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Sangue em Eldorado

O governador Almir Gabriel, do Pará, mandou
a PM desocupar uma estrada no sul de seu
Estado. Saldo da operação de trânsito
rodoviário: uma carnificina com duas
dezenas de sem-terra mortos e 51 feridos

Monica Bergamo e Gerson Camarotti, de Eldorado dos Carajás

Recolhidos num posto do Instituto Médico-Legal de Marabá, os corpos de Eldorado dos Carajás trazem as marcas de um massacre. Manchas roxas informam que tomaram chutes e pontapés, enormes buracos de bala e manchas de pólvora comprovam que foram dados tiros à queima-roupa, membros mutilados e cabeças arrebentadas denunciam uma selvageria além de qualquer razão ou limite. Os homens e as mulheres atacados na floresta, que deixaram sangue e pedaços de cérebro espalhados pelo chão e pela relva, são esses brasileiros chamados de sem-terra, cidadãos que andam descalços, têm as roupas sujas de barro e só costumam ser notícia sob a forma de cadáver.

Na terça-feira passada, 1 500 deles ocupavam uma rodovia no Pará para protestar contra a demora do governo federal em assentar suas famílias. Na tarde daquele dia, o governador Almir Gabriel tomou uma decisão que mudou sua biografia e envergonhou o Brasil. Tucano com um respeitável passado de democrata, Ga-briel deu a ordem que o transformou no promotor do "Carandiru da Amazônia". "Desobstruam a estrada", determinou o governador, em conversa com dois auxiliares. No dia seguinte, os policiais chegaram a Eldorado dos Carajás. Vinham de dois pontos diferentes e puderam cercar os sem-terra pela frente e por trás. Atiraram primeiro para o alto, para assustar. Depois para baixo, para ferir. Não se contabilizou o número de assustados. Mas, até o fim de semana, já haviam sido contabilizados dezenove mortos e 51 feridos.

Uma perícia realizada pelo legista Nelson Massini, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, informa que nem todos os dezenove mortos perderam a vida no confronto. Em sua análise, pelo menos dez deles – mais da metade das vítimas – foram chacinados. Três morreram com balas na cabeça, em tiros a curta distância: um na nuca, um no olho direito, o outro na cabeça. É a prova clara de que houve execução. "Execução sumária", explica o professor Massini. "Tiros de precisão. Houve excessos e foi brutal." Outros sete tiveram seus corpos retalhados a golpes de foice e estavam estraçalhados. O perito anotou: esmagamento de crânio, costas abertas, braços quebrados, mutilações. Pelos ferimentos, é possível reconstituir como algumas mortes ocorreram. As vítimas já estavam dominadas, sem condições para se defender ou reagir, desarmadas, quando foram atacadas com "golpes cortantes".

TIRO NO ROSTO – O primeiro a morrer era conhecido apenas pelo primeiro nome, Amâncio, e um apelido, "O Surdo". Amâncio era realmente surdo e morreu desnorteado. Percebia o corre-corre, mas, sem ouvir os disparos, demorou para saber o que ocorria e tentar fugir. O primeiro tiro acertou seu pé direito. "A gente gritava para ele correr, mas não adiantava. Os soldados chegaram perto e atiraram na cabeça", diz Francisco Clemente de Oliveira, 20 anos, agricultor em Serra Pelada, que testemunhou a morte. Outro que morreu no início também era conhecido apenas pelo primeiro nome, Lourival. Alvejado, desabou aos pés de Raimundo Gouveia, que o conheceu no acampamento: "Ele caiu de bruços. Quando o virei, estava com a boca aberta, sangrando".

Casado e pai de uma menina de 4 anos, Robson Vitor Sobrinho, de 25 anos, tinha os cabelos um pouco compridos e isso fez diferença ao tentar escapar dos policiais. "Ele foi agarrado pelos cabelos e jogado no chão. Levou um tiro no braço e outro na cabeça", diz Elka de Fátima, 35 anos, amiga de Robson. A mulher de Robson, Francinete dos Santos, empregada doméstica, foi reconhecê-lo no hospital de Curionópolis e constatou os dois tiros. Antes de sair, aos prantos, arrancou do pescoço do marido um cordão preto com dentes de porco selvagem que Robson carregava há anos. "Ele não tinha família, como eu, e me convidou para montar uma", lembra a mulher.

O lavrador José Nunes da Silva correu quando levou um tiro de raspão. A mulher e os filhos, de 6 e 8 anos, já se haviam embrenhado no mato. "Não olhei para trás e saí correndo também. Corri mais de cinco horas. Entrei num riacho e só parei quando estava com água pela cintura", contou ele à repórter Andrea Barros, de VEJA. Maria Abadia Barbosa, de 57 anos, estava escondida numa cabana de madeira quando viu o filho Júlio César, de 23 anos, correndo dos tiros. Ela deixou o abrigo para buscar o rapaz. No meio da fuzilaria, abraçaram-se. Maria levou dois tiros na perna e Júlio César teve o rosto ferido a bala.

Muitos dos depoimentos sobre o massacre, colhidos junto aos sobreviventes em locais e momentos diferentes, coincidem até em detalhes. A agressividade policial aumentava à medida que os sem-terra fugiam. Líder dos sem-terra, apesar da pouca idade, 17 anos, o adolescente Oziel Pereira foi arrancado da casa onde se escondia e, algemado, começou a apanhar de um grupo de policiais. Um deles puxou o cabelo do rapaz e outro atirou. A cena é relatada por Maria e confirmada por Josimar Pereira Freitas, outro sobrevivente. Um advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, reconheceu Oziel sexta-feira entre os corpos enfileirados no Instituto Médico Legal Renato Chaves, em Marabá. "Ele tinha dois buracos de bala nos olhos e outro na testa. Só o identifiquei pela roupa. Via-se uma massa de carne disforme no lugar onde havia sido seu rosto", relata Carlos Amaral Júnior, o advogado.

POR ÔNIBUS E COMIDA – Levando mudas de roupa em sacos plásticos, lonas pretas para abrigos noturnos e um pouco de comida, no dia 8 de abril um grupo de 1 500 sem-terra acampados na Fazenda Macaxeira, em Curionópolis, resolveu deixar o lugar para ir em passeata até Belém. Na capital paraense, o grupo, que incluía mulheres e crianças, pretendia cobrar desapropriações no sul do Estado. Batizada de "Marcha para Belém", a caminhada era mais uma daquelas passeatas em que o importante não é a chegada, mas o trajeto. Por onde passaram, os sem-terra deram mostras de organização, chamaram a atenção da população e também provocaram cenas de baderna. Três dias depois da partida, por exemplo, saquearam um caminhão com 16 toneladas de frutas. "Foi um ato simbólico", tenta justificar Jorge Néri, da direção estadual do MST, que acompanhava a marcha. "Queríamos laranjas para as crianças, que estavam com fome."

Na noite de segunda-feira da semana passada, sete dias e 40 quilômetros após a partida, os sem-terra resolveram montar acampamento no local que, 48 horas depois, seria o cenário da tragédia. Estavam a 5 quilômetros de Eldorado dos Carajás, próximo ao trevo das rodovias PA 150 e 275, a principal artéria do Estado, e também tinham mudado de idéia. Cansados de caminhar com toda a tralha nas costas, e apenas à noite, pois não queriam cansar as crianças, em vez de seguir a pé até a capital, a uma distância de 650 quilômetros, resolveram pedir ônibus ou pelo menos caminhões ao governo. Para apressar o pedido, bloquearam a PA 150 por quinze horas. Foi quando apareceu o major José Maria de Oliveira, comandante de um quartel da PM na região. O major estava com boa vontade. Disse que faria o possível para arrumar cinqüenta ônibus e 10 toneladas de alimentos – quantidade suficiente para alimentar aquela multidão por uma semana. Os sem-terra pagaram na mesma moeda. Saíram do asfalto e montaram acampamento fora da estrada. O tráfico na PA 150 até se normalizou, por algumas horas.

LICENÇA PARA MATAR – No dia seguinte, o governo endureceu. De manhã, um tenente foi ao acampamento para informar que o acordo estava desfeito e nada mais seria entregue. Nem ônibus nem comida. Os sem-terra voltaram para o asfalto. Às 15 horas, alguns ônibus se aproximaram. Mas, em vez de cinqüenta, eram dois, mais uma caminhonete. E, em lugar de alimentos, traziam sob o comando do major Oliveira 68 homens, armados com duas escopetas, quatro metralhadoras, cinqüenta fuzis e revólveres. O comboio da PM estacionou a 500 metros do acampamento. Pelo sentido oposto da estrada, uma hora e meia depois, chegaram mais três ônibus e uma caminhonete, saídos de Marabá. Sob a chefia do coronel Mário Collares de Pantoja, comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar da cidade, chegavam mais 200 homens. Chamavam a atenção pelo que portavam – revólveres e metralhadoras – e também pelo que haviam deixado nos alojamentos. Os policiais haviam arrancado do bolso da camisa a tira de pano costurada sobre velcro que os identifica, isto é, estavam com licença para matar sem que pudessem ser reconhecidos mais tarde.

Numa primeira tentativa de negociar, o major Oliveira se aproximou dos manifestantes, mas foi recebido a pau e pedra. "A gente só fez isso porque nunca imaginou que eles fossem atirar", diz o sem-terra Gouveia. Do lado contrário, apareceram os policiais comandados por Pantoja. "A tropa de Marabá chegou jogando bombas de gás lacrimogêneo. Eles não foram para negociar, chegaram atirando", diz a jornalista Marisa Romão, da TV Liberal, que cobriu o episódio e, num ato de coragem, em pleno tiroteio, tentou convencer a PM a manter a cabeça fria.

Quando estudantes ou funcionários públicos em greve saem em passeata na Avenida Presidente Vargas, no centro de Belém, a polícia também é chamada para garantir a circulação de automóveis, ônibus e caminhões. Seus homens, que portam escudos, coletes e capacetes da tropa de choque, trazem bombas que fazem barulho, bombas que soltam a fumaça que provoca ardência nos olhos. Nada de revólver na mão. Muito menos metralhadora. Com os sem-terra, foi e era para ter sido diferente. "Se encontrassem resistência, eles estavam autorizados a reagir e inclusive atirar se isso fosse necessário", declarou ao Jornal do Brasil o secretário de Segurança do Pará, Paulo Sette Câmara.

CULPANDO O MORDOMO – "Quando começamos a reagir, jogando pedras, foi para acertar mesmo. A gente disse que não ia sair e aí piorou tudo", diz José Nunes da Silva, de 39 anos, que levou um tiro de raspão na perna direita e acabou internado no hospital municipal de Curionópolis. Os sem-terra bateram em retirada quando começaram a tombar as primeiras vítimas. Eram 18 horas de quarta-feira quando a polícia parou de atirar. Foram duas horas de confronto. Os que estavam caídos – mortos ou feridos – começaram a ser levados pelos policiais para o acostamento, onde se formou uma pilha de corpos. Na pista, só sangue, vísceras e massa encefálica. Os que estavam de pé foram levados para os ônibus. Alguns corpos – entre os quais o de um lavrador que, prendendo a respiração, se fez passar por morto e sobreviveu – foram transportados do acostamento para a carroceria de um caminhão. Cerca de cinqüenta pessoas aprisionadas pelos policiais foram colocadas de bruços sobre o asfalto e algumas levaram chutes e tapas. Os policiais gritavam palavrões, espancavam e humilhavam.

Às 19 horas, a rodovia PA-150 já estava liberada, como pedira o governador Almir Gabriel, mas havia muito sangue e muita massa encefálica sobre o asfalto para se fazer uma festa. Para dar a impressão de que se cometera violência de parte a parte, a PM e o próprio governador fizeram circular a versão de que pelo menos um policial havia morrido no conflito. Mentira. Mais uma vez, o que se produziu, no Pará, foi aquela troca de tiros em que só há mortos de um lado. Como um grã-fino que sempre coloca a culpa no mordomo quando alguma coisa sai errada durante um banquete, Almir Gabriel decidiu responsabilizar um coronel da PM pela violência e pelas mortes. Na noite de quinta-feira, correligionários do governador, como o senador pernambucano Carlos Wilson, divulgaram a versão, muito comovente, de que Gabriel chorou na noite de quarta-feira ao fazer um relato do ocorrido ao presidente do PSDB, Artur da Távola. Muitas pessoas até soluçaram de pena.

CORO DE CADÁVERES – Com suas foices e suas lonas pretas, os sem-terra morrem como mártires, com as roupas ensangüentadas, os corpos machucados, mas suas almas têm revelado um estranho poder para encantar as autoridades tucanas que aparecem em seu caminho. Na manhã de quinta-feira passada, o presidente Fernando Henrique Cardoso estava em viagem de propaganda do Comunidade Solidária quando pediram que falasse sobre o massacre. Como um sociólogo debruçado sobre personagens de uma tese acadêmica, e não pessoas de carne e osso, com sonhos de um futuro melhor, filhos para criar e uma vida para tocar, Fernando Henrique classificou os sem-terra e a PM de representantes do "Brasil arcaico", em oposição ao "moderno", do qual se considera representante, talvez condutor. O presidente só mudou de atitude depois que outros "modernos" se mostraram sinceramente chocados com o que ocorrera com os "arcaicos". Quando o assunto se tornou manchete em todas as emissoras de rádio e TV, inclusive internacionais, Fernando Henrique desceu de seu gabinete no Planalto para dizer que considerava o episódio "inaceitável, injustificável, e que constrange o país e o presidente da República".

O massacre dos sem-terra foi mesmo inaceitável, injustificável, envergonhou o país e, descobriu-se com quase 24 horas de atraso, também constrangeu Fernando Henrique. Na sexta-feira passada, num reconhecimento de culpa, o governador do Pará anunciou um projeto para pagar pensão vitalícia às famílias das vítimas. A Fazenda Macaxeira, origem de todo o conflito, será finalmente desapropriada e, em Curionópolis, haverá túmulo de graça para a família que quiser enterrar o marido ou o filho por ali. O doloroso, na rapidez dessas medidas, na facilidade com que são anunciadas, é a visão de que homens pobres, sem sapatos e mãos calosas, só conseguem ser ouvidos quando formam um coro de cadáveres massacrados.

Sindicato-partido do MST

Como um partido de feição bolchevique, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra tem estrutura, disciplina, organização e até aparelhos clandestinos. Não fosse assim, não teria como manter seu líder José Rainha, diversas vezes condenado à prisão preventiva, longe da polícia – até que seus advogados conseguissem um habeas-corpus para evitar que fosse colocado atrás das grades. Como um sindicato, o MST tem uma plataforma de um ponto só – reforma agrária. Criado há doze anos, numa química em que se uniram antigos militantes comunistas com católicos radicais e petistas, o movimento mostra números que impressionam. De lá para cá, conquistou o assentamento de 139 000 famílias – é um total superior ao de qualquer presidente da República, em qualquer época. O MST usa armas e tem uma tradição de enfrentar a polícia.

A direção nacional é composta de quinze militantes. Mas, convencido de que o atual regime de liberdades é inseguro para organizações de esquerda, o movimento alega razões de segurança para só divulgar o nome de cinco deles – João Pedro Stedile, Gilmar Mauro, Walter Assunção, Enio Bonemberger e, é claro, José Rainha. Como é quem mais aparece, Rainha acabou se tornando a cara dos sem-terra. Na sede nacional, em São Paulo, no entanto, o comandante-em-chefe é o economista gaúcho João Pedro Stedile. Barbudo, fala mansa, pequenos olhos azuis, ele é o pulso do MST. Sua orientação é manter a autonomia e livrar-se de pechas como o boato, espalhado pelo governo, de que haveria infiltração de terroristas do Sendero Luminoso, do Peru, ou zapatistas mexicanos em seus flancos.

O MST é capaz de mandar militantes para fazer curso em Cuba e, ao mesmo tempo, enviar emissários para abraçar o ex-presidente José Sarney. Suas cartilhas são recheadas de textos de revolucionários da América Central, especialmente sandinistas, mas, mesmo quando se trata do PFL, o MST faz e desfaz acordos em função, única e exclusivamente, da partilha da terra. Em algumas invasões, como a da Fazenda Macaxeira, foco do conflito que deu origem à matança da semana passada, usaram lenços para esconder o rosto. Nove entre dez de seus integrantes são eleitores do PT, mas Lula tem menos influência ali do que em qualquer outra corrente do PT. Com orçamento declarado de 800 000 reais por ano, sessenta funcionários e sede em 22 Estados, o MST recebe alguma ajuda externa e muito auxílio interno. Cada família assentada entrega à organização o equivalente a 1% de sua produção – pode ser em dinheiro, em sacos de feijão ou até em galinhas.