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História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o O filme como fonte histórica para o historiador. Um estudo de caso: “Memórias Póstumas” de André Klotzel. Ione A. M. Castilho Pereira Mestre em História/PUCRS ione_castilho@yahoo.com.br Mônica Karawejczyk Mestre em História/ PUCRS monicaka@terra.com.br Resumo: Este artigo pretende fazer uma reflexão sobre o uso de filmes pretensamente históricos como fonte de conhecimento da história. A projeção de películas como uma forma alternativa de se ensinar história tem seduzido muitos professores, mas esta crescente prática quase nunca é acompanhada de uma reflexão sobre o uso deste instrumento. Para alcançar esse intento, primeiro apresentamos uma breve reflexão sobre a questão do uso do filme como fonte histórica, seguido de uma tentativa de exemplificar o que foi debatido com um estudo de caso do filme brasileiro Memórias Póstumas dirigido por André Klotzel. Palavras-chave: Filme histórico, Memórias Póstumas, história do Brasil. História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o Através da apresentação do filme brasileiro Memórias Póstumas1 pretendemos responder a uma dúvida que nos acompanha desde os tempos da graduação, a saber, qual é a melhor maneira de os professores utilizarem um filme, supostamente histórico, para auxiliar a aprendizagem em uma aula de história? Também é proposta deste ensaio trazer alguns pontos para reflexão do uso de filmes como fonte histórica através da perspectiva de estudiosos do tema. A grande multiplicidade de fontes que vimos “florescer”, principalmente após os anos 60, é o que Peter Burke chama de virada em direção á antropologia da História Cultural, onde os historiadores têm cada vez mais contato com uma miríade de novos documentos, tais como fotografias, vestimentas, música, os sentimentos, entre tantos outros2. Assim materiais antes desprezados e menosprezados, passaram a fazer parte do rol de fontes à disposição dos historiadores. Neste ínterim os filmes passaram a ser considerados mais do que um mero entretenimento e passaram a ser utilizados tanto pelos historiadores como fonte, como principalmente pelos professores de história que os utilizam nas suas aulas como mais uma forma de estimular os alunos para o aprendizado. Antes de qualquer coisa, gostaríamos de esclarecer alguns pontos. O mais importante deles é de que maneira a “imagem cinematográfica” será entendida neste breve ensaio, uma vez que o filme Memórias Póstumas pretende retratar a sociedade do século XIX? Esta constatação fez surgir uma primeira dúvida e gerou algumas perguntas que tentamos responder antes de continuar a nossa exposição. Assim nos questionamos como deveríamos analisar tais imagens: como a realidade do século XIX? Momento retratado no filme, ou como uma representação da sociedade do século XIX? Ou ainda como a representação da sociedade contemporânea do século XXI (afinal o filme foi lançado comercialmente no ano de 2001)? Ou ainda como uma transposição de uma obra literária para o cinema? Uma vez que o filme é baseado numa obra de Machado de Assis intitulada Memórias Póstumas de Brás Cubas? 1 Memórias Póstumas. Com: Reginaldo Faria, Petrônio Gontijo, Marcos Caruso, Stepan Nercessian, Viétia Rocha, Débora Duboc, Otávio Muller, Walmor Chagas, Sônia Braga, Nilda Spencer, Joana Schnitman. 2001, 101 minutos. Direção, roteiro, edição e produção de André Klotzel baseado no livro de Machado de Assis Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2 Peter Burke emprega este termo ao relatar que “um dos aspectos mais característicos da prática da história cultural entre as décadas de 1960 e 1990 foi a virada em direção à antropologia”. BURKE, Peter. O Que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 44. O autor ainda aponta que “a virada antropológica também está visível na história da literatura, da arte e da ciência.” p. 58. 1 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o Para tentar responder a este primeiro questionamento, consultamos vários autores que tratam da questão do cinema, das imagens fotográficas e da literatura, quando elas estão sendo utilizadas como fonte pelos historiadores. Entre eles destacamos Boris Kossoy e Philippe Dubois para o caso das imagens fotográficas; Sandra Pesavento e Jacques Le Goff para as fontes literárias e um artigo de Mônica Almeida Kornis que trata da questão do cinema e da história e por fim um capítulo do livro Fontes Históricas de autoria de Marco Napolitano sobre as fontes audiovisuais. O resultado destas reflexões e a resposta para a pergunta inicial: qual a sociedade retratada no filme pode ser conferida a seguir. Queremos deixar claro que este ensaio é apenas uma tentativa de se entender melhor o tema e é assim que ele deve ser avaliado e considerado pelos leitores. A PROCURA POR UM SUPORTE TEÓRICO A incorporação de novos documentos pelos historiadores nem sempre foi acompanhada por uma metodologia de análise apropriada para cada material. Desde os anos setenta os historiadores e, principalmente os professores de história, têm cada vez mais se utilizado de filmes ditos históricos para ilustrar as suas aulas. Essa constatação nos levou a um questionamento da forma como esta incorporação tem sido feita. Percebemos claramente que , vezes sem conta, tomamos o que vemos em um filme como a realidade do que aconteceu. Mas porque isso acontece? Possivelmente pela maneira como nos envolvemos com a trama e com o que está acontecendo na tela, o que nos leva a torcer pelo mocinho e detestar o vilão. Assim, ao mexer com as nossas emoções passamos a acreditar que tudo o que é retratado no filme é verdade, seja que verdade seja esta. A linguagem cinematográfica tem o dom de nos levar para um outro mundo, ainda mais quando vemos um filme supostamente histórico, muitas vezes nos convencemos de que aquilo que está sendo exposto realmente aconteceu, e essa é a principal razão por ouvirmos tantas vezes, saindo de uma sala de cinema a expressão: “agora eu entendi o que aconteceu...” Não se pode negar que, tal como uma obra literária, os filmes buscam cativar o seu público com uma boa trama. Trama essa que para ser verossímil deve conter elementos de identificação com a sociedade em que pretende “vender” o seu produto, como por exemplo, os ingressos para o cinema. E é exatamente nesta trama que o historiador pode identificar os traços ou os rastros que a visão de mundo dos produtores do filme deixa “escapar” sobre a sua 2 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o sociedade. Toda a magia dos filmes às vezes nos leva a acreditar que eles podem ser reais, que retratam a vida e a história. Isso pode ser explicado pela carga emotiva que a ação retratada na tela nos leva a ter. Ao “participar” da vida dos personagens, ao se deixar cativar pelo que vai passando na tela nos identificamos com os sentimentos, entendemos as motivações, participamos da ação, enfim nos envolvemos. E assim como espectadores geramos uma cumplicidade com os personagens e com a trama narrada no filme. Levando em consideração o que o historiador francês Jacques Le Goff relata de que “todas as mudanças profundas da metodologia histórica são acompanhadas de uma transformação importante da documentação”3 , podemos refletir então sobre a incorporação de filmes no arsenal de consulta tanto do historiador, quanto do professor de história. Acreditamos que ao se trabalhar as imagens de um filme como um documento histórico se deve levar em conta alguns métodos já utilizados na análise da literatura e das fontes iconográficas. E mais, se as imagens de um filme tentam mesmo retratar o cotidiano (seja este de qualquer época histórica), nada melhor do que analisá-las para captar o “espírito” da época, pois como lembra Sandra Pesavento, apesar da literatura ter um forte acento de ficção, esta não seria o avesso do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os limites da criação e da fantasia são mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador [...]. Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta [...] o que nela se resgata é a re-apresentação do mundo que comporta a forma narrativa. 4 Assim para Pesavento tanto a literatura quanto a história ofereceram papéis diversos na construção da identidade5, eles se apresentam “como representações do mundo social.” 6 Ao extrapolar essas explanações para o caso dos filmes se verifica que, do mesmo modo que a literatura, a imagem cinematográfica é uma representação do mundo social. Assim é para o conceito de representação que devemos nos ater, afinal é isso que torna possível um novo olhar que elege como fonte de conhecimento outros materiais e não só os tradicionais livros de história, pelo menos para o uso em sala de aula. 3 LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 1990, p. 135. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Relação entre História e Literatura e Representação das Identidades Urbanas no Brasil (século XIX e XX). In: Revista Anos 90, Porto Alegre, n. 4, dezembro de 1995, p. 117. 5 Como identidade Pesavento entende: “(...) um processo ao mesmo tempo pessoal e coletivo, onde cada indivíduo se define com relação a um ‘nós’,que, por sua vez, se diferencia dos ‘outros’”. PESAVENTO, op. cit., p. 115. 6 Idem, Ibidem, p. 115. 4 3 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o Mas devemos também atentar para o fato de que um filme, além de palavras, também trabalha com imagens (sendo estas o seu grande diferencial de outras fontes). Na procura por um melhor esclarecimento de como se agregar fontes iconográficas aos estudos históricos encontramos a obra de Boris Kossoy que explora o mundo das fotografias. Este autor salienta que: “o documento fotográfico é uma representação a partir do real, uma representação onde se tem registrado um aspecto selecionado daquele real, organizado cultural, técnica e esteticamente, portanto ideologicamente”.7 Assinala ainda que quaisquer que sejam os conteúdos das imagens devemos considerá-las sempre como [...] fontes de informação decisivas para seu respectivo emprego nas diferentes vertentes de investigação histórica [...]. As imagens fotográficas [...] nos mostram um fragmento selecionado da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram (estética/ideologicamente) congelados num dado momento de sua existência/ocorrência. 8 Kossoy também indica que “a imagem fotográfica fornece provas, indícios, funciona sempre como documento iconográfico acerca de uma dada realidade. Trata-se de um testemunho que contem evidências sobre algo”.9 Assim podemos considerar que a imagem fotográfica é ao mesmo tempo ícone e índice, tal como descreve Philippe Dubois10, pois guarda uma marca, um traço, um rastro do real, que deixou suas marcas no papel fotográfico, nas páginas da revista, na projeção feita na tela e, por isso mesmo traz em si a idéia de semelhança com o real, se confundindo mesmo no senso comum, com o real, seu referente. Outra autora que trabalha neste mesmo viés interpretativo é Mônica Almeida Kornis. Encontramos no seu artigo Cinema e História: um debate metodológico importantes contribuições para o nosso entendimento do tema, pois segundo seu relato: [na] abertura da história para novos campos, o filme adquiriu de fato o estatuto de fonte preciosa para a compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico. Os vários tipos de registro fílmico - ficção, documentário, cinejornal e atualidades vistos como meio de representação da história, refletem contudo de forma particular sobre esses temas. Isto significa que o filme pode tornar-se um documento para a pesquisa histórica, na medida em que articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica. Esta definição é o ponto de partida que permite retirar o filme do terreno das evidências: ele passa a ser visto como uma construção que, como tal, altera a realidade através de uma articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento. Os vários elementos da confecção de um filme - a montagem, o enquadramento, 7 KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 59. Ver também do autor KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 8 KOSSOY, Boris. Realidade e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 21. 9 Idem, Ibidem, p. 33. 10 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Papirus, 1993. O autor explora essas idéias no capítulo: “Da verossimilhança ao índice: pequena retrospectiva histórica sobre a questão do realismo na fotografia.” 4 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o os movimentos de câmera, a iluminação, a utilização ou não da cor - são elementos estéticos que formam a linguagem cinematográfica, conferindo-lhe um significado específico que transforma e interpreta aquilo que foi recortado do real. 11 A autora lembra que o reconhecimento do cinema como um novo objeto da análise histórica e sobretudo o esforço de examinar mais atentamente as questões inerentes à utilização dos documentos cinematográficos inseriu-se, [...] no campo de preocupações da Nova História francesa. 12 Na busca de uma metodologia para se trabalhar com o filme como fonte histórica a autora destaca: Um primeiro aspecto é o reconhecimento de que, tratado como documento histórico, o filme requer a formulação de novas técnicas de análise que dêem conta de um conjunto de elementos que se interpõem entre a câmera e o evento filmado. As circunstâncias de produção, exibição e recepção envolveriam toda uma gama de variáveis importantes que deveriam ser consideradas numa análise do filme. Na base desta postura, evidentemente, está a recusa ao princípio de que a imagem é reflexo imediato do real, e que portanto ela traduz a verdade dos fatos. Um segundo aspecto comum é o reconhecimento de que todo filme é um objeto de análise para o historiador. Com isso, não só os cinejornais e documentários, mas também os filmes de ficção, se tornam objeto de análise histórica, em última instância pelo fato de nenhum gênero fílmico encerrar a verdade, não importa que tipo de operação cinematográfica lhe deu origem.13 Marco Napolitano salienta que para a análise sociológica do filme deve-se ter em mente algumas perguntas básicas, do tipo: Como o filme representa, por meio dos seus personagens, os papéis sociais que identificam as hierarquias e lugares na sociedade representada? Quais os tipos de conflitos descritos no roteiro? Quais as maneiras como aparecem à organização social, as hierarquias e instituições sociais, como se dá seleção de fatos, eventos tipos e lugares sociais encenados? Qual é maneira de conceber o tempo: histórico-social ou biográfico? O que se pede ao espectador: identificação, simpatia, emoção, rejeição, reflexão, co-ação?14 O autor segue ainda dizendo que mesmo não sendo especialistas em cinema, outros historiadores destacam a capacidade dos filmes de não apenas registrar o passado e o contexto social, mas de criar uma memória histórica própria. Instituindo desta maneira lugares de memória, onde atores, diretores e produtores, bem como o público que prestigiou os filmes, “se esforçaram em retornar e monumentalizar certos acontecimentos [...] problemáticas da 11 KORNIS, Mônica Almeida. Cinema e História: um debate metodológico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.5, n.10, 1992, p. 240. 12 Idem, Ibidem, p. 243. Para essa discussão consulte também LE GOFF, Jacques. História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. 13 KORNIS, op. cit., p. 244. Grifo nosso. 14 NAPOLITANO, Marco. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo, Contexto. 2005, p. 246-247. 5 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o história do Brasil. Propiciando muito mais formas de memórias – oficial ou debochada – do que a reflexão histórica daquele momento da história brasileira”. 15 Através da apresentação dessas breves reflexões acreditamos ser válido afirmar que o filme, a obra literária e a fotografia são apenas algumas das novas fontes que o historiador tem se valido para melhor compreender um modo de pensar diverso do seu. De forma que ao analisar um filme como “fonte histórica” se deve ter todos esses conceitos bem claros. Restanos agora tentar aplicar estes métodos na “leitura” da sociedade descrita no filme Memórias Póstumas. A SOCIEDADE REPRESENTADA NO FILME Memórias Póstumas Levando-se em conta todos os cuidados metodológicos expostos acima, pode-se agora “mergulhar” no filme Memórias Póstumas e tentar desvendar qual era a sociedade retratada na película. O filme procura retratar a sociedade na metade do século XIX no Brasil (18051869) mais especificamente na corte do Rio de Janeiro, através dos olhos e ouvidos de um representante da alta sociedade – Brás Cubas. Porém antes de se iniciar a apresentação da sociedade no filme em questão, gostaríamos de destacar alguns aspectos do autor da obra em que o roteiro do filme foi inspirado, ou seja, o escritor Machado de Assis. Joaquim Maria Machado de Assis16 foi jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo. Nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. A obra de Machado de Assis abrange, praticamente, todos os gêneros literários. Em 1881, com a idade de 42 anos, publica Memórias Póstumas de Brás Cubas, anteriormente escrito em forma de folhetim na Revista Brasileira de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880. O que se tem retratado no seu livro é uma crítica a sociedade de sua época. Machado de Assis escreve sobre um tema que conhecia bem. Apesar de localizar temporalmente os seus personagens no início do século XIX, fala da sociedade da sua época com uma fina ironia, desnudando a corrupção, o aspecto negativo que o trabalho representava nesta sociedade escravocrata, além das relações amorosas e dos comportamentos impostos para se fazer parte desta sociedade. 15 Idem, Ibidem, p.247. Esses dados foram retirados do site: http://www.machadodeassis.org.br/2005/biografia4.htm. Acesso em 30/04/2007. 16 6 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o Como já salientava Mônica Kornis as imagens de um filme podem ser consideradas como uma “[...] fonte preciosa para a compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico”.17 Dessa forma o que se pode depreender da visão da sociedade do século XIX, nas imagens propostas neste filme? Afinal ele nos mostra cenários muito bem preparados, o que denota o cuidado da produção do filme neste quesito. Assim acreditamos que se pode entrever o “espírito da época” através da relação que entre o personagem-narrador Brás Cubas e a narrativa de suas peripécias durante sua vida que percorre uma boa parte do Segundo Reinado no Brasil. Através de cenas bem escolhidas temos representado (diante dos nossos olhos) uma sociedade escravocrata, que trata com naturalidade a relação entre os senhores com seus escravos18, também são privilegiadas cenas em que aparecem os escravos de ganho trabalhando em várias funções pelas calçadas do Rio de Janeiro. Os escravos são mostrados sempre trabalhando enquanto os homens brancos da alta classe se entediam e buscam prazeres, por exemplo, numa ida ao teatro, em saraus, nos bailes, no jogo, em piqueniques ou ainda em passeios ao ar livre. Outro aspecto bem trabalhado no filme aponta para a formação dos jovens da elite. A educação desta era complementada na Europa – de onde se voltava bacharel e pronto para assumir um cargo público, para escapar do tédio e “fazer” alguma coisa, como é chamada a atenção no filme. O trabalho é representado como algo de classes inferiores, tendo um aspecto totalmente negativo. Na narrativa do filme também é salientado a relação homem - mulher. Uma mulher para ser aceita na sociedade e conquistar um bom casamento deveria ser pura, casta e perfeita, se esta possuísse qualquer defeito físico já era descartada do “jogo” dos interesses. A maioria dos casamentos era arranjada, o filme retrata que todo homem para exercer um cargo público e se relacionar na sociedade deveria ser casado. Neste negócio do casamento, a mulher era vista como um “bilhete premiado” que traria fortuna e respeitabilidade para o homem, além de lhe dar filhos, vistos como uma continuidade de sua própria vida e da sua obra. 17 KORNIS, Op. cit, p. 240. Esta relação pode ser observada na cena em que Brás Cubas ainda menino cavalga em sua sala um negrinho como se fosse um cavalo, ou ainda nas cenas domésticas em que os escravos aparecem servindo discretamente os seus senhores. 18 7 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o Outro aspecto salientado no filme é a hipocrisia da sociedade. Enquanto para a mulher casadoira eram impostos vários empecilhos no seu relacionamento com um homem, afinal uma “moça de bem” jamais poderia ser vista em companhia masculina sem uma acompanhante, o filme mostra a relação do jovem Brás Cubas com uma cortesã, que é sustentada por vários amantes. O adultério é abordado no filme como mais um dos “vícios” desta sociedade competindo de igual para igual com a corrupção, o ócio, a preguiça e a intriga. Esses são alguns dos aspectos que nos chamaram a atenção no filme, cremos que através da sua exposição o diretor queria salientar a sociedade brasileira, considerada corrupta tento pelo olhar tanto Machado de Assis no século XIX quanto de André Klotzel no século XXI. Um outro aspecto que nos chamou a atenção é o porquê dessa obra de Machado de Assis ter sido escolhida pelo diretor para ser eternizada numa película? Talvez pela identificação da sociedade ali retratada e da sociedade atual em que vivemos, afinal apesar das diferenças óbvias de regime de governo – do Império e da República, ainda convivemos com a corrupção e a alienação das classes altas em relação ao que acontece no país e com o povo, tratado e retratado sem nenhuma ênfase pelos governantes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim um filme pode ser apresentado em sala de aula pelos professores de história, não só como um acessório que mais serve para ilustrar o conteúdo das aulas e passar o tempo, mas sim como mais uma ferramenta que auxilia no ensino da história. Se levarmos em conta um antigo provérbio chinês de que uma imagem vale mais que mil palavras, vemos a importância de se incorporar às imagens cinematográficas em sala de aula até como um meio de fixação da matéria na mente dos alunos. Gostaríamos de encerrar esta reflexão salientando que devemos analisar um filme, não como “espelho” da realidade nem mesmo como um “veículo” neutro das idéias do diretor. Afinal concordamos com Marco Napolitano quando este expõe que o filme não passa de um “conjunto de elementos, convergentes ou não, que buscam encenar uma sociedade, seu 8 História, imagem e narrativas N 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br o presente ou seu passado, nem sempre com intenções políticas ou ideológicas explícitas”. 19 E é com tais palavras que encerramos a nossa análise. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Ensaios Críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BITTENCOURT, Luciana. Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa antropológica. In: LEITE, Miriam L. M, FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas: Papirus, 1998. BURKE, Peter. 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