Uma pressão
centrípeta, de par com a centrífuga. Será assim? E, se a resposta for sim, o que é
que podemos daí concluir?
178
Note-se que a opinião pública (nacional ou internacional) de maneira nenhuma opera
apenas como forma de soft power. Isso distingue-a claramente dos discursos de sub-humanização
de que antes falei e que, esses sim, se restringem largamente a tal domínio. Pelo contrário, a opinião
pública afecta directamente os sistemas políticos, designadamente os democráticos. Para além de
ir consolidando um demos, uma eventual sociedade civil internacional, a opinião pública activa as
coisas por intermédio de correias de transmissão mais directas e mais imediatamente eficazes:
através de manifestações, interpelações, referendos e, em última instância, o sufrágio eleitoral.
Apelando a formas de participação e acção política, actua no interior mesmo do sistema político.
206
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
4.
Quero prosseguir ampliando imagens de modo a circunscrever um quadro
em que caibam as minhas parcelas. Para começar com uma asserção categórica
prévia: não acredito que esteja em curso no Mundo o que num qualquer sentido
útil possamos apelidar de um Clash of Civilizations. Não me é árduo especificar
em termos genéricos as razões do meu cepticismo. Tive a oportunidade de em
pormenor o fundamentar, em dois artigos que publiquei no último par de
anos179, e não quereria ter de o repetir no fecho desta Conferência.
Um bom resumo da célebre tese de Samuel Huntington é de que se trata de
uma teoria geral do alinhamento político dos Estados contemporâneos baseada
numa suposta identificação cultural (ou “civilizacional”) entre eles. Numa frase:
não me parece que os alinhamentos a que temos assistido desde o fim da
bipolarização correspondam ao que a modelização huntingtoniana prevê180. Não
quer isto todavia dizer que não convenha, a muitos, retratar em tais termos aquilo
que está a acontecer no Mundo. Não tenho quaisquer dúvidas de que seja esse o
caso. O que creio é que rotular aquilo que se passou desde o 11 de Setembro do
já distante 2001 e a reacção em curso como um “Choque de Civilizações” é (tem
sido) um poderosíssimo utensílio propagandístico, uma espécie interessante de
arma política de arremesso, manuseada e utilizada por uma das facções em
refrega, interessada em mobilizar apoios externos. Uma arma que a outra facção
tem naturalmente feito questão de neutralizar, de desmontar, de desconstruir,
visto não lhe convir que o adversário generalize o conflito.
179
Para uma discussão detalhada das minhas concordâncias e discordâncias quanto ao
modelo de Samuel Huntington sobre o Clash of Civilizations, ver a leitura que fiz em Armando
Marques Guedes (1999) e em Armando Marques Guedes (2000), ambos textos de comunicações que
nesses anos apresentei no Instituto de Altos Estudos Militares, e nos dois casos pelo Instituto
publicados.
180
Nem, aliás, creio que a nova ordem internacional emergente seja integralmente descritível
em termos dos alinhamentos dos Estados que dela fazem parte. Um ponto que discuti no segundo
dos artigos que sobre o “paradigma civilizacional” de S. Huntington publiquei, e que aqui retoma de
outra perspectiva, diferente mas complementar.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
207
Por razões óbvias, nunca como neste momento foi tão imperativo opormo-nos ao modelo-paradigma do Clash e este parece-me um contexto tão bom
como qualquer outro para o asseverar181. O Mundo, e nele a ordem internacional,
vivem hoje momentos complicados. Repensar uma arquitectura já não é trabalho
fácil. Fazê-lo sem projecto à vista, sem garantias da adequação do desenho
àquilo que queremos representar, sem critérios estéticos consensuais, e sem que
a tarefa tenha sequer sido adjudicada à melhor proposta, não é coisa que
tranquilize seja quem for. Uma política de pequenos passos, de reajustes avulsos,
só faz sentido no quadro de uma agenda precisa, que neste caso, efectivamente,
não existe. Ninguém sabe, em boa verdade, onde tudo isto irá parar.
Raramente tal foi tão estrondosamente evidente como desde os dramáticos
acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e nas reviravoltas que se lhe têm
seguido. A partir de então, tudo se tem vindo a precipitar em catadupa. A invasão
do Iraque por uma coligação militar, liderada pelos Estados Unidos, mas sem o
aval de um Conselho de Segurança que não soube encontrar a unidade necessária para dar um seguimento conclusivo (seja numa seja noutra direcção) a
dezassete Resoluções que anteriormente sobre a questão tomara, foi o último
acontecimento numa série que inclui uma fractura visível no seio de uma União
Europeia que até aqui aparentemente concordara com discordar em surdina
(uma gentileza que se perdeu) e, o que é de talvez pior agoiro, uma clivagem, na
mesma linha de fraqueza estrutural, no interior de uma NATO que acabara de
entrar na meia-idade com um alargamento de tamanho e alçada que lhe (e nos)
augurava um futuro risonho. Temos o privilégio dúbio de viver um momento181
O que não quer naturalmente dizer que muitos não construam a sua visão do Mundo como
um todo constituído, precisamente, por esse tipo de entidades. Talvez os dois exemplos históricos
mais claros disso sejam o “Ocidente” e o “Islão” (tal como, aliás, a “China”), agrupamentos que se
imaginam como unos e coesos, e que muitas vezes se entredefinem mutuamente. “Comunidades
imaginadas” como estas emergem muitas vezes como forças activas nos palcos políticos. O que me
parece é que estas noções são (pelo menos por enquanto) pouco mais do que construções místico-religiosas exclusivistas idealizadas, por via de regra com pouco “eficácia” directa no mundo concreto. Alguns são os que tentam dar mais corpo a tais comunidades, sobretudo nesta época de
globalização. É o que julgo ser o que se passa com o chamado “fundamentalismo islâmico” e, em
específico, com Osama bin Laden.
208
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
-charneira, com toda a desorientação que isso implica. A impressão que por vezes
tenho é a de que estamos todos na situação incómoda de ter de conviver numa
casa comum planetária cheia de minas, armadilhas e bombas-relógio. Nada de
muito agradável.
Depois deste rápido excurso prévio pelo “ecossistema”, gostaria, em guisa de
etapa suplementar, de puxar alguns dos fios da meada. Com alguma frieza
retrospectiva, talvez não seja demasiado arriscado formular hipóteses plausíveis
relativamente às consequências, convergentes, de uma “war against terrorism”
como aquela em que hoje em dia vivemos, e da reordenação das relações gerais
de poder no Mundo que a superpotência remanescente, dolorosamente ferida,
entende ser seu dever (interna como externamente) assegurar.
Uma destas linhas de força, porventura a mais interessante e a mais convincente de todas, é aquela que acabei de referir: diz respeito ao crescimento de
uma opinião pública internacional (uma curiosa coligação de forças que se tem
manifestado em frentes variadas, que vão da imprensa escrita às televisões, da
CNN ao al-Jazira à Internet); uma entidade que, alega-se, tem vindo a assentar
arraiais nos novos espaços públicos disponibilizados pelos processos imparáveis
da globalização. Uma opinião pública partilhada essa, note-se mais uma vez, que
contrastaria de maneira radical com a recusa liminar de comunicação entre vários
Estados e entre alguns destes e os agrupamentos terroristas.
A constituição desse movimento de opinião, a abertura desse espaço e as
formas de participação política a que ele tem dado azo, têm vindo a ser encaradas como um processo de sedimentação acelerada de uma autêntica “sociedade
civil internacional” enquanto, argumenta-se, um novo actor (e um de peso) nos
palcos globais182. Um actor, assevera esta narrativa republicana e cosmopolita de
forma triunfal, que mais tarde ou mais cedo irá mudar o Mundo. Estaremos
perante uma força de McWorldização, que contraria o Jihadismo das outras
expressões que abordei, essas constitutivas de um novo tipo de exclusão, que
182
Para uma discussão recente sobre questões afins destas, ver Alejandro Colás (2002), que
não só insiste na presença de uma “sociedade civil internacional” (de que faz uma definição sui
generis), mas que a considera como genética de toda a ordem internacional pós-Westphaliana.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
209
operaria pela construção de uma alteridade radical e intransponível do “Outro”
tradicional? Parece-me ser este o enquadramento mais fértil para equacionar a
questão que enunciei: se esse for caso, poder-se-á tentar assegurar que estas
duas pressões, uma centrífuga e a outra centrípeta, se contrabalancem?183
A questão da opinião pública pode ser encarada como um exemplo
paradigmático disso. Talvez mais do que qualquer outra coisa, tem sido ela, ao
oscilar, que nos tem induzido a ideia de que vivemos numa situação de um tipo
particular de equilíbrio, que pode ser instável mas que é regular: uma espécie de
oscilação em redor de um centro virtual, localizado algures entre um
cosmopolitismo mais abrangente e um paroquialismo mais marginalizador, entre
inclusividade e exclusão. Encontrar neste caso esse ponto estável de equilíbrio
não é tarefa fácil. Requer um esforço que podemos melhor empreender seguindo, também nós, uma política de pequenos passos. Passos traçados a compasso
e esquadria.
Em primeiro lugar, há que lograr pôr em evidência tanto as forças como as
fraquezas dessa nova torrente de opinião, e sobretudo as principais características de fundo, das coordenadas do espaço público criado e em abertura, e da
reputada “sociedade civil internacional”, ou “comunidade cívica global”, que sociologicamente os sustentaria a todos. Fazê-lo implica esmiuçar primeiro, e depois
tipificar, os movimentos políticos a que essas fraquezas e forças dão corpo, e as
modalidades de participação e de acção política que tais movimentações
consubstanciam. Só assim se pode aventar hipóteses minimamente fundamentadas quanto à sua coesão e estabilidade e, por isso, quanto à permanência que
183
Uma resposta possível é a de que talvez não. É admissível que uma delas leve a melhor
sobre a outra e que a oscilação que parece estar em curso mostre ser apenas uma mera aparência.
Tenho em todo o caso a convicção de que existe um ponto de equilíbrio estável entre, por um lado,
a sub-humanização liminar, como dispositivo de exclusão intransponível e radical dos outros (com
o consequente espaço a-normativo que ela produz) e, por outro lado, a igualmente excessiva e
decerto também descabida (ou pelo menos prematura) unanimidade homogeneizante de posturas
éticas e políticas que se querem universalmente partilhadas. Entre um extremo e outro ou, como
gostam de dizer os anglo-saxónicos, “between a rock and a hard place”, há a meu ver que tentar traçar
uma mediana menos insensata, mais credível e com mais pés para andar.
210
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
podem esperar ter, quanto às suas probabilidades de perdurar184. Como só deste
modo podemos fundamentar as perspectivas que temos quanto à sua
representatividade democrática. A esses níveis, como irei tentar demonstrar,
aquilo que hoje se configura não é demasiado animador, mesmo para os observadores mais generosos e cosmopolitas.
Para o entrever, uma módica dose de realismo leva-nos longe. Basta focar os
processos de gestação dessa nova suposta “torrente cívica”. Um bom ponto de
partida são, senão os seus lugares de gestação, em todo o caso as bases de
sustentação em que se apoiam. Ponhamos os pés no chão: importa saber dar o
devido realce à capacidade dos Estados e de várias outras entidades, instituições
transnacionalmente organizadas, mas não necessariamente representativas, em
constranger e regular (e portanto em fazer inflectir em direcções que lhes
convenham) esses tais movimentos “espontâneos” de opinião. Importa em todo
o caso não exagerar, não quer isto dizer, no entanto, que não esteja em fermentação um germe de opinião pública global. Trata-se de uma opinião atida às elites
e dessas sobretudo às dos Estados ocidentais, sem dúvida, mas é uma entidade
que está efectivamente a medrar; que o está e que tem vindo a ser reconhecida
enquanto tal.
Num certo plano, é por isso decerto bem verdade que um dos ingredientes
da nova ordem internacional em gestação é precisamente uma opinião pública
184
Os dados recentes não dão grande base de sustentação a alegações de que estaríamos
perante movimentos de uma opinião que seria expressão de uma sociedade civil internacional e do
seu espaço de opinião. Um atributo (ou propriedade se se preferir) da opinião pública internacional
de que se tem vindo a falar, é a sua esboroabilidade. Veja-se a reacção, ao nível desta opinião
internacional, da aparente desaceleração na progressão da campanha da coligação no Iraque, o
impacto das imagens dos prisioneiros norte-americanos capturados, o recuo perante o arrolamento
de baixas militares aliadas e civis iraquianas. Segundo as sondagens levadas a cabo em diversos
países, deu-se de imediato um refluxo sensível no já exíguo apoio à guerra. Foi no entanto uma
questão apenas superficial: houve, de facto, uma mudança súbita e perceptível nas percepções
quanto ao andar da invasão; mas foi uma alteração que não alterou de maneira significativa nem o
apoio nem a oposição à acção liderada pelos norte-americanos. Não levou, fosse onde fosse, a
quaisquer realinhamentos. Foi eficaz, ma non troppo. As viragens, ao que tudo indica, tocaram pouco
de estrutural e nada de permanente.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
211
internacional que se vai, ainda que lentamente e aos solavancos, cristalizando a
olhos vistos. Mas (sem quaisquer julgamentos quanto ao conteúdo que ela teria
tido, e que poderia ter sido semelhante) não foi efectivamente essa a torrente de
opinião aquela que realmente se manifestou185. Ou pelo menos, fê-lo de uma
forma muito influenciada por manipulações políticas instrumentais externas,
provenientes de entidades dotadas de agendas próprias aplicadas de maneira
sustida e coerente.
Um mínimo de atenção e o exercício de um esforço módico de destrinça
revela-o. Atentemos ao lugar de origem das posturas assumidas nas movimentações a que assistimos nos media. Comecemos pela intervenção de entidades
estatais no decurso da chamada “crise do Iraque”. O papel enfaticamente pró-activo do Estado francês na criação e formatação de uma opinião pública interna
e externa no decurso da corrente crise iraquiana, não augura aos movimentos de
opinião pública mobilizados um grande futuro de independência e autonomia.
Nem, aliás, o auguram o papel também activíssimo e muito obviamente
intervencionista da Administração norte-americana de Bush (pese embora a
menor destreza “diplomática” por ela revelada) e o voluntarismo do regime
iraquiano de Saddam ou do britânico de Blair186. Num como nos outros casos, a
185
O que, como irei argumentar, no mundo real e por detrás dos simulacros, acarretou
consequências. Para avançar já concretamente o sentido de algumas delas: face à interdependência
complexa em que se vêem envolvidos e perante a publicitação a que a sua actuação política se vê
hoje em dia sujeita, nem os Estados Unidos nem a França ou a Rússia (para só aludir a três exemplos)
assumiram, de maneira frontal, os reais motivos que os animaram. Tal como os não assumiram os
variados “movimentos civis” transnacionais. Todos utilizaram formas de soft power. Na ausência de
representatividade democrática legitimamente conquistada, refugiaram-se na obliquidade, por via
de regra recorrendo a discursos éticos e a invectivas moralizantes. É curiosa a verificação de que, em
espaços política e juridicamente “pouco texturados” e pouco coesos, as formas de autoridade e
poder que se emergem e instalam se aproximam claramente das lideranças e movimentações
“carismáticas e tradicionais” tão típicas de níveis organizacionais ralos e pouco elaborados e sofisticados. Aquilo a que temos assistido no Mundo nos últimos meses tem redundado num espectáculo
de nítido subdesenvolvimento político dos palcos supra- e transnacionais.
186
As dificuldades com que, antes e depois da guerra, George Bush e Tony Blair depararam
face a acusações, muitas vezes bem fundamentadas, de “exagero” e até “falsificação” de informações,
levados a cabo para mobilizar as respectivas opiniões públicas, são disso exemplo paradigmático.
212
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
eficácia destas manipulações foi notável. Ao nível estatal, as interferências instrumentais foram grosseiras: uma infeliz “diplomacia de megafone”187 tem reinado
suprema.
Voltemo-nos agora brevemente para as entidades transnacionais não-estaduais que deram a cara e para o seu papel nessas movimentações. Comecemos
por notar que as tomadas de posição pública relativamente à invasão do Iraque
abundaram, provenientes por exemplo da hierarquia da Igreja Católica e da
larguíssima maioria das denominações Protestantes aos partidos políticos e aos
diversos meios de comunicação. Na maior parte das vezes, opondo-se-lhe; umas
vezes alegando um rol de motivos, outras vezes outros. Nalguns casos, apoiando-a, novamente por razões variáveis caso a caso. Houve mais. Diversos “movimentos cívicos” se formaram na Internet, também eles fervorosos nas suas tomadas
de posição. E também estes de uma grande variedade.
Viremo-nos agora para os métodos utilizados. Salvo raríssimas excepções,
nenhuma das entidades que interveio tinha um qualquer mandato democrático;
na sua enorme maioria, tratou-se de uma erupção de agrupamentos que, não
conseguindo obter voz e apoios suficientes através dos meios democráticos
legítimos, exploraram a oportunidade mediática para tentar adquirir poder e
ensaiaram exercer influência pública segundo formatos mais directos de acção
política. Outras, designadamente partidos políticos minoritários, utilizaram as
possibilidades criadas para tentar fazer avançar as suas agendas de maneira
oblíqua e para se destacar marcando publicamente algumas das diferenças
específicas que ostentam como traços característicos. Quase todas pretenderam
falar “em nome da esmagadora maioria” dos cidadãos. Não deixa, no entanto, de
ser evidente que foi conseguida assim uma inusitada coesão de uma “sociedade
civil transnacional” emergente.
187
Como escreveu José Cutileiro (2003), num artigo recente de opinião, a França utilizou uma
autêntica “diplomacia de megafone – falando na praça pública, para impressionar o povo, em vez de,
à puridade, convencer a outra parte – e, em consequência, agravando deliberadamente a discordância
que se diz querer diminuir”. Uma manipulação instrumental clara do “novo espaço público” por uma
entidade estatal com capacidade, posição estrutural e know-how para o fazer.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
213
Que dizer de tudo isto? Começo por notar que, com efeito, uma opinião
pública geograficamente muito dispersa foi mobilizável em redor de uma questão
(ou de uma série delas). Nesse sentido, opiniões cívicas globais são um novo actor
potencial das causas mundiais. Podemos ir mais longe. É fácil verificar que sejam
quais forem as nossas preferências quanto a eventuais agendas e desfechos, em
espaços comunicacionais incipientes como os que estão em causa nestes “movimentos de uma opinião pública global em formação”, só códigos de comunicação
restritos e só referenciais muito simples (tanto em termos de “léxico” como de
“sintaxe”) logram ver-se partilhados e por conseguinte conseguem estabelecer-se188. Essa simplicidade e essas restrições viram-se potenciadas pela multiplicidade
de origens, posturas e agendas dos grupos sociais mobilizados.
Os exemplos poderiam facilmente ser multiplicados. No entanto, o meu
ponto é o seguinte: já que os vários Estados e diversos agrupamentos político-partidários, grupos económico-financeiros e outros religioso-confessionais (para
só fazer alusão a dois de muitos casos paradigmáticos possíveis) não sofrem
desse tipo de limitações a nível dos códigos utilizáveis, as vantagens
comunicacionais que detêm são enormes. Operam como que por subsunção. As
consequências não se fazem esperar. Com um mínimo de esforço, capturam para
a sua esfera os discursos entretidos pelos agrupamentos “espontâneos” em
formação: modelando-os, convertem-nos.
Não tenho quaisquer dúvidas de que estes processos estão em curso, e que
de algum modo assim se vêem, de forma subreptícia e muito eficaz, minadas as
possibilidades de uma mais rápida cristalização autónoma de autênticos novos
188
Será sem dúvida por isso mesmo que os movimentos e formas de participação que se têm
vindo a instalar, e que nos têm vindo a recrutar a todos, recorrem a formas organizacionais que
redundam em simplificações drásticas e altamente formalizadas dos relacionamentos sociais e da
interacção do quotidiano: em lugar de manter diálogos segundo códigos de comunicação elaborados, como o fazemos no nosso dia-a-dia, fazem uso de palavras de ordem que encapsulam
invectivas que, de um ponto de vista comunicacional (ou seja, “lexical” e “gramaticalmente”), são
bastante pobres; os activistas desses movimentos gesticulam teatralmente e organizam marchas
ritualizadas. Mostrando, é certo, presença activa e coordenação (virtudes “político-militares” que, no
contexto, paga dividendos asseverar); mas manifestando também severas restrições no repertório
que têm disponível.
214
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
e pujantes movimentos internacionais de opinião pública189. Mas a hegemonia
funcional destes dispositivos implica mais do que isso. Diminuem em resultado
quaisquer conotações políticas e político-ideológicas190 que neles possamos
pretender reconhecer191. Como decresce, também, a sua eventual capacidade de,
189
Ou pelo menos retardada no tempo a sua emergência e eclosão no campo político-
-democrático legitimado e fortemente empobrecido o potencial conteúdo que poderiam ter. Longe
de ser dada voz a expressões coerentes de uma visão do mundo partilhada, assistiu-se na maioria
dos casos a coligações de oportunidade entre lobbies bem organizados, cada um dos quais representava interesses estreitos e muitas vezes pouco congruentes com os dos seus parceiros nessas
coligações efémeras. Se bem que esse não tenha sempre sido o caso, muitas vezes as posturas
políticas assumidas eram morais e bem-intencionadas, mas os mecanismos agressivos de afirmação
política utilizados denunciavam tanto a ideia que tinham de estar a lutar contra um inimigo e não
a favor de agendas positivas, mas também uma sua melhor caracterização enquanto formações
políticas. A questão é particularmente gravosa em contextos de interdependências globais crescentes como os actuais, para os quais se torna urgente assegurar alguma “sindicância” democrática que
encaminha uma sua maior e melhor regulamentação.
190
É verdade que, um pouco por todo o Mundo, a Esquerda “clássica” tem-se arrogado
proprietária desses espaços como sendo seus, reivindicando por exemplo uma hegemonia no
delinear da arquitectura política que os subtende, e alegando também serem sobretudo parcelas
das suas próprias agendas as opiniões que se fazem ouvir. Noto que, historicamente, também a
Direita “clássica” o fez (e o faz, ainda, designadamente nos Estados Unidos onde esta corrente
política parece estar de vento em popa). Ambas as coisas seriam de esperar: invocações de um droit
de territoire privilegiado são uma táctica comum de ocupação pre-emptiva como hoje em dia se dirá.
Mas nem é óbvio que uma consistente moral majority “direitista” ou que uma qualquer fraternidade
festiva “esquerdista” em boa verdade detenham um qualquer controlo real, efectivo e actuante sobre
essa nova entidade (infelizmente ainda tão rala e incipiente, ao contrário das encenações que se lhe
substituem, essas cada vez mais sofisticadas) que é a opinião pública global que vai despontando.
191
Mais ainda, e retomando de outra perspectiva a questão da representatividade democrá-
tica destas formas de acção política: temos de saber distinguir entre esse novo basismo populista e
a legitimidade (mesmo que tão-só residual) que ele decerto disponibiliza, e o seu efectivo potencial
de transformação. Um potencial, reconheçamos, que não é nulo. A capacidade de um condicionamento dos processos políticos contemporâneos por forças menos “tradicionais” resulta claro para
quem se detenha com um mínimo de atenção sobre o andar corrente da carruagem. Se nos
pusermos acima da refrega política isso torna-se nítido. Um só exemplo. Os partidários norte-americanos de uma postura isolacionista (uma atitude com pergaminhos velhos na curta mas densa
história política do Novo Mundo), viram-se surpreendentemente forçados a tentar canalizar os seus
esforços e a sua impetuosidade através das Nações Unidas e do seu Conselho de Segurança (e isso
teve um preço alto, do ponto de vista da ambicionada defesa intransigente dos seus interesses
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
215
por meio de formas de “desobediência civil”, fazer frente aos poderes e interesses
instituídos face aos quais (em muitas das suas circunstâncias de gestação) se
começaram por formar.
As implicações de tudo isto parecem-me iniludíveis. Sem embargo da coagulação, tão progressiva quão inevitável, de um espaço universalizante de opinião
(que não tenho dúvida que está em gestação-sedimentação desde há muito e
que os recentes acontecimentos avivaram), não é de excluir que em consequência
(e pelo menos temporariamente), em vez dos novos espaços internacionais
de opinião pública, aquilo que estamos a presenciar e em que vamos participar redunde, de facto e por um lado, na abertura de novas arenas para as
manobras de agitação e propaganda dos Estados; nesse sentido, estaremos apenas
a testemunhar os seus esforços renovados de recrutamento e mobilização no
plano internacional. E parece-me de manter simultâneo em mente que tal está por
outro lado também a ocorrer de par com o agitprop e os esforços de mobilização
de agrupamentos não-governamentais, infra-estaduais, tão variados quanto não
representativos, quando estes entrevêem a possibilidade de fazer ouvir a sua voz192
nacionais “clássicos”). Os opositores de uma intervenção (com a França e a Rússia à cabeça) tentaram
(em larga medida com sucesso, diga-se) que uma opinião pública internacional, cada vez mais
atenta e coesa, encarasse os inspectores e as inspecções, cuja função sempre foi apenas a de
supervisionar o desarmamento voluntário do Iraque sadamita, como se se tratasse de investigadores que tivessem sido encarregados da missão de descobrir processos de desenvolvimento de armas
de destruição maciça e de lhes pôr cobro. Como escreveu, José Cutileiro num artigo notável
intitulado “O fosso”, publicado no Expresso, na p. 24 do caderno 2, a 8 de Março de 2003. Os franceses
recorreram a uma “diplomacia de megafone: – falando na praça pública, para impressionar o povo,
em vez de, à puridade, convencer a outra parte – e, em consequência, agravando deliberadamente
a discordância que se diz querer diminuir”. É interessante ainda verificar, neste processo, a
instrumentalização da figura do General de Gaulle: o mesmo de Gaulle que, note-se, apoiou
imediata e incondicionalmente o Presidente John F. Kennedy e a Administração norte-americana
durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962; nada disso tem impedido Jacques Chirac de se
apresentar publicamente como estando a assumir uma postura “gaullista”: uma palavra de código
para a versão francesa moderna do unilateralismo.
192
Logo em Novembro de 2001, dois escassos meses depois do 11 de Setembro, Fred Halliday
(2001) afirmou que “the third of the outcomes of 11 September [will be] the consolidation, to a degree
latent but not present before that date, of a global coalition of anti-US sentiment. Just as US liberal
writers have talked in the 1990’s of the importance for US dominance of ‘soft’ power – in media, language,
216
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
e sentem a oportunidade de fazer avançar as suas agendas corporativas de
mudança193.
Uma outra implicação é mais difusa e abrangente. Situações como estas
exigem-nos que repensemos as nossas abordagens aos palcos emergentes da
acção política transnacional. Até aqui, e salvo honrosas excepções194, a maioria
lifestyle, technology – so the opposition to US power is forming above all in this domain”. Uma notável
premonição do autor britânico. F. Halliday notou que, enquanto a tendência dos Estados foi a de
“bandwagoning” atrás dos norte-americanos, muita da opinião pública internacional preferiu a resposta clássica de “balancing of power”. O meu argumento é que muitos Estados decidiram aliar-se a essa
estratégia de equilíbrio de poder, mobilizando para isso sectores muito amplos de opiniões públicas
nacionais e internacionais. Conquanto esta postura não ignore os novos papéis assumidos pelos
movimentos transnacionais de opinião, relativiza-os: de actores internacionais de seu próprio mote,
passam largamente a figurantes. Alguma cristalização de uma sociedade civil internacional, concluo,
se tem verificado nos últimos tempos. Mas nada de muito profundo. Os defensores da primeira
hipótese parecem-me ou padecer de “wishfull thinking” agudo, ou confundir eventuais avanços na sua
própria coordenação de movimentos cívicos particulares e pobres em mandatos democráticos com a
emergência concreta de uma efectiva, coesa e estável entidade cosmopolita.
193
É porém possível ir ainda mais longe. O que me parece mais interessante é o estreitamento
em curso de formas múltiplas de concertação entre essas ONGs e os Estados, numa repartição
corporativista de atribuições e competências e funções para que ninguém os elegeu, levadas a cabo
sem qualquer forma de controlo democrático. Um desenvolvimento preocupante. Para uma discussão pormenorizada da emergência genérica deste muitíssimo pouco representativo (de um ponto
de vista democrático) “corporativismo global” nos palcos internacionais contemporâneos, cujas
consequências, dadas as desastrosas experiências históricas de fórmulas corporativas, são
preocupantes, ver Marina Ottaway (2001). Como é óbvio, a presença activa destes agrupamentos
nos palcos westphalianos clássicos é benvinda, “liberalizando” a ordem internacional. Mas, com
insiste, M. Ottaway op. cit.: 286), “they can have the opposite effect, namely to give disproportionate
influence to well-organized, tactically astute NGOs freely interpreting where the interests of silent
populations lie”. Para além do seu deficit democrático intrínseco, o corporativismo, enquanto sistema
político, tem-se revelado incapaz de fazer frente a assimetrias empíricas de poder, muitas vezes
potenciando-as. Regressarei a este ponto em termos mais genéricos.
194
Ver, por exemplo, um extenso e minucioso artigo recente de Alexander Cooley e de James
Ron (2002), sobre os constrangimentos sistémicos homogeneizantes que têm vindo a actuar sobre,
e a constranger, a actividade das ONGs internacionais humanitárias e de ajuda pública ao desenvolvimento. É neste contexto que me parece mais útil ponderar a leitura de Marina Ottaway (2001, op.
cit.) sobre o “corporativismo global” emergente na ordem internacional contemporânea. Muitos têm
sido os estudos que, nos últimos anos (quantas vezes tão-somente en passant e com uma ou outra
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
217
dos analistas têm encarado os agrupamentos transnacionais que têm vindo a
popular os palcos pós-bipolares e a crescer como veículos de uma nova e robusta
sociedade civil internacional, como uma força liberal e democratizadora, à qual
nos compete dar as boas-vindas pós-Westphalianas que se afirmam como a nova
praxe. Apesar de ser em larga medida correcta, talvez esta visão seja excessivamente optimista.
A emergência de mais e diferentes actores tem sem dúvida aberto novos
canais de afirmação e acção políticas; mas as suas dinâmicas nem sempre tem
sido consistentes com as expectativas daqueles observadores ou participantes
que estão convencidos de que essa emergência e esse crescimento estarão a
fomentar a instalação nos palcos transnacionais de uma sociedade civil internacional liberal e pautada por quadros normativos adequados. À medida que o
peso, o volume e a intensidade do transnacionalismo pós-Westphaliano crescem,
os analistas fariam bem em prestar atenção às relações concretas e materiais que
se vão estabelecendo entre os novos actores emergentes e entre eles e os
antigos195, e deixar de focar apenas as agendas nominais que aqueles pretendem
defender.
motivação), se têm debruçado sobre os limites democráticos das ONGs e dos movimentos políticos
transnacionais que tanto impacto parecem estar cada vez mais a ter na vida política internacional.
Trabalhos destes são fundamentais como correctivo para a inocência política com que muitas vezes
encaramos essas entidades “civis” que a doutrina liberal aprioristicamente tanto valoriza.
195
Para reiterar o que antes disse: penso aqui em questões tão óbvias como as relativas ao
deficit de representatividade democrática desses agrupamentos, à “mercantilização” cada vez mais
nítida que lhes é imposta pelo “ecossistema internacional” em que actuam (o chamado “isomorfismo
institucional”), seja ao nível do “mercado de ideias” seja ao do mercado tout court, e à corporativização
crescente em que se embrenham em palcos internacionais cuja juridificação e politização não
param de se adensar. Uma vez estabelecidos, estes novos actores, seja qual for a sua natureza e
novidade, são instituições como quaisquer outras: como tal, adequam-se às regras sistémicas do
jogo internacional; e sofrem deste, as mesmas pressões a que todas as suas congéneres estão
sujeitas, nesses palcos rarificados.
218
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
5.
Talvez seja agora de voltar finalmente à minha questão inicial. Contra o pano
de fundo da globalização, no plano da “war against terrorism” e, aí, no que diz
respeito à dimensão discursiva, como é que então podemos caracterizar a
conjuntura em que hoje vivemos? Seremos todos testemunhas de um processo
de radicalização tal que possamos nele ler indícios de que se avizinham alterações estruturais profundas na ordenação de uma “coisa pública” mundial de que
desde o século XX ninguém tem dúvidas (porventura com alguma precipitação)
ter vindo para ficar196? Por outras palavras, o que sugerem as práticas discursivas
correntes quanto ao papel da guerra contra o terrorismo transnacional no que
toca às reconfigurações em curso da ordem internacional?
Escusado será dizer que numerosas têm sido as sugestões, quantas vezes
radicais e self-serving, que aventam respostas rápidas e fáceis para estas indagações. Não quereria aqui perder tempo com elas, já que por norma redundam em
pouco mais do que hipóteses mal fundamentadas, ou em expressões puras e
simples de agendas político-ideológicas que se aproveita para tentar fazer avançar197. Prefiro começar a circunscrever questões da perspectiva que escolhi nesta
comunicação.
196
Ainda que, obliquamente, sob nomes como “sociedade internacional”, “sistema-Mundo”, ou
“ordem internacional”. Ou, num léxico diplomático ainda mais radical porque vinculado a objectivos
pacificadores, “a comunidade internacional”.
197
Não quero com isto significar ser de opinião que nenhuma tem mérito senão a minha.
Penso aqui em posições tão diversas como as daqueles que, por legalismo (ou anti-americanismo)
e sem olhar às evidentes alterações de circunstâncias supervenientes, exigem um cumprimento
estrito das disposições do Direito Internacional, como das dos que persistem em afirmar uma total
adequação das organizações internacionais como a ONU ou a NATO, ou ainda das daqueles hawks
norte-americanos (como Richard Perle, Paul Wolfowitz, Irving Kristol ou Charles Krauthammer) para
os quais a conjuntura de crise disponibiliza uma oportunidade de afirmar uma hegemonia dos EUA
que passa pela subalternização de instituições e institutos (das organizações internacionais ao
Direito Internacional, por exemplo) de que sempre desconfiaram. Tal como ignoro no que se segue
posturas de conveniência (que exprimem pouco mais que versões nacionais de unilateralismo mais
ou menos richelieuiano) de vários líderes políticos, de Jacques Chirac a Megawati Sukarnoputri,
passando por Vladimir Putin.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
219
Deste ponto de vista, uma das principais conclusões a que chego é de
carácter muito genérico e é óbvia: é a de que, longe de estarem progressiva mas
rapidamente a esvair-se numa globalização inexorável que estaria a dar corpo ao
ideal liberal de um Mundo “dos indivíduos e dos povos”, sem fronteiras alfandegárias, económico-financeiras, político-religiosas, ou quaisquer outras, os Estados estão afinal de vento em popa. Os Estados têm vindo a receber sucessivos
balões de oxigénio, dos quais o último (e o mais potente, ainda que dos menos
óbvios) parece ter sido a eclosão do terrorismo internacional. Encará-lo do ponto
de vista de uma restauração da longevidade dos Estados fá-lo sobressair: porque
com este novo fenómeno terrorista global, note-se, a ordem internacional não
mudou tanto como regrediu, no que toca ao grau da sua integração cosmopolita.
É hoje trivial a observação, formulada logo após o 11 de Setembro, de que
nesse dia (e desde então), ninguém se virou para a Microsoft a pedir ajuda ou a
exigir apoios e reparações, nem para a Texaco, a BP ou a General Motors. Virámo-nos todos para os Estados. Ao reconhecê-los assim, demos-lhes força e alento:
demo-los aos Estados Unidos como os demos à França e à Alemanha ou à Rússia.
Demo-los aos Estados democráticos e aos não-democráticos. E eles usaram tanto
um como a outra.
Nesse sentido o al-Qaeda (e o terrorismo transnacional enquanto projecto
político-ideológico de reconfiguração da ordem internacional pela violência)
falhou e acertou. Acertou, porque o binómio liberdade-segurança desiquilibrou-se (pelo menos fê-lo temporariamente) na direcção da segunda e em detrimento da Democracia. Iremos decerto infelizmente senti-lo com cada vez mais
intensidade. Falhou, no sentido em que, enquanto desafio organizado e sustido
de uma ONG apostada em mudar o Mundo, fê-lo com ideologias, formas de
participação política e um tipo de movimentos que só me ocorre caracterizar
como híbridos, simultaneamente “pré-“ e “pós-modernos”198: os movimentos civis
198
Para uma discussão interessante, ainda que pela rama, ver Lee Harris (2002). Para duas
leituras mais favoráveis da “pós-modernidade”, ver B. Said (1997) e Mahmood Mamdani (2002). Os
movimentos terroristas transnacionais como o al-Qaeda são com efeito curiosos deste ponto de
vista. Para parafrasear o balanço que Sir Winston Churchill fez do Nazismo: trata-se de um movimen-
220
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
a que dão corpo parecem-me por isso radicalmente incapazes de sequer tocar,
directamente, a ordem internacional instalada. Quanto mais de a vir a verdadeira
e radicalmente alterar...
Com algum recuo, não é difícil concluir que o falhanço era decerto inevitável: a veleidade dos que imaginavam conseguir vir a derrotar os potentados
estatais que elegeram como inimigos principais não pode senão ser encarado, na
melhor das hipóteses, como uma presunção megalómana (ou messiânica) de um
descabimento ingénuo das ONGs terroristas199. Um movimento entre o Jihad e o
McWorld. A hipótese de que estes movimentos pudessem de algum modo vir a
abrir um espaço próprio autónomo, uma espécie de pequena ordem internacional paralela só para eles, nem que fosse uma pequena frincha, redundaria na
criação de um apartheid absurdo, impensável num Mundo que, quer se queira
quer não, e decerto com inúmeros avanços e recuos, em termos sistémicos é cada
vez mais multicultural, menos exclusionário, e que por isso se pretende mais
abrangente.
Um meu ponto mais geral resulta de tudo isto e é o seguinte: a crise recente
do Iraque, tal como aliás todos os processos de tomada de consciência internacional desencadeados depois do 11 de Setembro, são acontecimentos que nos
oferecem a oportunidade vantajosa de pôr a nu as enormes insuficiências estruturais da ordem internacional pós-bipolar. Como todos os conflitos, forçam-nos
a pôr os pés no chão. A lucidez lograda impele-nos a aceitar a evidência de que
a organização e a regulamentação são de facto realidades ainda exíguas a nível
supra-estadual. É com efeito gritantemente pobre a estruturação existente nesses palcos semi-anárquicos, populados (numa co-habitação muitas vezes
truculenta) por Estados e organizações inter- e transnacionais, por entidades
não-estatais que vão de empresas multinacionais a ONGs de todo o tipo (incluin-
to que conseguiu juntar “the latest refinements of science [with] the cruelties of the Stone Age”. O que
os coloca, paradoxalmente, a um passo de uma eventual separação entre fé e razão, o caminho de
um movimento como foi o da “Reforma” cristã ou o da “Haskallah” judaica.
199
Neste sentido, o terrorismo transnacional não é mais do que um mero expediente táctico,
um levantamento de rua que tem tido lugar numa “aldeia global” pouco homogénea e pouco
consensual.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
221
do al-Qaedas) a agrupamentos políticos ou religiosos transversais e aos seus
clones.
Nestas condições institucionais específicas, as pressões exercidas nos palcos
transnacionais pelo sistema internacional nem sempre são as programadas e
muitas vezes são até “disfuncionais”. Nem o Direito Internacional que temos nem
as nossas organizações internacionais que temos ido criando sobreviverão sem
urgentes reconfigurações de fundo. No último decénio, os estudiosos ocuparam-se e preocuparam-se com o estabelecimento de novos actores pós-Westphalianos
e com a sua importância para as dinâmicas políticas globais. Chegou o momento
de um corte epistemológico, como Thomas Kuhn lhe chamaria. Há agora que
virar a nossa atenção para as pressões sistémicas da “terceira imagem” que
reformatam e reconfiguram as suas acções. Só assim podemos esperar saber
como melhor agir no esforço ainda tão inacabado de “domesticar” a anarquia
hobbesiana em que vivemos.
A solução talvez seja a transformação da ordem em que vivemos para uma
nova ordem internacional200 mais assumidamente pluralista. Uma nova ordem
em que um Direito Internacional mais adaptado aos discursos e às formas de
poder do contemporâneo seja um verdadeiro instrumento de comunicação-negociação dos intervenientes num Mundo multicultural201, e em que as orga200
Em resposta ao 11 de Setembro, e designadamente à “coalition against terrorism” de George
W. Bush, Amitai Etzioni (2002, op. cit.: 23 ss) sugeriu várias hipotéticas “linhas de fuga” alternativas
(de plausibilidade variável), que poderíamos ver concretizadas num futuro “measured in generations
rather than years”: (i) o estabelecimento de uma nova ordem internacional baseada numa vintena de
“regional communities”, agrupadas em seis “supraregional ones”, “crowned by a global government and
civil society”; (ii) a criação, “through a legislative feat” e por intermédio de uma Assembleia Constituinte, de um Estado global; (iii) de acordo com uma estratégia mais gradualista, a formação de um
“expanded semi-empire”, porventura como uma “outgrowth of the [America-led] anti-terrorist coalition”.
Especulações como esta, pecam inevitavelmente por alguma arbitrariedade. No entanto, importa
sublinhar que, tal como foi o caso com a Paz de Westphalia, a Sociedade das Nações ou as Nações
Unidas, ou a União Europeia, a criação de entidades supranacionais ou intergovernamentais envolve
sempre um acto de deliberação e vontade política.
201
Uma leitura que não é nova, não muito distante, aliás, da perspectiva da escola britânica
(a dos discípulos de Hedley Bull) de Relações Internacionais sobre os traços caracterísitcos do Direito
Internacional e das organizações internacionais. Curiosa, mas não inesperadamente, uma posição
222
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nizações internacionais se afirmem enquanto outros tantos fora realmente adequados para essa interlocução alargada. Uma ordem que dê corpo a uma
sociedade internacional ainda mais orgânica nas suas interdependências, nos
seus consensos partilhados, nos seus procedimentos e enquadramentos convencionais que tão lenta, mas tão seguramente, nos têm vindo a fornecer condições
instrumentais na ausência, todavia, de quaisquer ideias e valores comuns, e ainda
menos de uma hipotética perspectivação moral uniforme.
Um objectivo meritório, é certo, mas hoje mais longínquo do que ontem. Há
que ter a coragem de assumir a progressão dessa sociedade como morosa e
difícil, sem que isso nos desmobilize a força da convicção que nos norteia ao
continuarmos a nos esforçar em construí-la.
“racionalista” (ou grociana) hoje em dia apoiada por muitos construtivistas. Como por exemplo
escreveu Thomas Risse (2000: 15), “some issue areas in world politics, such as trade, human rights, or the
environment, are heavily regulated by international regimes and organizations. A high degree of
international institutionalization might then provide a common lifeworld. International institutions
create a normative framework structuring interaction in a given issue-area. They often serve as arenas
in which international policy deliberation can take place”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
223
Bibliografia
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the world, Ballantine Books, New York.
Cooley, Alexander e Ron, James (2002), “The NGO Scramble. Organizational insecurity
and the political economy of transnational action”, International Security 27 (1): 5-39.
Cronin, Audrey K. (2003), “Behind the curve. Globalization and international terrorism”,
International Security 27 (3): 30-58.
Cutileiro, José (2003), “O fosso”, O Expresso, 8 de Março, caderno 2: 24, Lisboa.
Etzioni, Amitai (2002), “Implications of the American anti-terror coalition for global
architectures”, European Journal of Political Theory 1 (1): 9-30.
Halliday, Fred (2001), “Aftershocks that will eventually shake us all”, The Observer,
November 25, 2001.
Harris, Lee (2002), “Al-Qaeda’s fantasy ideology”, Policy Review 114: 1-13, The Hoover
Institution.
Huntington, Samuel (1993), “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs 72(3): 1-25,
New York.
____________ (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
Simon and Schuster, New York.
Kurtz, Stanley (2002), “The future of ‘History’”, Policy Review 114, the Hoover
Instutution.
Leach, Edmund (1977), Custom, Law and Terrorist Violence, Edinburgh University
Press.
Lewis, Bernard (1993), Islam and the West, Oxford University Press.
____________ (2001), What went wrong? Western impact and Middle Eastern response,
Oxford University Press.
Mamdani, Mahmood (2002),”A political perspective on contemporary terrorism”,
Ethnicities 2 (2): 146-149.
Marques Guedes, Armando (1999), “As religiões e o choque civilizacional”, em
Religiões, Segurança e Defesa: 151-179, Instituto de Altos Estudos Militares, Atena, Lisboa.
____________ (2000), “As guerras culturais, a soberania e a globalização”, Boletim do
Instituto de Altos Estudos Militares, 51: 165-162, Lisboa.
Nye, Joseph S. (1992, original 1990), “O Mundo pós-Guerra Fria: uma nova ordem no
Mundo?”, Política Internacional 5(1): 79-97, Lisboa.
Ottaway, Marina (2001), “Corporatism goes global: international organizations,
nongovernamental organization networks, and transnational business”, Global Governance
7 (3): 265-293.
224
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Paul, T. V. (1999), “Great equalizers or agents of chaos? Weapons of mass destruction
and the emerging international order”, em (eds.) T. V. Paul e J. Hall, International Order and
the Future of World Politics: 373-393, Cambridge University Press.
Rasmussen, Mikkel Vedby (2002), “’A parallel globalization of terror’: 9-11, security
and globalization”, Cooperation and Conflict. Journal of the Nordic International Studies
Association 37 (3): 323-349.
Risse, Thomas (2000), “‘Let’s argue!’: communicative action in world politics”,
International Organization 54 (1): 1-39.
Subirats, Joan (2003), “Iraq and the global space”, El País, 11 de Março.
Vinocur, John (2001), “Taboos are put to test in West’s view of Islam”, Herald Tribune,
1 e 9.
Zakaria, Fareed (2003), “The arrogant empire”, Newsweek, 24 de Março, 2003.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
225
226
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
7. Sobre a União Europeia e a NATO202
1.
A União Europeia não é uma organização recente. É verdade que a sua coesão e
o seu protagonismo têm vindo a crescer a olhos vistos: cada vez mais integrada,
a União tem também vindo a afirmar-se de maneira mais audível como um actor
relativamente activo na ordem internacional complexa e multidimensional203
que resultou da Queda do Muro de Berlim, do desmembramento da União
Soviética e do consequente fim da bipolarização que durante uma cinquentena
de anos manteve o Mundo num equilíbrio instável. Ainda que com outro nome,
202
O presente artigo é uma versão alargada de uma conferência, integrada no Curso de
Comando e Direcção do Instituto de Altos Estudos Militares, dedicado à formação de Oficiais-Generais, que se realizou na manhã de 1 de Abril de 2003. A sessão foi intitulada “A União Europeia
e o seu futuro”. Por isso se explica que o ponto focal do que redigi se mantenha posto na Europa
comunitária, quando várias outras alternativas haveria. Levei comigo o meu Colega e Amigo Nuno
Piçarra, que interveio para falar longamente sobre a “cooperação JAI”, uma área em que é especialista. Agradeço ao Senhor General-Director do Instituto, Tenente-General Cardeira Rino, aos outros
Oficiais-Generais que nos honraram com a sua participação, e aos muito numerosos oficiais presentes, de todas as armas e de variadíssimas nacionalidades, as questões e os comentários suscitados,
bem como a profícua discussão que connosco desencadearam. Não quereria deixar de agradecer ao
Nuno Piçarra o seu interesse pelo tema, a sua colaboração no Colóquio do IAEM, e aquilo que com
ele aprendi sobre os meandros de um futuro para o espaço europeu de liberdade e justiça interna.
Versões anteriores deste texto foram também lidas (ou discutidas) e comentadas, no todo ou em
parte, por Armando M. Marques Guedes, Constança Urbano de Sousa, João Marques de Almeida,
José Cervaens Rodrigues, José Luís da Cruz Vilaça e Miguel Poiares Maduro. Muito beneficiei com os
comentários que o presente artigo recebeu; a responsabilidade pelo produto final é, no entanto,
integralmente minha.
203
Como se viu recentemente, com a “crise do Iraque”, o peso internacional da postura
europeia (e até a sua coesão interna no que a isso toca) não é estável; a situação existente mostra
que o recém-conseguido protagonismo internacional da União, enquanto actor efectivo que
contracena nos palcos internacionais, está realmente em dúvida a não ser em termos abstractos e
muitíssimo gerais.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
227
a entidade que com uma velocidade histórica surpreendente veio a tornar-se na
União Europeia nasceu, no entanto, muito antes disso, nos já longínquos anos 50
do passado século.
A União, convém em todo o caso começar por sublinhá-lo, é uma entidade
caracterizadamente atípica. Enquanto forma política é dificílima de classificar:
não sendo um super-Estado, uma federação, ou sequer uma confederação,
partilha com essas várias figuras políticas canónicas, idealizadas, alguns traços
característicos. As inovações interiores e exteriores a que tem dado corpo não
param de emergir, em resposta a variadíssimos constrangimentos externos e
internos. Tanto sincrónica como diacronicamente, as especificidades que exibe
são muitas204. Aparentemente bastante bem integrada no meio internacional em
que vive, a Europa comunitária moderna nasceu e tem-se desenvolvido sob os
signos da inovação e da mudança. O que é fácil de compreender: as particularidades que na Europa se manifestam respondem às peculiaridades da posição
estrutural que o Continente tem tido face às inúmeras alterações a que a ordem
internacional se tem visto sujeita. Uma centralidade que, a traço grosso, se
mantém. É assim de crer (e de esperar) que as especificidades europeias continuarão o seu percurso e a sua maturação em formatos sui generis, mas não muito
diferentes do que tem sido o caso até aqui.
E isto apesar das sombras que se perfilam no horizonte. Sombras tais como
a chamada “crise do Iraque” (que opôs, e durante algum tempo ainda previsivelmente continuará a opor, alguns dos Estados-membros da União aos outros e aos
Estados Unidos da América), ou como a tensão que vivemos no que toca à
Convenção sobre o Futuro da Europa e ao seu projecto (o qual, se não nos dividiu
a todos, nos tem em todo o caso posto de sobreaviso uns em relação aos outros).
Devo ser claro: por muito preocupante que a situação nos possa parecer, em
minha opinião não há muito, na conjuntura de crise difícil que hoje em dia a
União Europeia vive, que indicie realmente que esta deixará de continuar o seu
204
Desses pontos de vista, mais uma vez a Europa tem vindo a inovar no que diz respeito a
uma “ordem internacional liberal” como aquela em que hoje vivemos, e que foi largamente construída
sob a sua égide e liderança e em muitos sentidos se apresenta à sua imagem e semelhança.
228
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
processo criativo de fruição. Acumulam-se problemas de maneira cada vez mais
visível. Mas trata-se decerto de questões que, de uma ou outra forma, serão
resolvidas. Tal não significa todavia, como é óbvio, que devamos ser de opinião
que tudo está bem. Se em linhas gerais não tenho sobre os escolhos hoje
enfrentados uma postura catastrofista, o que parece improvável é que tudo
possa continuar como antes. Mais: é decerto ponderando as direcções plausíveis
de mudança que podemos esperar aventar hipóteses credíveis quanto às transformações que seguramente se avizinham, ou que saberemos para elas receitar
eventuais profilaxias.
Questão prévia a essa ponderação é obviamente lograr empreender uma
contextualização apropriada das mudanças anunciadas. Para encetar e começar
a levar a bom porto esse esforço, será sem dúvida útil começar por fazer um
rastreio (mais indicativo que descritivo nos objectivos) de alguns dos aspectos
mais diacríticos da origem e maturação dessa entidade em crescimento, com o
intuito de assim melhor equacionar uma visão de detalhe sobre estes processos
complexos de formação (ou, talvez melhor, de formatação), acomodação, e
desenvolvimento: para conseguir perspectivá-los de uma forma que nos permita
aventar hipóteses minimamente plausíveis quanto ao andar da carruagem
europeia, por assim dizer. No sentido em que é meu objectivo olhá-la sob uma
luz nova, ou pôr em relevo ressonâncias menos óbvias, será evidentemente
vantajoso revisitar esses processos de fruição em contexto, analisando-os enquanto os repomos no tempo.
Desde logo é-o pelo que de novo nos traz. Um enquadramento cronológico-conjuntural de alguns dos aspectos hoje mais problemáticos desta curiosa
União, ainda que breve e sucinto, põe em evidência mais nítida as traves-mestras
principais nesses âmbitos, ou contextos, nela gizadas enquanto projecto. O que
já, por si próprio, poderia ter alguma utilidade. Mas possibilita, em minha opinião,
muito mais: permite-nos pô-la em paralelo com processos histórico-políticos e
com outras organizações que de algum modo a par dela nasceram, cresceram e
se têm vindo a transformar: entidades como a NATO (e outras congéneres,
criadas depois da 2.ª Guerra Mundial para defender o Velho Continente), sem as
quais, irei argumentar, muitas das condições de viabilidade da União Europeia
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
229
decerto não existiriam. Este ponto é crucial para a discussão que se segue: muito
há, na União Europeia, que só se torna plenamente inteligível no contexto do
crescimento paralelo da NATO e afins, bem como em termos da ligação que se
estabeleceu entre a Europa do pós-2.ª Guerra Mundial e os Estados Unidos da
América. Como iremos verificar, essa imbricação é complexa e em muitos dos
seus aspectos tem sido efectuada por intermédio de ligações e laços indirectos.
Não deixa por isso de ser profunda. Para utilizar duas metáforas que irei revisitar:
tomar em linha de conta os respectivos processos complexos de formação,
acomodação, e desenvolvimento permite-nos encarar a NATO e a União Europeia
como dois pássaros que voam e evoluem em conjunto, ou como dois bailarinos
envolvidos num pas de deux elaborado mas harmónico.
Poderão parecer inesperados tanto o estabelecimento desses paralelismos
entre a União Europeia e a NATO como a afirmação da interdependência de tais
processos205. A surpresa é compreensível. Durante muitos anos habituámo-nos a
pensar estas duas entidades e estes dois processos como inteiramente separados
um do outro e a sua vizinhança pode por conseguinte não nos ter ocorrido. Em
larga medida essa perspectiva tradicional é justificada: a NATO tem desde sempre
sido encarada pela “sabedoria convencional” vigente na Europa como dando
corpo a uma Aliança transatlântica muito particular e concreta, de base estritamente político-militar. Enquanto que, em contraste, a construção europeia tem
sido carente precisamente dessas dimensões e nesse quadro geográfico alargado.
Concebemo-las, por norma, como instituições, ou organizações, inteiramente
diferentes uma da outra. Em resultado tendemos a “arrumá-las” cada uma para
seu lado e propendemos, por isso, a pensá-las e a estudá-las como se de
205
Como iremos ver, nem Franklin Delano Roosevelt, nem Harry Truman, nem Winston
Churchill, Josef Staline, ou mesmo Charles de Gaulle ficariam surpreendidos com este paralelismo.
Aquilo que decerto os surpreenderia, seria a dissociação nocional a que nos habituámos. Em grande
parte, a diferença de perspectiva advém da fase inicial, em 1945, que Fareed Zakaria (2003)
recentemente apelidou de “the age of generosity”: “when America had the world at its feet, Franklin
Delano Roosevelt and Harry Truman chose not to create an American imperium, but to build a world of
alliances and multilateral institutions”. Uma atitude que parece ter-se modificado com a reacção
norte-americana ao 11 de Setembro e a Administração Bush. Um ponto a que quererei regressar.
230
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
entidades totalmente distintas se tratasse. O que, como irei tentar demonstrar,
não é na realidade verdadeiramente o caso; bem pelo contrário. Embora como é
óbvio estejamos perante duas organizações distintas e separadas, trata-se de
duas construções profunda e umbilicalmente ligadas entre si. Para o confirmar,
basta entrevê-las no enquadramento maior providenciado pela ordem internacional existente, ou no contexto disponibilizado num quadro temporal de mais
longa duração. Contra esses panos de fundo as articulações genéticas e as
congénitas existentes tornam-se bastante nítidas.
Esse enquadramento é fácil de traçar. Numa monografia recente, G. John
Ikenberry206 levou a cabo uma análise detalhada das estratégias, cada vez mais
elaboradas e procedentes, de reformulação institucional (e até mesmo “constitucional”) dos padrões dos seus relacionamentos externos, por meio das
quais, desde pelo menos 1815, as grandes potências que saíram vencedoras de
conflitos-chave têm vindo a tentar delinear ordens internacionais em simultâneo
mais estáveis, mais amplamente convenientes para os seus próprios interesses
genéricos, e mais aceitáveis para os Estados por elas derrotados. É, em minha
opinião, precisamente no quadro de uma contextualização deste tipo que
podemos esperar compreender as razões de base para uma ligação como aquela
que, alego, existe entre a NATO e a União Europeia. É trivial afirmar que os Estados Unidos da América se empenharam em assegurar transformações profundas
na ordenação do Mundo deixado num pós-1945 em que a distribuição do
poder lhes concedia uma posição hegemónica difícil de contestar. Menos
óbvia será a sugestão de que o desencadeamento da integração europeia e a
206
G. John Ikenberry (2001). Neste estudo comparativo, que de maneira sugestiva Ikenberry
intitulou After Victory, foi levado a cabo um rastreio pormenorizado dos enquadramentos institucionais
em cujos termos, segundo este Autor de forma crescente desde 1815, as potências vencedoras
tentam reorganizar a ordem internacional nos momentos-charneira (1919, 1945, e no pós-Guerra
Fria) a que esta tem estado sujeita. Sem que isso necessariamente signifique uma adesão integral às
posições de Ikenberry, um quadro conjuntural (como indiquei, Ikenberry apelidou-os de historical
junctures) genérico deste tipo parece-me um excelente ponto de partida para esforços como aquele
que aqui tento levar a cabo. João Marques de Almeida (2003) publicou uma recensão crítica do
estudo de Ikenberry que, ao que penso, aponta na direcção que aqui sugiro.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
231
edificação da aliança transatlântica, que a breve trecho começaram a ser gizadas, constituíam, senão duas peças da estratégia norte-americana então seguida, pelo menos dois processos desencadeados em paralelo que só em conjunto se tornam, a nível político de fundo, plenamente inteligíveis. Dois passos
de um autêntico processo de constitucionalização, ao nível “regional” e como
parte de uma agenda implícita de construção de uma nova ordem internacional.
Para além de ressonâncias menos nítidas que me esforçarei em tentar pôr
em evidência, basta atentar no facto de que tanto um como outro desses
processos visava a dupla finalidade de pacificar uma Europa cujos desentendimentos internos pareciam insanáveis, e de conter uma União Soviética que
emergia como uma ameaça para essa mesma Europa e para os próprios Estados
Unidos. Com o fim da ordem internacional bipolar, o lone superpower norte-americano deparou mais uma vez com uma situação-charneira, e viu-se de novo
na posição, dificilmente contestável, de exercer uma potencial hegemonia. Apenas neste enquadramento, irei defender, se torna possível perceber a perenidade
das razões para essa velha indissociabilidade política estrutural entre a União e
a Aliança. Naquilo que se segue, farei pouco mais do que tentar fundamentar
razões de fundo para essa permanência.
A um nível mais analítico, muita da trama estrutural de base para a ligação
sugerida não custa a compreender. Comecemos por desconstruir modelos excessivamente idealistas. Releva da mais pura fantasia e do mais puro wishful thinking
a leitura segundo a qual a integração da Europa resultaria apenas de uma
qualquer tomada de consciência pelas nossas populações e governantes das
suas vantagens intrínsecas, ou de um hipotético altruísmo e de uma complacência das grandes potências europeias tradicionais, a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha. Sem embargo de todos esses factores terem indubitavelmente estado
presentes, o processo de integração da Europa foi no essencial encetado porque
a preponderância dos Estados Unidos numa NATO que incluiu as maiores dessas
potências do Velho Continente tornou possível que os Estados europeus deixassem de viver obcecados com o equilíbrio de coligações que garantissem a sua
segurança uns em relação aos outros e a de todos relativamente a um Mundo
232
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
exterior marcadamente hostil207. Ao tomar a seu cargo a “anarquia hobbesiana”,
os norte-americanos permitiram aos europeus erigir no seu interior protegido
um inesperado mas bem-vindo “oásis kantiano”. Não será nesse sentido porventura
abusivo afirmar que o processo de integração da Europa só continuará com a
velocidade e a intensidade que tem enquanto o manto tutelar de protecção
norte-americana se mantiver. Não é, por isso, surpreendente que existam algumas ressonâncias e paralelismos múltiplos nas várias fases da progressão histórica e geográfica da NATO e nas da União Europeia: já que esta última não seria
em boa verdade, num sentido estrutural e material, inteiramente viável sem a
primeira.
Pode-se ir mais longe208. Abordo aqui uma estratégia de como fazê-lo.
Parece-me importante sublinhar que a emergência, tão rápida quão surpreen207
Para uma defesa recente e acérrima desta perspectiva, é útil a leitura do artigo e do livro
associado de Robert Kagan (2002 e 2003). Segundo Kagan (e este é um ponto que irei desenvolver
mais à frente nesta comunicação) a “Paz Perpétua” kantiana, em cuja sombra a Europa tem sido
construída só é possível porque os Estados Unidos decidiram ficar no Velho Continente depois da
2.ª Guerra Mundial, deliberaram assegurar a protecção deste, e se comprometeram a tomar a seu
cargo as actividades necessárias de segurança e defesa no Mundo hobbesiano e anárquico, exterior
a cada um dos Estados-membros e ao seu conjunto. Esta posição (com algumas modulações) foi
recentemente defendida, em Portugal por Vasco Rato (2003) e, em termos algo diferentes mas em
muitos sentidos equivalentes a uma das partes da interpretação analítica que aqui propomos por
João Marques de Almeida (2003) e, ainda, por António Barreto (2003), para só citar três dos muitos
exemplos recentes de autores portugueses que decidiram debruçar-se (por via de regra de maneira
tão-só indicativa, ou pelo contrário mais “especializada”) sobre temas afins do meu. Para o tipo de
leitura idealizada com que aqui me contrasto, ver, por todos, o muito bem ponderado artigo de Craig
Parsons (2002).
208
O que, aliás, repito, tem sido tentado por muitos analistas em Portugal. Parecem-me porém
algo exageradas e excessivamente genéricas as sugestões formuladas. Assim, por exemplo, Vasco
Rato (2003, op. cit.) insiste em que “mesmo que fosse possível ultrapassar as desconfianças e as
rivalidades históricas [entre os Estados europeus], os investimentos na defesa necessários para dar
à Europa uma capacidade militar suficiente para “equilibrar” com os Estados Unidos levariam à
destruição do modelo social europeu. Basta que façam as contas”. Isso pode ser verdade, se nos
ativermos tão-somente ao curto prazo; para além de que não toma em linha de conta o potencial
multiplicador e lucrativo, a nível económico e numa mais longa duração, de eventuais investimentos
na área militar-industrial, contabilizando V. Rato na sua equação apenas despesas a fundo perdido.
António Barreto (2003, op. cit.) esgrime uma variação sobre o modelo de R. Kagan, e conclui com
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
233
dente, de um “espaço europeu de liberdade, segurança e justiça” (a montante do
Terceiro Pilar da União Europeia) só é verdadeiramente explicável em termos
desse mesmo quadro que põe de par a União e a Aliança. Para o reconhecer,
basta atentar na evidência dos factos. A livre circulação de pessoas, bens e
capitais e a colaboração policial e judiciária alargadas apenas se começaram a
tornar palatáveis para as grandes potências europeias quando, sob o manto
protector e tutelar da NATO, estas deixaram de tanto se temer umas às outras. A
abertura proposta a novas políticas de vistos, migrações e asilo, combate ao
terrorismo e ao narcotráfico, também não teria sido viável sem o importante
papel de guardião, assumido pela Aliança Atlântica, relativamente à “anarquia
hobbesiana” que forma o pano de fundo sobre o qual a construção europeia se
tem vindo a efectuar.
No que se segue irei abordar estas questões na sequência em que foram
expostas, seguindo sempre uma ordenação cronológica que, naturalmente, irá
desembocar no presente. Porei na primeira linha das minhas atenções a progressão sincronizada dos vários organismos e organizações a que aludo, sublinhando
a par e passo as confluências, convergências e concordâncias que se vão tornando notórias. Delinearei, em seguida, os termos em que, progressivamente, foi
sendo gizado um “espaço de liberdade, justiça e segurança interna” na União.
Concluo com algumas hipóteses relativas ao que o futuro nos reserva. O acento
tónico das minhas análises será sempre essencialmente colocado em duas frentes, por assim dizer: por um lado, na formação de consensos; e, por outro, nas
pressões sistémicas emanadas da ordem internacional que se têm feito sentir a
pessimismo que “as torres gémeas” (a expressão que usa para aludir ao par NATO-UE) merecem um
“requiem”; uma projecção futurológica pouco fundamentada e menos construtiva. O mesmo não se
passa com o mais longo e didáctico artigo de João Marques de Almeida (2003, op. cit.); num trabalho
mais académico e mais teoricista, Marques de Almeida começa por tipificar a situação actual de
acordo com a modelização proposta por E. Kant, para depois acenar com os riscos de sedimentação
regional de uma “federação hobbesiana” tirânica liderada pelos mais fortes, os franco-alemães, caso
a presente crise acabe por afastar os norte-americanos da Europa. Parece-me no entanto mais útil
melhor fundamentar modelos do que especular relativamente a cenários futuros, sempre
imprevisíveis.
234
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nível “regional”, e que se tornam visíveis ao nível do Continente europeu se o
nosso ponto de vista for (como creio firmemente que deve ser) mais global e
inclusivo.
2.
Começando então pelas condições estruturais de possibilidade, não será
talvez abusivo dizer que aquilo a que hoje chamamos a União Europeia se tem
desenvolvido sobretudo em dois grandes planos (ou, como iremos ver, dois
planos e um parâmetro de um deles) e sob a égide de vários tipos de pressões
formatadoras, chame-se-lhes assim. Planos, parâmetros, dimensões e pressões
em última instância indissociáveis uns dos outros209, como irei subsidiariamente
tentar demonstrar. Por um lado, a Europa tem sido gizada em larga medida em
resposta a condicionalismos político-militares ou, como hoje diríamos, de segurança e defesa. Delineá-lo é facílimo. Face à destruição maciça e às intoleráveis
perdas humanas e materiais a que os Europeus tiveram de fazer frente depois de
duas Guerras Mundiais rapidamente encadeadas uma na outra, muitas foram as
vozes que insistiram num ponto que a todos parecia evidente: que o velho e já
venerando balance of power, a solução legada pela Paz de Westphalia em 1648
como mecanismo de eleição para moderar conflitos e reduzir as guerras210, era
209
Uma rápida salvaguarda metodológica: não pretendo aqui expor uma qualquer teoria
(muitas há já) sobre a emergência da União Europeia, ou sobre as suas condições genéticas causais;
quero apenas delinear linhas de força nos seus processos de formação e desenvolvimento. Mais
ainda, a ordem de exposição que escolhi para o levar a cabo não visa enunciar uma qualquer
hierarquia de causas. A ordenação seguida foi preferida por meras razões pragmáticas: dado que as
relações entre estes três planos e os tipos de pressões (ou constrangimentos se se preferir) que lhes
são próprias, não têm todas o mesmo peso, descrevê-los-ei na ordem em que o seu entrosamento
recíproco se torna mais sensível.
210
São muitíssimo numerosos os estudos dedicados ao papel fundador que a Paz de Westphalia
teve na construção inicial das traves-mestras daquilo que se veio a tornar numa ordem internacional
duradoura e ainda hoje em larga medida vigente. Para uma discussão recente e pormenorizada,
redigida do ponto de vista em simultâneo histórica e de gestação do que hoje chamaríamos uma ordem
internacional, ver, por todos, os dois capítulos a isso dedicados da autoria de Daniel Philpott (2001).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
235
insuficiente para manter um mínimo de paz, ou mesmo um semblante de
harmonia, num Concerto da Europa que a História parecia tornar cada vez mais
dissonante.
O mote, curiosamente, fora dado muitos anos antes por um Presidente
norte-americano, Woodrow Wilson, em numerosos escritos e, mais famosamente,
nas suas intervenções e nos seus fourteen points enunciados nas negociações
conducentes ao Tratado de Versailles211. Tratava-se, como é bem sabido, de um
mote que decorria largamente dos pressupostos histórico-políticos do Liberalismo e nomeadamente da ideia programática de base segundo a qual eram povos
e não Estados as “unidades de conta” do sistema internacional. Urgia testar uma
qualquer nova receita: o sistema “clássico” de contrapesos deixara de ser eficaz.
O descalabro do equilíbrio venerando era já antigo212, e a eclosão de uma guerra
tão sangrenta e disseminada como a Grande Guerra, como veio a ser apelidada,
demonstrava-o à saciedade. Alguma coisa iria ter de mudar.
211
Para uma discussão histórico-política clássica, se bem que marcada por uma perspectivação
“realista” fria, ver Henry Kissinger (1994: 218-246). Para além de se tratar de uma das mais bem
articuladas (apesar da sua brevidade) descrições factuais de um processo riquíssimo sobre o qual
muito tem sido escrito, parece-me esta dar azo a uma análise particularmente bem conseguida das
relações de forças presentes e dos vários níveis de interpretação possíveis para elas. Para um muito
maior pormenor quanto a processo, que inclui um retrato exemplar de Woodrow Wilson, é imprescindível a leitura da monografia de Margaret MacMillan (2003), sugestivamente intitulada Paris
1919.
212
Relembremo-lo de maneira cursória. À aventura napoleónica que assolou a Europa no
rescaldo da Revolução Francesa de 1789 seguiu-se, em 1815, uma Conferência em Viena, um
congresso ambicioso e prolongado cujos resultados se revelaram ser sol de pouca dura. Os finais do
século XIX tornaram a mergulhar a Europa em conflitos, agora mais mortíferos pelos avanços
tecnológicos saídos da Revolução Industrial. O pesadelo recomeçara. Da Guerra da Crimeia que
entre 1854 e 1856 aliou Franceses e Britânicos aos Otomanos num conflito com a Rússia, à guerra
Franco-Prussiana que durou de 1870 a 1871 e envolveu uma invasão da França por uma Alemanha
acabada de forjar por Bismark, desembocando numa curiosa e ameaçadora Tripla Aliança que em
1882 comprometeu de maneira pouco consequente a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e a
recém-unificada Itália, o panorama não augurava nada de bom. E os mais pessimistas viram-se
vingados. Tanto no centro da Europa como nas fronteiras entre este e os Impérios Russo czarista, o
arquiducado imperial Austro-Húngaro e o sultanato Otomano, morticínios grassaram. À boca do
século XX, a catadupa parecia não ter fim, a hemorragia parecia não querer estancar.
236
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Os quadros intelectuais dominantes naturalmente serviram para adjudicar
uma solução-quadro para essa mudança. Para um Presidente norte-americano
de formação e convicções democrático-liberais como Woodrow Wilson, o
descalabro que a todos entrava pelos olhos dentro soletrava, por um lado, a
imoralidade intrínseca do modelo westphaliano “clássico” e, por outro, a sua
incapacidade de dar conta de uma ordem mundial dia-a-dia mais complexa. A
História parecia dar-lhe razão. A Primeira Grande Guerra e a cavalgada dos
nacionalismos exclusivistas das primeiras décadas do sangrento século XX213,
tiveram uma retoma ainda pior uma mera vintena de anos depois (menos de uma
geração) num segundo capítulo: aquele a que se convencionou apelidar de 2.ª
Guerra Mundial. No primeiro passo morreram mais de 15 milhões de pessoas. No
passo seguinte o número de mortes saltou para 50 milhões. Se o Mundo ensanguentado de 1918 estava predisposto a aceitar uma receita supra-estadual, a
devassa inimaginável sentida em 1945 dispunha-o a quase todas as experiências
de pacificação.
Em inícios-meados dos anos 40, a postura democrático-liberal do Presidente
norte-americano Franklin Delano Roosevelt encontrava ecos numa nova entidade que então se começava a afirmar: o que hoje chamaríamos “a opinião pública
internacional”. Para um número crescente de cidadãos e políticos Europeus havia
que pôr cobro à escalada infernal de violência em que a Europa ciclicamente
mergulhava. Os Estados e as suas coligações reactivas de geometria variável
manifestamente não pareciam saber dar conta da efervescência cíclica, e mostravam-se cada vez menos capazes de a conter. Para muitos deles, influenciados
ademais decerto pelos projectos wilsonianos de collective security a que F. D.
Roosevelt viera dar um novo fôlego na sua tentativa de (com os outros Aliados,
alguns mais renitentes que outros, dadas as disparidades de agendas) “conquistar a paz” em meados dos anos 40 do passado século XX, a solução era a criação
de mecanismos supranacionais fortes e minimamente “independentes”. Mecanis-
213
Para um contraste entre estes “nacionalismos exclusionários” e os nacionalismos mais
construtivistas do século XIX é útil a leitura de Michael Ignatieff (1993) e de Benjamin Barber (1995).
É extensíssima a bibliografia recente publicada sobre vários aspectos deste tópico.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
237
mos cujo papel seria, sobretudo (na linha de uma perspectivação liberal
vincadamente “iluminista” que insistia de forma programática em ver a soberania
e a legitimidade políticas como estando de facto sedeadas nos “povos”) o de
“domesticar” a anarquia internacional, esse espaço política e juridicamente rarefeito que servia de palco aos Estados nacionais que nele contracenavam214.
Vistas as coisas nesta perspectiva de segurança e defesa, foi contra este pano
de fundo político-ideológico e de opinião que a Europa institucional moderna
(aquilo que viria a tornar-se na “União Europeia”) nasceu. Nos termos desta
primeira pressão, deste primeiro constrangimento, os Tratados de Paris (1951) e
de Roma (1957)215, assinados não muito tempo após a 2.ª Guerra Mundial, foram
celebrados no sentido de lograr assegurar uma institucionalização de condições
jurídicas, políticas e socioeconómicas que esbatessem (ou ajudassem a esbater)
o perigo de novas guerras numa Europa devassada vezes demais.
O lugar geográfico de gestação deste processo não foi seguramente acidental. O eixo França-Alemanha, que então emergiu, e o papel preenchido pelo
Benelux, podem ser vistos, com algum fundamento histórico, como ingredientes
diacríticos deste processo – já que, indubitavelmente, constituíam uma espécie
de núcleo duro dessa Europa ocidental que se queria finalmente pacificada. De
fora ficou, nesta primeira fase, um Reino Unido cultural e geograficamente insular, por isso mesmo mais isolado, e que uma França (ciosa de lograr um ascendente, uma vez a Alemanha relativamente neutralizada) de qualquer maneira preferia manter à margem do projecto. A União Europeia foi, nos termos destas
pressões e desde o seu início, um programa estratégico de contenção de mais e
214
Para uma discussão introdutória mas de grande pormenor, sobre a mecânica destes
processos e os vários níveis em que a sua análise é possível e desejável, ver Joseph S. Nye, Jr., 1997:
sobretudo pp. 50-71, 74-95 e 98-129. Para um excelente estudo recente sobre a génese muitíssimo
laboriosa e bastante contestada da Organização das Nações Unidas, ver a longa monografia de
Stephen Schlesinger (2003).
215
Em Abril de 1951, foi criada pelo Tratado de Paris a CECA, a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço, que veio a dar origem à CEE. Um ano e um mês depois, em Maio de 1952, como
iremos ver, foi criada a Comunidade Europeia de Defesa, uma estrutura militar federal que nunca
passou do papel.
238
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
piores guerras no Velho Continente. Como tal, as pressões sistémicas foram no
essencial exercidas sobre a região de tradicional eclosão dessas contendas.
Mas os Tratados de Paris e Roma não foram nem por sombras a única
resposta a essas pressões próprias do plano político-militar de segurança e
defesa. Muitas mais houve. Os seus lugares de gestação e implantação não foram
muito diferentes e vale decerto a pena enumerar alguns. Recuemos um curto par
de anos: a 17 de Março de 1948, por exemplo, fora assinado o Tratado de Bruxelas
pelos três países do Benelux (a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo) e por dois
outros, a França e o Reino Unido, no qual foi criada a chamada União Europeia
Ocidental (UEO). Tratava-se de uma entidade vaga e difusa, ancorada nos termos
do artigo 51.º da Carta das Nações Unidas que pouco antes fora gizada em São
Francisco: a UEO tinha em vista uma colaboração económica, social e cultural dos
seus membros, mas talvez e sobretudo um objectivo de defesa comum216, face
tanto a uma sempre possível re-emergência da velha “ameaça alemã” como
frente aos novos riscos suscitados por uma União Soviética com pretensões tidas
como cada vez mais assustadoras. Em Setembro de 1948, a UEO foi dotada de um
órgão militar, a chamada Organização de Defesa da União Ocidental, chefiada
pelo célebre General Montgomery. No que se iria revelar ser um distanciamento
crónico, Paris hesitou e demorou a ratificação do novo organismo. A nova
entidade parecia ter um parto difícil.
A ideia de que tal medida seria suficiente foi todavia sol de muito pouca
dura. Menos de um ano depois, a 4 de Abril de 1949, foi decidido que a UEO, tal
como tinha sido gizada, não lograria fazer frente às novas ameaças que se
perfilavam no horizonte: já não a da Alemanha, mas antes a da URSS. Foi assim
fundada em Washington, nessa data, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (a NATO), em resultado de esforços conjuntos e, sobretudo, de Paul-Henri
Spaak, o carismático Ministro dos Negócios Estrangeiros belga, e um inesperada-
216
São muito numerosas as referências possíveis quanto à União Europeia Ocidental [UEO], ou
União da Europa Ocidental, como alguns preferem chamá-la). Para efeitos desta comunicação, é
porém suficiente o curto estudo de José Manuel da Costa Arsénio, publicado em 1988 na revista
Nação e Defesa.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
239
mente notável Presidente norte-americano, Harry Truman. Um breve ano e
pouco depois, em Dezembro de 1950, os países co-signatários do Tratado de
Bruxelas decidiram transferir para a NATO a responsabilidade pela defesa da
Europa Ocidental (como então se passou a chamar)217. A Declaração de Washington, assinada a 14 de Setembro de 1951 foi decisiva, ao recomendar a participação da Alemanha numa nova Comunidade de Defesa Europeia, uma entidade do
âmbito da NATO218. No palco entraram os Estados Unidos e a Alemanha Federal:
o quadro que hoje conhecemos começava a compor-se.
Uma vez as decisões políticas de fundo assumidas, a passada acelerou. Na
frente da gestação paralela daquilo que se iria chamar a “União Europeia”, o
Tratado da Comunidade de Defesa Europeia foi celebrado a 27 de Maio de 1952
pela Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e RFA: inicialmente fora imaginada como etapa na direcção da Federação Europeia que tinha sido idealizada
no chamado Plano Schuman. Como vimos, o Tratado, no entanto, falhou: o
Parlamento francês recusou (a 30 de Agosto de 1954) ratificar uma Comunidade
a que uma Grã-Bretanha anti-federalista se recusara a aderir.
Uma velha clivagem reacendia-se. Interesses estreitos dos Estados (nomeadamente do francês) opunham-se ao interesse colectivo europeu. Coligações
que viriam a revelar-se ser sólidas e duradouras formavam-se ou afirmavam-se. O
futuro iria demonstrar que se tratava de posicionamentos e configurações de
comportamento de assaz longa duração. Sob nova guisa, como aliás seria decer-
217
As competências em matérias culturais, económicas e sociais foram mantidas na UEO,
apesar da criação paralela do Conselho da Europa em 1949. Em arranjos institucionais multilaterais
variados que iam sendo desenhados lado a lado, a Europa saída da guerra ia-se consolidando.
218
Entretanto, muito ia com efeito mudando, face às profundas alterações ocorridas nos
cenários internacionais em fluxo então. Como escreveu A. da Costa Arsénio (1988, op. cit.: 4), em
inícios dos anos 50 “um dos motivos determinantes do espírito do Tratado de Bruxelas – a ameaça
alemã – passou a ser encarado sob óptica diversa”: o que levou à Declaração de Washington, de 14
de Setembro de 1951, na qual os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos, da França
e da Grã-Bretanha manifestaram o desejo de incluir a Alemanha como participante activo na defesa
do Ocidente, através de uma Comunidade de Defesa Europeia criada no âmbito da NATO; uma
proposta francesa reiterada na reunião seguinte do Conselho do Atlântico Norte, realizada em
Fevereiro de 1952 em Lisboa.
240
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
to de esperar, tais alinhamentos são os que se têm vindo a manifestar na
conjuntura hoje (nestes finais de 2003) vivida.
Os esforços de coordenação da defesa e os processos de integração não
pararam no entanto, apesar do revés temporário sofrido. Mas os interesses
exclusivistas e as ânsias de protagonismo não se calaram. Logo nos meses de
Setembro e Outubro seguintes219, ainda portanto em 1954, sob o impulso de
Anthony Eden, o célebre Ministro britânico, os Ministros dos Negócios Estrangeiros reuniram primeiro em Londres e depois em Paris para o efeito. Apesar de uma
pesada e dolorosa demora causada pela exigência francesa em condicionar o
rearmamento alemão (ainda que limitado e parcial, i.e. sem quaisquer armas
“atómicas, químicas ou biológicas”) à resolução do “problema do Sarre”220, os
Acordos de Paris (que formalmente deram à luz a União Europeia Ocidental)
foram, enfim, devidamente ratificados pelos Estados co-signatários a 6 de Maio
de 1955.
Numa posição intercalar difícil, e como é bem conhecido, a UEO acabou por
ficar aquém das expectativas. O seu esbatimento foi progressivo; mas a solução
encontrada para o levar a cabo foi institucional. Um primeiro esvaziamento de
conteúdo ocorreu em 1950, data em que, como vimos, as competências em
matéria de manutenção e defesa de paz europeia foram transferidas para a NATO.
Em 1960, dez anos mais tarde, a UEO transferiu as suas responsabilidades “sócio-
219
A reunião em Londres durou de 28 de Setembro a 3 de Outubro. Nessa Conferência
participaram os cinco Estados signatários do Tratado de Bruxelas e quatro outros: a Alemanha e a
Itália, e os Estados Unidos e o Canadá. Entre 20 e 23 de Outubro seguinte, em Paris, uma nova
Conferência aprovou Protocolos Adicionais, estreitou os laços com a NATO, decretou o fim da
ocupação-administração da Alemanha ocidental, criou uma Assembleia para a UEO e instalou
mecanismos vigorosos de defesa colectiva para os Estados-membros da União.
220
Um processo moroso. Face à incapacidade bilateral dos Governos, francês e alemão, para
encontrar uma solução, o Conselho Consultivo da UEO propôs uma fórmula conciliatória que
passava pela atribuição de um Estatuto Europeu, no quadro da UEO, ao Sarre; em resultado, foi
assinado um Acordo Franco-Germânico (em 23 de Outubro de 1954) e foi realizado um referendo
(em Outubro de 1955) no Sarre. Face à rejeição do Estatuto uma vez este referendado pela
população da região, o Sarre foi reintegrado na Alemanha num processo faseado prolongado
começado no mês de Janeiro de 1957 e concluído no distante mês de Julho de 1959.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
241
-culturais” para o Conselho da Europa. Outra década depois, em 1970, entregou
à então CEE todas as competências em matéria económica. Só em 1987 foi reacordada, com a chamada Plataforma da Haia221, na qual foi enfim asseverado
que uma verdadeira integração europeia exigia a inclusão de uma dimensão de
segurança e defesa, e na qual foi ainda reiterada a convicção de que a segurança
da Aliança Atlântica é “indivisível”, pelo que a segurança e defesa da Europa terá
de se manter em estreita conexão com os norte-americanos, os únicos que a
poderão a médio prazo assegurar222.
O que se seguiu é muito mais bem conhecido. Em calhas paralelas, os
processos de integração prosseguiram na frente político-económico-social e na
político-militar. As clivagens e afirmações individuais de alguns Estados também,
na linha, aliás, daquelas que antes sublinhámos. Uma simples listagem põe-no
em relevo. As negociações empreendidas em 1963 com vista à entrada da Grã-Bretanha na CEE esbarraram com o veto de uma França gaullista que se opunha
terminantemente à ideia, argumentando, famosamente, que os britânicos, “entre
a Europa e le grand large”, prefeririam sempre este último223; só em 1970 começaram negociações que apenas em Janeiro de 1972, com Charles de Gaulle já
morto, levaram à assinatura tardia do tratado de Adesão da Grã-Bretanha à ainda
CEE. Em 1966, num gesto paralelo, o General-Presidente retirara a França do
Comando Militar Integrado da NATO; neste caso a atitude fizera já frente a
britânicos e norte-americanos e baseara-se na opinião de C. de Gaulle de que era
crucial manter uma capacidade francesa própria de dissuasão nuclear indepen221
Muitas vezes intitulada, algo hiperbolicamente, com “a Magna Carta da segurança e defesa
europeias”. Para além de delinear papéis e interdependências no que toca a forças convencionais e
a forças nucleares, a Plataforma alude ao desarmamento e controlo de armamentos e ao diálogo e
cooperação “Leste-Oeste”.
222
Uma espécie de irmã gémea da Cooperação Política Europeia (um forum dos Ministros dos
Negócios Estrangeiros da União Europeia), entidade ademais de algum modo também paralela à
NATO, tem desde então tido altos e baixos que se prendem com as reduplicações de papéis que
essas vizinhanças orgânicas implicam.
223
Uma frase sibilina que, segundo Charles de Gaulle, teria sido proferida pelo próprio
Winston Churchill num almoço a dois, em Londres, quando da preparação da invasão aliada das
praias da Normandia a 6 de Junho de 1944.
242
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dente (a célebre force de frappe autónoma224) face a uma URSS tida como cada vez
mais ameaçadora.
As tensões de conjunto, com faces variadas, mas com pontos de aplicação
bastante regulares, continuaram até hoje. Estes foram os sucessivos finca-pés do
eixo franco-alemão; as constantes expressões de uma “special relationship” entre
os britânicos e os norte-americanos; e a permanência intocada de um receio
profundo da Alemanha e de um medo das pretensões político-territoriais da
Europa Ocidental em relação à de Leste. Re-emergiram, em momentos-chave
como os processos de alargamento da União Europeia nos anos 70 e 80, os
processos de reformulação e alargamento da NATO depois da dissolução-fragmentação da URSS e, em casos avulsos como a contenção nos anos 90 de uma
ex-Jugoslávia explosiva, na abertura “a leste” esboçada na passagem do milénio
ou, hoje em dia, tanto na concretização disso quanto nas movimentações e nos
alinhamentos que rodearam a questão do Iraque. O processo, é verdade, não tem
sido linear: os avanços foram sempre sendo atenuados por recuos. Mas embora
224
Vale a pena aproveitar a oportunidade para estabelecer aqui uma comparação-contraste.
Desde cedo que os franceses, no domínio do armamento nuclear, insistiram em reter uma force de
frappe autónoma, até mesmo a nível tecnológico-industrial. Opôs-se-lhe a decisão britânica de usar
tecnologia provinda do outro lado do Atlântico (primeiro a respeito dos mísseis Polaris e depois dos
Pershing), o que muito aumentou a interdependência em relação aos norte-americanos, diminuindo
os custos e, no essencial, ampliando enormemente a eficácia do sistema de segurança e defesa do
Reino Unido, um dos pilares históricos da Europa. A reaproximação britânica culminou depois do fim
abrupto da détente, em 1979, com a invasão soviética do Afeganistão e a subida ao poder, em 1980,
de Ronald Reagan e a sua consequente ligação especial com Margaret Thatcher: iniciou-se aquilo a
que muitos analistas chamaram “the New Cold War”, com uma aceleração inusitada em tempo de
“paz” da corrida aos armamentos entre os dois blocos. Do lado norte-americano, em todo o caso,
não houve nesse novo período nenhum desinvestimento na ligação estratégica à Europa, bem pelo
contrário. Um exemplo disso (para além da reacção de mão pesada aos SS-20) deu-se logo a partir
de meados da década de 70, quando a supremacia naval da NATO no Atlântico norte (essencial, tal
como a base das Lajes, para reforçar a frente europeia no caso de eventual invasão do Continente
com os famigerados tanques provindos do leste) foi posta em dúvida pela expansão das capacidades da Marinha de Guerra soviética, deslocada a partir de Murmansk, no mar de Barents. O eventual
desequilíbrio (porventura mais sentido que real) foi sol de pouca dura; logo em 1981, Ronald
Reagan, no quadro, aliás, do rearmamento generalizado que liderou, respondeu com um ressurgimento em força que ficou conhecido como “the Maritime Strategy”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
243
a progressão geral fosse inexorável, o facto é que a nível de defesa e segurança
pouco foi aquilo que efectivamente aconteceu. Nisso, a distância entre as declarações retóricas de intenção e as práticas concretas manteve-se. O que não deixa
de ser significativo.
As involuções (no sentido de “os passos de dança”) deste verdadeiro minuete
são nossas conhecidas. Um giro foi aquele dado com as negociações 225
conducentes à reunificação da Alemanha e à inclusão paralela e simultânea da
nova unidade na NATO, mediante uma conjugação de restrições quanto ao
estacionamento de tropas da Aliança no leste do país reunificado com a promessa de uma transformação programática desta última de coligação militar anti-Soviética para uma instituição cooperativa de segurança: o que redundou na
delineação de uma nova arquitectura de segurança e defesa para a Europa226. A
225
As notáveis “Conversações Dois mais Quatro”, que decorreram entre finais de 1989 e
Setembro de 1990 em diversas Cimeiras ao mais alto nível e culminaram com um longo encontro
entre George Bush (pai) e Mikhail Gorbatchov, envolvendo as duas Alemanhas e as quatro potências
Aliadas, a União Soviética, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França. Para uma discussão
fascinante da “racionalidade argumentativa” destas negociações, ver Thomas Risse (2000: 23-28).
Risse conta, designadamente, como G. Bush logrou convencer M. Gorbatchov (para grande desalento dos conselheiros deste último, que em resultado desencadearam uma discussão fervorosa ali
mesmo, no decurso da reunião cimeira entre os dois Chefes de Estado) da bondade da unificação,
apelando para o efeito a convicções que sabia serem partilhadas pelo líder soviético, nomeadamente o papel e os pressupostos da OSCE e o direito inalienável à autodeterminação dos alemães como
de todos os outros povos. Descrições mais impressionistas (e que reflectem alguma selectividade
nas reminiscências) podem ser encontradas nos volumes de Memórias de Mikhail Gorbatchov,
James Baker, Hans-Dietrich Genscher e Edvard Shevardnadze.
226
Curiosamente, aliás, nessas a vários títulos extraordinárias conversações “Quatro mais Dois”,
e face a uma conjuntura negocial em que todos pareciam temer as consequências de uma reunificação
que reconstituísse uma Grande Alemanha e a deixasse em roda livre, os argumentos que parecem
ter sido mais persuasivos foram precisamente os dos norte-americanos, que insistiram (neo-realisticamente) que uma Alemanha integrada na NATO e em que se mantivessem tropas norte-americanas ofereceria melhores garantias de segurança que uma Alemanha neutra, como desde os anos 50
o preferia a doutrina estratégica soviética. As partes concordaram com a solução liberal segundo a
qual competia aos alemães, em virtude do princípio da autodeterminação consagrado entre outros
pela OSCE, decidir se desejavam integrar a Aliança. Para uma discussão pormenorizada, ver Philip
Zelikow e Condoleezza Rice (1995: 184) e Thomas Risse (2000, op. cit.: 25-28).
244
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
criação, imediatamente subsequente, pelo Tratado de Maastricht de 1992, de
uma “unidade” política e económica europeia mais densa e intensa foi outro
compasso harmónico importante. Tal como o foram, ao longo dos anos 90, as
respostas político-militares europeias face às crises sucessivas que assolaram os
Balcãs, e em reacção às quais se começou a esboçar o projecto (mas tão-somente
o projecto) de uma política externa e de segurança e defesa europeias. A
preponderância manifesta dos norte-americanos na condução militar e política
das operações, primeiro em 1995 na Bósnia-Herzegovina, e depois em 1999, no
Kosovo, acordaram a vontade de criação de uma capacidade militar europeia
independente, que limitasse uma dependência que o fim da Guerra Fria tornara
obsoleta aos olhos de alguns e que a vontade de nas novas conjunturas emergentes em delinear uma política externa própria tornara imprescindível.
Nova fase do minuete parece ter sido iniciada perto do virar do milénio,
numa conjuntura em que se tornara evidente tanto a descolagem tecnológica e
armamentista de uns Estados Unidos cada vez mais bem equipados e apetrechados227 face a uma Europa militarmente cada vez mais enfraquecida, quanto à
profundidade da alteração de circunstâncias nos panoramas internos europeus
e internacionais num sentido mais global e abrangente. Era a própria essência
das involuções emparelhadas que parecia ir mudar.
Decerto denotando consciência dos riscos, um novo e arriscado passo de
dança foi executado: em finais de 1998, numa iniciativa política audaciosa que
surpreendeu muita gente, Tony Blair estendeu a mão a Jacques Chirac, numa
227
Não vale a pena fornecer aqui mais, a este respeito, do que alguns elementos diacríticos
desta mudança. Com o fim da Guerra Fria, os países europeus diminuíram por norma as suas
despesas militares. Não os Estados Unidos: em 2002, a mais bem armada das dezassete maiores
potências do Mundo, os EUA, detinha mais poder de fogo do que as outras dezasseis juntas. Um
“avanço” que tende a aumentar. No artigo já citado, F. Zakaria (2003, op. cit.) nota que “the crucial
measure of military might in the early 20th century was naval power, and Britain ruled the waves with a
fleet as large as the next two navies put together. By contrast, the United States will spend as much next
year [2004] as the rest of the world put together (yes, all 191 countries). And it will do so devoting 4
percent of its GDP, a low level by postwar standards”. Uma claríssima hegemonia político-militar.
Evidenciada, por exemplo, no desenrolar fulgurante da Segunda Guerra do Golfo.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
245
tentativa de agregar as duas potências nucleares da União Europeia em redor de
um projecto comum de defesa gizado apenas em parte fora do quadro da
NATO228. De uma forma surpreendente para muitos observadores e especialistas,
assim se encetou o chamado “processo de St. Malo”, com negociações entre as
duas potências nucleares da União Europeia. Mas a sua eficácia tem sido duvidosa; cinco anos depois, em 2003, nem os 60 mil homens tidos como imprescindíveis tinham sido mobilizados para a ambicionada e programada Força de Intervenção Rápida europeia229, nem a PESC (para dirigir os destinos da qual fora
avisadamente eleito Javier Solana, até aí Secretário-Geral da Aliança Atlântica)
realmente avançara, nem o projecto parecia já minimamente credível230. Pior, o
processo de certo modo como que retrocedeu: como é bem sabido, em 29 de
Abril de 2003, franceses e alemães (com o apoio de dois dos países do Benelux,
a Bélgica e o Luxemburgo) ensaiaram a constituição de uma força militar conjunta autónoma, no seguimento, aliás, da reacção de repúdio antes esboçada em
228
Como também o Tratado de Amesterdão o fez. Mas, (de maneira significativa) apenas e não
totalmente. E em subordinação explícita e absoluta em relação a esse quadro. O artigo 17.º, número
1, do Tratado de Amesterdão (2001: 11) declarava que “a política da União [...] respeitará as
obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico-Norte para certos Estados-membros que vêem a
sua política de defesa comum realizada no quadro da organização do Tratado do Atlântico-Norte
(NATO) e será compatível com a política de segurança e defesa comum adoptada nesse âmbito”.
229
Uma ideia adaptada do original norte-americano. O ano de 1979 (como antes o fora o de
1975) foi de algum modo um annus horribilis para a segurança ocidental. Nesse ano a URSS invadiu
o Afeganistão. O regime do Xá da Pérsia, Reza Pahlevi, ruiu e foi substituído por uma teocracia
liderada pelo Ayatollah Khoimeni. Assustados com eventuais intuitos hegemónicos soviéticos numa
Ásia central de importância geoestratégica crescente (sobretudo para a URSS, cujas fronteiras
confinavam com essa região na sua instável soft belly islâmica, e ademais desejosa de adquirir acesso
aos “mares quentes” do sul), a Administração dos Estados Unidos desenvolveu o conceito de uma
Rapid Reaction Force para eventual interposição na zona, dedicada no essencial à protecção do Irão.
230
Para uma discussão interessante dos motivos para este falhanço histórico, é útil a leitura de
Robert Kagan (2003: 49-55), que os localiza “somewhere in the realm of ideology”, e com algum
reduccionismo, como já indiquei, os vê como resultado da “fraqueza pós-moderna” de uma Europa
kantiana por obra e graça de uma protecção assegurada pelos norte-americanos. Tudo se tornaria
seguramente mais claro e inteligível se Kagan, em vez da sua alusão construtivista a uma “ideologia”,
tivesse aludido explicitamente ao nacionalismo unilateralista que tem sempre sido apanágio da
política externa moderna do Estado francês.
246
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
resposta ao “unilateralismo” norte-americano que franceses e alemães insistiram
em vislumbrar na intervenção coligada levada a cabo no Iraque.
Um terramoto? Um mero gesto retórico, inconsequente? Em finais do decénio,
um analista norte-americano influente, Samuel Huntington (1999)231, pôde asseverar que uma Europa a crescer a olhos vistos viria a tornar-se num outro “pólo”
de um mundo “multipolar” que se iria, em sua opinião, seguir ao panorama “uni-multipolar” existente desde o rescaldo da Guerra do Golfo em 1991. Foi uma
ilusão que o papel rotundamente preponderante dos Estados Unidos na Bósnia-Herzegovina em 1995 atenuou e essa mesma centralidade (em 1999, quando da
intervenção da NATO no Kosovo) estilhaçou, ao demonstrar que, longe de
diminuir, o gap tecnológico-militar entre a Europa e os Estados Unidos tinha-se
entretanto continuado a ampliar de forma substancial. Uma descolagem que o
tempo e os acontecimentos dramáticos que se sucederam iriam aprofundar.
Cedo isto se tornou claro. Depois do 11 de Setembro de 2001, numa situação
em que os norte-americanos aumentaram em flecha a fatia do seu orçamento
dedicada à defesa enquanto os europeus continuavam a diminuir as suas232 (com
raras excepções, sobretudo a Leste), tornava-se cada vez mais difícil argumentar
que a “estrutura da conjuntura” concentrada no pas de deux entre a Europa e os
Estados Unidos não estaria verdadeiramente a alterar-se de forma qualitativa.
Tratava-se, bem pelo contrário, de uma evidência que entra pelos olhos dentro.
Cada vez mais é mais nítido o objectivo central da política externa norte-
231
Um artigo notável do célebre autor das famosas teses de que estaria iminente um Clash of
Civilizations, em que parece ter havido algum recuo de Huntington no que toca à aplicação
“mecânica” do modelo antes desenvolvido.
232
Para uma discussão construtivista sobre as pretensões da União Europeia em se tornar um
actor militar global, baseada no essencial em documentação do Conselho de Ministros europeus e
nas construções discursivas de Javier Solana, ver o artigo de Henrik Larsen (2002). Larsen conclui que
o “discurso dominante” durante os anos 90, que se manteve no chamado “processo de St. Malo”, tem
vindo a retratar a União como uma potência no essencial civil, que mobiliza meios de poder
sobretudo políticos e económicos: uma modelização perfeitamente compatível, curiosamente, com
as teses de R. Kagan, embora nenhum deles cite o outro. Segundo H. Larsen, um discurso construtivista
como esse “explica” (no sentido em que é congruente com) o foco regional da União Europeia e o
seu uso limitado de meios militares.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
247
-americana de assegurar a sua posição hegemónica na ordem internacional em
mudança; em simultâneo com o novo unilateralismo a que isso dá corpo; e reemergem do outro lado do Atlântico teses isolacionistas que podem sugerir a
eventualidade de um eventual rápido desinvestimento político-militar norte-americano na Europa. Enquanto a finalidade de muitos dos políticos europeus
(não se pode, em boa verdade, aqui aludir num sentido útil a uma qualquer
“política externa europeia”233) é a de contrariar precisamente uma ou outra
dessas pretensões, muitas vezes abusivamente tomadas como sendo antinómicas.
3.
No que precede, e sem de maneira nenhuma ensaiar um levantamento
exaustivo de um primeiro plano, como lhe chamei, fiz até aqui questão de me
deter um pouco mais no período coberto pela vintena de anos imediatamente
posterior ao fim da 2.ª Guerra Mundial. Não o decidi fazer com a intenção de
propor uma qualquer linha de desenvolvimento de uma “história” das instituições envolvidas. Antes ensaiei deslindar um fio condutor, por muito redutor que
fazê-lo possa significar. Tentei um levantamento parcial e selectivo de algumas
das linhas de força dos inúmeros acontecimentos e decisões tomadas neste intervalo de tempo, empreendido de maneira a melhor pôr em evidência os fundamentos em que se foi gizando a conjuntura actual e os mecanismos de expressão
de uma fissura entre um eventual eixo americano-britânico e um hipotético eixo
franco-alemão no contexto particular da interacção transatlântica.
Não é no entanto o plano da segurança e da defesa o único em que tem tido
lugar a gestação da entidade que viríamos a denominar União Europeia. Como
houve oportunidade de verificar, um segundo plano, menos directamente histórico e político-estratégico e mais político-económico e financeiro, colocou-se-lhe
233
O que antes era mais um problema para os americanos do que porventura hoje em dia o
será. No que dizia respeito ao tempo da Administração Nixon, Henry Kissinger desbafou lamentando-se de não ter “a single telephone number to call in Europe”. O facto é que, trinta anos volvidos, um
“telefone vermelho” europeu continua a brilhar pela sua ausência.
248
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
a montante. Este segundo plano é conceptualizável como um domínio no
essencial de natureza organizacional. Para o esboçar, importa sublinhar as propriedades específicas deste outro plano que tem condicionado em muito a
progressiva constituição dessa nova entidade intergovernamental (e, nalgum
sentido, supranacional) que os Europeus vieram introduzir nos palcos internacionais. Apesar daquilo que antes já sobre este plano tive a oportunidade de
dizer, delineá-lo requer um esforço, menos linear, de repescagem de dados. No
intuito de melhor o compreender, ou o cartografar, há que voltar atrás na
sequência cronológica dos acontecimentos; para trazer à superfície os seus
atributos e características é imprescindível retomar a questão político-militar
como contexto, o que põe bem em relevo a hierarquia dos constrangimentos no
que toca a estes tão complexos processos.
Vale a pena mais uma vez começar pelo pano de fundo organizacionalhistórico, agora de um outro ângulo. Ao contrário daquilo com que os líderes
Aliados, pela mão de Winston Churchill e de Franklin Delano Roosevelt pelo
menos, tinham idealizado como modo de conquistar a paz, o Mundo do pós-1945
cedo descambou. O que veio à tona foi, não numa ordem internacional liberal e
multilateral como fora sonhado e traçado a compasso e esquadria em Bretton
Woods em Julho de 1944, ou em S. Francisco (Dumbarton Oaks) no mês seguinte
de Agosto, e depois, em Fevereiro de 1945, em Yalta, sob a protecção de um
sistema neo-wilsoniano de “segurança colectiva”. Não se tratou, em boa verdade,
de uma entrada em força do sistema das Nações Unidas como “uma instância de
governação global”. A ONU redundou no essencial num arranjo de Estados, que se
saldava em pouco mais, no fundo, do que um upgrading da extinta e coxa
Sociedade das Nações nascida em Versailles em 1919 pela mão de um Woodrow
Wilson que com tanta vivacidade (e frustração, decerto, ao ver o Senado imprudentemente não ratificar a adesão a ela dos Estados Unidos) a imaginara234.
234
Cf. Henry Kissinger, op. cit.: ibid. e pp. ss., para uma descrição pormenorizada das posturas
e tomadas de posição, dos acontecimentos e dos meandros político-burocráticos destes processos
complexos que tão importantes foram para a instalação de uma nova ordem internacional no pós-guerra. Com muitíssimo maior resolução de imagens, ver o já antes referido estudo, monográfico
mas multi-dimensionado, de Margaret MacMillan (op. cit.: 2003).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
249
O que depois de 1945 veio à superfície, e se instalou para ficar, depressa se
cristalizou, antes, numa ordem bipolar. Em resultado, a grande organização
internacional desenhada e instalada viu-se vítima de uma longa paralisia. A paz
não fora afinal conquistada: com a clivagem que se aprofundou e opôs a União
Soviética aos seus antigos aliados, segui-se-lhe uma Guerra Fria, para muitos (os
menos atentos, diríamos nós hoje com os benefícios da retrospecção) uma
contenda inesperada. Aos militares no terreno e aos diplomatas nas chancelarias,
acrescentavam-se, na nova ordem internacional, vários tipos de Cold Warriors nos
seus gabinetes.
Perante uma ordenação inovadora das coisas, a nova distribuição do poder
no Mundo pós-1945 não foi de facto inconsequente. Dois grandes blocos, fortemente armados e tanto política como militarmente hegemónicos nas suas respectivas zonas de influência, defrontaram-se um ao outro durante quase meio
século. A estabilidade lograda por um equilíbrio bipolar simples revelava-se uma
fórmula relativamente eficaz: finalmente, e apesar do paradoxal que tal possa ter
parecido aos observadores liberais da época, alguma pacificação local fora
conseguida na Europa. Longe de um equilíbrio conseguido por mecanismos
supra-estaduais de collective security desenhados com fervor e cuidado idealistas,
o que no fundo se saldava numa nova variante do antigo balance of power, o
chamado balance of terror (um equilíbrio tenso, mas bastante estável, viabilizado
e exigido pelos novos armamentos nucleares) foi o que manteve alguma ordem
no Mundo do pós-guerra. Instalou-se, pelo menos na Europa Ocidental (como
então era chamada) uma paz tensa mas aparentemente estável. Uma oportunidade doirada para reformas de fundo.
E, de facto, políticos e cidadãos comuns das intelligentsias ocidentais, cedo
reagiram a essa nova conjuntura regional e global. A situação de pacificação
efectivamente favorecia-o. Numa Europa destruída e dorida, em processo de
reconstrução acelerada (mas desigual) por obra e graça de um Plano Marshall
norte-americano235 e sob a protecção de um nuclear umbrella cauteloso e firme,
235
Em valores actuais, o Plano Marshall envolveu investimentos públicos e privados norte-
-americanos na reconstrução e reorganização económica da Europa no montante de 120 biliões de
250
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cedo se começaram a sentir clamores, dentro e fora das sociedades civis, que
urgiam uma reorganização social, política, económica, profundas. Do lado de cá
de uma Cortina de Ferro menos simbólica do que dolorosamente real, muitos
foram, entre políticos e cidadãos atentos, aqueles que sublinharam o imperativo
de conciliar vontades como única fórmula capaz de minimizar riscos naquilo que
viam como um futuro incerto236.
Para além de uma solução político-militar, a saída consensual complementar
encontrada foi de algum modo configuracional e prendeu-se com uma reorganização-reordenamento político-administrativo-económico do Velho Continente.
Por razões políticas e económicas mais conjunturais do que as pressões histórico-políticas de fundo que se continuavam a fazer sentir (e de maneira até talvez mais
aguda e premente), uma integração regional (a tantos níveis quantos possíveis)
da Europa Ocidental, foi tida como sendo coisa imprescindível. Uma espécie de
New Deal em versão europeia foi esquissada. O parto não foi difícil: no quadro da
reconstrução empreendida, nascia a par e passo uma “Europa social” com laivos
do welfare system que tantos, nos anos 30, tinham só visado ou invocado. A
tomada de consciência foi ampla. Do “lado de lá” sentiram-se decerto pressões
semelhantes e foram de modo consequente encontradas soluções parecidas;
mas não idênticas. O modelo económico da COMECON era, naturalmente, convergente com as economias planificadas e a lógica implícita de divisão do
trabalho que tal modelização sugeria. O modelo político também seguia de
acordo com coordenadas próprias e conjunturais. Se o Bloco de Leste achou por
bem, certamente no intuito de assegurar a sua própria sobrevivência, criar ao seu
dólares US (sensivelmente o mesmo em Euros, à taxa de câmbio actual, meados de 2003). Ao invés
do que muitas vezes se afirma, as iniciativas financiadas e o seu controlo couberam largamente aos
recipientes europeus e não aos investidores norte-americanos. Constituiu um efectivo arranque
para os projectos para uma futura União da Europa.
236
Da muita bibliografia publicada sobre temas relativos aos movimentos políticos e sociais
desta época, aconselhamos a leitura da fascinante monografia de Frances Stonor Sunders (1999),
sobre o papel, sobretudo nos difíceis anos 50 e 60 do século XX, das agências norte-americanas de
informações na formatação de uma opinião pública europeia democrática que se opusesse às
pretensões hegemónicas de uma União Soviética então ainda capaz de uma grande capacidade de
penetração nalguns meios intelectuais, académicos e artísticos. Um contrapeso de peso.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
251
redor o que no fundo redundava num cordão sanitário, uma espécie de Linha
Maginot em grande escala237, os Europeus Ocidentais preferiram organizar-se
num bloco coeso e impermeável q.b., para assim garantir pelo seu lado alguma
autonomia238. Nada disto é surpreendente: como seria de esperar, cada bloco
reagiu em termos congruentes com os temores e as certezas que sustentava
sobre o seu próprio futuro. A nível militar tout court, como vimos, reinava o
mesmo tipo de convicções, ou pelo menos dominavam opiniões com implicações semelhantes239.
Alguma razão havia de facto para isso. Aquilo que teve lugar foi uma espécie
de rescalonamento face a uma nova ordenação internacional das coisas em que
o tamanho e a dimensão relativas tinham a sua importância. Para além de ter sido
(esta é pelo menos uma interpretação possível, que muitos não deixaram de
fazer) um gesto sensato e cordato de resistência a ameaças múltiplas, executado,
à boa maneira de europeus experientes em questões de diplomacias em conjunturas por alguns (nomeadamente os franceses) lidas como sendo de um balance
of power, sem fechar quaisquer portas. Tratava-se, com efeito, de uma boa
solução estratégica em várias frentes.
Nos termos destas outras pressões e também desde o seu início, a União
Europeia foi um projecto económico e sociopolítico de afirmação própria, de
abrangência em relação ao cíclico “perigo alemão”, e de contenção da expansão
237
Exigência, aliás, da doutrina estratégica soviética que, nisso, seguiu de perto uma tradição
czarista antiga. Uma doutrina, efectivamente, de longa duração: muita da oposição contemporânea
da Rússia de Vladimir Putin ao recente acordo de alargamento da NATO corresponde a considerandos
geoestratégicos que fluem das versões actuais dessa mesma doutrina.
238
Muitas outras eram as diferenças estratégicas e “texturais” existentes entre os dois blocos,
e designadamente entre o par COMECON-Pacto de Varsóvia e o emparelhamento paralelo Comunidade Económica Europeia-NATO. Parece-me, no entanto, que a nível macro a distinção proposta tem
algum fundamento já que encontra algum eco empírico nos factos e processos vividos.
239
Se isto foi verdade nos domínios organizacionais mais políticos como lhes chamei, é de
frisar que um mesmo tipo de pressão se fez também sentir em áreas mais estritamente militares. Do
ponto de vista da segurança e defesa, e face às resistências e renitências soberanas de muitos dos
Estados europeus, a coligação com os Estados Unidos, senhores do umbrella e a grande potência
deste lado das barricadas, uma coligação a que a Aliança Atlântica cedo deu corpo (logo em Abril
de 1949), apareceu como uma solução providencial.
252
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
do comunismo no Velho Continente. Designadamente, uma fórmula que, em
simultâneo, permitia aos europeus incluir os alemães, aplacar os medos dos
franceses, erguer-se ao nível dos norte-americanos e distanciar-se dos soviéticos.
Se a NATO foi celebremente definida por Lorde Ismay240, seu primeiro Secretário-Geral, como uma maneira to keep the Americans in, the Russians out, and the
Germans down, talvez não seja totalmente descabido entrever a integração
europeia como uma agenda delineada para, em paralelo, keep the Germans in and
keep the Russians out by growing to an American scale and organizing up to an
equivalent level of integration, while trying not to frighten away the French241.
Antes de passar ao ponto seguinte, importa fazer aqui uma breve excursão
a um tema lateral: o do papel preenchido pelos norte-americanos neste processo
organizacional. Trata-se de um papel muitas vezes mal entendido na Europa.
Com efeito, seria abusivo conceptualizar o rescalonamento e a organização
almejados como tendo sido gizados em oposição aos norte-americanos. Nisso, e
este ponto nem sempre é devidamente reconhecido, o projecto europeu desde
sempre teve o apoio oficial explícito dos Estados Unidos da América. Basta
240
Um famoso General, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas britânicas durante a
invasão da Normandia, e tal como primeiro F. D. Roosevelt, depois W. Churchill, um fogoso “inimigo
de estimação” de Charles de Gaulle, que os Aliados consideravam um “oportunista” ignóbil e um
“traidor” em potência à causa democrática. São bem conhecidas as hesitações firmes e o desprezo
de F. D. Roosevelt em relação ao General de Gaulle.
241
Se bem que esse não seja o tópico do presente trabalho, vale a pena notar que o formato-
-solução idealizado pelas potências vencedoras e proposto em 1945, depressa se mostrou
desadequado: entretanto, a distribuição do poder no Mundo alterara-se e os arranjos estruturais
internos da ONU já desde há muito tinham deixado de representar bem a nova geometria emergente. A relação Europa-Estados Unidos da América foi desde cedo disso uma vítima, infelizmente nem
sempre como tal reconhecida. As dissensões, quando não as confrontações, multiplicaram-se. Nesse
como noutros fora, arenas cada vez mais importantes num Mundo cada vez mais multilateral, muitos
Estados europeus sentiram mais e mais que a sua representação avulsa se revelava insuficiente para
garantir que os seus interesses fossem devidamente precavidos. Acresce que muitos nos Estados
Unidos começaram pelo contrário a decifrar a nova ordem pós-bipolar como “um momento unilateral”, de que havia que tirar benefícios. Num Mundo palco de desigualdades crescentes e com
perspectivas tão dissonantes, a aquisição de uma voz forte e grossa mostrou-se imprescindível aos
olhos da maioria dos europeus. Uma voz que a Europa ainda não tem, mas de que tem nos últimos
anos andado claramente (com PESCs e PESDs e Missões de Petersberg, etc.) à procura.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
253
ampliar imagens no que toca à história da política externa norte-americana do
pós-guerra para o confirmar. Mais uma vez sem pretendermos ser mais do que
indicativos quanto a processos intrincados e complexos: o Plano Marshall (posto
em prática pela Administração de Washington em aplicação directa da famosa
Vandenberg Resolution de Março de 1948242), deu um enorme estímulo à criação
da República Federal Alemã e à gestação da NATO “por cima” de uma UEO que,
como vimos, depressa foi considerada como sendo insuficiente. Do ponto de
vista norte-americano interno tratou-se de uma clara vitória da Doutrina Truman,
como foi crismada: uma longa fase de um isolacionismo que se revelava ser
cíclico cessara243.
O apoio público norte-americano à construção e solidificação de uma Europa democrática não deixou dúvidas a ninguém; como Henry Kissinger, um
americano de origem europeia, hiperbólica mas certeiramente escreveu, “ajudando a reconstruir a Europa, encorajando a unidade europeia, criando instituições de cooperação económica e ampliando o quadro protector da nossa aliança, salvaram as possibilidades da liberdade. Essa erupção de criatividade é um
dos momentos gloriosos da história americana”244. Havia decerto para isso fortes
242
Como notou num recente artigo de opinião o antigo Secretário-Geral da UEO, José
Cutileiro (2003), mais do que simbólica, a data era apropriada: urgia fazer alguma coisa de concreto
no mesmo fatídico mês de Março de 1948 em que os tanques e Estaline irromperam pela
Checoslováquia adentro e Berlim se viu transformada numa cidade bloqueada, numa antecipação
avant la lettre daquilo a que os soviéticos viriam a apelidar de tolerância de uma “soberania limitada”
a Leste.
243
As novas conjunturas assim o pareciam aconselhar. Como lembrou R. Kagan (2002, op. cit.:
14), “when the Cold War dawned, Americans such as Dean Acheson hoped to create in Europe a powerful
partner against the Soviet Union”. A essa função cedo se veio juntar o papel de “tripwire”, de primeiro
palco para uma eventual confrontação com o bloco soviético. Contrasta com esta perspectiva (ainda
que Kagan lhe não aluda) a curiosa interpretação “culturalista” de Thomas Risse-Kappen (1996),
segundo a qual a NATO seria, no essencial, uma comunidade que congrega uma “família” cultural;
um modelo que tem dificuldades em explicar a pertença à Aliança de Estados como a Turquia, ou
a entrada nela de Portugal, da Espanha e da Grécia, todos eles então Estados não-democráticos.
244
Henry Kissinger (1979). Estas frases de Kissinger foram citadas num artigo de José Cutileiro,
intitulado “O fosso”, publicado no Expresso, na p. 24 do caderno 2, a 8 de Março de 2003. Cutileiro,
nesse curto artigo, intitula essa ajuda “a pedra sobre o qual o mundo livre assenta há mais de meio
254
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
pressões conjunturais. Durante mais de cinquenta anos, os Estados Unidos e a
Europa colaboraram num grande projecto estratégico transatlântico cujos objectivos eram os de criar um Continente próspero, democrático e em paz, livre de
ameaças internas e externas245. A ideia norte-americana de um partenariado
europeu variou com o tempo e o andar das coisas; mas manteve-se. A visão,
ambiciosa, integracionista e interessada de Harry Truman substituiu as intenções
de Franklin Delano Roosevelt de arredar definitivamente a Europa dos palcos
internacionais depois das duas guerras mundiais sucessivas por ela causadas.
século”; uma pedra que, lamenta, “foi rachada da alto a baixo” com a crise recente que se saldou em
numerosas tensões entre os Estados Unidos e o eixo franco-alemão a pretexto da questão iraquiana.
É interessante verificar, neste processo, a instrumentalização da figura do General de Gaulle: o
mesmo de Gaulle que, note-se, apoiou imediata e incondicionalmente o Presidente John F. Kennedy
e a Administração norte-americana durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962; nada disso tem
impedido Jacques Chirac de se apresentar publicamente como estando a assumir uma postura
“gaullista”. Como com admirável lucidez escreveu Fareed Zakaria (2003, op. cit.), “France’s Gaullist
tendencies are, of course, simply its own version of unilateralism”. Um ponto de que muitos francófilos
não-franceses parecem não ter suficiente consciência.
245
Como à época foi afirmado, com o objectivo de retomar “uma tradição europeia de paz”.
Tendo em vista a história da Europa, uma asserção verdadeiramente extraordinária no optimismo.
Vale a pena aqui uma pequena excursão marginal. O interregno de pacificação relativa vivido no
século XIX deveu-se segundo os defensores desta opinião a uma bem-vinda Pax Democratica, que
por sua vez resultaria de uma reputada falta de propensão das Democracias para os conflitos de
umas com as outras. Uma posição algo voluntarista que data da visão kantiana da “Paz Perpétua” e
de uma “união republicana pacífica”, que tem sido desde os anos 80 ecoada por diversos especialistas liberais de teoria das Relações Internacionais, e nomeadamente por Michael Doyle (e.g. 1996).
Para uma desconstrução sistemática desta asserção liberal clássica, ver Vasco Rato (1998). A nível das
suas “condições de permissibilidade”, a expansão verificada decerto muito ficou também a dever à
Pax Economica, ao reconhecimento, pelos poderes de então, dos alegados inconvenientes da guerra
para um comércio internacional que a industrialização acelerara de maneira nunca antes vista. Mas
a dívida também foi seguramente grande em relação ao “scramble for Africa” (e além disso “for Asia”)
que as acompanhou. Para uma recontextualização ainda mais ampla do problema, fascinante nas
implicações, no quadro dos processos de integração global e de uma redefinição “marxizante” de
conceitos, ver Tarak Barkawi e Mark Laffey (1999). É extensa a bibliografia contemporânea mais
recente a este respeito. Para discussões detalhadas, escritas de uma perspectiva favorável aos norte-americanos, ver Robert Kagan (2003), e ainda Ronald D. Asmus e Kenneth M. Pollack (2002), “The
new Transatlantic Project”, Policy Review 115, The Hoover Institution.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
255
Ao apoio da Doutrina Truman seguiu-se a vontade explícita de Dwight
Eisenhower de que emergissem os “United States of Europe” à imagem e semelhança dos Estados Unidos da América, a que o Presidente norte-americano
aludia com frequência como a “terceira força”, no contexto da Guerra Fria246. John
F. Kennedy era um quasi-incondicional de uma maior integração da Europa e, se
temia alguma coisa, era um atenuamento e um esbatimento do supra-nacionalismo europeu uma vez removidas as objecções francesas à acessão da Grã-Bretanha como Estado-membro. É bem verdade que, no interlúdio Republicano
que se seguiu, algumas dúvidas conjunturais significaram um módico retrocesso
no apoio norte-americano à integração da Europa: Ronald Reagan, apoiando-se
no “eurocepticismo” militante de Margaret Thatcher, não foi propriamente um
entusiasta do “welfare State” que ambos atribuíam à “dupla socialista” Jacques
Delors-François Mitterrand. Mas tratou-se de uma resistência leve, passiva e
passageira. Empolgado com a implosão da União Soviética, a Queda do Muro de
Berlim e a democratização das “soberanias limitadas” da Europa de Leste, George
Bush (pai) via a Alemanha como o “líder natural” de uma “nova Europa”, aliada e
coesa.
Apesar de uma maior frivolidade247, a Administração Clinton não foi
dissonante248, como o demonstraram tanto o apoio à Europa no que tocou à
Bósnia-Herzegovina, em 1995, quanto a disponibilidade para liderar as acções da
NATO no Kosovo, em 1999: em ambos os casos, tratou-se de intervenções em que
246
Ecoando, aliás, a célebre asserção construtivista de Sir Winston Churchill, que no pós-
-Guerra insistira ser imprescindível que a Europa se transformasse numa “kind of United States of
Europe”.
247
Um só exemplo, relativo a uma questão ligada ao que aqui discuto. Num artigo recente,
Robin Harris (2002) escreveu que “the former US Ambassador to the Court of St. James, Ray Seitz, recalls
in his autobiography preparations for President Bill Clinton’s first meeting with Britain’s then–prime
minister, John Major. Sitting in the Oval Office, the president was reminded by one of his aides to mention
the magic phrase ‘special relationship’. ‘Oh yes,’ said Clinton. ‘how could I forget?’. And he burst out
laughing”.
248
Bill Clinton apoiou explicitamente, por exemplo, a criação da moeda única europeia, o
Euro, apesar das vozes que na Europa insistiam que a primeira finalidade desta seria a de fazer frente
ao Dólar norte-americano.
256
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
os Estados Unidos se embrenharam, contrafeitos249, em nome da estabilidade da
Europa e em nome, de modo expresso, da ligação transatlântica. A anuência
relativamente à vontade europeia de criação de uma força militar autónoma de
intervenção rápida, esteve em sintonia com essa postura geral250 de uns Estados
Unidos que continuavam a operar nos termos da mesma doutrina “clássica”
legada por Harry S. Truman. George W. Bush, pelo menos nos primeiros tempos
da sua Administração, não foi uma voz dissonante num coro que já vinha de trás:
afirmou formalmente num discurso em Berlim, em 2002, que “when Europe grows
in unity, Europe and America grow in security”.
É certo que, se bem que a muitos níveis a diferença de atitude face a uma e
a outra por via de regra tenha sido nítida, o amparo norte-americano à Europa
nem sempre incluiu distinções finas entre a Aliança Atlântica e a União Europeia.
Porventura porque, vistas do outro lado do Atlântico, as coisas não fossem de
fácil dissociação251. Seja como for, hoje as pedras de toque estão no seu lugar.
249
Como o atesta a famosa recusa inicial do Secretário de Estado James Baker em intervir na
turbulência que em meados da década de 90 começou a fervilhar na ex-Jugoslávia, com o argumento realista de que “we have no dog in that fight”.
250
Ao contrário do que muitas vezes tem sido aventado, não se encetou verdadeiramente um
processo simples de compressão da Europa e das suas extensões pelos norte-americanos. Ou, pelo
menos, não se tratou de um movimento unidireccional, se bem que esse tenha decerto sido um dos
ingredientes; a atestá-lo está o famoso desabafo de Adlai Stevenson, a pensar no fim da hegemonia
britânica e na tomada dessa posição pelos norte-mericanos: “now it´s our turn”. Essa perspectivação
é todavia bastante parcial e muitíssimo reducionista. Uma outra boa maneira de pôr as coisas é
afirmando que, pelo contrário, foram os europeus que, uma vez tornadas evidentes as vantagens da
escala, apanharam o barco e se decidiram por adquirir um peso e tamanho semelhante ao dos
Estados Unidos da América. Como, aliás, não podia deixar de ser se os europeus não fossem cegos.
Bastava, com efeito, olhar para o Mundo para o compreender. Para um eficaz exercício de um novo
tipo de poder, num Mundo simultaneamente maior e mais pequeno, e face a blocos com core powers
enormes, como o norte-americano e o soviético, tornava-se imperativo aumentar de tamanho e
peso. As lições sucederam-se. Acontecimentos de implicações cada vez mais globais, como a crise
do petróleo de 1973, ou a implosão da União Soviética, em 1989, vieram pô-lo em evidência. Ao
abrir-se, o Mundo regionalizara-se em grandes unidades.
251
Ou talvez como consequência da relativa indiferença com que a União Europeia sempre
tendeu a ser olhada a partir do lado de lá do Atlântico, associada ao facto de para os estrategas
norte-americanos a Aliança, durante o período da Guerra Fria, ter tido, ainda que decerto entre
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
257
Todas as grandes questões estratégicas que durante toda a segunda metade do
século XX preocuparam os “trumanistas”, tanto de lá como de cá do Atlântico,
parecem estar bem e seguramente encaminhadas: o “problema da Alemanha” e
do seu lugar na Europa, uma articulação entre a Europa ocidental e a Oriental, a
abertura a um gigante russo democratizado. Como escreveram R. D. Asmus e K.
M. Pollack, “if Harry Truman and his European counterparts could look down upon us
today, they would undoubtedly be proud of what has been accomplished in their
name”252. Seguramente.
Mas tratou-se, além disso, de uma manifestação de afinidade. Facto que,
sem exagerar o seu alcance, importa afirmar. Para tornar a dar palco à postura
voluntarista de Robert Kagan253: “the more important American contribution to
Europe […] stemmed not from anti-European but from pro-European impulses. It
was a commitment to Europe, not hostility to Europe which led the United States in
the immediate postwar years to keep troops on the continent and to create NATO”.
Por detrás do interesse norte-americano em conter uma URSS expansionista,
vislumbrava-se sem dúvida algum esprit de corps. Talvez. Mas se foi esse o caso,
outras, a função de assegurar a criação de um primeiro teatro de operações (a Europa) num eventual
conflito com a União Soviética. Decerto em parte por esse tipo de razões (evitar a eclosão de
conflitos no Velho Continente e fazer frente, primeiro à URSS e depois ao terrorismo internacional)
desde o final da 2.ª Guerra que a América tem promovido a ideia de uma “ever closer union” na
Europa. Em 1948 foi fundado um American Committee for a United Europe, ao qual pertenciam, por
exemplo, Allen Dulles, o histórico Director da CIA (cf. Charlemagne, 2003a: 25); durante duas
décadas, através de indivíduos e organizações, esse Committee canalizou fundos para a então CEE,
ajudando a escorar a sua consolidação.
252
Op. cit.: 1. Numerosos autores têm vindo a circunscrever posições-leituras deste tipo. Uma
perspectiva mais neutral e menos moralizante (mas também mais inclusiva) foi a oferecida por
Martin Shaw (1997: 501 e ss) que, no quadro e uma interpretação weberiana “clássica” do Estado
como centro autónomo e monopolista da força político-militar, argumentou que com a NATO
viveríamos numa fase de criação de “um Estado ocidental” cuja edificação terá tido o seu início nos
projectos pós-Guerra de reconstrução, ajuda e cooperação económica, política e militar. Para uma
interpretação mais “imperial”, cf. Tarak Barkawi e Mark Laffey (1999, op. cit.).
253
Uma afirmação self-serving, apesar de no essencial autêntica, de Robert Kagan, 2002, op.
cit.: 14. Para uma leitura histórica alternativa, de um neo-realismo puro e duro, são fascinantes as
páginas anti-institucionalistas recentes de Kenneth Walz (2000: 18-26) sobre a evolução do papel da
NATO e a sua reestruturação e inesperada permanência depois de terminada a Guerra Fria.
258
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
importa frisar que se tratou de uma afinidade que, seja qual for a fundamentação
invocada, só com uma grande dose de idealismo poderíamos tomar como
permanente254, como aliás a evolução subsequente das coisas tem vindo a
evidenciar.
Com efeito, mais recentemente tem-se verificado uma propensão que parece crescente para um acentuar de divergências entre os dois membros da parelha
que identificámos, a União Europeia e a NATO. Indícios disso incluem desde o
“processo de St. Malo”, à criação da PESC e da PESD, à turbulência associada à
invasão do Iraque, ao “novo unilateralismo” e isolacionismo americano e ao
reafirmar do fervor unilateralista tradicional francês. A nova conjuntura de divergência está, ao que tudo indica, a assentar arraiais255. Mais uma vez de algum
modo indexando as questões políticas e organizacionais nas militares, de segurança e defesa.
As questões suscitadas por esse esboço de uma reformulação fundamental
das coisas são preocupantes. Pois que o problema de fundo mantém-se: para o
futuro da Europa, muito no evoluir da situação depende do enquadramento que
venha a ser logrado para fazer face à anarquia hobbesiana, interna e externa,
como condição para que se possa continuar a delimitar, no Velho Continente, o
oásis kantiano de “paz republicana” de que temos vindo a beneficiar. E mantém-se, agora num meio político e diplomaticamente muito mais hostil, em que
tanto alguns Estados europeus quanto numerosas das opiniões públicas no
254
Numerosos têm sido os ensaios e estudos sobre o anti-americanismo na Europa. Menos
estudado tem sido o anti-europeísmo norte-americano. Para um ensaio recente sobre este último
tema, ver Timothy Garton Ash (2003).
255
Variadíssimos têm sido os estudos e ensaios que, de uma ou de outra forma, têm vindo a
dar voz ora ao alargamento dessa fissura, ora ao unilateralismo das Administrações norte-americanas visto como dele concomitante. Citei já criticamente Robert Kagan, sobretudo os seus trabalhos
publicados em 2002 e 2003. Para uma posição com pontos de partida em muito semelhantes, mas
com conclusões divergentes, é útil a leitura do artigo e da detalhadíssima monografia de Charles
Kupchan (ambos de 2002), bem como o longo ensaio anterior de Joseph S. Nye, Jr. (2002); esta linha
interpretativa foi, evidentemente, inaugurada pelo magistral estudo comparativo sobre a mecânica
da queda dos grandes Impérios redigido e publicado há uma quinzena de anos por Paul Kennedy
(1989).
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
259
Velho Continente se vêem empurradas pelo cada vez mais claro e “arrogante”256
ascendente norte-americano a tentar contrabalançar o seu poder. As pressões
são múltiplas. Romano Prodi, o então Presidente da Comissão Europeia, afirmou
recentemente (em meados de 2003) que “um dos objectivos principais da União
é o de criar uma superpotência no Continente igual aos Estados Unidos”. Jacques
Chirac, na linha de uma “tradição” mais apoiada em Hubert Védrine257 e em
Dominique de Villepin do que no General de Gaulle que prefere invocar, declarou
que “precisamos de um meio de combater a hegemonia americana”. Como notou
num artigo bastante recente o colunista do Economist, Charlemagne258, “given
that the Bush administration’s security doctrine is explicitly aimed at preserving that
hegemony, it is hardly surprising that the United States is now a little wearier of the
process of European integration”. O eventual desenlace é assustador. E de pouco
serve tentarmos atribuir responsabilidades, sobretudo se o fizermos com base
em meras considerações político-ideológicas.
A questão é, efectivamente, estrutural. Ainda que os problemas da União
possam vir a encontrar soluções (nomeadamente no quadro da “constitucio256
A expressão é de Fareed Zakaria (2003, op. cit.), que lamenta o facto, enquanto comenta
que “perhaps what is most surprising is that the world has not ganged up on America already”, dada a
disparidade existente de poder e a nova e agressiva política externa da Administração Bush. Não é
precisa uma grande adesão às teses do realismo, ou do neo-realismo, para compreender a preocupação das potências europeias. Porventura particularmente preocupante para muitos europeus (e
poucas vezes frisado), tem sido a subalternização a que Bush tem condenado a NATO: a Casa Branca
na prática ignorou a invocação unânime pelos Aliados Atlânticos do artigo 5.º do Tratado (que
considerou o 11 de Setembro uma agressão a todos), marginalizou com deliberação a Aliança na
campanha do Afeganistão e (ainda que de maneira sui generis) na mais recente acção no Iraque.
Bush criou, para algumas das potências europeias, o que gráfica e porventura premonitoriamente F.
Zakaria apelida “the America problem”.
257
O famoso Ministro dos Negócios Estrangeiros francês que caracterizou derrogatoriamente
os Estados Unidos pós-Primeira Guerra do Golfo como uma hyperpuissance. Tanto um como o outro,
parecem ter decidido retomar o ideal de um ascendente que a França não conhece desde Charles
Tallyerand, desde o início de um século XIX pós-Revolucionário em que o país era o mais rico da
Europa, a segunda potência demográfica do Continente e, com a célebre “levée en masse” (e um
Napoleão que o Duque de Wellington, lamentou valer no campo de batalha por 40 mil homens)
detinha as mais numerosas e eficazes forças militares de toda a Europa.
258
260
Charlemagne, 2003a, op. cit..
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nalização” em curso) e os da Aliança também, não é improvável que as respostas
encontradas venham a acentuar de modo insanável as divergências hoje já tão
sensíveis. O que soletraria estarmos perante uma alteração radical de “regime”:
não seria nesse caso surpreendente que os dois pássaros se autonomizassem e
voassem cada um na sua direcção. Ou se, para manter o meu cruzamento de
metáforas, os dois dançarinos se fossem afastando um do outro em piruetas e
passos de minuete cada vez mais independentes entre si. Sobreviveriam?
4.
Proponho-me agora dar um passo suplementar, extraindo do que antes
disse algumas implicações, no contexto de breves comentários sobre o comparativo sucesso que tem tido a solidificação de políticas comuns europeias no
âmbito de justiça e dos assuntos internos. Darei realce a apenas umas poucas, e
tão-só em termos genéricos: a livre circulação de pessoas (entendida na acepção
da livre passagem das fronteiras comuns dos Estados-membros) e a cooperação
policial e judiciária alargadas (em matéria civil e penal) que, alego, apenas se
tornaram palatáveis para as grandes potências europeias quando, sob o que
chamei o manto protector e tutelar da NATO, estas deixaram de se temer umas
às outras. Não é difícil intuir mais do que isso: a abertura proposta a novas
políticas de vistos, imigração e asilo, combate ao terrorismo e ao narcotráfico,
também não teriam sido viáveis do mesmo modo sem o papel de guardião,
assumido pela Aliança Atlântica, relativamente à velha “anarquia hobbesiana”
que forma um dos panos de fundo sobre o qual a construção europeia se tem
vindo a efectuar. A “protecção” não é total, nem é decerto o único factor em
causa; mas tem sido decerto suficiente para alguns avanços notáveis em domínios sensíveis.
Naquilo que imediatamente se segue, irei argumentar que a emergência, de
facto tão rápida quão surpreendente, de um chamado “espaço europeu de
liberdade, segurança e justiça” (o que Maastricht nos ensinou a apelidar de o
Terceiro Pilar da União Europeia) só é verdadeira e integralmente explicável em
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
261
termos do quadro antes defendido que põe a par a União e a Aliança. O que
complementa aquilo que implicitamente argumentei, no que precedeu, que o
subdesenvolvimento do Segundo Pilar da União (a política externa e de segurança e defesa) e quanto às renitências suscitadas as quais, insisti, também só com
esse enquadramento se tornam integralmente compreensíveis.
Começo por um conjunto de factos bem conhecidos. O Tratado da União
Europeia, comummente denominado o Tratado de Maastricht, entrou em vigor
a 1 de Novembro de 1993. Trouxe ao projecto europeu um redimensionamento
importante: institucionalizou laços de cooperação entre os Estados-membros
aos níveis cruciais da justiça e dos assuntos internos. Ao articular esforços entre
os então Doze, o Tratado aproximou com prontidão ostensiva uns dos outros os
respectivos Ministérios da Justiça e do Interior. Foi assim não só potenciado o
diálogo, mas viram-se também activadas formas múltiplas de ajuda recíproca
que inevitavelmente começaram a desembocar em actividades conjuntas e em
formas cada vez mais estreitas de cooperação entre Polícias, entre serviços
alfandegários, serviços de imigração e os congéneres da justiça dos Estados co-signatários. Maastricht foi por conseguinte uma espécie de momento fundador,
maior também nessa dimensão intergovernamental e supranacional que tanto
tem contado para entrosar entre si os Estados europeus.
Em boa verdade porém, a “Cooperação JAI” (como é vulgarmente apelidada
esta colaboração mútua no plano “da justiça e dos assuntos internos”, de onde o
acrónimo) vinha já de trás. O Tratado da União Europeia, e designadamente o seu
Título VI (que abrange a cooperação policial e judiciária em matéria penal, que
constitui o chamado Terceiro Pilar da União Europeia), deu seguimento e inovou
num quadro de variadíssimas iniciativas sobre cooperação policial, aduaneira e
judiciária que tinham tido início nos longínquos anos 50. O Conselho da Europa
formara o seu âmbito e lugar de implantação. À margem do quadro institucional
das então Comunidades Europeias, foram formados e reuniam, desde essa época,
diversos agrupamentos de “peritos” especializados em problemas relativos a
esses domínios. A base desses grupos era meramente intergovernamental. O
Título VI não veio por conseguinte senão dar coerência, racionalizar e evitar uma
dispersão excessiva de esforços ao criar um quadro formalizado e maior para essa
262
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cooperação, disponibilizando-lhe o Secretariado Permanente do Conselho, concentrando esforços, nomeando agentes e definindo instrumentos comuns para o
que muitas vezes eram questões sensíveis atidas a coutadas ciosamente guardadas daquilo que até à Segunda Guerra Mundial tinham sido expressões privilegiadas da soberania dos Estados europeus.
A cooperação JAI incidia, nos termos do seu Título VI, sobre domínios como
a política de asilo, as regras aplicáveis às passagens nas fronteiras externas dos
Estados-membros, a política de imigração, as lutas contra a droga e a fraude
internacional, e as já referidas cooperações judiciárias em matéria civil, penal,
aduaneira e policial. Os instrumentos criados para lograr adoptar medidas conjuntas nestes domínios foram a “acção comum”, a “posição comum” e a “convenção”. Em poucos anos foi imprimida uma enorme aceleração ao processo com o
Tratado de Amesterdão, assinado a 2 de Outubro de 1997 e entrando em vigor
em 1 de Maio de 1999. A cooperação maastrichtiana nos domínios da justiça e
dos assuntos internos viu-se reorganizada por uma nova linha de horizonte: a
criação, a prazo, de um espaço único europeu de liberdade, segurança e justiça.
Vários sectores destes três domínios foram transferidos para o âmbito comunitário (no jargão de Bruxelas, viram-se “comunitarizados”); e surgiram novos domínios, métodos e instrumentos especificamente desenhados para melhor permitir
atingir as metas visadas, de par com a decisão de integrar, no quadro jurídico dos
Tratados da União Europeia, o “espaço Schengen”, uma entidade criada também
à sua margem como iniciativa de alguns do Estados-membros apostados em
conseguir desenvolver a livre circulação de pessoas na Europa259. Para esses
domínios comunitarizados, passaram com Amesterdão a aplicar-se instrumentos
mais robustos, como “regulamentos”, “directivas”, “decisões”.
259
Em 1985, a França, a Alemanha e os Estados do Benelux celebraram, numa base estritamen-
te intergovernamental, o Acordo de Schengen. Em 1990, esse Acordo foi completado por uma
Convenção de aplicação. Tal como referi, o Tratado de Amesterdão integrou o acervo de Schengen
no quadro da União Europeia delineada uns meros quatro anos antes em Maastricht. Dois dos
Estados-membros não aderiram a Schengen, a Grã-Bretanha e a Irlanda; um terceiro, a Dinamarca,
insistiu em disposições-salvaguardas específicas. Par contre, significativamente, dois Estados não-comunitários da NATO, a Noruega e a Islândia, aderiram a Schengen antes da inclusão deste no
acervo da União Europeia.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
263
Para entrever a dimensão do passo dado basta enunciar as suas implicações
no plano difuso da segurança e defesa. Um objectivo primeiro do processo de
construção europeia foi a criação de um mercado único ao nível continental (ou,
pelo menos, ao europeu-ocidental, como então concebido). A descompartimentalização consequente aboliu (ou reduziu) as fronteiras entre mercadorias,
capitais e serviços, cujas circulações se passaram, a par e passo, a realizar sem
entraves. A essas três liberdades veio juntar-se uma quarta, mais difícil, a liberdade de circulação de pessoas. Não é árduo ver a razão para esse acréscimo de
dificuldade: essa quarta liberdade punha em cheque a forma “tradicional” de
garantir a segurança interna de cada Estado por intermédio de fronteiras erigidas
com objectivo instrumental (naturalmente entre outros) de controlar e filtrar a
identidade, a entrada e a circulação de pessoas no território sob sua tutela
soberana. Não será por isso surpresa que grande parte da oposição que então se
manifestou em vários palcos políticos nacionais europeus tenha precisamente
batido nas teclas dos riscos e das perdas de soberania que a criação desse espaço
inevitavelmente acarretaria. E torna-se mais fácil de compreender porque é que
foram rapidamente adoptadas o que se chamou “medidas compensatórias e
complementares”, com o intuito de minimizar tanto a redução na segurança da
população, da ordem e da liberdade pública, como a percepção de tudo isso por
opiniões públicas nacionais muitas vezes atentas e vigilantes260.
O facto, porém, é que os passos foram sendo dados, e foram-no com
comparativa rapidez e eficácia. Ainda que, naturalmente, de forma cautelosa:
dada a sensibilidade presente e sempre inevitável em questões que digam
respeito à ordem pública, as matérias relativas à justiça e aos assuntos internos
não são postas em prática do mesmo modo em que o são, por exemplo, questões
260
Por exemplo, o reforço das fronteiras externas da União (a célebre “Fortaleza Europa”), bem
como uma cooperação reforçada das administrações da justiça e do interior, sobretudo no que toca
aos serviços policiais, aduaneiros e de imigração. Emergiram assim com novos contornos questões
como aquelas que se prendem com políticas de asilo, de imigração clandestina. A criação de um
Serviço Europeu de Polícia, a Europol, sedeado na Haia, nos Países Baixos, dependeu formalmente
da assinatura de uma “Convenção Europol”, que entrou em vigor a 1 de Outubro de 1998 e está a ser
efectivamente aplicada desde 1 de Julho de 1999.
264
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
relacionadas com a política agrícola comum ou com a política regional europeia:
naquilo que toca a JAI, o Tratado dá uma comparativamente grande importância
aos Estados-membros e àquelas instâncias da União Europeia em que estes
participam directamente; com uma ratio semelhante, foram no caso da cooperação JAI limitados os poderes da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu e do
Tribunal de Justiça.
Mais uma vez não demorou muito tempo para que um novo Tratado, no
caso o Tratado de Nice, contribuísse para uma intensificação dos processos de
cooperação JAI que Maastricht encetou. Nice fê-lo alargando às decisões tomadas nos domínios comunitarizados o voto por maioria qualificada. De fora
ficaram, é verdade, as matérias ligadas à cooperação policial e judiciária em
matéria penal, decerto em parte por motivos nacional-corporativos e pelo melindre que tais questões podem muitas vezes assumir para os Estados-membros.
Mas deu-se, de novo, um passo largo. Os procedimentos para a célebre “cooperação reforçada” tornaram-se com Nice menos restritivos do que antes. E intensificou-se (constitucionalizando-se um dos seus elementos, o Eurojust) a tão
importante cooperação judiciária, com todo o potencial multiplicador que isso
tem. As barreiras existentes e que têm criado dificuldades são fáceis de arrolar: a
cooperação JAI confronta tradições e interesses nacionais arreigados, bem como
lógicas administrativas e ordenamentos jurídicos à partida nem sempre com
facilidade miscíveis entre si. Não é por isso surpreendente que questões de
harmonização e coerência, e aquelas ligadas à eficácia de processos decisórios (o
que deu azo, como vimos, à criação, lenta mas progressiva, dos instrumentos
apropriados para melhor agilizar a progressão dos relacionamentos nestes domínios) tenham vindo a ser suscitadas.
Longe estamos, é certamente porém óbvio, do muito pouco conseguido no
plano da PESC, do âmbito do Segundo Pilar. Em termos comparativos, note-se,
para só fornecer um exemplo, que muito daquilo que nos Estados Unidos da
América apenas se conseguiu nos anos 30 do século XX, ou seja, mais de século
e meio depois da Independência, os europeus lograram numa curta geração. Não
restam dúvidas, creio, que mesmo em áreas de grande melindre como o são as
relativas à ordem pública, a Europa tem vindo a progredir a passos bastante
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
265
amplos, difíceis de explicar fora de um contexto alargado: designadamente
aquele que resulta de uma ordem internacional em que a posição da Europa face
ao resto do Mundo tem sido mediada por uma entidade como a NATO.
5.
Com os olhos postos na História – designadamente na terrível herança de
guerras e violência mútua que durante séculos a fio vivemos na Europa – muitos
foram os analistas e políticos que, na última meia dúzia de meses, no Velho
Continente como na América do Norte, têm vindo a manifestar temores quanto
a um eventual reatamento dessa pesada “tradição”. Os medos desse regresso ao
passado tendem a ser vislumbrados em formato narrativo, por assim dizer.
Entre 1871 e 1945, é por via de regra lembrado, a Alemanha e a França
estiveram em guerra. Esses quase oitenta anos, previne-se, foram pontuados por
intervalos ilusórios de uma aparente tranquilidade. Apesar do mais de meio século
de paz vivido desde 1945, vários são os factos dos últimos anos, alega-se, que nos
deveriam pôr de sobreaviso. Alguns dos “indícios” que tendem a ser listados quanto
à re-emergência do legado europeu são decerto assustadores: as sucessivas e
sangrentas eclosões de brutalidades étnico-nacionalistas nos Balcãs, durante os
recentes anos 90, as tensões “intestinas” ressentidas na Europa com processos como
o da inicialmente tão contestada reunificação alemã, o associado ao processo
truculento do estabelecimento de um espaço Schengen, ou aqueloutro ligado à
longa batalha pela criação de uma moeda única. Todos eles, afirma-se com alguma
plausibilidade, lançam uma luz preocupante sobre os palcos que hoje despontam.
E fazem-no invariavelmente, insiste-se, enquanto expressão teimosa de
posicionamentos divergentes de alguns dos Estados europeus mesmo quanto a
questões de interesse comum: tal como aliás, diz-se, hoje em dia ocorre com as
oposições e resistências que se manifestam relativamente às intervenções “unilaterais” norte-americanas na Ásia Central e no Médio Oriente, à eventual auto-suficiência europeia no que diz respeito a uma política externa geral e em particular à
sua política de segurança e defesa, ou no que toca à natureza e alcance do processo,
moroso mas em curso, de constitucionalização “local” da Europa comunitária.
266
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
As reacções de políticos e analistas face à percepção do perigo (tal como, de
um ou de outro modo, a própria escala dele) naturalmente variam; mas é mais o
que as aproxima do que aquilo que as distingue. Os mais optimistas têm afirmado ser ténue o risco. Para outros, mais propensos ao apocalíptico, o descalabro
estará iminente. Os mais comedidos (ou menos seguros quanto à plausibilidade
de quaisquer previsões baseadas na presunção de uma hipotética ciclicidade
histórica) tendem muitas vezes a descartar estes tipos de especulações, preferindo-lhe análises conjunturais mais concretas e “presentistas” em que as regularidades históricas aparecem como meras linhas de força e tensão. Todos, no
entanto, parecem estar de acordo relativamente à urgência de um diagnóstico
que possa funcionar como um aviso sonoro e prudente à navegação.
O mais preocupante é que a justificação aduzida para a necessidade desse
alerta parece assentar numa pré-compreensão muito pouco convincente261: a
ideia, infinitamente repetida, de que a paz, que por fim na Europa lográmos ter,
se deve à obra e graça da União Europeia; e de que é por isso que, ao pôr em
cheque a União, se joga também uma paz tão arduamente conquistada. O que
dá voz a uma convicção arreigada que nas últimas décadas se começou a
generalizar. Na Europa tem com efeito sido cada vez mais comum a perspectiva
segundo a qual o “mais de meio século de paz” conseguido se deve, sobretudo,
ao processo político-económico de integração continental que desembocou na
União Europeia. Sem União, acredita-se, não há, não pode haver, paz.
A litania de explicações fornecidas para esta relação causal tende a bater em
três teclas. Em primeiro lugar, diz-se, a memória, partilhada no Continente, dos
261
Das muitas formulações deste tipo que a procuram fundamentar, atenho-me a uma só, por
esta parecer bem encapsular o consenso existente entre os formadores de opinião europeus.
Segundo um artigo recente de Charlemagne (2003b: 34), “an aid to Javier Solana, the EU’s foreign
policy chief [recently mused] that there are three broad reasons for why western Europe has enjoyed
almost 60 years of peace since 1945. The first is a shared memory of the horrors of war; the second is the
deep economic integration that has been fostered by the EU; and the third is the intense and continuing
political dialogue between the countries of the European Union, which means that ‘the way we talk to
each other these days is so completely different. There is no longer a clear distinction between foreign
and domestic policy’”.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
267
horrores da guerra tem trazido a paz. Por outro lado, a interdependência económica tem vindo a tornar cada vez mais “irracional” um qualquer recurso às armas.
E, finalmente, o processo de consultas recíprocas, a insistência no diálogo
intergovernamental e, em última instância, a efectiva integração política crescente da Europa, têm esbatido distinções e exclusivismos que antes separavam uns
dos outros, contrapondo-os, os vários interesses nacionais.
Vale a pena que nos debrucemos um pouco sobre esta racionalização, sobre
esta autêntica convicção-crença, desmontando-a. Começo por notar que o primeiro argumento da tríade não é muito forte: apesar de tudo, e mesmo perante
a memória dolorosa das carnificinas ocorridas na Grande Guerra de 1914-1918,
a guerra voltou em 1939, uma geração apenas depois: regressou em força e
numa versão agravada. Para além disso, e paradoxalmente para os defensores
dessa primeira linha de argumentação, o país que porventura mais sofreu as
agruras do conflito (a URSS) foi precisamente aquele que menos dúvidas teve
(decerto por razões políticas, internas e externas) em suscitar logo de seguida
uma Guerra que, apesar de “fria”, durou cinquenta anos e teve igualmente
terríveis consequências.
Também a segunda tecla é fraca: pese embora em finais do século XIX e
inícios do XX tivesse havido um enorme adensamento de fluxos comerciais, uma
intrincação cada vez maior dos investimentos estrangeiros directos e indirectos
e gigantescas migrações, numa conjuntura que assegurou níveis “globais” de
integração económica até aí desconhecidos, tal não impediu a eclosão do primeiro grande conflito, primeiro na Europa e depois à escala mundial. Bem pelo
contrário, ao acicatar exclusivismos nacionalistas que reagiram, incendiou-os.
Esmiuçados, nenhum dos dois primeiros argumentos, por si mesmo ou em
combinação, acaba por produzir uma explicação particularmente convincente.
Mais sedutora é decerto a invocação do papel pacificador da integração
política europeia, aptamente apelidada de “the real insurance policy”262 do Conti-
262
Charlemagne (2003b, op. cit.). Charlemagne cita nesse artigo-editorial um funcionário
superior da União (que não nomeia), que a terá descrito nos seguintes termos: “the European Union
is the greatest peacemaking project in history”.
268
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nente. Não é difícil arrolar êxitos em prol de um processo que tem viabilizado fora
para diálogos permanentes entre os europeus, e tem vindo a criar referenciais
comunicacionais comuns entre os Estados. Trata-se de um processo de integração,
ainda que esta tenha sido bastante limitada, cujos sucessos têm sido retumbantes em questões tão potencialmente espinhosas como as transições democráticas levadas a cabo em Portugal, na Espanha, e na Grécia, nos anos 70 e 80; e,
depois, durante os anos 90, nas dos inúmeros Estados leste-europeus em muitos
dos quais a pacificação resultou em grande parte dos condicionalismos impostos
pela União relativamente a uma sua futura acessão ao estatuto de Estados-membros.
Este tipo de racionalizações assentes sobre esta autêntica convicção-crença,
não é, de facto, inteiramente convincente. Como vimos, para retomar a terminologia que atrás utilizei, têm com efeito sido óbvias as vantagens político-militares
soletradas pelas reconfigurações organizacionais que tiveram lugar na Europa.
Mas seria seguramente abusivo ver, na integração política europeia, uma causa
muito eficaz por si só. Trata-se, em todo o caso, de um processo exíguo e ainda
severamente inacabado. Tem sido, ademais, e como fiz questão de sublinhar, um
processo indissociável de um conjunto de factores externos: a ocupação Aliada
da Alemanha em 1945, a Guerra Fria e a oposição coordenada à União Soviética
e (porventura sobretudo) o papel crucial preenchido pela NATO e pela “garantia
nuclear” norte-americana na ordem internacional emergente com a derrota do
Eixo e, uma vez esta consolidada e de par com a progressão da cristalização da
ameaça soviética que, de maneira inesperada, deu origem a um Mundo equilibrado numa tensa ordenação bipolar que se manteve durante quase toda a
segunda metade do século passado.
Em termos de uma pacificação do Velho Continente, quando são vistas as
coisas num quadro mais amplo, parecem óbvios os ganhos que advieram de uma
relegação, para segunda linha, de antigas grandes potências da Europa ocidental; finalmente “libertadas” da “necessidade” de competir por uma supremacia
mundial, ou sequer regional, puderam, pelo menos em parte, escapar a um
security dilema com que, manifestamente, não logravam conviver. Juntamente
com eles tornam-se nítidas aquelas outras vantagens, essas mais comezinhas
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
269
mas também resultantes da reorganização interna e da comparativa insulação
externa viabilizadas pela permanência norte-americana no Continente, que possibilitaram a uma Europa deixar de se preocupar com a sua segurança e defesa,
e consequentemente adquirindo uma relativa tranquilidade que lhe permitiu
dedicar-se, com ainda hoje o faz, ao seu próprio desenvolvimento económico e
à sua imprescindível (e criativa) reconstrução política.
Os ganhos foram evidentes. Mas as perdas também. Quase sessenta anos de
uma “hegemonia tranquila e benevolente” da parte norte-americana deixaram os
europeus (pelo menos os europeus ocidentais) prósperos, satisfeitos e pacíficos.
Ficções como a de um “partenariado entre iguais” ou a de “interesses e objectivos
comuns”, que nos habituámos prazenteiramente a sustentar, deram, durante
meio século, azo a representações idealistas mas bem implantadas de ambos os
lados do Atlântico, que convinha a quase todos alimentar. Num Mundo
imponderável como aquele em que vivemos, era porém inevitável que mais
tarde ou mais cedo a ilusão viesse a ser desfeita. E foi isso o que aconteceu. A
“reactivação hobbesiana” de uns Estados Unidos menos pacíficos e muitíssimo
menos displicentes do que a maioria dos Estados europeus, que foi desencadeada
de maneira indirecta pelo fim do quinquagenário balance of terror bipolar e como
correlato da eclosão de uma imprevisível war on terror, em simultâneo abriu o
fosso e tornou-o visível. As ficções perderam plausibilidade e deixaram de convir
fosse a quem fosse. O pessimismo instalou-se.
6.
Em tons ora triunfalistas ora derrotistas, instalou-se infelizmente o hábito de
pontuar a progressão do que hoje chamamos a União Europeia com “momentos
constituintes” e “momentos de crise”. No primeiro caso, tende-se a recorrer a
critérios “essencialistas” consubstanciados em datas a processos como, por exemplo, – para me ater a apenas alguns indicadores habitualmente trazidos à baila –
a CECA, os Tratados de Roma, Paris, Maastricht, Nice e Amesterdão, ou os timings
do alargamento da mancha geográfico-nacional formada pelo conjunto dos
Estados que foram a par e passo aderindo a uma entidade cada vez mais
270
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
integrada. No segundo, ao invés, a tendência tem sido a de sublinhar as sucessivas crises – a muitas delas fiz alusão no que precede, do veto aos britânicos às
agruras da gestação de uma política externa e de segurança comum mas muitas
outras houve, das opt-out clauses ao “cheque inglês” – que têm ciclicamente
vindo afligir esse aparente movimento “orgânico”.
Em valorações agregadas, por assim dizer, alguns analistas têm, em
consequência (e de acordo com as suas preferências pessoais), ora celebrado os
sucessos, ora sorrido aos precalços associados aos esforços endógenos de “constituição” de uma “Europa”. Nuns casos alinhavando cronologias de tratados e
batalhas vencidas, noutros encadeando perdas e derrotas, mas sempre nos
termos de uma “história de feitos”, cujas limitações me escuso de sublinhar. Em
minha opinião tudo isto tem de ser repensado. Por muito interessantes e
reveladores que tais análises nos possam parecer, creio que ao levá-las a cabo
perdemos de vista as incontornáveis dimensões relacionais de fundo que – e
apenas elas o podem fazer – tornam inteligível a mecância complexa tanto da
progressão em curso, como dos seus óbvios avanços e recuos. Dimensões essas
que há que saber pôr em evidência, sob pena de cairmos em visões parcelares
que recapitulam, no organicismo que patenteiam e nos timbres “heróicos” que
nelas ressoam, a teleologia voluntarista que lhes deu alento. É precisamente um
re-enquadramento deste tipo aquilo que proponho.
Em guisa de conclusão: é dos ângulos que esmiucei, nesses outros tantos
planos e face a esses (e certamente em virtude de muitos outros) múltiplos tipos
de constrangimentos e pressões a que aludi que se tornam mais inteligíveis,
defendo, os processos de integração crescente da Europa e os seus vai e vens. O
meu ponto central é muitíssimo simples de enunciar. Só nos termos destas
conjunturas complexas é que se pode compreender que Estados poderosos e
ciosos da sua autonomia e dos seus interesses nacionais tenham voluntariamente decidido abdicar de parte da sua soberania, por apego a um projecto como o
da União Europeia263. É também perante dificuldades e soluções como aquelas a
263
Cabe aqui um curto comentário. Com recuo, sem dúvida que em nome de uma preserva-
ção abstracta e idealizada dessa soberania tradicional, alguns são os que têm vindo a suscitar
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
271
que fiz alusão que se tornam plenamente inteligíveis muitas das crises que hoje
assolam o laborioso processo de construção europeia.
Durante a Guerra Fria, a NATO desenvolveu recursos focados em consultas
políticas recíprocas dos Estados-membros da Aliança, outros virados para as
tomadas de decisão, outros ainda para planeamentos, coordenação e execuções
militares. Depois de ter terminado a Guerra Fria, as adaptações incluíram uma
redução no número de comandos, a formação de task forces conjuntas e a
constituição de “forças de intervenção rápida”. Porventura mais expressivo da
reorientação-reestruturação que a Organização sofreu, novos recursos foram
criados tais como, por exemplo, o “Parceria para a Paz”264. Quando foi instituída em 1949, a NATO diferia dos tradicionais pactos de ajuda mútua e garantia:
para além da sua missão de dissuasão e defesa em relação à União Soviética, a
Aliança devia também ajudar a construir paz e segurança entre os seus membros
como países democráticos. O ponto principal que venho tentando fazer ressaltar
é o de que é no interior do espaço em expansão da Paz kantiana, que a Aliança
delimita ao conter a Anarquia hobbesiana, que a União Europeia tem vindo a
medrar.
dúvidas quanto à exequibilidade do projecto. Muitos o têm feito em termos de um nacionalismo
primordialista apriorístico. Muitos, formalmente em termos afins (nomeadamente norte-americanos
de convicções realistas e neo-realistas), são ainda os que têm vindo a professar incredulidade na
viabilidade de uma integração que parece desafiar o interesse estrito e estreito de Estados, enquanto, e como, unidades políticas independentes. Estados esses que tais oponentes tendem além disso,
dando mostras de uma certa inércia, a reificar como os únicos actores internacionais possíveis numa
ordem que seria imutável desde o limiar dos tempos, num estado de natureza, que seria um
permanent state of war, inalterado pelo menos desde Atenas e a guerra do Peloponeso sobre a qual
escreveu Tucídides – a velha anarquia hobbesiana revisitada. O facto, porém, é que a União tem
vindo a progredir. Com avanços e recuos, é verdade; mas sempre num movimento cumulativo, pelo
menos até à crise presente desencadeada pela intervenção no Iraque liderada por norte-americanos
e britânicos e pela oposição radical e coordenada dos Estados francês e alemão. Veremos o que o
futuro nos reserva.
264
Para uma excelente discussão institucionalista pormenorizada das transformações incorri-
das pela NATO com o fim da Guerra Fria, o seu significado e o da sua sobrevivência para muitos
inesperada, ver Celeste A. Wallander (2000). Não será exagerado afirmar que foi esse segundo papel,
transformado e alargado, que desde então a NATO tem vindo assumir como função central.
272
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Em consonância com isto, insisti com alguma trivialidade na necessidade
imperativa de não deixar de tomar sempre em linha de conta a dimensão de
segurança e defesa se quisermos bem compreender a mecânica da construção
comunitária da Europa. Tentei todavia pôr em evidência o facto de que, para além
de as questões de segurança e defesa emergirem como problemas e motivações
de motu próprio, por assim dizer, elas operaram também indirectamente em
termos de uma causalidade estrutural menos evidente (mas nem por isso menos
eficaz). Não é nada difícil comprová-lo a nível macro, pelo menos negativamente.
Com efeito, de outra maneira tornar-se-ia impossível explicar a curiosa “dança
sincronizada” que tem levado a fascinantes evoluções conjuntas e históricas nos
vários processos paralelos de integração da Europa: a União Europeia e a NATO
foram tomadas como dois pontos altos (porventura os mais altos) deste complexo processo.
Para terminar, cabe-me novamente (agora em contexto devidamente alargado) trazer à superfície estas tão surpreendentes confluências sincrónicas. De
forma muito cursória e indicativa: temporal como geograficamente, e tanto no
arranque como na amplitude que tiveram, na delimitação dos diversos períodos
que as integram, como ainda nos timings e na orientação das várias fases por que
passaram sucessivos esforços de alargamento, a solidificação progressiva da
Europa comunitária andou de mãos dadas com a cristalização daquilo em que
veio a transformar-se a NATO de hoje. A União e a Aliança têm sido como que dois
pássaros a voar em conjunto ou, na minha metáfora alternativa, como dois
dançarinos a evoluir num pas de deux.
Não quer isto, evidentemente, dizer, que as duas entidades se confundam:
muito pelo contrário, trata-se de criaturas bem distintas. São todavia criaturas
que evidenciam paralelismos fascinantes. Por detrás das óbvias diferenças, tanto
de inclusividade geográfica como de âmbito funcional, a sintonização entre elas,
nas várias conjunturas em que têm coexistido, foi sempre (e mantém-se ainda)
muito nítida.
Essa sintonização emerge também a nível do pormenor. Verificámo-la além
do mais em todos os planos e parâmetros que atrás esbocei. Os lugares de
arranque e implantação desse processo em duas calhas de cristalização-consoli-
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
273
dação foram semelhantes. As lógicas que subtenderam ambas como que formam veios confluentes. As inflexões que sofreram coincidiram largamente. Nos
dois casos a emergência de um eixo franco-alemão não parece dissociável da de
um outro eixo, esse anglo-americano265. As suas divergências também não. A
evolução sincronizada em duas calhas tem sido de longa duração: no período
pós-bipolar, uma simples observação superficial revela-o, e essas marcadas
coincidências-concomitâncias de fundo mantiveram-se. Mutatis mutandis, mesmo uma resolução maior das imagens o põe em evidência. As frentes mais
problemáticas têm sido as mesmas; os espaços de expansão também, tal como
aliás as linhas de clivagem e de tensão. Para além das óbvias diferenças de
finalidade e de natureza funcional, só por hábito e miopia ou distracção as
poderíamos pensar como entidades verdadeiramente conceptualizáveis em separado uma da outra.
É verdade que, nos últimos tempos, sinais fortes de clivagens e fracturas se
têm feito sentir266. Não parece totalmente inevitável, no entanto, que as divergên265
Nem sempre, os factos mostram-no, de maneira totalmente não ambígua e linear. Um só
exemplo, anedótico. Em 1956, a intervenção franco-britânica no Suez, contra as medidas precipitadas de um Nasser em pleno auge pan-arabista, foi bloqueada e efectivamente neutralizada por
pressões económicas e políticas dos norte-americanos, que se lhe opunham. O historiador William
Hitchcock (citado por Charlemagne, 2003) contou que quando Anthony Eden, o Primeiro-Ministro
britânico, telefonou ao seu congénere francês, Guy Mollet, a informá-lo do facto e da decisão
britânica de retirar, interrompeu este último, que estava num encontro com Konrad Adenauer, o
Chanceler alemão. Ao regressar à sala, perturbado, e ao informar Adenauer do que acabara de ouvir
(contou Mollet a Hitchcock) K. Adenauer retorquiu-lhe que “ingleses e americanos” não eram “de
confiança”; e acrescentou: “agora é o momento de construirmos a Europa”.
266
Numa colectânea bastante interessante, Richard Haass (1999) já há alguns anos o vem
anunciando com base em estudos de caso relativos a vários cenários internacionais em que as
diferenças de perspectiva se começaram a tornar sensíveis. Como R. Haass então escreveu, a Europa
e a América estão “divided by more than an ocean when it comes to designing and carrying out [foreign]
policies”. Em resultado, afirmou premonitoriamente, “Americans and Europeans often work at cross
purposes”. Muito antes de R. Haass ou de R. Kagan, já em 1997 Irving Kristol tinha insistido que as
nações europeias eram “dependent nations, though they have a very large measure of local autonomy.
The term imperium describes this mixture of dependence and autonomy”. E concluiu, provocadoramente, “Europe is resigned to be a quasi-autonomous protectorate of the United States” (I. Kristol, 1997, op.
cit.: 1). Curiosamente, estas asserções não nos causam tanto espanto hoje como há cinco anos,
274
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cias entre os percursos da União Europeia e os da Aliança Atlântica continuem
a aumentar. Os Estados europeus “de Leste” que recentemente acederam,
em termos formais, ao estatuto de membros de ambas267, podem tornar-se no
ponto focal de uma pressão centrípeta importante para o que pode denominar-se, misturando metáforas, um realinhamento dos seus voos coordenados.
Os motivos para tanto são simples de equacionar. Para os Estados europeus de
leste as entradas na União Europeia, formalizadas a 16 de Abril de 2003, redundam em apostas políticas e económicas essenciais. Mas a nível de segurança e
defesa, a proximidade espacial e temporal da Rússia fá-los olhar além-Atlântico
na direcção da única entidade (a coligação transatlântica, que como é compreensível distinguem mal dos Estados Unidos da América) que os faz sentirem-se
seguros. O apoio que vocalizam em relação à NATO tem sido por isso explícito e
fervoroso. Na sua opinião virtualmente unânime, essa “lealdade” não se opõe à
que desejam edificar e nutrir no que toca à sua pertença à União Europeia:
complementa-a.
Mais tarde ou mais cedo parece inevitável um acordar generalizado para a
nova arrumação conjuntural, trazida pela crise recente, apesar de nem sempre
haver hoje disso consciência política – uma consciência porventura mais óbvia
em Estados histórica e geograficamente encostados ao colosso russo do que
noutros Estados europeus em posição e situação sistémica de algum modo
“isomorfa” (ou pelo menos estruturalmente equivalente). Bastará em princípio
uma polarização da conjuntura para que as correlações mais macro de forças se
tornem manifestas. Direcções e cenários plausíveis de mudança ir-se-ão tornar
muito mais nítidos. Modelos credíveis quanto a hipotéticas transformações poderão ser formulados com um maior grau de segurança; ou pelo menos com uma
época em que foram redigidas. Para um estudo magnífico e de algum modo avant la lettre quanto
ao futuro da articulação entre os Estados Unidos e a Europa no contexto de uma NATO em mudança,
ver o trabalho monográfico pós-realista mas também pós-institucionalista de Sean Kay (1997).
267
Muitos deles, aliás, antes incluídos tanto no “Parceria para a Paz” de NATO como na
largamente co-extensiva revoada de pactos e acordos de associação, mais ou menos estreita,
celebrados durante sensivelmente o mesmo período de tempo entre vários Estados não-comunitários e a União Europeia.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
275
menor margem de arbitraridade. E só então saberemos aventar eventuais
profilaxias, no quadro de uma contextualização de uma ou de outra maneira afim
daquela que aqui propus.
Uma breve consideração final. No quadro do que apelidei o “processo de
constitucionalização regional”, o momento que vivemos é daqueles que G. John
Ikenberry apelidou historical junctures. Trata-se de um verdadeiro momento
constituinte. Quando vistos nesse contexto, os sinais emitidos pelas partes são
preocupantes. Dos dois lados do Oceano, da França e Alemanha aos neo-conservatives norte-americanos, algumas vozes revisionistas insidiosamente radicais se têm erguido, desfiando a velha Aliança transatlântica em nome de um
mais antigo balance of power e de novas coalitions of the willing avulsas. Oxalá
tanto uns como outros vão perdendo depressa a capacidade de mobilizar vontades colectivas. Nisso está indexada a possibilidade de uma participação europeia
condigna na nova ordem “constitucional” internacional em construção. Nesta
como em tantas outras frentes, muito dependerá dos futuros ditames da Realpolitik
do Estado norte-americano. Tal como muito é também aquilo que irá depender
da capacidade dos líderes europeus em compreender esta fase no quadro da
dinâmica de um longo processo que para todos é crucial.
276
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Bibliografia
Garton Ash, Timothy (2003), “Anti-Europeanism in America”, The New York Review of
Books, February 13, 2003.
Asmus, Ronald D. e Pollack, Kenneth M. (2002), “The new Transatlantic Project”,
Policy Review 115, The Hoover Institution.
Barber, Benjamin (1996), Jihad vs. McWorld. How globalism and tribalism are reshaping
the World, Ballantine Books, New York.
Barkawi, Tarak e Laffey, Mark (1999), “The Imperial Peace: democracy, force and
globalization, European Journal of International Relations 5 (4): 403-434.
Barreto, António (2003), “Requiem”, O Público, 23 de Março de 2003.
Charlemagne (2003), “From Suez to Baghdad”, The Economist, 20 de Março, 2003.
____________ (2003a), “Divide and rule?”, The Economist, 26 de Abril, 2003.
____________ (2003b), “Après EU, le déluge?”, The Economist, 25 de Julho, 2003.
Costa Arsénio, António da (1988), “A União Europeia Ocidental: sinopse histórica e
devir existencial”, Nação e Defesa 48: 3-16.
Cutileiro, José (2003), “O fosso”, O Expresso, 8 de Março, caderno 2: 24.
Dowd, Alan W. (2000), “NATO after Kosovo: toward ‘Europe whole and free’”, American
Outlook Today, 1 de Janeiro, 2000.
Doyle, Michael (1996), “Kant, liberal legacies, and foreign affairs”, em (eds.) M. Brown,
S. M. Lynn-Jones e S. E. Miller, Debating the Democratic Peace, MIT Press.
Harris, Robin (2002), “The state of the special relationship”, Policy Review 113: 1-11,
The Hoover Institution.
(ed.) Haass, Richard N. (1999), Transatlantic Tensions: the United States, Europe and
Problem Countries, The Brookings Institution.
Hudson Institute (2002), “NATO and the European Union’s defense and foreign
policy identity: challenges and requirements through 2010”, Special Report.
Ignatieff, Michael (1993), Blood and Belonging: journeys into the new nationalism, The
Noonday Press, New York.
Ikenberry, G. John (2001), After Victory, Princeton University Press.
Kay, Sean (1998), NATO and the Future of European Security, Rowman & Littlefield
Publishing.
Kennedy, Paul (1989). The Rise and Fall of the Great Empires: economic change and
military conflict from 1500 to 2000, Vintage Books, New York.
Kissinger, Henry (1979), White House Years, Little, Brown & Company.
____________ (1995), Diplomacy, Little, Brown & Company.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
277
Kristol, Irving (1997), “The emerging American Imperium”, American Enterprise Institute
for Public Research.
Kupchan, Charles (2002), The End of the American Era. US foreign policy and the
geopolitics of the Twenty-first Century, Alfred A. Knopf, New York.
____________ (2002a), “The end of the West”, The Atlantic Monthly, November 2002.
(ed.) Kupchan, Charles (1998), Atlantic Security: contending visions, The Council of
Foreign Relations Press.
Larsen, Henrik (2002), “The EU: a global military actor?”, Cooperation and Conflict:
Journal of the Nordic International Studies Association, 37 (3): 283-302.
MacMillan, Margaret (2003), Paris 1919, London.
Marques de Almeida, João (1998), “A paz de Westfália, a história do sistema de
Estado moderno e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional 18 (2): 45-79.
____________ (2003), “A Europa kantiana não sobrevive ao fim da Aliança Atlântica”,
Nova Cidadania 16: 46-53.
____________ (2003), “Recensão do After Victory de Ikenberry”, Política Internacional
65, Lisboa.
Nye Jr., Joseph S. (1997), Understanding International Conflict. An introduction to
theory and history, Longman.
____________ (2002), The Paradox of American Power: why the world’s only superpower
can’t go it alone, Oxford University Press.
Parsons, Craig (2002), “Showing ideas as causes: the origins of the European Union”,
International Organization 56 (1): 47-84.
Philpott, Daniel (2001), Revolutions in Sovereignty, Princeton University Press.
Rato, Vasco (1998), “Mas elas são mesmo pacíficas?”, Política Internacional 18(2): 93-115.
____________ (2003), “Portugal e a crise iraquiana”, O Independente, Sexta-Feira, 21
de Fevereiro: 47.
Risse, Thomas (2000), “’Let’s argue!’: communicative action in world politics”,
International Organization 54 (1): 1-39.
Risse-Kappen, Thomas (1996), “Collective identity in a democratic community: the
case of NATO”, em (ed.) Peter J. Katzenstein, The Culture of National Security: norms and
identity in world politics: 357-399, Columbia University Press.
Schlesinger, Stephen (2003), Act of Creation, the founding of the United Nations: a
story of superpowers, secret agents, wartime allies and enemies and their quest for a peaceful
world, Westview Press.
Shaw, Martin (1997), The state of globalization: towards a theory of state
transformation”, Review of International Political Economy 4 (3): 497-513.
278
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Stonor Sunders, Frances (1999), Who Paid the Piper? The CIA and the cultural Cold
War, Granta Books, London.
Vilaça, José Luís e –Henriques, Miguel Gorjão (2001), Tratado de Amesterdão,
Almedina.
Wallander, Celeste A. (2000), “Institutional assets and adaptability: NATO after the
Cold War”, International Organization 54 (4): 705-735.
Walz, Kenneth (2000), “Structural realism after the cold War”, International Security 25
(1): 5-41.
Zakaria, Fareed (2003), “The arrogant empire”, Newsweek, 24 de Março, 2003.
Zelikow, Philip e Rice, Condoleezza (1995), Germany unified and Europe transformed:
a study in statecraft, Harvard University Press.
colecção BIBLIOTECA DIPLOMÁTICA
279
280
ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS